Resumo A ordem jurídica sofreu, no transcurso da história, uma longa mudança evolutiva, que conduziu a uma multiplicidade de resultados, com a instituição básica de cinco correntes jurisdicionais, sendo que as que mais suscitam ponderações, são as correntes do Civil Law e Common Law, dada a vinculação que existe, inclusive histórica, entre a norma escrita e os costumes vigentes nas sociedades humanas desde tempos imemoriais. Uma análise jurídico-sociológica e hermenêutica, quanto à aplicabilidade da Common Law no Brasil, se faz necessário ante um pensar crítico-reflexivo evocado pela realidade sociológica brasileira, e as diferenças e afinidades que estes dois sistemas jurídicos apresentam entre si, e perante a realidade jurídico-social existente no Brasil.
Palavras-chave: Common Law. Civil Law. Direito Brasileiro.
1 INTRODUÇÃO
A ordem jurídica é fundamentada em sistemas cuja finalidade é sistematizar o Direito, e estabelecer os ditames de Justiça seguidos pelo povo ao qual atende e tutela; vinculando-se sempre aos ideais de soberania que se atrelam à nação. Face a isto, a herança histórica de um povo e sua bagagem cultural são determinantes para a fixação do sistema jurídico que há de incorporar, e pelo qual irá instituir suas leis, que, por sua vez, são responsáveis por regular a vida em sociedade.
É atentando para tal premissa que se observa a disparidade no que concerne ao surgimento de dois dos maiores sistemas jurídicos em vigor atualmente, o Civil Law e o Common Law; posto que emergiram em circunstâncias políticas e culturais completamente distintas, que conduziram, por um nexo de causalidade derradeiramente previsível, ao instituir de formações jurisdicionais díspares, dotadas de conceitos e institutos próprios, mas que possuem certa afinidade.
O Brasil, segue, presentemente, o sistema jurídico da Civil Law, que o tem acompanhado desde sua colonização por Portugal, nos anos de 1500. Todavia, as alterações que este sistema jurídico tem sofrido a nível mundial, e, em especial no Brasil, o tem aproximado, ainda que de forma tímida, do sistema jurídico da Commom Law; ao se cravar uma observância aos julgados e à influência dos costumes nos ditames da Justiça. É neste contexto, onde, embora existam diferenças entre os sistemas há também certa afinidade entre eles, é que a aplicação da Common Law no Brasil se levanta como um fator jurídico-social que clama por um pensar sociológico, dada a máxima da Justitia Societatis Fundamentum.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 Civil Law e Common Law
Na seara jurídica contemporânea, se observam cinco sistemas jurídicos, o Direito Romano-Germânico (Civil Law ou Continental Law), a Common Law, o Direito Consuetudinário, o Direito Muçulmano, e o Sistema Jurídico Misto (Common Law aliada à Civil Law); sendo, os portadores de maior destaque e de maior aplicação, a Common Law e a Civil Law. Ad initio, faz-se mister diferenciar estes grandes sistemas jurídicos. A Common Law se fundamenta na lei não escrita, no direito jurisprudencial e nos costumes; enquanto que a Civil Law se alicerça na lei devidamente positivada e codificada.
O Direito foi, durante um vasto lapso temporal, fundamentado em costumes e usos comuns às sociedades na qual se instaurava; advindo daí o sistema jurídico denominado Common Law, se iniciou no fixar jurídico dos costumes que se apresentavam no tecido social de um povo, mediante o reconhecimento de tais costumes como normas de conduta pelos tribunais; sendo, de uma forma simplista, a fixação dos costumes como elementos de direito, por meio dos quais o cidadão deveria se pautar, dado que detinham força normativa para a sociedade em que se inseriam. O reconhecimento destes direitos baseados nos costumes, por parte dos tribunais, gerou um entendimento jurispudencial que tem, neste sistema jurídico, o caráter de lei; uma vez que os tribunais se pautam por tais entendimentos, sobretudo de julgados anteriores, para exarar e fundamentar sentenças, criando o direito por meio de sua declaração – muito embora existam diversos entendimentos e posicionamentos, não havendo um consenso doutrinário acerca deste fato, posto que Blackstone (1979, v. 1, p. 69) defende que o direito é meramente declarado, e Bentham e Austin apud MacCormick (1966, p. 204) alegam ser o direito criado pelos juízes – havendo, contudo, na Common Law, um respeito obrigatório aos precedentes. Embora este reconhecimento dos costumes fosse algo notado desde a antiguidade, o sistema da Common Law, nos contornos conhecidos na contemporaneidade advém do sistema inquisitório inglês dos séculos XII e XIII, e, sobretudo, do reinado de Henrique II, em 1154, onde se implantou o stare decisis, que é a obediência aos precedentes. Nota-se que o clamor social também influi no Common Law, como, e.g. no assassinato de Thomas Becket, que levou a certo retrocesso deste sistema jurídico, e, mais ainda, com o implantar do parlamentarismo, que impôs limites aos costumes e precedentes, ao codificar alguns costumes na forma de lei.
Com os romanos, observa-se um maior desenvolvimento da prerrogativa de escrever, sistematizar e codificar os costumes; muito embora a aplicação de elementos costumeiros não positivados fosse passível de acontecer. É em decorrência desta forma de Direito, mormente denominada Civil Law, que se tem um sistema jurídico fundamentado em leis escritas e codificadas, que englobam de forma geral e genérica, os casos particulares; cuja característica principal, além de ter como lastro a norma escrita, é apresentar um número extenuantemente maior de leis positivadas, em comparação com o Common Law; posto que os operadores do Direito, ao se depararem com um caso concreto, podem e devem recorrer às leis codificadas, analisando a que melhor se adequa, para que esta seja aplicada, sendo que os princípios do Direito, neste sistema, são elementos objetivos advindos da lei, aplicada com o intuito de assegurar um direito subjetivo.
O Civil Law teve sua gênese primal, na forma como presentemente se nota nos ordenamentos jurídicos das nações, sob os auspícios do paradigma jurídico do Estado Liberal, respaldado pelo advento dos ideais desfraldados pela Revolução Francesa, levada a efeito pela Burguesia no ano de 1789, e que sobrepôs-se ao Absolutismo e deu início ao denominado Constitucionalismo. Dado o momento histórico em que se vivia, em que a sociedade visava, sobretudo, impedir o absolutismo, limitando o poder estatal, surgiu a necessidade de se instituir uma formalismo jurídico onde as normas legais fossem fixadas de forma indubitável, e onde a hermenêutica interpretativa do texto legal não fosse passível de desvirtuá-lo, sob pena de um autoritarismo político e/ou jurídico se impusesse à sociedade.
