Resumo: O artigo aborda a questão da aplicação do Princípio da Insignificância pelo Delegado de Polícia em sua função de Polícia Judiciária e na condição de carreira jurídica. A questão é discutida na doutrina, sendo apresentados os argumentos existentes sobre o tema, bem como um breve estudo do próprio princípio em discussão. O referencial teórico é assentado na Teoria Geral do Direito Policial do autor lusitano Guedes Valente.
Palavras – chave: Princípio da Insignificância – Delegado de Polícia – Teoria Geral do Direito Policial – Aplicabilidade – Polícia Judiciária – Inquérito Policial.
Abstract: This article addresses the question of the application of the Principle of Insignificance by Police in its function of judicial police and provided legal career. The issue is discussed in doctrine and presented arguments on this theme as well as a brief study of the very principle under discussion. The theoretical framework is seated in the General Theory of Law Officer of the Lusitanian author Guedes Valente.
Keywords: Principle of Insignificance – Chief of Police – General Theory of Law Officer – Applicability – Judicial Police – Police Inquiry.
Sumário: 1- Introdução. 2- O Princípio da Insignificância. 2.1 – Conceito. 2.2 – Origem 2.3 – Algumas distinções importantes. 2.4- Previsão legal e acatamento doutrinário – jurisprudencial no Brasil. 3- O Delegado de Polícia e o arquivamento da “notitia criminis”. 4- Teoria Geral do Direito Policial em Guedes Valente e a Polícia como instrumento de garantia dos direitos fundamentais. 5- Conclusão. 6- Referências.
Summary: 1 – Introduction. 2 – The Principle of Insignificance. 2.1 – Concept. 2.2 – Origins. 2.3- Some important distinctions. 2.4-Forecast legal and doctrinal compliance – jurisprudence in Brazil. 3 – The Chief of Police and the filing of "notitia criminis".4 – General Theory of Law Officer in Guedes Valente and police as an instrument to guarantee fundamental rights. 5 – Conclusion. 6 – References.
1-INTRODUÇÃO
O acatamento e aplicação do denominado “Princípio da Insignificância ou da Bagatela” no Direito Penal brasileiro tem sido tema de muitas discussões que vão desde o repúdio absoluto até sua aceitação de acordo com determinados regramentos que vêm sendo moldados pela doutrina e pela jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal.
Em geral o Princípio da Insignificância tem contado com aceitação nos meios jurídicos brasileiros, razão pela qual o desenvolvimento de um estudo sobre sua aplicabilidade seria de parca relevância. Entretanto, o objeto deste trabalho se constitui da análise de uma faceta específica da aplicabilidade do Princípio da Insignificância no dia a dia policial e forense. Trata-se da abordagem da questão que diz respeito à possibilidade ou não de sua aplicação diretamente, já no estágio da investigação criminal, pela Autoridade Policial, ou seja, pelo Delegado de Polícia. Afinal, diante de um fato bagatelar, poderia o Delegado simplesmente deixar de lavrar um auto de prisão em flagrante ou de instaurar inquérito policial, mediante despacho fundamentado? Poderia, inclusive, deixar de proceder sequer ao registro da ocorrência? Ou estaria o reconhecimento da insignificância atrelado ao crivo ministerial e judicial necessariamente?
Essa problemática não é despicienda, pois que influi nas decisões a serem tomadas pelos operadores do Direito em seu cotidiano e, especialmente, apresenta grande relevância naquilo que concerne ao Direito de Liberdade dos cidadãos, bem como ao seu direito de não serem submetidos a atos de investigação e coerção policial sem justa causa.
O estudo da questão posta implica inicialmente numa apresentação do Princípio da Insignificância em termos conceituais, bem como em sua descrição prática e dogmática, abordando a polêmica em torno do tema e o estado atual de seu reconhecimento pela comunidade jurídica brasileira. No seguimento faz-se necessária a abordagem da amplitude e dos limites da atividade do Delegado de Polícia no que se refere à possibilidade de arquivamento de Boletins de Ocorrência ou quaisquer outros veículos de apresentação de “notitia criminis”. Isso porque somente tendo uma clara visão dessa amplitude e limites é que se pode concluir com maior segurança quanto ao campo legítimo de exercício das atribuições policiais enquanto manifestação de um chamado “poder – dever”. Em seguida será esboçada uma “Teoria Geral do Direito Policial” com fulcro nas pesquisas desenvolvidas pelo autor português Manuel Monteiro Guedes Valente, emprestando especial ênfase ao aspecto garantista inerente ao cumprimento das atribuições policiais. Com base nessas exposições é que se poderá chegar a uma visão adequada do papel do Delegado de Polícia como um dos garantidores (e na linha de frente) dos Direitos Fundamentais, ensejando uma melhor visão sobre sua eminente função no que tange aos casos abrangidos pelo Princípio da Insignificância. Por fim, far-se-á uma retomada dos tópicos desenvolvidos ao longo do trabalho, apresentando seu desenlace conclusivo.
2-O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
2.1–CONCEITO
O Princípio da Insignificância ou da Bagatela consiste na afirmação de que lesões mínimas, de parca significância, aos bens jurídicos tutelados, as quais não chegam a legitimar com proporcionalidade e razoabilidade a aplicação das severas e estigmatizantes sanções penais, tornam o fato atípico, impedindo, portanto, a atuação desse ramo sancionatório do Direito.
