Ricardo Antonio Morgan Ferreira: Advogado inscrito na OAB/ES sob o nº 32.571. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pós-graduado em Direito Empresarial, Direito Civil e Processual Civil. E-mail: ricardoantoniomf@gmail.com.
Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar as disposições constitucionais e infraconstitucionais que abrem espaço à autocomposição no processo coletivo e direciona o estudo à compreensão e análise de sua aplicação nas hipóteses configuradoras de improbidade administrativa. Nesse particular, almeja-se, ainda, analisar o revogado art. 17, §1º, da Lei de Improbidade Administrativa, o qual vedava a autocomposição nos processos sobre a matéria, consistindo em um entrave para a solução adequada dos conflitos. Tal análise se dará em cotejo com a Resolução n. 179/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público e com as alterações trazidas através da Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime) e da Lei n. 14.230/2021.
Palavras-chave: Processo Coletivo. Autocomposição. Compromisso de Ajustamento de Conduta. Acordo de Não Persecução Civil. Improbidade Administrativa.
Abstract: The object of this article is analyze the constitutional and infraconstitutional dispositions that open space for the self-composition in the collective procedure, focusing the study at the understanding and analysis of the application in the administrative misconduct hypotheses. It’s also desired to verify the revoked art. 17, § 1º, of the Administrative Misconduct Brazilian Law, which prohibited self-composition in proceedings on the matter, constituting an obstacle to the adequate solution of conflicts. Such analysis will take place in a comparison with Resolution n. 179/2017 of the National Council of the Public Prosecutor, and with the changes brought by Law n. 13.964/2019 (Anti-Crime Package) and Law n. 14.230/2021.
Keywords: Collective Procedure. Self-composition. Conduct Adjustment Commitment. Civil Non-Prosecution Agreement. Administrative Misconduct.
Sumário: Introdução. 1. A autocomposição nos processos coletivos. 1.1. O compromisso de ajustamento de conduta. 2. A vedação legal da autocomposição prevista no art. 17, §1º, da Lei de Improbidade Administrativa e o contexto de sua edição. 2.1. A inadequação do art. 17, §1º, da Lei de Improbidade Administrativa ao modelo atual de realização da justiça. 3. A Resolução n. 179/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público e sua influência na autocomposição em matéria de improbidade administrativa. 4. A revogação expressa da vedação contida no art. 17, § 1º, da Lei de Improbidade Administrativa e a criação do acordo de não persecução civil. Conclusão. Referências.
Introdução
Com vistas à resolução dos conflitos emergentes na sociedade e a uma resolução adequada, tem-se mostrado necessária a compreensão de que a justiça, por vezes, se dará por soluções advindas de meios diversos da jurisdição estatal. Nota-se, desse modo, que a justiça estatal clássica abre espaço a uma justiça alternativa, com meios diversos para a solução de conflitos.
Nesse contexto, propõe-se o cabimento da autocomposição nos processos coletivos. Enquanto modalidade específica de autocomposição, há o compromisso de ajustamento de conduta, previsto na Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985) – modificada pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), o qual volta-se à realização de acordo entre os órgãos públicos legitimados e os interessados, aqui considerados aqueles cuja conduta precisa se adequar às exigências legais. Levando-se em consideração uma justiça multiportas, merece destaque a utilização do compromisso de ajustamento de conduta visando à tutela dos direitos coletivos, desde que observado o princípio da adequação.
Transportando-se a temática para as ações de improbidade administrativa, identificava-se na Lei n. 8.429, de 02 de junho de 1992, vedação expressa à transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade administrativa (art. 17, § 1º). Tal vedação não se demonstrava mais em consonância com a realidade dos últimos anos, na qual a efetiva resolução do conflito tem cada vez mais passado por caminhos distintos do processo judicial. Nesse sentido, foi inicialmente editada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) a Resolução n. 179/2017 que, em seu art. 1º, § 2º, apontava como possível a celebração de compromisso de ajustamento de conduta nas hipóteses configuradoras de improbidade administrativa, mesmo diante da vedação legal que vigorava à época.
