Resumo: O presente trabalho tem como principal objetivo discutir, sob o prisma legal e social, a evolução da igualdade de gênero, especialmente o papel exercido pelas mulheres na sociedade contemporânea. Para tanto, analisa-se o direito à igualdade como espécie de direito humano, devendo ser respeitado por todos os países. Embora, atualmente, as mulheres representem mais da metade da população, ainda sofrem discriminação, sendo a sua liberdade de escolha, muitas vezes anulada. O que se propõe com o presente artigo é garantir, de forma livre, o direito à igualdade de gênero, sem imposições ou intervenções desnecessárias por parte dos Estados. Assim, a mulher deve ser livre para traçar o seu caminho, bem como para decidir preservar ou não aspectos culturais de seu povo.
Palavras chaves: mulher, direitos humanos, igualdade de gênero, diversidade cultural, liberdade.
Abstract: The main objective of this paper is to discuss, from a legal and social point of view, the evolution of gender equality, especially the role played by women in contemporary society. In this way, the right to equality is analyzed as a kind of human right and must be respected by all countries. Although women currently account for more than half of the population, they are still discriminated against and their freedom of choice is often nullified. The purpose of this article is to guarantee, in a free way, the right to gender equality, without imposition or unnecessary intervention by States. Thus the woman should be free to chart her way as well as to decide whether to preserve cultural aspects of her people.
Key words: women, human rights, gender equality, cultural diversity, freedom.
Sumário: Introdução; 1 Da Igualdade de Gênero no plano nacional e internacional; 2 A definição dos direitos humanos – perspectiva universal e relativista; 3 Universalismo de chegada e universalismo de partida: uma análise a partir da hermenêutica diatópica; 4 Interculturalismo e multiculturalismo: a questão da igualdade de gênero; Conclusão; Referências.
Introdução
A igualdade entre o homem e a mulher sempre foi objeto de debate nos diversos ordenamentos jurídicos existentes.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a igualdade deixou de ser meramente formal, exigindo que homens e mulheres fossem livres para fazer as suas escolhas e desenvolver as suas capacidades sem a interferência ou limitação de estereótipos.
Aliado a essa nova visão, as mulheres ganharam espaço na sociedade e passaram a ter acesso à educação, oportunidades no trabalho e na carreira profissional, acesso adequado à saúde, acesso ao poder e influência, bem como a busca pela sua saúde sexual e reprodutiva, inclusive com a possibilidade de definir o planejamento familiar.
A igualdade de gênero é consequência da expansão dos direitos humanos, reflexo evidente das conquistas de uma sociedade. No plano internacional, a promoção dos direitos humanos se dá no plano legislativo, por meio da edição de normas internacionais e no plano judicial ou quase judicial, hipótese em que tais normas são aplicáveis a casos concretos de violações de direitos humanos.
Assim, atualmente, qualquer política pública ou legislativa que vise eliminar o direito à igualdade de gênero deve ser reprimida não apenas no âmbito interno, mas também no plano internacional, gerando a responsabilidade estatal internacionalmente. Os direitos humanos são universais, indivisíveis, imprescritíveis e irrenunciáveis. Ademais, a internacionalização dos direitos humanos consolidou a interpretação universal desses direitos, não mais aplicados ao sabor dos interesses nacionais.
Destaca-se que, é a partir dessa perspectiva universal dos direitos humanos que o presente artigo pretende analisar a igualdade de gênero. Os direitos de as mulheres usufruírem em igualdade com os homens de todos os direitos na sociedade são unânimes em todo o mundo? Os aspectos culturais de uma determinada sociedade são levados em conta? Como se define um determinado direito como universal? São os tipos de questionamentos que o presente artigo pretende responder, chegando a uma solução razoável para os possíveis conflitos existentes a partir da aludida interpretação.
1 A igualdade de gênero no plano nacional e internacional
A igualdade é consagrada no artigo 5º da Constituição Federal Brasileira, garantindo que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, podendo usufruir das mesmas oportunidades e papeis dentro de uma sociedade.
No passado, as mulheres se ocupavam com os afazeres domésticos e eram educadas para serem a base da família que, contudo, era comandada pelos homens. Assim, as mulheres não possuíam espaço na sociedade, não possuindo sequer o direito de participar da vida política do estado como cidadãs. Até aproximadamente o início do século XX, o voto, na quase totalidade dos países, era um direito exclusivo dos homens.