Trata-se de concepção que se assemelha à frase atribuída a Confúcio, a qual se tornou popular, de que “não se deve usar canhões para matar mosquitos”.
Em suma, como bem aduz Teles, o Princípio da Bagatela se refere ao tratamento adequado a lesões insignificantes, “aquelas que ao Direito Penal, por sua natureza limitada, por seus objetivos tutelares, não interessa proibir, dada sua insignificante lesividade”. [1]
Na dicção de Toledo:
“Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas”. [2]
Enfim, para que uma conduta, ainda que formalmente típica, adquira foros de relevância jurídico – penal capaz de ensejar a aplicação de sanções dessa natureza é necessário que ela tenha produzido alguma lesão ou ao menos perigo de lesão considerável a bens jurídicos tutelados.
2.2 – ORIGENS
Tem sido apontada como fonte remota do Princípio da Insignificância pela doutrina o conhecido brocardo romano de natureza civilista “de minimis non curat praetor”, ou seja, a orientação de que o magistrado não deve preocupar-se com questões insignificantes. Mais proximamente, nos idos de 1964, Claus Roxin introduz o referido princípio na seara penal como meio para a concretização “dos objetivos sociais traçados pela moderna política criminal”. [3]
Efetivamente Roxin propõe o Princípio da Insignificância com a finalidade de excluir a tipicidade de danos ou perigos de danos de pouca importância na maioria dos tipos penais. [4]
Já Welzel indicava a insuficiência de uma tipicidade formal a exigir a complementação por uma tipicidade material, ou seja, um fato pode ser típico em termos de simples subsunção à descrição legal, mas, para além disso, deve-se sempre perquirir se ainda assim essa conduta chega a afetar realmente as relações sociais, abalando interesses relevantes, prejudicando a paz e a harmonia da convivência. Daí sua formulação da chamada “Teoria da Adequação Social”, com fulcro na qual desde logo afastava da seara penal as lesões insignificantes. [5]
Constata-se, assim, que a introdução da insignificância como elemento de aferição da tipicidade material no Direito Penal não é propriamente obra original de Roxin. Na verdade, conforme assinala Toledo, Welzel (1930) entendia que o “Princípio da Adequação Social” seria suficiente para excluir da seara penal lesões de parca significância. Não obstante, a crítica dogmática considerou discutível essa suposta suficiência da adequação social. Aí é que entra Claus Roxin, propondo “a introdução no sistema penal, de outro princípio geral para a determinação do injusto, o qual atuaria igualmente como regra auxiliar de interpretação”. Nada mais seria este do que o conhecido “Princípio da Insignificância”, a permitir, na maioria dos tipos penais, a exclusão de danos de pouca monta. Dessa forma, os Princípios da Adequação Social (Hans Welzel) e da Insignificância (Claus Roxin) são complementares na formulação de uma concepção material e não somente formal do tipo. [6]
É interessante lembrar que a terminologia “Princípio da Insignificância” é obra de Roxin, enquanto que a nomenclatura também usual de “Princípio de Bagatela” é oriunda da pena de Klaus Tiedemann, que também advoga a tese de ser necessária “uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal”, de forma que muitas “condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material”. E, assim sendo, é viável “afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado”. [7]
2.3-ALGUMAS DISTINÇÕES IMPORTANTES
Não é difícil confundir o Princípio da Insignificância com outros princípios ou institutos penais semelhantes. Uma primeira abordagem de importância crucial é anotar que a insignificância não se confunde com os Princípios da Lesividade ou Ofensividade e nem da Intervenção Mínima.
É consequência do Princípio da Lesividade a inexistência de tipicidade sem que ocorra ofensa a um bem jurídico, sendo possível que tal ofensa se constitua em uma lesão (dano) ou em um perigo. [8]
Por seu turno,
“o princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a prevenção de ataques contra bens jurídicos importantes. Ademais, se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Assim, se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas as que devem ser empregadas, e não as penais”. [9]
Na verdade, o Princípio da Insignificância pode ser encarado como uma decorrência prática ou concreção dos princípios anteriores. Costuma-se lecionar que enquanto os Princípios da Lesividade e da Intervenção Mínima são voltados para a orientação do legislador, o princípio da insignificância tem sua aplicação num momento ulterior que cabe ao aplicador do Direito Penal. Resumindo, o legislador, ao criar um tipo penal, deve levar em conta a lesividade que lhe indica que somente pode erigir em infração penal condutas que provoquem lesões a bens jurídicos. Por seu turno, a intervenção mínima está diretamente ligada à Fragmentariedade e “Ultima Ratio” do Direito Penal, de modo que também cabe ao legislador lançar mão dessa espécie sancionatória e controladora somente em casos excepcionais para os quais outros ramos do Direito sejam inócuos ou insuficientes. Mas, após a criação de uma norma penal, em sua aplicação a casos concretos, ainda caberá, agora ao intérprete e aplicador do Direito, avaliar se a lesão ao bem jurídico é suficiente para legitimar a reação penal estatal. Torna-se visível o liame existente entre lesividade, minimalismo e insignificância, mas não se podem confundir os conceitos, eis que operam em fases distintas, embora complementares e coerentes entre si.
