Resumo: O presente artigo abordará a atipia material do fato objeto de tutela no artigo 171, §3° do Código Penal, especialmente em relação ao recebimento indevido de parcelas do seguro desemprego.
Palavras-chave: Atipicidade material. Princípio da insignificância. Seguro desemprego.
Sumário: Introdução. 1. Insignificância – conceito e aspectos. 2. Reconhecimento da insignificância em outras condutas típicas. 3. Desconstruindo o dogma da relevância da conduta de receber, indevidamente, as parcelas do seguro desemprego. Conclusão. Referências.
Introdução.
O postulado da bagatela próprio consiste em refratar da persecução penal as condutas não ofensivas aos bens jurídicos resguardados pela norma de direito material. Assim, a conduta de receber indevidamente valores atinentes ao seguro desemprego constitui, a princípio, fato formalmente típico, porém, não é certo afirmar que a recíproca é verdadeira quando falamos em materialmente típico, com relevo na hipótese do patrimônio público lesado ser inferior aos patamares elencados na Portaria MF n° 75, de 2012.
1. Insignificância – conceito e aspectos.
Originária do Direito Romano e reintroduzida na ordem jurídica por Claus Roxin em 1964, na Alemanha, a insignificância funda-se, portanto, no brocardo minimus non curat praetor[1], na medida que a lesão quando insignificante, desnecessária são as intercorrências da sanção penal. Deste modo, o postulado da insignificância tem por fim afastar a tipicidade material da conduta imputada ao agente, uma vez que a tipicidade formal decorrente da adequação da conduta do agente ao modelo abstrato (tipo) previsto na lei penal permanece intacta.
Acerca do princípio da insignificância Assis Toledo[2] assim descreve,
“Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas.”
Nos dizeres de René Ariel Dotti[3], a insignificância afeta a atividade jurisdicional, até porque há situações em que a lesão é considerável, no entanto, não se justifica a intervenção penal, ainda mais quando o ilícito possa ser eficazmente combatido pela sanção civil ou administrativa. Outro não é o raciocínio de Rogério Greco[4], quando afirma que o princípio da insignificância “tem por finalidade auxiliar o interprete quando da análise do tipo penal, para fazer excluir do âmbito de incidência da lei aquelas situações consideradas como de bagatela”.
Sobre o tema, nada mais oportuno senão a referência aos dizeres do pai do conceito, especialmente tirante a exclusão da proteção de condutas que não causem lesões significantes ao bem jurídico resguardado,
“(…) o chamado princípio da insignificância, que permite excluir logo de plano lesões de bagatela da maioria dos tipos: maus-tratos são uma lesão grave ao bem-estar corporal, e não qualquer lesão; da mesma forma, é lidibinosa no sentido do código penal só uma ação sexual de alguma relevância; e só uma violenta lesão à pretensão de respeito social será criminalmente injuriosa. Por “violência” não se pode entender a agressão mínima, mas somente a de certa intensidade, assim como uma ameaça deve ser “sensível”, para adentrar no marco da criminalidade”[5].
Com fulcro no exposto, acertada é a conclusão de que o princípio da insignificância é corolário dos postulados da intervenção mínima, lesividade e fragmentariedade do direito penal, conquanto mitiga a tipicidade material da conduta atribuída ao agente, isto porque a ínfima afetação do bem jurídico dispensa qualquer tipo de punição ao agente infrator.
2. Reconhecimento da insignificância em outras condutas típicas.
A Suprema Corte Constitucional, repetitivamente e de forma uníssona, reconhece a ocorrência da insignificância em face dos crimes tributários, especialmente aqueles anotados na Lei 8.137/90, logo, porque ainda há resistência em aplicá-la aos demais delitos patrimoniais em face da Administração Pública.
A jurisprudência emanada pelos tribunais superiores informa que em face dos danos inferiores a monta de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) é perfeitamente aplicável o postulado da insignificância, sem solidez jurídica, portanto, é justificativa de não fazê-lo também em face do crime estampado no artigo 171, §3° do Código Penal. Será esta mais uma manifestação elitista do direito penal? Ou somente a ratificação que crimes desta estirpe são praticados pela classe mais pobre da população brasileira, razão fundante da inaplicabilidade da atipia material.