Deste modo, o Sistema Jurídico do Civil Law caracteriza-se pelo fato de as leis serem a pedra primal da igualdade e da liberdade, posto que objetivava proibir o juiz de lançar interpretação sobre a letra da lei, fornecendo, para tanto, o que se considerava como sendo uma legislação clara e completa; onde, ao magistrado, caberia apenas proceder à subsunção da norma, solucionando, assim, os litígios, sem que haja uma necessidade premente de se estender ou restringir o alcance da lei, e sem que exista a ausência ou conflito de normas. Deste modo, ao se manter o juiz atado ao escrito na lei, se obteria a segurança jurídica, sendo este um elemento indispensável às decisões judiciais. Tal segurança seria originária na própria lei que mitiga a capacidade interpretativa do juiz, de modo que este não favorecesse a um dos litigantes e prejudicasse o outro. Nota-se ai, um ideal de fraternidade – um dos ideais apregoados pela Revolução Francesa – posto que a norma jurídico positivada também não favorece a um dos contendores em detrimento do outro, por ser isonômica e equânime, sendo igual para ambos, independentemente do pólo em que se encontram na lide, e da condição social que detêm. Assim, o sistema da Civil Law, não apenas idealizou de forma fantasiosa que o magistrado apenas atuaria a vontade da norma, como presumiu que o cidadão seria detentor de segurança jurídica e previsibilidade no tocante às relações sociais, originárias na segurança de ter o juiz togado como mero aplicador subserviente das leis positivadas e codificadas.
Esta restrição do juiz togado, concedida pela lei, se mostra em consonância com o princípio da tipicidade das formas processuais vigente no Estado Liberal, sendo, conforme Chiovenda (1901) apud Denti (1993), as formas do processo, uma “garantia das liberdades” dos jurisdicionados contra o arbítrio do magistrado; uma vez que existe uma “estreita ligação entre a liberdade individual e o rigor das formas processuais”. Nesta acepção, ao se aferir o poder de atuação do magistrado pelo texto da lei, exercer-se-ia um controle da atividade jurisdicional, assegurando às partes que o juiz não haveria de exceder os ditames e confins das praxes processuais; sendo, neste feito, a lei, uma forma de ‘conter’ o Poder Judiciário.
Deste modo, as leis escritas e devidamente positivadas passaram a ser o mecanismo pelo qual todo o ordenamento jurídico se pautava; sendo que os juízes não detinham o poder de alterar as normas, cabendo, inicialmente, a eles, a mera aplicação da lei, e, posteriormente, lhes sendo permitida uma certa autonomia interpretativa, desde que esta interpretação se limitasse à adequação ao caso concreto, não maculando o texto normativo, alterando-o, extrapolando-o ou cerceando-o. Observa-se que este entendimento se fazia necessário, à época, a fim de se interpor uma desvinculação para com o ranço medieval existente, uma vez que a hierarquização de classes sociais vigente na Idade Média fazia com que o Direito não fosse considerado como um conjunto de normas abstratas e gerais válido para todos, mas sim, como discorre Menelick de Carvalho Netto (2004, p. 30), como um
“ordenamentos sucessivos e excludentes entre si, consagradores dos privilégios de casta e facção de casta, consubstanciados em normas oriundas da barafunda legislativa imemorial, nas tradições, nos usos e costumes locais (…)”
A positivação das normas como forma de impedir abusos, é pontuada, ainda, por Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (2002, p. 55 – 57) ao dizer
“Sob o paradigma liberal, cabe ao Estado, através do Direito Positivo, garantir a certeza nas relações sociais através da compatibilização dos interesses privados de cada um com o interesse de todos, mas deixa a felicidade ou busca pela felicidade nas mãos de cada indivíduo […]
o Direito é uma ordem, um sistema fechado de regras, de programas condicionais, que tem por função estabilizar expectativas de comportamento temporal, social e materialmente generalizadas, determinando os limites e ao mesmo tempo garantindo a esfera privada de cada indivíduo”.
Esta prerrogativa da norma legal como garantidora de direitos e, ao mesmo tempo, como elemento de mitigação da arbitrariedade é habilmente discorrida por Thibau et. al (s.d., p. 3), que, pretendendo discorrer acerca da função da tripartição dos poderes estatais como forma de assegurar a proteção da esfera privada dos indivíduos mediante o impedir de súbitas intervenções governamentais e particulares, diz que
“o indivíduo que, no Absolutismo, apresentava-se como súdito do monarca, coloca-se, no primeiro paradigma do Constitucionalismo, como senhor de si e de suas terras, submisso apenas a um direito legitimado pela sua formalidade que atinge a todos, inclusive ao Estado, embora de maneira materialmente desigual.”
O entendimento de Thibau é corroborado por Leal (2002, p. 26), para quem o sistema jurídico do Civil Law assegura que “todos estariam adstritos à prática de atos autorizados em leis previamente aprovadas pelos parlamentos”.
Nota-se, todavia, que presentemente, com o paradigma do Estado Democrático de Direito, e com o Neoconstitucionalismo, o Civil Law sofreu tangíveis modificações, a fim de se adequar à realidade vivenciada pelas sociedades contemporâneas, mas detém ainda como marco primal, o pautar pelas normas escritas, tida como imprescindível para a Justiça, por meio da declaração judicial da lei. Dentre as modificações notadas, há a adequação ao controle difuso e concentrado de constitucionalidade das leis, e a prevalência da Justiça sobre o Direito caso estes se tornem conflitantes. Nota-se, ai, um aproximar da Civil Law para com a Common Law, posto que este alterar normativo e jurisdicional com base na dialeticidade de situações apresentadas ao judiciário, é uma característica deste sistema jurídico; o que infere que complementa o Civil Law, aperfeiçoando-o, como, e.g., com o respeitar aos precedentes jurisdicionais que geram a jurisprudência.