Como oportunamente leciona Dotti:
“Não se confundem as noções dos aludidos princípios. Há hipóteses em que embora a lesão seja considerável , não se justifica a intervenção penal quando o ilícito possa ser eficazmente combatido pela sanção civil ou administrativa, por exemplo. Enquanto o princípio da intervenção mínima se vincula mais ao legislador, visando reduzir o número de normas incriminadoras, o da insignificância se dirige ao juiz do caso concreto, quando o dano ou o perigo de dano são irrisórios. No primeiro caso é aplicada uma sanção extrapenal; no segundo caso, a ínfima afetação do bem jurídico dispensa qualquer tipo de punição”. Pode-se falar então em intervenção mínima (da lei penal) e insignificância (do bem jurídico afetado). [10]
Outra confusão que não pode ocorrer é entre o fato insignificante e “Infração de Menor Potencial Ofensivo”. As infrações de menor potencial ofensivo são aquelas definidas no artigo 61 da Lei 9099/95, ou seja, todas as contravenções penais e os crimes com pena máxima não superior a 2 anos. Para essas infrações há previsão de um procedimento especial, menos formal e mais célere, submetido a um modelo de “Justiça Consensuada”, mas isso não significa que haja ocorrências bagatelares dispostas por força de lei. A infração de menor potencial não é necessariamente insignificante. A aferição da insignificância, como já se viu, se processa no caso concreto e conduz à atipicidade. A mera classificação de uma infração como de menor potencial apenas altera o procedimento a que ela é submetida, bem como o tratamento penal dado ao caso, mas não a transforma, sem mais, em fato bagatelar.
Na dicção de Teles:
“Não se deve confundir o princípio da insignificância, também denominado de princípio da bagatela, que exclui a tipicidade do fato formalmente típico, ajustado ao tipo, quando a lesão causada for insignificante, de escassa expressão, com a locução criminalidade de bagatela, ultimamente muito utilizada, que quer referir-se àquelas infrações penais de menor potencial ofensivo – locução constante da Constituição Federal, no art. 98, I – e que foram recentemente definidas na Lei 9.099/95 como todas as contravenções penais e os crimes com pena máxima não superior a dois anos. O princípio da bagatela exclui a tipicidade do fato, aplicando-se a todo e qualquer tipo legal de crime, ao passo que criminalidade de bagatela quer referir-se aos crimes de menor potencial ofensivo, crimes menos graves, crimes menores. Quando incide o princípio da bagatela, não há crime; na criminalidade de bagatela, o crime existe, todavia, o tratamento processual e penal é diverso, com a possibilidade da suspensão condicional do processo, transação com a vítima, reparação do dano, aplicação de pena não privativa de liberdade, e outros institutos de natureza processual”. [11]
Também não há que se confundir o Princípio da Insignificância com os conceitos criminológicos de microcriminalidade e macrocriminalidade. Essas conceituações, usuais na seara da criminologia, nada têm a ver com a questão da insignificância. Segundo lecionam Newton e Valter Fernandes, a microcriminalidade é aquela que diz respeito à criminalidade individual, mais visível socialmente (furtos, roubos, homicídios etc.), enquanto que a macrocriminalidade configura-se como uma espécie de “delinquência em bloco conexo e compacto, incluída no contexto social de modo pouco transparente (crime organizado) ou sob rotulagem econômica lícita (crime de colarinho branco)”. [12] A denominada “microcriminalidade” poderia gerar confusão com o conceito de insignificância, mas, como visto, é afeta a uma classificação criminológica que somente diz respeito a essa área e nada tem em comum com a insignificância ou bagatela.
A doutrina tem ainda falado em “Princípio da Bagatela ou Insignificância Imprópria” ou “ Irrelevância jurídico – penal do fato”. Nesses casos, não há insignificância na conduta e nos seus resultados, mas por algum motivo específico a aplicação de uma sanção penal se torna desnecessária e, eventualmente, até mesmo contraproducente. São exemplos casos de perdão judicial em homicídio culposo ou lesão corporal culposa nos quais o agente é atingido tão gravemente que a pena seria inócua (artigos 121, § 5º.,CP e 129, § 8º., CP); casos de imunidade absoluta em crimes patrimoniais não violentos e em que a vítima não é idosa (artigo 181, I e III c/c 183, CP), dentre outros. A conduta é criminosa e a lesão não é insignificante, mas o legislador opta por não aplicar pena por questões político – criminais que a tornam descabida nos casos que especifica. [13]
2.4-PREVISÃO LEGAL E ACATAMENTO DOUTRINÁRIO – JURISPRUDENCIAL NO BRASIL
Já comentava o escritor Mark Twain que “(…) a história da nossa raça e a experiência de cada um estão cheias de provas de que é fácil matar uma verdade e que uma mentira bem contada é imortal”. [14]
Demonstrar-se-á como em nossa literatura e ensino jurídico tem-se espraiado um erro quanto ao denominado “Princípio da Insignificância ou da Bagatela”, mediante a afirmação corrente e praticamente unânime (e já dizia Nelson Rodrigues que “toda unanimidade é burra”) [15] de que este se estabelece como princípio do Direito, albergado pela doutrina e jurisprudência, mas que não conta com previsão legal alguma em nosso ordenamento jurídico.