Com a publicação da Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (Pacote Anticrime) e da Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021, o dispositivo legal foi expressamente revogado, o que demonstra que o Legislativo tem reconhecido as mudanças que o ordenamento jurídico hodierno demanda.
O presente estudo visa, portanto, analisar a autocomposição nos processos coletivos, dando maior destaque à realização do compromisso de ajustamento de conduta e do acordo de não persecução civil, bem como a adequação de tais instrumentos nos casos que envolvam atos de improbidade administrativa, a partir do exame da revogada vedação contida na Lei n. 8.429/92 e da hipótese de acordo criada pela Resolução n. 179/2017 do CNMP.
1. A autocomposição nos processos coletivos
A autocomposição pode ser definida como um meio de resolução de controvérsias no qual se lança mão do consenso gerado naturalmente pelas partes envolvidas no conflito, objetivando a solução pacífica da lide. Consoante entendimento de Niceto Alcalá-Zamora y Castillo, (2000, p. 80-81) a autocomposição pode ser extraprocessual (à margem do processo), intraprocessual (a ser produzida entre as partes ou com intervenção da autoridade judicial) e até mesmo pós- processual, quando no âmbito da execução.
A utilização da autocomposição tem sido fomentada no ordenamento jurídico brasileiro através de diversas formas, a exemplo da Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que leva em consideração a necessidade de ser consolidada uma política de incentivo aos mecanismos consensuais de solução de litígios.
Em termos de direito comparado, nota-se que as soluções negociais, assim como no caso brasileiro, iniciaram-se de forma tímida e com poucos adeptos no direito norte-americano, tendo passado por intensas transformações e estímulos que datam desde a década de 70. Tal medida é justificada pelo aumento das queixas públicas acerca das ineficiências e injustiças advindas do sistema judicial tradicional dos Estados Unidos. Aos poucos, as soluções negociais se tornaram comum e amplamente empregadadas no território estadunidense (EDUARDS, 1986).
No Código de Processo Civil de 2015 (CPC), a autocomposição recebeu um significativo tratamento. De acordo com Fredie Didier Júnior (2015, p. 273), o CPC passou a ser estruturado de forma a estimular a realização da autocomposição, diante de dispositivos que: i) estruturam o procedimento com vistas a inserir a tentativa de autocomposição como ato anterior à defesa proposta pelo réu; ii) permite a homologação judicial de acordo extrajudicial de qualquer natureza; iii) autoriza que, no acordo judicial, seja incluída matéria estranha ao objeto litigioso do processo; e iv) permite acordos processuais atípicos evidenciados nos negócios jurídicos processuais.
Observa-se que, com a adoção da solução negocial, as partes conseguem, além da resolução do conflito, outros benefícios dificilmente obtidos através da forma usual de resolução de controvérsias. Na análise dos métodos alternativos de solução de conflitos, há quem vislumbre entre as diversas vantagens de tais expedientes a existência de um maior controle e a grande probabilidade de resultados positivos (HENRY, 2000).
Ademais, merece ser elencado como um grande benefício da solução negocial o curto lapso temporal que pode ser proporcionado aos interessados na resolução do litígio, uma característica bem atraente, haja vista a duração dos processos judiciais que, em grande parte dos casos, tem sido marcada por longos prazos.
Do microssistema de processo coletivo, cuja formação corresponde a um complexo de legislações, destacam-se a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, mais conhecida como Lei da Ação Civil Pública (LACP), e a Lei n. 8.078 de 11 de setembro de 1990, difundida como Código de Defesa do Consumidor (CDC). Esses diplomas legais acabaram por formar o cerne do processo coletivo brasileiro, disseminando sua aplicabilidade às demais legislações inseridas no microssistema (DE AZEVEDO, 2012).
Entretanto, foi com o diploma consumerista que a aplicação da solução negocial deixou de ser restrita às questões do âmbito do direito privado, estendendo a sua incidência para a seara do processo coletivo. O CDC incluiu o art. 5º, § 6º na LACP, dispositivo que prevê que “os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial” (BRASIL, 1985).