Dentre os principais motivos que levam ao trabalhador receber indevidamente as parcelas do seguro desemprego, sem dúvidas, a dificuldade financeira prepondera. Enquanto que, os motivos dos crimes de elisão tributária (artigo 1° da Lei 8137/90 e artigos 168-A, 334 (descaminho) e 337-A) são, unicamente, o de elevar o patrimônio do infrator, imiscuindo-se de contribuir com os tributos indispensáveis a manutenção do Estado.
Atinente aos crimes de elisão tributária, inúmeros são os julgados emanados pelos Tribunais Superiores admitindo a ocorrência da atipia material (princípio da bagatela próprio), basta visualizar os seguintes julgados (STF, HC 94058/RS, Rel. Min. Ayres Brito, julgado em 18.08.2009/ STF, HC 96412/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 26.10.2010/STJ, EREsp. 1.113.039/RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 14.12.2009).
3. Desconstruindo o dogma da relevância da conduta de receber, indevidamente, as parcelas do seguro desemprego.
O programa do seguro desemprego, dentre todas as finalidades estabelecidas em lei, objeta assegurar proteção ao trabalhador urbano ou rural em situação de desemprego involuntário. Para tanto, comprovado o vínculo laboral por determinado período de tempo bem como o desemprego involuntário, o trabalhador terá direito a “x” parcelas de seguro.
Superada a análise do instituto, voltamo-nos ao enfoque criminal da conduta de receber indevidamente as parcelas do programa.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores, hodiernamente, não reconhece a possibilidade de incidência do princípio da insignificância em face da conduta outrora narrada, tendo como fundamento nodal o fato desta conduta causar lesões aos cofres públicos, de maneira a gerar o desequilíbrio de desenvolvimento, a ponto de tornar inviável a sua manutenção pelo Governo Federal[6].
Ocorre que tal premissa é equivocada, ora se o princípio da insignificância é corolário dos princípios da mínima intervenção, lesividade e fragmentariedade, dispondo, por suposto, o Poder Público de outras formas de recuperar o prejuízo financeiro em face do recebimento indevido, quer seja através da compensação no recebimento de futuras parcelas, quer através de cobrança judicial, quer mediante a restituição voluntária, a seara penal cede espaço de incidência, permitindo o reconhecimento da atipia material desta conduta.
Nesse sentido, aliás, já entendera o Superior Tribunal de Justiça, veja-se:
“Descaminho (caso). Prejuízo (pequeno valor). Lei nº 11.033/04 (aplicação). Princípio da insignificância (adoção).1.A melhor das compreensões penais recomenda não seja mesmo o ordenamento jurídico penal destinado a questões pequenas – coisas quase sem préstimo ou valor.2.Antes, falou-se, a propósito, do princípio da adequação social; hoje, fala-se, a propósito, do princípio da insignificância. Já foi escrito: “Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se.”3.É insignificante, em conformidade com a Lei nº 11.033/04, suposta lesão ao fisco que não ultrapassa o valor de 10 mil reais.4.Habeas corpus deferido”. (STJ, REsp n. 966.077/GO, Rel. Min. Nilson Naves, DJU. 15.12.08).
Noutro enfoque, a justificativa apresentada pelos Tribunais no sentido de que o recebimento indevido possa causar, eventualmente, algum desequilíbrio ao programa não constitui motivação idônea, posto que este também ocorre nos crimes de elisão tributária. Assim, reconhecida a atipia material nos crimes tributários, injustificável afastá-la em razão do delito de fraude ao programa do seguro desemprego. Até porque, naqueles o patrimônio público lesado poderá ser, no mínimo, 75% (setenta e cinco por cento) maior do que neste, isto com escopo na portaria MF n° 75, de 2012. Para tanto, basta o seguinte cálculo matemático: subtração do valor anotado na Portaria 75 e o quantum máximo do benefício do seguro desemprego.
Seguindo esta lógica, há de se evitar a esdrúxula situação do cidadão ser responsabilizado penalmente, sem medida correlata no âmbito administrativo, civil e tributário, conforme divergência na Corte de Justiça[7], noticiada no informativo de jurisprudência n° 429.
Conclusão
O reconhecimento do princípio da bagatela próprio em razão da conduta de recebimento indevido do seguro desemprego constitui medida de afirmação do caráter fragmentário do direito penal, a ultima ratio do ordenamento, especialmente quando o bem jurídico tutelado é resguardado por outros meios, ou até mesmo quando a conduta é indiferente no âmbito fiscal.
Defensor Público Federal de 2ª Categoria. Especialista em Processo Civil na Universidade de Caxias do Sul/RS.
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