Em geral a orientação de aplicação do Princípio da Insignificância em solo brasileiro tem sido acatada na doutrina, na jurisprudência e no dia a dia forense. Não obstante, há uma falsa informação que dá conta de que esse princípio não apresenta previsão legal no Brasil, conforme acontece, por exemplo, “no Código Penal da antiga República Soviética da Rússia, no Código Penal da Tche-coslováquia, no Código Penal Português, no Código Penal Austríaco, no Código Penal Cubano, no Código Penal da República da China e no Código Penal Alemão (art. 3º – não subsiste o crime, se, não obstante a conformidade da conduta à descrição legal de um tipo, as conseqüências do fato sobre direitos e os interesses dos cidadãos e da sociedade e a culpabilidade do réu são insignificantes). Prevêem também disposições semelhantes: o Código Penal Polonês, o Código Penal da Bulgária e o Código Penal da Romênia”. [16]É exemplo de manifestação doutrinária nesse sentido equivocado a afirmação de Silva Júnior de que o Princípio da Insignificância “é um princípio que não existe na legislação penal brasileira, mas que vem sendo admitido, ainda que de maneira tímida pela nossa jurisprudência”. [17]
No mesmo diapasão vem à baila o escólio de Mirabete e Fabbrini:
“A excludente de tipicidade (do injusto) pelo princípio da insignificância (ou da bagatela), que a doutrina e a jurisprudência vêm admitindo, não está inserta na lei brasileira, mas é aceita por analogia, ou interpretação interativa, desde que não contra legem”. [18]
Na jurisprudência também tem sido comum a invocação dessa suposta imprevisão do Princípio da Insignificância de modo geral na legislação pátria, inclusive para denegar sua aplicabilidade:
“Por sua vez, também não há que se falar em absolvição por crime de bagatela, posto que no direito brasileiro o princípio da insignificância ainda não adquiriu foros de cidadania, de forma a excluir tal evento da tipicidade penal, sendo irrelevante o fato do bem subtraído ser considerado, para os fins penais, como sendo ínfimo ou desprezível.” (TJSP: 14ª Câmara Criminal, Rel. Des. Fernando Torres Garcia. Apelação Criminal no. 990.08.089790-0, j. 05.03.2009, v.u.)”.
Conforme se vê está disseminada a afirmação de que na legislação brasileira não há previsão legal do Princípio da Insignificância, cuja aplicação se dá apenas por reconhecimento doutrinário – jurisprudencial.
A verdade dessa assertiva é parcial. Se for considerado somente o Código Penal Brasileiro, bem como praticamente todas as legislações penais esparsas, realmente não há um exemplo sequer de previsão do Princípio da Insignificância, o que empresta foros de credibilidade à afirmação genérica acima mencionada muito comumente repetida como numa “Síndrome Jurídica de Papagaio”.
Ocorre que, na realidade, há duas previsões legais expressas do Princípio da Insignificância no ordenamento jurídico – penal brasileiro. Essas duas previsões são encontráveis no Código Penal Militar ao tratar dos crimes de lesões corporais e de furto.
O artigo 209, § 6º., do CPM estabelece que:
“No caso de lesões levíssimas, o juiz pode considerar a infração somente como disciplinar”.
Já o artigo 240, § 1º., do CPM assim determina:
“Se o agente é primário e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou considerar a infração como disciplinar” (grifo nosso, porque é nessa última figura que se encontra a expressão da insignificância, sendo as anteriores descritivas do chamado furto privilegiado).
É visível que nesses dois casos o legislador considerou a insignificância para afastar o caso do Direito Penal e remetê-lo ao Direito Administrativo Disciplinar. Portanto, há um limite visível para a afirmação generalizante corrente de que na legislação pátria não há previsão do Princípio da Insignificância. A indicação dos dois casos acima do Código Penal Militar enseja o que se convencionou denominar de “exemplum in contrarium”, o qual “impede uma generalização indevida, ao mostrar que ela é incompatível com ele, e indica, portanto, em qual direção somente a generalização é permitida”. [19]
Esse fato não passou incólume pela observação dos estudiosos especializados no Direito Castrense:
Loureiro Neto identifica nos casos acima a presença do Princípio da Insignificância legislado, asseverando ser inequívoca “a sua incidência” para os crimes militares, “por disposição expressa no Código Penal Militar”. [20]
Pela mesma senda caminham Neves e Streifinger afirmando que na lesão corporal “houve pela lei penal militar a positivação do princípio da insignificância”, assim como também há sua manifestação no caso do § 1º., “in fine”, do artigo 240 do CPM (furto). [21]
Igualmente, em estudo específico sobre o Princípio em destaque, chega à mesma conclusão Ivan Luiz Silva. [22]
Dessa forma comprova-se, infelizmente, que o erro é fecundo e quando é disseminado acaba se transformando em hábito e norma. [23] Não por outro motivo é que tem sido repetida a lição de que não existe previsão legal alguma do Princípio da Insignificância no ordenamento jurídico brasileiro, quando, na verdade, há duas previsões legais claras no bojo do Código Penal Militar, conforme acima demonstrado.
A lição correta é, portanto, que na legislação comum realmente até o momento não há qualquer previsão expressa do Princípio da Insignificância, embora este seja doutrinária e jurisprudencialmente reconhecido e aplicado. No entanto, há que lembrar a existência de duas exceções positivadas no Código Penal Militar, conforme acima mencionado.