Para além do âmbito extrajudicial, a possibilidade de realização da autocomposição também ocorre dentro da relação processual, ou seja, no curso da ação em defesa dos interesses coletivos, mesmo que a legislação expresse apenas a possibilidade extrajudicial de autocomposição (art. 5º, § 6º da LACP). Destaca-se que, na hipótese extrajudicial de autocomposição, originalmente formulada através do compromisso de ajustamento de conduta, há a constituição de um título executivo extrajudicial, seguindo-se o disposto no art. 784, inciso XII do CPC e do art. 5º, § 6º da Lei n. 7.347/85. Já quando celebrado durante o curso da ação, sua homologação resultará na extinção do processo com julgamento do mérito, conforme a previsão do art. 487, III, b, do CPC (GARCIA; ALVES, 2017).
Antes das alterações legais, já existiam divergências doutrinárias acerca da possibilidade de negociações que envolvessem os direitos e interesses coletivos. Nessa acepção, Antonio do Passo Cabral (2016, p. 327) dispunha que grande parte da doutrina entendia ser impossível a realização da autocomposição nas ações de natureza coletivas em virtude de os legitimados extraordinários não serem titulares dos direitos transindividuais, e, sendo estes indisponíveis, a sua negociação seria inconcebível.
No raciocínio do autor, este entendimento restaria por equivocado, afinal, já se demonstrava como necessária a aplicabilidade da autocomposição nas ações coletivas, versando sobre o modo e o tempo da reparação do dano coletivo, de forma a visar a máxima efetividade da tutela de tais interesses. Dessa forma, Cabral (2016, p. 327) conclui que, embora tais direitos sejam considerados indisponíveis em algum grau, esta característica não possui força suficiente a impedir a realização dos meios negociais de resolução de controvérsias no âmbito dos processos coletivos.
Assim, ainda que existissem entendimentos contrários à possibilidade de soluções negociais no âmbito dos direitos coletivos, parcela considerável da doutrina já admitia tal possibilidade, evidenciando a adequada aplicação dos métodos autocompositivos ante realidade jurídica dos últimos anos. Todavia, o uso de tal mecanismo de solução de conflitos não poderia ser utilizado de maneira irrestrita, haja vista que a negociação no âmbito da tutela coletiva impede a ocorrência de concessões sobre os direitos coletivos propriamente ditos, tornando inadmissível a sua renúncia (GAVRONSKI, 2016).
Isso não implica em dizer que a utilização do mecanismo de solução negocial reduziria drasticamente. A bem da verdade, Alexandre Amaral Gavronski (2016, p. 351) conclui que ocorrem inúmeras autocomposições cotidianamente, seja no transcurso das ações civis públicas e das ações coletivas, através de acordos firmados entre os legitimados e os réus, que serão homologados judicialmente, bem como fora do processo coletivo, por intermédio do compromisso de ajustamento de conduta que era aplicado no início da implementação da solução negocial, sendo este último instrumento melhor explanado no tópico seguinte.
1.1 O compromisso de ajustamento de conduta
Conforme apresentado alhures, o CDC foi o diploma legal que inseriu o art. 5º, §6º na LACP. Com esse dispositivo, passou-se a ser possível a realização do compromisso de ajustamento de conduta – espécie de autocomposição extrajudicial – no âmbito dos direitos coletivos lato sensu. Além do CDC, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990), consoante o disposto no art. 211, também previu a possibilidade de ser firmado tal mecanismo de solução negocial. Destarte, pode o compromisso de ajustamento de conduta ser definido como um instrumento lavrado em termo, contendo obrigações de fazer ou não fazer (MAZZILLI, 2006).
Na ótica de Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 93-110), o escopo do compromisso de ajustamento gira em torno de qualquer obrigação de fazer ou não fazer, na tutela de qualquer direito, sejam eles difusos, coletivos ou individuais homogêneos.