O contexto da igualdade está interligado à promoção da cidadania e a dignidade da pessoa humana. Com o advento do neoconstitucionalismo, após o fim da Segunda Guerra Mundial, a Constituição passou a ser o centro do sistema jurídico e suas normas passaram a ter eficácia irradiante para o resto do ordenamento. Os princípios assumiram o caráter de norma jurídica ao lado das regras e passaram a ser utilizados em casos concretos. O juiz deixou de ser “a boca da lei” e passou a ter um papel mais ativo na implementação dos direitos garantidos constitucionalmente, sendo considerado um intérprete da Constituição. A sociedade evoluiu e com ela o direito também assumiu novos contornos. Foi necessária a consagração de direitos fundamentais, dentre eles, a igualdade formal e material, principalmente com relação à mulher.
No plano internacional, diversos diplomas passaram a consagrar a igualdade de gênero como direito humano, devendo ser efetivado por todos os países. Dentre eles destacam-se a Carta das Nações Unidas, de 1945; a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; a Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis a Mulher, de 1948; a Convenção sobre Direitos Políticos da Mulher, de 1953; a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969; a Convenção para Eliminar Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, de 1979; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, de 1994 e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, de 1994.
Vale mencionar, ainda, a criação, no plano nacional, do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM, que consiste em órgão colegiado vinculado à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e tem por finalidade formular e propor diretrizes de ação governamental voltadas à promoção dos direitos das mulheres e atuar no controle social de políticas públicas de igualdade de gênero.
Nos termos do Decreto n. 6.412, de 25 de março de 2008, cabe ao CNDM participar na elaboração de critérios e parâmetros para o estabelecimento e implementação de metas e prioridades que visem a assegurar as condições de igualdade às mulheres e ainda propor sugestões relativas à implementação do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM, devendo também adotar estratégias de ação visando ao acompanhamento, avaliação e fiscalização das políticas de igualdade para as mulheres, desenvolvidas em âmbito nacional, bem como a participação social no processo decisório relativo ao estabelecimento das diretrizes dessas políticas.
2 A definição dos direitos humanos: perspectiva universal e relativista
Não é tarefa fácil definir quais direitos devem ser considerados universais. Isso porque cada país tem a sua cultura e a sua sociedade, o que muitas vezes gera conflito no plano internacional.
Em uma perspectiva universalista, os direitos essenciais do ser humano como o direito a vida, à liberdade, igualdade, moradia, educação, dentre outros, devem ser garantidos por todos os países, não sendo aceita qualquer objeção estatal a fim de afastar a garantia de tais direitos aos seus cidadãos.
Contudo, os problemas surgem quando há tensão entre o universalismo e o respeito à diferença cultural. Como explicar a poligamia permitida e aceita no Islam? Como explicar a sujeição da mulher ao homem em seu aspecto cultural? E quando houver confronto entre a cultura predominantemente ocidental e a oriental?
Boaventura de Souza Santos contrapõe dois conceitos: a globalização hegemônica e o cosmopolitismo, estando ambos relacionados com a oposição entre universalismo e relativismo. Enquanto o primeiro pressupõe uma moral universal, em que os direitos essenciais devem ser garantidos por todos os países, independente do aspecto cultural, o segundo refuta a concepção universalista dos direitos humanos, considerando essa interpretação como desrespeito às minorias, tendo em vista que são impostos valores considerados universais normalmente por países ocidentais, o que é chamado de globalização hegemônica. Para os relativistas, a noção de direito está relacionada ao sistema político, econômico, social, cultural de cada país. Por essa razão, impossível considerar que há uma moral universal, até pelo fato de o universalismo partir de conceitos particulares antes de se chegar a um conceito amplo e universal.
3 Universalismo de chegada e universalismo de partida: uma análise a partir da hermenêutica diatópica
O conceito de universalismo de chegada e partida surgiu a partir da dicotomia existente entre universalismo e relativismo, na tentativa de solucionar os impasses existentes entre as duas concepções.
O universalismo de partida é a concepção tradicional do universalismo e os defensores dessa concepção partem de um conjunto de direitos preestabelecidos, normalmente pela cultura ocidental, desconsiderando, muitas vezes, características culturais importantes e marcantes de determinado povo. Na maioria das vezes, é regido por uma influência capitalista, gerando uma situação de opressão. Para essa corrente, seriam inadmissíveis alguns aspectos da cultura islâmica, como, por exemplo, a discrepância entre o papel social da mulher e do homem. Isso porque há um pressuposto do direito a igualdade de gênero, sendo este universal e indisponível.
Já o universalismo de chegada ou de confluência, conceito trazido pelo espanhol Joaquim Herrera Flores, propõe um diálogo entre as diferentes culturas, de forma que os indivíduos tentem chegar a uma concepção universalista de direitos humanos através da convivência entre os povos, respeitando as diferenças, sem intuito de excluir nenhum ser humano na luta por seus valores. É a partir dessa concepção que se propõe a hermenêutica diatópica, configurando o entrelaçamento das culturas, sem a imposição de determinados direitos. Assim, para se caracterizar determinado direito como irrenunciável e indisponível, o diálogo é imprescindível, pois é através dele que há o reconhecimento da incompletude mútua das culturas. Trata-se do universalismo que respeita as diferentes culturas existentes, sem imposição de valores predominantes na cultura ocidental.