Isto se deve à própria evolução jurisdicional, pois, com o transcorrer inexorável do tempo, e o aperfeiçoamento das relações políticas, sociais e jurídicas, tornou-se inequívoca a necessidade de se atribuir aos juízes e às partes uma maior gama de poderes, sobretudo no que tange à interpretatividade da norma, e ao respaldo concedido pela doutrina jurídica e pela jurisprudência; consentindo que os jurisdicionados e os operadores do Direito utilizassem a técnica processual em conformidade com as realidades que se apresentavam de forma concreta e pormenorizada, abrangendo um direito material, de modo que o juiz pudesse, de fato, tutelar o direito em questão. Da mesma forma, é manifesto que o ideal de uma completude de leis que abarquem todos os possíveis casos concretos é um ideal deveras utópico; ante o que, visando sanar tal mazela, o Direito Brasileiro estipulou, no escopo do Decreto-Lei nº 4.657 de 04 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), em seu Art. 4º, que: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
A utopia anteriormente mencionada decorre do fato de que há uma impossibilidade técnica essencial no que pertine à tutela puramente legal de toda a vasta gama de situações processuais e necessidades materiais de direito; de modo que a lei não consegue conter em si todos os casos e procedimentos passíveis de tutela, assim como as matizes fornecidas pelas particularidades de cada uma das situações factuais e jurídicas. Do mesmo modo, o legislador se vê impossibilitado, pelas mesmas razões, de antever, e tutelar, no texto da lei, todas as carências jurídico-sociais do direito material; uma vez que tais carências se alteram constantemente, e se apresentam sob variados espectros segundo as sutilezas dos casos concretos a que se relacionam.
Como panacéia para tal, fez-se necessária a elaboração de normas que concedessem às partes e aos juízes, a faculdade de reconhecer, face a um conceito jurídico indeterminado, quando um dispositivo legal pode ou não ser utilizado no entremear da técnica processual, individualizando, assim, mediante as circunstâncias casuísticas e factuais, o instrumento processual que melhor serve ao caso que se expõe; sendo, como anteriormente exposto, o Decreto-Lei nº 4.757/42, uma das manifestações deste proceder no Ordenamento Jurídico Brasileiro, juntamente com o Art. 5º, XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Marinoni (2009, p. 52) fornece impecável explanação sobre tal feito, ao dizer:
“Nesses casos, a concretização da norma deve tomar em conta as necessidades de direito material reveladas no caso, mas a sua instituição se funda no direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. O legislador atua porque é ciente de que a jurisdição não pode dar conta das variadas situações concretas sem a outorga de maior poder e mobilidade, ficando o autor incumbido da identificação das necessidades concretas para modelar a ação processual e o juiz investido do poder-dever de, mediante argumentação própria e expressa na fundamentação da sua decisão, preencher os conceitos jurídicos indeterminados ou individualizar a técnica processual capaz de lhe permitir a efetiva tutela do direito material. […]
De qualquer forma, o que realmente importa neste momento é constatar que o juiz que trabalha com conceitos indeterminados e regras abertas está muito longe do juiz concebido para unicamente aplicar a lei. Por isso mesmo, o sistema de precedentes, desnecessário quando o juiz apenas a aplica a lei, é indispensável na jurisdição contemporânea, pois fundamental para outorgar segurança à parte e permitir ao advogado ter consciência de como os juízes estão preenchendo o conceito indeterminado e definindo a técnica processual adequada a certa situação concreta.”
Mostra-se indubitável que a segurança no meio jurídico, e a previsibilidade de resultados são valores visados tanto pela Civil Law quanto pela Common Law, embora o primeiro sistema tenha suposto que tais elementos seriam obtidos por meio da lei, e da estrita e pura aplicação desta pelos operadores do Direito. Na Common Law, por outro lado, uma vez que nunca se instaurou dúvida acerca da interpretação das leis pelos juízes e demais operadores do Direito, posto que considera-se esta interpretatividade como um dos elementos fundamentais para que se obtenha a equanimidade e Justiça, o que fornece margem para decisões distintas em casos com pormenoridades diferentes, impera uma influência dos precedentes jurídicos, sendo este, o instrumento responsável por assegurar a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões que a sociedade necessita para que se desenvolva de forma plena.
Todavia, é fato inegável que a norma jurídica em qualquer que seja o sistema adotado, pode e irá gerar diversas interpretações, a depender do caso concreto que se apresenta, dos operadores do Direito envolvidos, na criticidade, argumentação e hermenêutica entronizadas no processo, e em uma vasta gama de variáveis; o que, por consequência, pode e de certa forma deve, gerar decisões jurídicas variadas.
Um dos maiores diferenciais, que, aliás, serve como ponto de distinção entre a Civil Law e a Common Law, é o fato de que na Civil Law, interpõe-se a suposição de que o magistrado não se vê vinculado às decisões jurisprudenciais, nem dele mesmo, nem do tribunal em que atua, tampouco dos tribunais que lhe são superiores; a exemplo do que ocorre com o Superior Tribunal de Justiça, a quem cabe definir a interpretação acerca de lei federal, evitando que cada estado da federação a faça a seu bel prazer, mas cujas decisões não detém qualquer efeito vinculante sobre os demais tribunais federais e estaduais. Tal proceder se mostra ainda mais estarrecedor pelo fato de tal ação não se ver justificada, o que, no mínimo, haveria de configurar um desrespeito ao dever constitucional de fundamentação. Na Civil Law, vigora a suposição de que os juízes não têm que se ater às decisões passadas, posto que considera-se que o vincular do magistrado ao passado, por qualquer meio que seja, exerce interferência sobre seu livre convencimento e consequente liberdade para emitir juízo. Tal proceder suscita questionamentos, dado que a decisão judicial se volta sempre para os jurisdicionados e para os Direitos sob tutela, o que evidencia certa contradição em decidir questões iguais de forma diversa, sem, que haja coerente e sólida justificativa para tal. Esta incoerência é bem exposta por Marinoni (2009, p. 36) ao dizer que:
“Como é óbvio, o juiz ou o tribunal não decidem para si, mas para o jurisdicionado. Por isso, pouco deve importar, para o sistema, se o juiz tem posição pessoal, acerca de questão de direito, que difere da dos tribunais que lhe são superiores. O que realmente deve ter significado é a contradição de o juiz decidir questões iguais de forma diferente ou decidir de forma distinta da do tribunal que lhe é superior. O juiz que contraria a sua própria decisão, sem a devida justificativa, está muito longe do exercício de qualquer liberdade, estando muito mais perto da prática de um ato de insanidade. Enquanto isto, o juiz que contraria a posição do tribunal, ciente de que a este cabe a última palavra, pratica ato que, ao atentar contra a lógica do sistema, significa desprezo ao Poder Judiciário e desconsideração para com os usuários do serviço jurisdicional.