Na prática jurídica dos últimos anos, principalmente no âmbito do Ministério Público, o compromisso de ajustamento de conduta passou a ser denominado como termo de ajustamento de conduta, muitas vezes referido apenas pela sigla TAC, sendo a inclusão da expressão “termo” dada em virtude de tal instrumento ser lavrado de tal forma.
No que tange as partes integrantes da formulação do TAC, tem-se, no polo ativo, os órgãos públicos legitimados a defenderem os direitos transindividuais da coletividade. Dessa forma, esses órgãos são os mesmos que fazem parte do rol de legitimados à propositura da ação civil pública ou coletiva. Quanto ao polo passivo, tem-se o agente responsável pela causação do dano aos interesses transindividuais, devidamente representado por advogado, devendo adequar a sua conduta às exigências legais após se firmar o TAC. A parte integrante do polo passivo está sujeita às penalidades previstas no próprio compromisso de ajustamento de conduta pactuado, além de que este passará a ser considerado um título executivo extrajudicial, consoante dispositivos legais pertinentes à matéria. (MAZZILLI, 2006).
Destaca-se que os sujeitos que integram o polo passivo do termo de ajustamento de conduta, ou seja, os compromissários, podem ser pessoas naturais, pessoas jurídicas de direito privado ou de direito público, além dos órgãos públicos e entes sem personalidade jurídica, sendo suficiente a detenção de personalidade judiciária. (JELINEK, 2016).
Além dessas possibilidades, Rochelle Jelinek (2016, p. 239) define que também é possível ocorrer situações nas quais os legitimados passivos são os representantes de pessoas jurídicas de direito privado ou de pessoas jurídicas de direito público.
Por fim, vale apontar que não se pode confundir o compromisso de ajustamento de conduta com a transação. Ambos são mecanismos de autocomposição, entretanto, conforme advertem Emerson Garcia e Rogério Pacheco (2017, p. 906), a transação é um negócio jurídico no qual ocorrem concessões recíprocas, sendo proibida a sua aplicação no âmbito dos interesses difusos. Em contrapartida, o ajustamento de conduta é, no entendimento dos autores, passível de ser realizado na seara dos direitos difusos, visto que não cuidam de realizar disposições quanto ao direito material.
Malgrado tal entendimento, reflexões foram feitas acerca da impossibilidade de aplicação do TAC diante de algumas vedações que eram existentes no ordenamento jurídico brasileiro, consoante se busca demonstrar a seguir.
2. A vedação legal da autocomposição prevista no art. 17, §1º, da Lei de Improbidade Administrativa e o contexto de sua edição
A Lei n. 8.429, de 02 de junho de 1992, conhecida como Lei da Improbidade Administrativa (LIA), regulamentou o art. 37, § 4º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), elencando, exemplificativamente, os atos configuradores de improbidade administrativa e as respectivas sanções a serem aplicadas em cada hipótese, devendo-se, para tanto, observar o princípio da proporcionalidade. (GARCIA, 2012). A LIA revela, então, a necessidade de controle da atuação dos agentes públicos, a ser rígido e intenso, de modo a aperfeiçoar a atividade estatal e adequar os agentes aos valores de um Estado Democrático de Direito (GARCIA; ALVES, 2017).
Nota-se que a LIA se propôs a moralizar a conduta dos agentes públicos e a afastar eventuais ingerências capazes de levar à impunidade, ante a desconfiança da sociedade nas novas instituições públicas constituídas após o término do período militar (ZAGANELLI; ROCHA, 2017).
Analisando-se o curso da legislação brasileira no combate à corrupção, é possível identificar, nos momentos antecedentes à Lei n. 8.429/92, um déficit no tratamento jurídico das “disfunções administrativas patrocinadas pela improbidade de agentes públicos e o cotidiano do gerenciamento da res publica, etiquetado com a impunidade” (FAZZIO JÚNIOR, 2016, p. 02), o que permite compreender a extensão dada pela lei de 1992 aos atos configuradores da improbidade administrativa e as sanções gravosas conferidas a esses atos.