A verdade é que a grande maioria da doutrina e da jurisprudência reconhecem sem embargos a aplicabilidade no Direito Penal Brasileiro do Princípio da Insignificância, seja em casos de previsão expressa (excepcionais), seja na ausência de previsão, enquanto princípio implícito derivado da lesividade ou ofensividade e da intervenção mínima, bem como da própria concepção de dignidade da pessoa humana, a qual não pode ser submetida ao calvário da seara criminal por uma bagatela.
Entretanto, esse pensamento, como bem demonstra Greco, não é pacífico. O autor aponta corrente radical na doutrina cujo entendimento é do de que “todo e qualquer bem merece a proteção do Direito Penal, desde que haja previsão legal para tanto, não se cogitando, em qualquer caso, do seu real valor”. Porém, como conclui o autor sob comento, esse pensamento conduziria a “situações absurdas” como a punição do furto de um caramelo, de uma lesão praticamente invisível a olho nu etc. [24]
Por derradeiro é bom aclarar que o Princípio da Insignificância não pode ser aplicado indistintamente a quaisquer delitos. Neste ponto a parca regulamentação legal do tema deixa lacunas indesejáveis, as quais vêm sendo preenchidas pela jurisprudência.
Por isso é importante destacar os critérios adotados pelo STF no HC 84.412/SP para viabilizar uma aplicação escorreita e justa do referido princípio: “a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada”. [25]
3-O DELEGADO DE POLÍCIA E O ARQUIVAMENTO DA “NOTITIA CRIMINIS”
É de trivial conhecimento que, nos termos do artigo 17, CPP, não é dado à Autoridade Policial arquivar autos de Inquérito Policial. Este ato se processa mediante requerimento do Ministério Público e decisão do Juiz.
Não obstante, há que distinguir o arquivamento do Inquérito Policial do arquivamento da “notitia criminis” ou do denominado Boletim de Ocorrência que pode e deve perfeitamente ocorrer em determinados casos específicos. Aliás, no Estado de São Paulo há previsão administrativa do Livro de Registro de Boletins de Ocorrência Arquivados e de uma pasta respectiva para armazenar tais registros com despacho fundamentado da Autoridade Policial responsável (Portaria DGP-18/98).
O diploma administrativo acima mencionado estabelece em seu artigo 2º. que “a autoridade policial não instaurará inquérito quando os fatos levados a sua consideração não configurarem manifestamente, qualquer ilícito penal” (grifo nosso). Também determina, no § 1º., do mesmo artigo 2º., igual procedimento para todos os casos em que não houver “justa causa para a deflagração de investigação criminal” , sempre devendo “em ato fundamentado, indicar as razões jurídicas e fáticas de seu convencimento” (grifo nosso). Não olvida o diploma em comento os casos de requerimento de instauração, estabelecendo no § 2º. que a Autoridade Policial, mediante despacho motivado, sequer conhecerá do pedido “se ausente descrição razoável da conduta a ensejar classificação em alguma infração penal ou indicação de elementos mínimos de informação e de prova que possibilitem o desenvolvimento de investigação”. Finalmente, em seu artigo 3º., determina a Portaria DGP 18/98 o arquivamento desses registros por despacho fundamentado e sua anotação em livro próprio (livro obrigatório). Nos §§ 1º. e 2º. do mesmo dispositivo é regulamentada a escrituração do referido livro, bem como a criação de pasta específica para armazenamento separado dos Boletins com despacho de arquivamento. Livro e pasta ficarão à disposição das autoridades corregedoras, recomendando-se que “quando das respectivas inspeções” recebam “rigorosa fiscalização, termo e rubrica” (§ 3º.). [26]
Para quem entenda que essa regulamentação administrativa poderia ser inquinada de vício por tratar de matéria processual, objeto exclusivo de lei federal (CF, artigo 22, I), é preciso lembrar que o diploma em destaque somente regulamenta o procedimento administrativo daquilo que se extrai do próprio Código de Processo Penal e da doutrina em geral disseminada sobre o tema. Ademais, a Portaria DGP 18/98 é considerada um marco na regulamentação da atividade de Polícia Judiciária com fulcro na legalidade, constitucionalidade e absoluto respeito aos direitos e garantias individuais.
Sua consonância com a melhor doutrina pode ser constatada facilmente, por exemplo, no ensinamento de Andreucci ao afirmar que embora o Delegado de Polícia não possa arquivar autos de Inquérito policial, “poderá arquivar a notitia criminis se não houver justa causa para a instauração do inquérito”. [27]
No mesmo diapasão, inclusive indicando dispositivo legal do Código de Processo Penal para sustentação da legitimidade de suas conclusões, manifesta-se Salles Júnior:
“Voltando à comunicação do crime diretamente ao Delegado de Polícia, temos que às vezes, apesar da lavratura do Boletim de Ocorrência ou do recebimento da comunicação escrita, o inquérito não é instaurado, por entender a autoridade policial que o fato não é criminoso, que a autoria é incerta ou por qualquer outro motivo (CPP, art. 5º., § 2º.)”. [28]
Ainda nessa esteira, Capez enfatiza a impossibilidade de arquivamento do Inquérito Policial pelo Delegado, mas afirma que “faltando justa causa, a autoridade policial pode (aliás, deve) deixar de instaurar o inquérito”. [29] Em suma, a Autoridade Policial pode deixar de instaurar o Inquérito mediante decisão fundamentada, o que não pode é, após a instauração, resolver “sponte própria” arquivar o feito.