É chegado o momento de se colocar ponto final no cansativo discurso de que o juiz tem a liberdade ferida quando obrigado a decidir de acordo com os tribunais superiores. O juiz, além de liberdade para julgar, tem dever para com o Poder de que faz parte e para com o cidadão. Possui o dever de manter a coerência e zelar pela respeitabilidade e pela credibilidade do Poder Judiciário. Além disso, não deve transformar a sua própria decisão, aos olhos do jurisdicionado, em um “nada”, ou, pior, em obstáculo que tem que ser contornado mediante a interposição de recurso ao tribunal superior, violando os direitos fundamentais à tutela efetiva e à duração razoável do processo. De outra parte, é certo que o juiz deixa de respeitar a si mesmo e ao jurisdicionado quando nega as suas próprias decisões. Trata-se de algo pouco mais do que contraditório, beirando, em termos unicamente lógicos, o inconcebível.”
Nota-se, todavia, que, presentemente, este não considerar de decisões pretéritas é uma inverdade, posto que muitas vezes, embora não em caráter obrigatório, os tribunais se baseiam em julgados anteriores do mesmo tribunal ou de outros, para exarar suas sentenças. A obrigatoriedade de observância das decisões anteriores também encontra-se cinzelada no ordenamento jurídico do sistema da Civil Law, ante a figura da Súmula Vinculante, que cria um laço de obrigatoriedade no observar dos julgados emanados dos tribunais superiores, por parte de todas as demais cortes jurisdicionais.
A Common Law, é um sistema jurídico que se desenvolveu em certos países, sobretudo de cultura anglo-saxônica, por meio das decisões dos tribunais e da cultura (tradições e costumes) tipicamente externada por estes povos, e não mediante atos provenientes de um processo legislativo propriamente dito, diferindo-se da vertente romano-germânica. Na Common Law, o Direito é criado e aperfeiçoado pelos tribunais e operadores do Direito, em um motu continuo et proprio, mediante a consideração das decisões tomadas pelos tribunais em casos anteriores, para a aplicação em novos casos que se apresentam ao judiciário; sendo que, caso inexista um precedente a ser considerado, os magistrados detêm a prerrogativa e autonomia de estabelecer um precedente, criando, desta forma, uma interpretatividade sobre o Direito, declarando-o.
É, todavia, errôneo considerar que na Common Law inexistem leis positivadas e codificadas, o que ocorre é que elas não constituem o ‘ponto único’ a ser considerado, sendo que há o que pode ser chamado de maior mobilidade interpretativa, onde as regras são adaptadas aos fatos expostos e às razões alcançadas pelos operadores do Direito e pelas partes, mediante o debate, o discurso e as teses elaboradas por advogados, promotores, jurisconsultos e magistrados. O que se observa neste sistema jurídico é que os costumes vigentes na sociedade se tornaram um baluarte desta, e, portanto, se tornaram normas de condutas, e, consequentemente, leis; cuja aplicabilidade não se vê exclusivamente vinculada à sua positivação. Neste contexto, outra diferenciação dos sistemas da Civil Law e da Common Law se revela; pois países que adotam a Civil Law, como o Brasil, por exemplo, apresentaram uma tendência a sistematizar os costumes de seu povo, codificando-os e convertendo-os em leis escritas. Já as nações onde a Common Law é o foco jurídico, inexiste a necessidade premente de se positivar e codificar estes costumes, bastando que eles existam, para serem considerados pelos tribunais.
No sistema da Common Law, quando as partes discordam quanto o Direito aplicável, o tribunal em que a ação está em curso, busca, uma solução precedentemente manifesta pelos tribunais competentes. No caso de se encontrar um precedente que dirima um caso semelhante, o tribunal é impelido a seguir o raciocínio usado na decisão anterior; fenômeno denominado ‘stare decisis’. Todavia, caso se mostre inequívoca a disparidade entre o caso em analise e os preceitos e jurisprudências anteriormente julgados, o tribunal deverá julgar o caso como sendo um caso inteiramente novo, decidindo como um ‘matter of first impression’ (trad. ‘assunto de primeira impressão’), que servirá, in futurum, como um precedente a ser seguido.
A bem da verdade, a explanação supra, expõe de uma forma superficial a Common Law, posto que na prática, este sistema é consideravelmente dotado de maior complexidade, sendo que as decisões de um tribunal são dotadas de caráter vinculante apenas em uma jurisdição específica, e, mesmo no antro de uma mesmo jurisdição, alguns tribunais se mostram detentores de maior influência que outros, sendo, um exemplo disto, os tribunais de recurso, cujas decisões são imbuídas de obrigatoriedade para com os tribunais inferiores daquela mesma esfera jurisdicional, e para as decisões vindouras do próprio tribunal.
2.2 A Common Law no Brasil
Tal como supra discorrido, o sistema jurídico da Civil Law já se encontra superado, ante o advento do constitucionalismo, que torna imperioso um considerar judicial sobre a lei positivada; e, também, mediante a impossibilidade de a norma tutelar de forma plena todos os Direitos que se manifestam nas situações concretas que ocorrem no meio social. Tais elementos levam a uma inequívoca ponderação acerca da lei, facultando ao Poder Judiciário o desconsiderar e o alterar tácito da norma, ante a premissa de se resguardar os Direitos e garantias expressos na constituição, e/ou vigentes nos costumes sociais; atentando para o fato de que o Direito não é proveniente da vontade própria do magistrado, mas sim de um Direito Subjetivo que clama por tutela. Nota-se ai, entretanto, que o ‘criar do Direito’ nestes termos, não detém a mesma força e qualidade das leis provenientes do Poder Legislativo, uma vez que as decisões judiciais não possuem, regra geral, a mesma característica de obrigatoriedade presente nas leis, para aplicações futuras.