Em um cenário tal como o vislumbrado atualmente, de crescente complexidade das atividades ilícitas a assolar a Administração Pública, a exigir constantemente uma atualização dos “programas corretivos” (FAZZIO JÚNIOR, 2016, p. 02), a LIA voltou-se, assim, à proteção de bens e interesses públicos, punindo os atos que acarretam enriquecimento ilícito ou lesão ao erário e aqueles contrários aos princípios da Administração Pública (arts. 9º a 11). Como sanções a serem aplicadas isolada ou cumulativamente, a Lei n. 8.429/92 prevê, em seu art. 12, a perda de bens ou valores de origem ilícita, o ressarcimento do dano, a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos, a multa civil e a proibição de contratar ou receber incentivos do poder Público.
Dentre as disposições da Lei n. 8.429/92, identificava-se, em seu art. 17, §1º, a proibição de transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade administrativa, com a finalidade de impedir concessões indevidas, em proteção à probidade administrativa e ao patrimônio público. (TAKAHASHI, 2013).
Nota-se que se tratava de uma vedação no âmbito processual, de modo que já existia entendimento no sentido de que, interpretando-se o dispositivo em comento para além de sua expressão literal, a proibição nele contida também alcançava “acordos na fase pré-processual dos procedimentos administrativos instaurados e presididos pelos colegitimados” (GARCIA; ALVES, 2017, p. 906), sob pena de se esvaziar a norma em comento.
As ações sobre a matéria de que trata a Lei n. 8.429/92, ante o fato de terem por objeto o patrimônio público e a moralidade administrativa, não admitiam concessões mútuas próprias da transação, (CAMBI; LIMA, 2011) razão pela qual vedava-se a sua realização, bem como acordos e conciliação.
Como já delineado alhures, já existia quem apontasse a indisponibilidade do interesse público – um conceito jurídico indeterminado – como razão para a vedação trazida no teor do art. 17, §1º, da LIA, aduzindo que por pertencerem a toda uma coletividade, os bens e interesses públicos não estariam sujeitos à disposição do administrador.
Outro fator que era levado em conta para a compreensão da existência da vedação do revogado art. 17, §1º, da Lei n. 8.429/92, era a proximidade existente entre a ação penal e a ação de improbidade administrativa. A demonstrar tal proximidade, podem-se citar as sanções possíveis no âmbito penal e no âmbito da improbidade, bem como a estruturação do processo existente à época da vedação, verificando-se a não mais existente defesa prévia na ação regulada pela LIA (DIDIER JR; ZANETI JR, 2018).
Verificadas as semelhanças entre as ações mencionadas, necessário notar que, à época da edição da LIA, o Direito Penal brasileiro inadmitia qualquer hipótese de negociação para a resolução dos conflitos acerca da matéria. Por essa razão, é possível concluir que a barreira que foi erguida em relação à solução negociada no âmbito da improbidade administrativa era fruto da proibição outrora existente no Direito Penal (DIDIER JR; ZANETI JR, 2018).
No entanto, a partir da Lei n. 9.099/95, foram desenvolvidas técnicas direcionadas à solução consensual dos conflitos na justiça penal. Cita-se, por exemplo, os institutos despenalizadores da transação penal (art. 76 da Lei n. 9.099/95) e da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei n. 9.099/95). Diante de tais mudanças, questionava-se quanto ao acerto da vedação que restava mantida no art. 17, §1º, da Lei n. 8.429/92, uma vez verificada a possibilidade de negociação acerca das sanções penais.
2.1 A inadequação do art. 17, §1º, da Lei de Improbidade Administrativa ao atual modelo de realização da justiça
Após a breve análise do contexto de elaboração da Lei n. 8.429/92 e das razões para vedação anteriormente prevista em seu art. 17, §1º, mister reforçar a inadequação do referido dispositivo à realidade brasileira recente. Nesse particular, não se pode olvidar que, para a realização da justiça, não é imprescindível a adoção da via judicial, pois a efetiva resolução de determinado conflito é possível, de maneira célere e econômica, a partir de meios que, em atenção ao caso concreto, mostram-se mais adequados.