Finalmente, tratando mais especificamente da questão da recusa de requerimento de instauração de Inquérito Policial, afirma Smanio que na chamada “delatio criminis” (art. 5º., II, segunda parte, CPP) pode haver indeferimento pela Autoridade Policial, cabendo recurso dessa decisão nos termos do artigo 5º., § 2º., CPP, [30] o que, mais uma vez, demonstra claramente que o Delegado de Polícia pode deixar de instaurar Inquérito em certos casos, inclusive por expressas disposições legais.
Nada mais óbvio do que a constatação de que a Autoridade Policial pode e deve arquivar ocorrências registradas somente de maneira fundamentada e em casos justificáveis como, por exemplo, situações em que o fato registrado é nitidamente atípico, registros ou pedidos de instauração por crimes revogados, casos em que há nítida ocorrência de prescrição ou decadência dentre outros.
Ademais, sendo a Polícia Judiciária um dos órgãos mais fiscalizados e abertos do Poder Público, certamente todas as decisões proferidas nessas condições serão correicionadas e, em caso de eventual equívoco, abuso ou mesmo má fé, poderão ser revistas. Observe-se que uma unidade policial civil sofre pelo menos duas correições ordinárias internas por ano, pode sofrer correições extraordinárias pela Corregedoria ou pela hierarquia superior a qualquer momento, deve receber visita mensal do Ministério Público no exercício do Controle Externo da Atividade Policial, sofre ao menos uma correição anual pelo Juiz Corregedor de Presídios e Polícia Judiciária e, como todo serviço público, está sujeita ao direito de petição e fiscalização constitucionalmente assegurado a qualquer do povo. Isso sem falar na possibilidade de recurso do indeferimento de instauração de Inquérito já mencionado neste texto e da possibilidade de acesso ao Ministério Público e/ou Judiciário para que, em discordando da Autoridade Policial, venham a requisitar a instauração do feito.
4-TEORIA GERAL DO DIREITO POLICIAL EM GUEDES VALENTE E A POLÍCIA COMO INSTRUMENTO DE GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Demonstrado que o Princípio da Insignificância conduz à atipicidade material do fato, bem como que é dado ao Delegado de Polícia o Poder – Dever de arquivar Boletins de Ocorrência que noticiem fatos atípicos ou que, por qualquer motivação, não ensejem justa causa para o desatar de uma persecução criminal, insta indicar como deve proceder a Autoridade Policial, em sua missão legal e constitucional na garantia dos Direitos Fundamentais da pessoa face à constatação de um delito bagatelar.
O Delegado de Polícia, na conformação que lhe empresta o ordenamento jurídico brasileiro, sendo necessariamente Bacharel em Direito e, portanto, versado nas ciências jurídicas tanto quanto os demais operadores, assim como hoje sendo exigido o requisito de atividade jurídica antecedente de pelo menos dois anos para ingresso no cargo (Constituição do Estado de São Paulo, artigo 140, § 4º.), pode certamente ser reconhecido como o primeiro e mais próximo magistrado do povo. [31] Dessa forma lhe cabe, em primeiro plano, assegurar o cumprimento das leis e, especialmente, da Constituição, conferindo a todo aquele com quem mantém alguma relação funcional a plenitude do reconhecimento da cidadania, jamais se conformando em ser um mero instrumento daquilo que Murilo de Carvalho denominou “estatania”, ou seja, a simples incorporação do indivíduo “ao sistema político pelo envolvimento na malha crescente da burocracia estatal”. [32]
Há tempos já se sabe que o Poder de Polícia não pode ser instrumento do autoritarismo, nem títere de uma burocracia sem capacidade reflexiva que possa garantir aos cidadãos os seus direitos positivos e negativos. Conforme salienta Madeira:
“É fatal que num Estado Democrático de Direito, o poder de polícia, ao ser exercitado pela Administração Pública, acate o princípio basilar de sua plena juricidade, ou de supremacia da regra de direito, como dizem, respectivamente, em sua lições, Del Vecchio e F. San Tiago Dantas”. A observância destes princípios, elevada pelo constitucionalismo à exigência de constituir-se juridicamente o próprio Estado, visa à racionalização do poder e à eliminação do arbítrio, pela colimação do ideal iluminista de conferir, por meio da lei escrita, clareza e certeza à variegada trama da vida social. Sem eles, não se teria como exequível uma série de princípios correlatos, como o de divisão de poderes e o da garantia dos direitos fundamentais que também informam o Estado Democrático de Direito”. [33]
Em seu trabalho de pesquisa aprofundada, o autor lusitano, Manuel Monteiro Gudes Valente, apresenta uma “Teoria Geral do Direito Policial”, calcada em um modelo de polícia ajustado ao regime democrático de direito, partindo da premissa de que
“A Polícia, como atividade de defesa da liberdade democrática, de garantia da segurança interna e dos direitos do cidadão, não pode ser vista só sob o ponto de vista sociológico, nem do ponto de vista político – braço ou instrumento deste – , nem sob o ponto de vista operacional – estratégico, tático e técnico. Impõe-se um aprofundamento jurídico teórico – prático da atividade da Polícia, que fundamente e justifique a necessidade de um corpo organizado dotado de ius imperii na prossecução de uma das tarefas fundamentais do Estado: defesa dos direitos e liberdades fundamentais”. [34]
E no universo dos Direitos Fundamentais a serem assegurados pela Polícia e, principalmente por seus dirigentes, Delegados de Polícia, destaca-se sobremaneira o “Direito à liberdade”. É comum que numa visão canhestra da figura do Delegado de Polícia este seja encarado somente por seu viés repressivo (aquele que prende, que coage…). Mas, a verdadeira, completa e complexa missão da Autoridade Policial é marcada pelos mesmos fins do Processo Penal que lhe serve, juntamente com a Constituição e o Direito Penal, de instrumento de trabalho.