Muito embora se conserve o sistema jurídico da ‘Civil Law’, ao menos formalmente, tendo, as leis, grande importância jurídica, as mudanças que se sucederam o aproximaram do sistema da Common Law; pois o Civil Law passou a incorporar características como a primazia do Direito sobre as leis, e da Justiça sobre o Direito. Isto se evidencia ante o reconhecimento de que as leis se encontram submissas ao Direito, que lhes é superior, e que, quando esta submissão não ocorrer, tais leis são nulas e desprovidas de eficácia, por não atender à sua função, que é o resguardo dos Direitos do povo e do Estado. Esta característica já era reconhecida no Common Law, como destacado por Coke apud Williams (2006)
“And it appears in our books, that in many cases, the common law will control Acts of Parliament, and sometimes adjudge them to be utterly void; for when an act of Parliament is against common right and reason, or repugnant, or impossible to be performed, the common law will control it, and adjudge such an Act to be void”[1]
Observa-se ai, que o controle legal, de forma que este se adequa ao caso concreto e à tutela de Direitos – mesmo aqueles omissos no texto legal – é necessário, e é uma característica presente na Common Law. Ao abrir o controle normativo para as esferas do Judiciário, o Civil Law se aproxima derradeiramente deste sistema, estando, assim, em um estágio onde as características dos dois sistemas jurídicos, em harmonia de desígnios visão aprimorar as relações jurídicas em prol da tutela de Direitos e garantias dos quais a sociedade é detentora. Neste diapasão nota-se que os costumes presentes na sociedade são fundamentais, pois é deles que emergem os Direitos passíveis de tutela legal e jurisdicional. Todavia, para que se tenha um nítido fundamento – sobretudo mediante o caráter positivista que ainda permanece do sistema da Civil Law – nota-se que tais direitos extraídos dos costumes são elencados na norma constitucional, por meio da qual pautam-se todas as demais normas e atos jurídicos, legislativos, políticos e sociais.
Tomando por lumem este ponto, nota-se que as leis têm o dever de se submeter aos ditames constitucionais, posto que esta é a norma política assecuratória dos direitos, que, por sua vez, são o alvo da Justiça. Assim, como discorrido por Coke, as normas legais são desprovidas de eficácia caso violem e/ou não tutelem os direitos inerentes às pessoas. É desta ótica que observa-se o germe primitivo do controle de constitucionalidade, que tem, justamente, esta função de controle normativo, como corroborado por Argüelles (2003, p. 774), que destaca que, em virtude do constitucionalismo presentemente entronizado no meio jurídico-social, à exemplo do Common Law, foi concedido aos magistrados o poder de controlar a lei a partir da Constituição, fazendo com que deixem de ser servos das leis, e assumam o dever de aplicá-las e interpretá-las em face dos direitos gravados na Constituição.
Neste ínterim, nota-se que o juiz, no ordenamento jurídico brasileiro, é detentor de um poder interpretativo dotado de grande significância, estando mais próximo da figura do magistrado que baila no sistema jurídico da Commom Law; mas, de certa forma, se distingue deste, tendo uma autonomia maior, por não ter que seguir, necessariamente, a obediência aos precedentes já fixados. Deste modo, a atividade do magistrado no ordenamento jurídico brasileiro, mais do que a mera subsunção da lei, e que o resguardar de costumes que se vertem em direitos, adquire contornos de criador da norma, ou melhor, de criador da tutela efetiva de direitos, ainda que isto requeira o desconsiderar e/ou o considerar parcial da lei, como colocado por Marinoni (2009, p. 21)
“Com efeito, se alguém perguntar a qualquer teórico do common law a respeito da natureza da função do juiz que não aplica a lei por reputá-la inconstitucional, que interpreta a lei conforme a Constituição ou que supre a omissão de uma regra processual que deveria ter sido estabelecida em virtude de um direito fundamental de natureza processual, certamente se surpreenderá. Tal atividade obviamente não significa declaração de direito e, assim, na perspectiva das doutrinas produzidas no common law, certamente revela uma atividade criadora, verdadeira criação judicial do direito.”
Este proceder jurídico presente no Brasil, que, embora siga o Civil Law, dado o viés Neoconstitucionalista que segue, sob os parâmetros que regem um Estado Democrático de Direito, concede esta autonomia aos magistrados, advém do fato de a lei encontrar seu fundamento e seus limites na norma constitucional, deixando de ter mera legitimação formal, e se encontrando atada de forma substancial aos direitos positivados na Constituição. Assim, uma vez que a lei, por si só, não detém valoração inafastável, mas encontra-se intimamente dependente de sua adequação aos direitos e garantias fundamentais, estando, a lei, circunscrita à sua conformidade com os direitos e garantias fundamentais, e não o oposto, como antes era defendido pela Civil Law; tal como defendido por Alexy (2001, p. 34).
Desta forma, fixa-se uma aproximação entre o Civil Law e o Common Law, ao passo que a primeira passou por um processo de transformação das concepções de direito e de jurisdição, fornecendo maior autonomia aos juízes, que passaram a ser detentores da faculdade de ‘moldar’ a lei ao caso concreto, a fim de se preservar os direitos; que não mais se encontram no texto legal, mas sim na Constituição, cabendo, destarte, à jurisdição, confirmar os direitos presentes na Constituição, e não meramente declarar a vontade legal; o que encontra certa semelhança à função dos magistrados na Common Law como garantidores dos direitos presentes nos costumes e tradições; com o diferencial de que na Common Law os juízes se vêem limitados à obediência aos precedentes, à excessão de quando estes são inequivocamente contrários ao caso concreto, quando, então, incidirá uma nova decisão, dada a inadequação dos precedentes existentes ao caso concreto que se apresenta.