É possível vislumbrar que o interesse público que vedava concessões no campo da improbidade administrativa era o mesm que, em casos específicos, permitiria a busca por uma solução consensual, a qual poderia despontar como mais adequada à resolução do conflito. Assim, “a indisponibilidade do interesse público, em vez de constituir um óbice à via consensual, coloca-se como um dever de consenso” (TAKAHASHI, 2013, p. 32).
Como mencionado anteriormente, soluções negociadas foram pensadas até mesmo no âmbito do direito penal – compreendido como ultima ratio – com vistas ao deslinde efetivo e célere de situações descritas em lei. Desse modo, havendo autorização legal para o mais (responsabilidade penal), considerava-se existente o permissivo para o menos (responsabilidade por improbidade administrativa) (CAMBI; DINIZ, 2018).
Por essa razão, evidencia-se que a Lei n. 8.429/92 necessitava se adequar à realidade na qual estava inserida, sendo imprescindível sua interpretação sob a ótica constitucional, a fim de que não houvesse prejuízo aos princípios legais da Administração Pública como o da eficiência (art. 37, caput, da CRFB/88, introduzido pela Emenda Constitucional n. 19/1998) e da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, da CRFB/88, introduzido pela Emenda Constitucional n. 45/2004), inexistentes à época da promulgação da LIA (CAMBI; DINIZ, 2018).
E é a partir de uma leitura constitucional da Lei n. 8.429/92 que se pode inferir que não era adequada a interpretação literal do art. 17, §1º, já que este não estava em harmonia com o microssistema de combate às lesões à Administração Pública que imperava e ainda impera (ZANETI JR; ALVES, 2016).
3. A Resolução n. 179/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público e sua influência na autocomposição em matéria de improbidade administrativa
A inadequação do disposto no art. 17, §1º, da Lei n. 8.429/92 ao ordenamento jurídico brasileiro restou expressa na Medida Provisória 703/2015 (MP 703/2015), a qual, em que pese as críticas a ela dirigidas, andou bem ao revogar o dispositivo ora questionado. A MP 703/2015, porém, havia caducado, uma vez que esgotado, em maio de 2016, seu prazo de tramitação no Congresso Nacional. Apesar da perda de validade da referida Medida Provisória, esta já havia demonstrado ser, de fato, necessária uma mudança da legislação acerca da improbidade administrativa, privilegiando-se a prevenção ou a reparação de eventuais danos causados ao patrimônio público e à probidade administrativa.
Diante do cenário narrado, é essencial a compreensão de que a morosidade na equalização legislativa não poderia resultar na paralização dos operadores do direito que, diante das inovações, devem apresentar respostas dotadas de eficiência (ZAGANELLI; ROCHA, 2017), já que existente o risco de tornar lento e pouco efetivo o combate aos atos de improbidade.
Assim, pode-se dizer que havia um desejo por punições rigorosas aos atos de corrupção e atos ímprobos e, de outro lado, como já explicitado, uma busca por soluções consensuais para tais controvérsias (TAKAHASHI, 2013).
Em atenção a tal realidade, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em 26 de julho de 2017, publicou a Resolução n. 179, que disciplina a realização do compromisso de ajustamento de conduta. Este ato normativo, ainda em vigor no âmbito ministerial, traz em seu art. 1º, caput e §2º, a seguinte redação:
“Art. 1º O compromisso de ajustamento de conduta é instrumento de garantia dos direitos e interesses difusos e coletivos, individuais homogêneos e outros direitos de cuja defesa está incumbido o Ministério Público, com natureza de negócio jurídico que tem por finalidade a adequação da conduta às exigências legais e constitucionais, com eficácia de título executivo extrajudicial a partir da celebração.