“O processo penal e as garantias que o regem não são dirigidas aos criminosos, podendo ser alteradas conforme o grau de perversidade destes. A tutela se dirige à Sociedade como um todo e a cada indivíduo em particular, que pode, a qualquer momento, se transformar em suspeito ou acusado, ficando sujeito a abusos injustificáveis e a injustiças irreparáveis se não cercado das garantias constitucionais que lhe asseguram um devido processo legal”. [35]
Ora, o Processo Penal (e até o próprio Direito Penal) não é instrumento repressivo e sim garantia do cidadão quanto ao impedimento de ingerências arbitrárias em sua liberdade. Ele se conforma em garantismo negativo em face do Estado e, por isso, o Delegado de Polícia, como o primeiro agente estatal a manejá-lo com conhecimento e formação técnico – jurídica, deve ser o primeiro anteparo do indivíduo, ponto de apoio para a sustentação de sua dignidade humana, de sua liberdade e de todos seus direitos fundamentais. Retomando as lições de Guedes Valente:
“A tutela dos direitos , liberdades e garantias individuais é uma das finalidades da polícia não só contra as agressões dos particulares, mas também contra os abusos do jus puniendi do Estado”. [36]
Em terras brasileiras já vislumbrava com percuciência o mesmo quadro, Zaccariotto, apontando o papel da Segurança Pública e dos organismos policiais “como instrumentos de defesa das instituições democráticas”. Trazendo à baila o escólio de José Afonso da Silva, preceitua o autor, em consonância com esta exposição, que a Polícia é o órgão sobre o qual “primeiro recai a tarefa de evitar que a ordem juridicamente erigida seja derribada”, cumprindo-lhe, no seio de um Estado Democrático, atuar para a efetiva tutela legal da pessoa humana em sua “inerente dignidade, respeitando e fazendo respeitar todos os seus direitos, dentre os quais a liberdade e a igualdade se assomam os primeiros e mais significativos”. [37]
Partindo da constatação de que “a racionalidade do direito exige, (…), consistência constitucional do sistema jurídico”, [38] é inconcebível que o Delegado de Polícia, diante de um caso que se amolde claramente ao Princípio da Insignificância e, com isso, afaste induvidosamente a tipicidade material, venha a tomar providências repressivas de Polícia Judiciária quando não há justa causa para tanto. Nesse caso é de se indagar, onde e como ficaria a função garantista negativa a ser exercida pela Autoridade Policial e pelo próprio Processo Penal e Direito Penal diante da ordem constitucional?
Nesses casos é função da Autoridade Policial cumprir seu mister de primeiro garante dos Direitos Fundamentais da pessoa e de sua dignidade, evitando seu ingresso indevido no calvário da persecução criminal. A esse primeiro e mais acessível magistrado do povo cabe a missão de fazer valer não somente a lei e a Constituição, mas o valor inalienável da Justiça.
Citando Roberto Pérez Martinez em tradução livre, Zaccariotto aduz:
“No Estado de direito como operador público que é, e por especial atribuição competencial do exercício da violência legal, a polícia deve atuar observando em todo momento as garantias constitucionais previstas para não deixar sem proteção não apenas o indivíduo como também o próprio sistema democrático. Em consequência, a transcendental relevância que a função policial tem nesse desenho constitucional, apenas se justifica quando se trata de assegurar direitos, bens e valores constitucionalmente reconhecidos sobre o fundamento do princípio da legalidade, conforme os critérios da igualdade, necessidade e proporcionalidade”. [39]
Ora, a prisão em flagrante ou sequer o desate inicial da persecução penal contra alguém em situação de induvidosa aplicabilidade do Princípio da Insignificância não se coadunaria com qualquer avaliação de necessidade ou proporcionalidade.