Ante tal perspectiva, nota-se que o Poder Judiciário brasileiro adquire uma função típica do sistema jurídico da Common Law, ao instituir a figura do judge-made-law, havendo, assim, um direito jurisprudencial patente de moralidade política advinda da comunidade, mas que ao mesmo tempo não seja um discurso vazio e desequilibrado; seguindo a noção de direito como integridade, proposto por Dworkin (2007), a fim de que se institua o direito a partir de seu contexto histórico e cultural, de forma a não acarretar em rompimentos e/ou sobressaltos em uma sociedade cada vez mais complexa, onde ocorrem uma multiplicidade de mudanças sociais e econômicas. Assim, surge a função do Poder Judiciário como responsável pela interpretação normativa, visando a aplicação e resguardo dos direitos fundamentais, bem como como o responsável pelo tomar de decisões de conteúdo político e moral – daí parte o substrato para severas críticas de cunho legalista, segundo as quais isto seria uma atribuição arbitrária, posto que um poder não eleito não pode ser o detentor de tal prerrogativa; o que é refutado pela morosidade e insuficiência legislativa no atender das necessidades sociais. Porém, de forma análoga, o ordenamento jurídico brasileiro se distancia do sistema da Common Law, pelo fato de admitir decisões contrastantes em um mesmo tribunal, e pelo fato de existir a possibilidade de as decisões dos tribunais inferiores serem diversas das já tomadas pelos tribunais superiores. Quanto à isso, existe uma crítica quanto à segurança jurídica, que se vê, para alguns, prejudicada; como colocado por Barboza (2011, p. 16)
“Em ambos os casos há insegurança jurídica. Há insegurança quando o Poder Judiciário tem grande discricionariedade para decidir e dar significado ao conteúdo moral dos direitos fundamentais, assim como quando se imiscui em decisões políticas. Da mesma forma, decisões contrastantes de um mesmo Tribunal ou de Tribunais inferiores em relação aos Tribunais superiores também causam insegurança jurídica e instabilidade social.
Neste momento de decodificação do direito e supremacia dos direitos humanos, não se tem mais segurança jurídica no texto escrito; na verdade, talvez essa segurança nunca tenha existido e nunca venha a existir […]”
Há ainda outras vertentes de críticas, mais radicais, que defendem que há, por parte do Poder Judiciário, a prática de um ativismo jurídico, que visa suplantar a atividade legislativa, instituindo uma verdadeira ‘ditadura jurídica’. Contudo, percebe-se que tal argumento não encontra subsídios para se fixar, uma vez que o juiz presente em em Estado Constitucional, e, sobretudo, em um Estado Neoconstitucional, exerce papel diverso do juiz caracterizado pelo sistema jurídico da Civil Law. Isto porque, embora o juiz somente seja legítimo para proferir a sentença com base em norma criada pelo Poder Legislativo, em face da ausência de lei não restaria ao juiz outra alternativa senão declarar o Direito, ainda que este não tenha sido positivado; uma vez que o Direito Subjetivo não pode ser negado em face da ausência de Direito Objetivo, ou seja, face à omissão legislativa, cabe ao Judiciário assegurar o Direito, mesmo que não haja uma norma legal positiva que o preveja, a fim de que se instaure a Justiça entre as partes. Deste modo, o juiz é o responsável por construir a norma jurídica do caso concreto quando inexiste a norma geral, ou quando esta não está em conformidade com os princípios, direitos e garantias constitucionalmente estipulados como lastro de Justiça; tal como dissertado com maestria por Marinoni (p. 104 e ss.).
Face ao exposto, nota-se que, se, em um Estado pautado por uma Constituição, compete ao Poder Judiciário, na figura dos magistrados, nos mais variados graus de jurisdição, exercer controle sobre a atividade legislativa, interpondo análise quanto à adequação da norma positivada à Constituição, é mais que óbvio que suas atribuições não se limitam unicamente à lei que viola os direitos e garantias fundamentais, mas, ao contrário, se externam a toda e qualquer lesão ou ameaça a Direito, dado que, por força de norma constitucional, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”[2]. Assim, a ausência de lei que não permite a efetivação de um Direito – advinda da omissão do Poder Legislativo – não pode ser vista como uma opção do legislador proveniente da vontade popular, e refletor desta; uma vez que a Constituição tem força normativa de aplicabilidade imediata, ainda que em face à ausência de leis complementares, o que impede que o legislador desrespeite os direitos e garantias fundamentais, ao conferindo aos magistrados – em um incólume exemplo de juristocracia[3] – o poder-dever de controlar a lei e as omissões legislativas, a fim de assegurar a tutela de direitos e a obtenção da Justiça. Ante tal perspectiva, onde resta comprovada a omissão legislativa, não há senão uma omissão da proteção legal que cabe ao legislador conferir aos cidadãos; e, uma vez existente esta omissão, cabe ao juiz togado reconhecê-la, e determinar a supressão de tal omissão, a fim de se preservar o direito fundamental.
Este decodificar do Direito tendo vista sua constitucionalização, que suscita a mudança procedimental supra mencionada é um elemento de estudo doutrinário, tal como expresso por Barroso (2007, p. 37-38) ao dizer que “A fase atual é marcada pela passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico, de onde passa a atuar como o filtro axiológico pelo qual se deve ler o Direito […]. Há regras específicas na Constituição impondo o fim da supremacia […]”.
Observa-se ainda que a justificativa para que se interponha o entendimento jurisdicional ao ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo, em um misto de características do sistema da Civil Law e da Commom Law, a figura do ‘stare decisis’, ainda que de forma não vinculante entre os tribunais, decorre da aproximação destes dois sistemas no âmbito da jurisdição constitucional, onde a constitucionalidade das leis, e mais ainda, a tutela de Direitos, não requer a presença de normas positivadas, e, tampouco, a existência de uma Constituição rígida e positivada, mas sim, a presença de limites materiais que se fundamentam nos direitos e garantias fundamentalmente presentes no seio da sociedade humana, e, sobretudo, da sociedade em que se insere; assim como uma leitura moral da Constituição e do Direito.