Como se nota, a Resolução n. 179/2017 seguiu caminho diverso do que estava traçado pelo art. 17, §1º, da LIA, prevendo, expressamente, como cabível a celebração do compromisso de ajustamento de conduta nos casos referentes a hipóteses configuradoras da improbidade administrativa. Vislumbra-se, na edição e na aplicação de tal ato normativo, a busca por uma atuação não apenas processual do Ministério Público, voltando-se o órgão à produção de resultados efetivos para a realização da justiça.
A Resolução n. 179/2017 do CNMP demonstra, com efeito, a postura do denominado Ministério Público Resolutivo, que faz uso dos procedimentos administrativos ao seu alcance com vistas à uma solução célere e direta para conflitos que afetam interesses metaindividuais, evitando-se medidas direcionadas à judicialização das demandas. (CAMBI; FOGAÇA, 2017).
Ao firmar compromissos de ajustamento de conduta, permitindo-se, mediante uma solução dialogada, a prevenção ou a reparação de danos causados por atos ímprobos, o Parquet já promovia o acesso à justiça e a tutela do interesse público.
Apesar de existente o entendimento de que “o poder ‘regulamentador’ dos Conselhos esbarra, assim, na impossibilidade de inovar” (STRECK; SARLET; CLÉVE, 2006), a inovação trazida pela Resolução n. 179/2017 do CNMP já se revelava dotada de constitucionalidade, legalidade e coerência com o ordenamento jurídico brasileiro (DIDIER JR; ZANETI JR, 2018).
Ante a resistência existente por parte da doutrina brasileira com relação à celebração do compromisso de ajustamento de conduta no âmbito da improbidade administrativa, é preciso ter em conta que a solução consensual não requer a renúncia a um direito ou parte dele (TAKAHASHI, 2013).
Firmando um ajuste no qual conste que o agente público responsável pela conduta ímproba realizará o pagamento da dívida ao erário de maneira parcelada, o Ministério Público não estaria renunciando a um direito, mas sim permitindo que este se concretizasse de maneira viável. De maneira diversa não poderia ser, como a própria Resolução n. 179/2017 aponta em seu art. 1º, §1º:
“Art. 1º O compromisso de ajustamento de conduta é instrumento de garantia dos direitos e interesses difusos e coletivos, individuais homogêneos e outros direitos de cuja defesa está incumbido o Ministério Público, com natureza de negócio jurídico que tem por finalidade a adequação da conduta às exigências legais e constitucionais, com eficácia de título executivo extrajudicial a partir da celebração.
Admitindo-se, assim, como cabível o compromisso de ajustamento de conduta em casos de improbidade administrativa, foram surgindo hipóteses de quando seria alcançada a autocomposição. Um primeiro entendimento identificado no estudo da matéria segue no sentido de que seria conveniente a possibilidade de compromisso de ajustamento de conduta firmado em casos nos quais os atos ímprobos possuíssem menor lesividade, com facilitada reparação do dano.
Rogério Pacheco Alves (GARCIA; ALVES, 2017, p. 912) já admitia a transação nas hipóteses de menores prejuízos ao patrimônio coletivo. O autor ainda apontava que o ajuste poderia versar sobre os aspectos patrimoniais das sanções, sem, contudo, tocar nas sanções mais graves, como a perda da função pública. Ademais, o autor já asseverava que a disciplina prévia da matéria em lei seria essencial, pois, sem esta, o ajuste de conduta seria ilegal (GARCIA; ALVES, 2017).
Outra hipótese abraçada por parte de doutrina para o cabimento do compromisso de ajustamento de conduta no âmbito da improbidade administrativa era a de sua celebração apenas quanto aos direitos patrimoniais. Nesse caso, não se estaria a inovar como se propõe a Resolução n. 179/2017, tendo em vista que a face ressarcitória/desconstitutiva da ação de improbidade não era objeto de vedação quando da vigência do art. 17, §1º, da Lei n. 8.429/90, ante a sua identidade com qualquer ação popular ou ação civil pública, permitindo-se a celebração de acordos parciais (DIDIER JR; ZANETI JR).