A legalidade da atuação policial fulcrada num suposto princípio de “dura Lex, sed lex” não se coaduna com a mais moderna concepção de interpretação e aplicação do Direito. O Princípio da Legalidade é relevante para o agir policial, mas deve ter como vetor de legitimação e reforço desse agir o “princípio da oportunidade”, sob pena de submergir no conformismo com a concretização do brocardo latino “summum ius, summa iniuria”. Embora não positivado, o “princípio da oportunidade” na atuação policial compõe o direito contemporâneo com reconhecimento doutrinário, de maneira a ser classificado “como princípio estruturante do processo penal e, por maioria de razão, como princípio geral da atividade policial”. É preciso, porém, deixar claro, que o acatamento do “princípio da oportunidade” da atuação policial não se sobrepõe ou invalida a legalidade, antes e ao reverso, se acopla a este de forma complementar. É que “o princípio da oportunidade não tem expressão formal, mas material e instrumental no sentido de ser um princípio inerente à prossecução da atividade não só judicial criminal, mas também administrativa do Estado. Nessa linha de pensamento, a Polícia, face visível do Estado, não se pode apartar dos princípios que humanizam e legitimam sua intervenção”. [40]
É de ver que o amálgama entre legalidade e oportunidade na ação policial enseja o cumprimento de outro princípio basilar que é o “Princípio da Justiça”. Nesse passo, “a submissão da atividade policial ao princípio da justiça é uma consequência do Estado de direito democrático que vincula toda a atividade administrativa, inclusive a policial, ‘a critérios de justiça material ou de valor, constitucionalmente plasmados’, sendo de destacar ‘o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da efetividade dos direitos fundamentais’, a igualdade, a proporcionalidade, a boa fé, a razoabilidade, a equidade”. [41]
Mormente no atual contexto em que a Polícia Civil, dirigida por Delegados de Polícia de Carreira, no exercício de atos de Polícia Judiciária, é reconhecida como “atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica”, bem como é assegurada às Autoridades Policiais “independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária” (art. 140, § 2º., da Constituição do Estado de São Paulo), torna-se inafastável o poder – dever do Delegado de Polícia em reconhecer de forma fundamentada a incidência do Princípio da Insignificância em determinados casos concretos, sempre “sub censura” de eventuais conflitos de convicção perante o Ministério Público e o Judiciário que são dotados de poder requisitório e não são atrelados às deliberações do Delegado. Observando-se, desde logo, que o exercício desses poderes requisitórios ou mesmo correicionais internos em nada maculam a livre convicção da Autoridade Policial inicialmente oficiante, pois que inclusive uma decisão judicial é passível de reforma e uma manifestação do Ministério Público pode não ser acatada (v.g. rejeição de denúncia), tudo isso dentro da legalidade e do devido processo legal com os recursos a ele inerentes. Obviamente que a Autoridade Policial não é maculada em sua livre convicção quando não é submetida a pretensas sanções ou coações quando toma tais decisões de forma motivada. Caso contrário, estará sendo vítima de constrangimento ilegal e usurpação de função. Portanto, salvo em casos de gritante e grosseiro erro ou, principalmente, em situações de comprovada má fé, a alteração da decisão inicial da Autoridade Policial mediante requisições ministeriais ou judiciais ou pela atividade correicional, não devem implicar em quaisquer sanções ou sequer ameaças de sanções ou advertências.
Vem reforçar esse entendimento a promulgação da Lei 12.830/13, cujo projeto foi de autoria do Deputado Federal Arnaldo Faria de Sá, que amplia os poderes dos Delegados de Polícia, estabelecendo em seu artigo 2º. que “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado”. E em seu § 6º. determina que “o indiciamento” é ato “privativo do delegado de polícia” e se dará de forma fundamentada, “mediante análise técnico – jurídica do fato”.
5-CONCLUSÃO
O presente trabalho teve por objeto o estudo da aplicabilidade do Princípio da Insignificância ou da Bagatela pelo Delegado de Polícia na atividade de Polícia Judiciária.
Em um primeiro item, após breve introdução, desenvolveu-se um estudo aprofundado sobre as origens, conceito, características, distinções, previsão legal, acatamento doutrinário – jurisprudencial e consequências jurídicas do Princípio da Insignificância.
No seguimento foi analisado o poder da Autoridade Policial de arquivar registros de ocorrências e de indeferir requerimentos de instauração de inquérito policial, inobstante a vedação prevista no artigo 17, CPP quanto ao arquivamento de feitos já instaurados. Constatou-se que a atipicidade flagrante da suposta “notitia criminis”, bem como outras situações que apontem falta de justa causa para a instauração da persecução criminal, dão azo a que o Delegado de Polícia possa, de forma motivada, promover o arquivamento de Boletins de Ocorrência e outras formas de “notitia criminis”.
Finalmente, a questão foi apresentada sob o prisma do estudo desenvolvido pelo autor português Manuel Monteiro Guedes Valente de acordo com a ótica imprimida à natureza e teleologia da atividade policial, especialmente a da Polícia Judiciária, desenvolvida em sua “Teoria Geral do Direito Policial”. Nesse ponto, constatou-se que a função policial é eminentemente garantista em seus ângulos positivo e negativo num Estado Democrático de Direito, o que vem a sustentar o poder – dever do Delegado de Polícia reconhecer e aplicar fundamentadamente o Princípio da Insignificância nos casos concretos que lhe são apresentados. Isso visando dar concretude a valores e princípios como a legalidade, a justiça, a necessidade, a oportunidade e a proporcionalidade estrita em sua conjunção com o assegurar do Direito à Liberdade do indivíduo.
Ademais, o atual “status” jurídico conferido ao cargo de Delegado de Polícia, seja pela Constituição do Estado de São Paulo, em seu artigo 140, seja pela recente aprovação da Lei 12.830/13, propiciam ainda maior força e fundamento para o reconhecimento de um poder – dever da Autoridade Policial, no exercício de suas funções de Polícia Judiciária, identificar e aplicar com justiça e equilíbrio o Princípio da Insignificância.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.
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