Assim, reconhecendo que nenhuma cultura é completa e superior as demais, a hermenêutica diatópica permite que os indivíduos cheguem a uma concepção universalista dos direitos humanos por meio da convivência, dos diálogos interculturais, de forma interativa, sem desprezar qualquer forma de viver de um determinado povo. Essa hermenêutica propõe o fim da dicotomia existente entre universalismo e relativismo, a fim que que os direitos humanos sejam implementados progressivamente.
4 Multiculturalismo e Interculturalismo: a questão da igualdade de gênero
O multiculturalismo consiste na coexistência de diversas culturas dentro de um mesmo território, independente da igualdade. Admite que as culturas possam se integrar, porém não descarta a hegemonia de uma cultura sobre outra.
Já a perspectiva do universalismo de confluência, por meio da hermenêutica diatópica, tem como pressuposto a interculturalidade. Essa consiste não apenas na mera coexistência de diversas culturas dentro de um mesmo território, mas na efetiva interação entre as mesmas, com o respeito mútuo por parte de todos os indivíduos.
O Brasil, por exemplo, é caracterizado por sua diversidade cultural, possuindo diversas regiões com características marcantes. O nosso ordenamento tutela, por exemplo, os direitos dos índios, devendo a sua forma de viver ser respeitada pelo Estado e pela sociedade, nos termos da Constituição Federal.
É comum que mulheres indígenas se dediquem à família, ficando responsáveis pela criação de seus filhos, optando por não ingressar, por exemplo, no mercado de trabalho. Tal opção de vida não pode ser encarada como uma violação do direito à igualdade de gênero, desde que àquelas mulheres indígenas possam optar por viverem da forma que considerarem mais adequada.
O que se pretende é evitar a imposição de um determinado modo de viver, sob a alegação que trata-se de respeito aos direitos humanos.
Obviamente, refuta-se, também, o estereótipo da mulher como responsável pela família e pelos afazeres domésticos. Atualmente, a mulher pode e deve ocupar o mesmo papel dos homens na sociedade. Contudo, o interculturalismo propõe o respeito às diferenças, às culturas, ao modo de viver de uma comunidade.
Exemplificando: aos olhos da cultura ocidental, a imposição, pelo Islã, do uso de burca por mulheres, configura desrespeito à igualdade de gênero, colocando a mulher como submissa ao homem. Por meio do universalismo de chegada, deve-se possibilitar o diálogo intercultural em tais países, de forma que as mulheres optem ou não pelo uso da burca. Deve ser garantida a elas a opção de uso de tais vestimentas, eis que a imposição de um determinado modo de viver implica em violação do direito à igualdade, bem como à liberdade de escolha e de expressão.
Assim, desde que aludidas mulheres optem, livremente, pelo uso da burca por uma questão cultural, não há qualquer violação da igualdade de gênero, uma vez que essa escolha foi livre e consciente.
Aqui, há um conflito com o papel exercido pelo Estado. Enquanto a progressão da humanidade prega o Estado mínimo, até como forma de concretização dos direitos humanos, os direitos de segunda e terceira geração pressupõem que o Estado é o principal garante desses direitos.
Por essa razão, a participação da sociedade por meio do diálogo, hoje concretizada por meio da democracia deliberativa, é medida essencial, pois é por meio dela que todos serão respeitados dentro de uma comunidade, independente de raça, cor, etnia ou aspectos culturais.
Uma sociedade justa pressupõe o respeito à diferença e a efetivação de políticas públicas de acordo com os anseios de seu próprio povo.
Conclusão
O debate sobre a igualdade de gênero e a consequente universalização dos diretos humanos é, certamente, muito mais complexo do que aquele feito no presente trabalho. O efetivo processo de universalização dos direitos humanos não é tarefa fácil e depende de diversos fatores, todos relacionados com a ordem política, econômica e social de diversos países..
Por tais motivos, torna-se essencial o diálogo, pois é por meio dele que as pessoas decidem valores essenciais em uma comunidade, bem como respeitam as minorias e os diversos modos de vida existentes dentro de uma sociedade. Nesse ponto, imperioso destacar a importância da liberdade de escolha, que também deve ser reconhecida como direito fundamental. Por meio dela, as pessoas poderão decidir onde e como viver, traçando o seu projeto de vida e também a preservação de valores culturais.
Advogada. Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUC Minas. Especialista em Direito Público pelo Instituto de Educação Continuada na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais IEC PUC Minas. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/3025316271732770
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