Ao se analisar as afinidades presentes entre a Common Law e a Civil Law de um modo geral, é preciso atentar para o fato de que uma afinidade, para fins de comparação útil entre sistemas jurídicos, só existe caso eles possuam uma base ideológica comum, como colocado por Barak (2006, p. 198). Esta base ideológica é extraída do controle de constitucionalidade material das leis, denominada, na Common Law como ‘judicial review’, que se pauta pelos direitos e garantias instituídas no texto constitucional, e nos direitos humanos. O papel dos costumes é, também, outro ponto inalienável no considerar das afinidades da Common Law e da Civil Law no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que os costumes também atuam como elemento de sumária importância, a exemplo do cheque pós-datado, que não tem respaldo legal, sendo seu uso e aceitação um fruto dos costumes que perduram desde 1912. Prova da importância dos costumes, é o acolhimento jurisprudencial destes, uma vez que a Lei nº 7.357/85 determina que o pagamento do cheque seja efetuado na data de sua apresentação – desde que este seja válido – a entidade bancária se vê obrigada a realizar o pagamento; mas, tendo o emitente e o tomador convencionado o uso de cheque pós-datado, caso a apresentação deste se dê antes do prazo livremente convencionado pelo arbítrio da vontade privada, poderá, a parte lesada, exigir indenização do beneficiário com o qual havia convencionado a apresentação para pagamento em data futura, mesmo com a ausência de norma positivada neste sentido; como evidenciado pela jurisdição, que tutela este costume, mesmo ante o silêncio legislativo
"Indenização – Dano Moral – Cheque pós-datado. A apresentação prematura de cheque a estabelecimento bancário, resultando em encerramento de conta da conta do emitente, acarreta ao responsável a obrigação indenizatória por dano moral, que deve ser fixada de acordo com a gravidade da lesão, intensidade de culpa ou dolo do agente e condições sócio econômicas das partes" (TAMG, 5ª Câm. Cível, Ap. 190931-9, BH, Rel. Juiz Aloysio Nogueira – v. u., j. 27.04.95, DJ 09/08/95, in Revista Consulex, Ano IV, nº 43, julho/2000)
"Indenização – Dano Moral – Pessoa Jurídica. Perfeitamente admissível o deferimento de indenização a título de dano moral em favor de pessoa jurídica, e decorrente de protesto tirado indevidamente, bem como de abalo de confiança resultante de apresentação antecipada de cheque pré-datado" (TAMG, Ap. 230244-5, 3ª Câm. Cível, BH, Rel Juiz. Kildare Carvalho, v. u. j. 19.03.97, in Revista Consulex, julho/2000)
"Indenização – Dano Moral – Cheque pré-datado – Apresentação prematura pelo estabelecimento comercial. Importa dano moral o comportamento do estabelecimento comercial que, descumprindo acordo firmado com o consumidor, apresenta para saque cheque pré-datado cujo pagamento estava programado para data posterior"(TAMG, Ap. 233417-0, 3ª Câm. Cív., BH, Rel. Juiz Dorival Guimarães Pereira, v. u. j. 02.04.97, in Revista Consulex, julho/2000)
Ao se cravar um escrutínio sobre as diferenças da Civil Law e da Common Law no ordenamento jurídico brasileiro, constata-se, ab initio, que o valorizar das normas positivadas é um elemento diferenciador, mas que tem apresentado uma perca valorativa após a implementação do Neoconstitucionalismo como corrente de pensamento jurídico sob a qual se erige a hermenêutica legal, constitucional e principiológica. Outra disparidade constatada é o não obedecer aos precedentes instituídos pelos tribunais, como ocorre na Common Law. No Brasil observa-se que o vincular jurídico das decisões dos tribunais não é um elemento detentor de aplicabilidade plena e incontestável, sendo que apenas as súmulas portadoras da distinção de Súmula Vinculante têm uma aplicação direta e incontestável. Tal elemento, porém, a despeita das críticas que se instauram, alegando que o não vincular dos precedentes gera uma insegurança jurídica, é, de certa forma, positiva, por permitir uma melhor adequação da sentença e da lei ao caso que concretamente se apresenta ao Poder Judiciário, e detém estreita relação, ainda, com os direitos e garantias constitucionais dispostos no Art. 5º, LV da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a saber, a Ampla Defesa e o Contraditório. Mesmo o instituto da Súmula Vinculante é um elemento alvo de durázias críticas, uma vez que é visto como um mecanismo que ‘engessa’ o Poder Judiciário, castrando a independência dos tribunais, fossilizando a jurisprudência, e constituindo um verdadeiro obstáculo ao progresso do Direito; o que vai de encontro à democracia e à descentralização, posto que configura um espectro de uma ditadura procedimental das cortes judiciais, que passam a obrigar os magistrados a julgar segundo as súmulas e não à lei; como trazido à baila por Melo Filho (1998). Tecem-se ainda críticas que pontuam que o juiz se vê desprovido de sua autonomia julgadora, estiolando o espírito da legislação, e desvirtuando o próprio Judiciário, ao tolher a interpretatividade e aplicabilidade da norma ao caso concreto que se apresenta ao escrutínio do Judiciário, posto que o solapar da liberdade de decisão do juiz inibe os influxos argumentativos imprescindíveis à Justiça, ao cercear os movimentos em direções a novas maneiras de entender o caso e as normas que sobre ele incidem, culminando com um “abastardamento da função jurisdicional”[4], e com um legislar por parte do Poder Judiciário.
Frente ao exposto, observa-se que as diferenças existentes, sobretudo as que pertinem à observância aos precedentes, não configuram um desvirtuar, mas podem ser encaradas sob um prisma de aprimoramento do sistema jurídico; uma vez que o Neoconstitucionalismo rompe com a visão tradicional de ambos os sistemas jurídicos – Civil Law e Common Law – ao estabelecer a supremacia dos Direitos sobre as normas – positivadas ou não, legais ou jurisprudenciais – dotando as previsões legais ou jurisdicionais do escopo de mero início da solução, não sendo possível que na exterioração escrita das leis e nos entendimentos pretéritos dos julgados, sejam abarcados todos os elementos morais e individuais para a formação de toda a multiplicidade de sentidos que os casos podem deter.
Em um pensar reflexivo, nota-se que a aplicação do sistema jurídico da Common Law no ordenamento jurídico brasileiro, em concomitância com a preservação de certas características do Civil Law, ambos complementando-se mutuamente, e se adequando às imposições do Neoconstitucionalismo, leva a um melhor e mais dinâmico atendimento aos anseios sociais, tutelando de forma mais efetiva os direitos inerentes aos cidadãos, e atentando a bagagem histórica e a herança cultural da nação. Da mesma forma, há certo respaldo e clareza advindos da presença de ditames escritos, que, por meio do positivismo fornecem certa ‘noção’ dos direitos e deveres da população e do Estado. Observa-se, daí, que esta é uma combinação dotada de alta dialeticidade que está constantemente se construindo e reconstruindo, em um giro hermenêutico sócio-interacionista, onde a vontade popular é preservada pelo Direito, e participa ativamente da confecção deste, não apenas por meio do voto que elege os representantes do povo nas Casas do Legislativo, mas através do próprio Processo Legal, onde os litigantes perdem seu caráter de meros espectadores, e passam a atuar de forma participativa na construção do Direito, ao levarem para a lide, não apenas o evocar de normas positivadas – como no sistema da Civil Law – mas também os usos e costumes que vigoram no tecido social, e as referências jurisprudenciais, que podem ser empregadas como um elemento subsidiário na exposição e justificação dos fatos.
Assim sendo, perde-se o caráter aparentemente autômato, e passa-se a ter uma relação processual pautada pela hermenêutica constitucional e social, que visa, não o atender incondicional à letra da lei, e nem a observância absoluta dos precedentes fixados, mas sim o resguardar e efetivar de Direitos e Garantias Fundamentais, sobretudo as que se relacionam de forma prática e direta com os Direitos Humanos dos cidadãos; atendendo, de forma plena ao principal objetivo do Estado, que é servir ao povo que o compõe. A bem da verdade, possibilitar essa incursão social no processo judicial, mediante o atentar para os costumes vigentes nas relações sociais, marco da Common Law, resguarda de forma mais precisa os direitos das pessoas, e faz com que o Direito e a Justiça se tornem, com efeito, um fato social.
3 CONCLUSÃO
O ordenamento jurídico brasileiro segue o sistema jurídico romano-germânico, também denominado Civil Law, tendo por característica uma hipertrofia legislativa, onde impera um grande número de normas positivadas, que visam tutelar de forma genérica e abstrata os direitos dos quais os cidadãos são detentores, partindo da norma abstrata em direção ao caso concreto. Tais normas geram uma obrigacionaridade, onde o Poder Judiciário se encontra vinculado aos dispositivos legais, devendo se pautar por eles, e não detendo legitimidade para ‘inovar’ a matéria previamente legislada. Observa-se, todavia, um evoluir deste posicionamento – ainda que tímido – ante a incorporação de características típicas do Common Law, como a inserção da faculdade de complementação da lei por meio do considerar dos costumes nos casos em que a lei é omissa, bem como com a capacidade de se julgar, ante a ausência legislativa, pela analogia, os costumes, e os princípios gerais de direito.
O sistema jurídico anglo-saxão – Common Law –, que tem permeado na ordem jurídica brasileira, contando com afinidades e diferenças com relação a esta, apresenta como característica a criação das normas jurídicas tendo por lastro os precedentes fixados nos julgados anteriores, e no considerar dos costumes vigorantes no meio social, partindo do caso concreto para se fixar uma norma genérica abstrata.
A polimerização destes dois sistemas jurídicos, que exercem uma mútua influência na seara jurídica brasileira, que considera as normas, costumes, jurisprudências, valores morais e princípios como elementos constitutivos de direitos e imprescindíveis para a atividade jurisdicional, é algo de vital importância para o evoluir da hermenêutica jurídica, que prima pela defesa dos direitos da sociedade. Todavia, o espectro híbrido adquirido pela Civil Law sob a influência da Common Law no ordenamento jurídico brasileiro, sofre, tais como os dois sistemas primordiais, a influência do paradigma do Estado Democrático de Direito, e, sobretudo, do Neoconstitucionalismo; que hasteiam uma nova visão da atividade jurídica, suas acepções e finalidades. Sob este prospecto, a Constituição se torna a pedra angular, devendo toda a ordem jurídica de delimitar pelos traçados que esta estabelece, posto que é ela a responsável por refletir os anseios sociais, e os valores cultuados pela sociedade em que se insere. Desta forma, tanto as leis quanto as decisões jurídicas devem observância às determinações constitucionais, e devem prezar pela guarda e asseguração dos Direitos e Garantias Fundamentais expressos no texto constitucional.
Sob tal lábaro, que forma a estrutura constitucional da sociedade, e que estabelece indicação acerca do caminho a ser trilhado, a atuação jurisdicional que conta com características de ambos os sistemas jurídicos, é preciso voltar os olhos para as decisões pretéritas, analisando o que já foi dirimido na história legal, jurisprudencial e constitucional, não para que sejam cegamente usadas, mas para que se tornem uma fonte de inspiração para o julgo e preservação de direitos fundamentais, que detenha um acurado senso interpretativo, de modo a retratar a moralidade política brasileira. Ainda sob este pendão observa-se que não há uma posição e/ou definição derradeira, havendo sempre um novo elemento a ser considerado, e uma nova posição a ser defendida, face às particularidades do caso concreto, às alterações nos interesses sociais, e ao contexto das novas circunstâncias, situações e eventos que compõe a tecitura das decisões judiciais; honrando sempre a coerência com os ditames da Justiça.
O fato social que marca estes sistemas jurídicos é dotado de inequívoca dialeticidade, uma vez que evoca uma nova interpretação, que aperfeiçoa a o todo, a cada nova decisão prolatada, que servirá como elemento fundamentar para o próximo entendimento jurisdicional. Ante tal perspectiva, a previsibilidade e a segurança jurídica não se encontram apartadas do todo, mas entremeadas em um intermitente processo construtivo decorrente de uma articulação com os elementos anteriormente colocados na relação sócio-jurisdicional, com os os novos elementos apresentados, e com os elementos que detém a possibilidade de, em um futuro, impactar as decisões jurídicas e a própria sociedade; o que faz com que a significação última não desponte de imediato, mas sim tenha uma necessidade de leitura e releitura dos elementos jurisdicionais e sociais, para se fixar um substrato onde seja possível interpretar e reinterpretar as decisões jurídicas, de modo que estas adquiram novos contornos e significados, em prol dos interesses da sociedade.
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Notas:
[1] Trad. Livre: ““foi dito em nossos livros que, em muitos casos, o common law controlará leis do parlamento e, algumas vezes, decidirá que são elas absolutamente destituídas de eficácia; de modo que, quando uma lei do parlamento é contrária ao direito e à razão comum, com eles incompatível ou impossível de ser executada, o common law a controlará e decidirá pela sua nulidade”.
[2] Art. 5º, XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil, publicada no Diário Oficial da União n. 191-A, em 05 de outubro de 1988.
[3] Conforme defendido por Hirschl (2004), que emprega o termo como um identificador de um movimento de judicialização da política proveniente de reformas constitucionais, que conferiu poderes sem precedentes ao Poder Judiciário.
[4] Melo Filho (1998, p. 30).
Graduação em Direito pela Fundação Universidade de Itaúna, FUIT, Brasil; Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires, UBA, Argentina. Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-Minas; Pós-Graduado em Direito do Trabalho pela Fundação Getúlio Vargas – FGV; Advogado
Acadêmico de Direito no Centro Universitário de Formiga – UNIFOR-MG, FUOM
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