Não haveria, então, proibição quanto ao ajuste sobre as condições, prazos e modos de prestação do valor referente à reparação do dano ao patrimônio público e à perda da vantagem ilícita obtida. A denominada face sancionatória das ações de improbidade administrativa, porém, não poderia ser objeto do acordo, impondo-se, assim, o ajuizamento da ação civil pública para a aplicação das demais sanções do art. 12 da LIA. Por esse motivo, seria de pouco interesse prático para o agente responsável pela conduta ímproba firmar um acordo, pois, de qualquer maneira, a ação seria proposta contra ele (GARCIA; ALVES, 2017).
Vale ressaltar a existência de maior utilidade em compromissos de ajustamento de conduta firmados não apenas para a reparação do dano, mas à própria prevenção do ato ímprobo. A prevenção do ilícito é desejada pelo sistema jurídico, visto que a reparação, em diversos casos, não apresenta resultados satisfatórios. Nessas hipóteses de acordo com caráter preventivo, o ajustamento de conduta versaria sobre uma obrigação de fazer ou de não fazer, com a cominação de uma sanção pecuniária para o seu descumprimento, consistindo o compromisso em um título executivo extrajudicial (GARCIA; ALVES, 2017).
Da leitura do art. 2º, § 1º, da Resolução 179/2017 do CNMP, extrai-se a possibilidade de realização de um negócio jurídico típico, o qual, com base na cláusula geral da negociação processual constante no art. 190 do CPC, (DIDIER JR.; ZANETI JR, 2018) volta-se, nesse caso, ao ajustamento das condições nas quais se dará o cumprimento das sanções pelo agente ímprobo e em que termos será realizado o ressarcimento ao erário. Note-se que, pelo próprio texto da Resolução (art. 1º, § 1º), as concessões admitidas nos negócios jurídicos atípicos outrora mencionados não são cabíveis na celebração do compromisso de ajustamento de conduta.
Ante a tendência mundial pela justiça consensual e sendo a sanção proposta na fase de inquérito, mediante o TAC, a mesma a ser obtida em uma sentença judicial impositiva, após um processo judicial moroso e custoso, deve o órgão ministerial ser eficiente ao zelar pelos poderes públicos, pelo patrimônio público e pelo fortalecimento da democracia. Assim, não havia, portanto, razão para se negar validade a um TAC que, pela via consensual, permitia que se obtivesse o mesmo que poderia ser obtido por uma sentença judicial. (SANTOS, 2012).
Portanto, ainda que não houvesse disciplina legal específica acerca de compromisso de ajustamento de conduta a ser firmado no âmbito da improbidade administrativa, era imprescindível uma atuação dos órgãos públicos com vistas à promoção de meios mais adequados à solução de conflitos sobre a matéria. Com políticas públicas de incentivo à composição, para uma eficaz e rápida recomposição do patrimônio público (GAJARDONI et al., 2014) e com o controle popular sobre os ajustes, proporcionando o acesso à justiça por meios adequados e efetivos, ainda que diversos da demanda judicial.
4. A revogação expressa da vedação contida no art. 17, § 1º, da Lei de Improbidade Administrativa e a criação do acordo de não persecução civil
O ordenamento jurídico brasileiro tem apresentado uma sequência de inovações as quais reconsideraram o alcance do interesse público. Aos poucos, as alterações implementadas após a LIA foram levando a um esvaziamento normativo do disposto no art. 17, § 1º, da Lei de Improbidade.
Podem ser citadas como inovações que relativizaram a indisponibilidade do interesse público: i) a previsão da transação penal na Lei n. 9.099/95 para crimes de ação penal pública incondicionada ou condicionada à representação; ii) a previsão do acordo de leniência, na Lei n. 12.846/2013, a ser celebrado com pessoas jurídicas que praticaram atos contra a Administração Pública, porém, aceitaram colaborar efetivamente com as investigações e com o processo administrativo; e iii) a possibilidade de utilização da mediação como meio para a solução de conflitos no âmbito da Administração Pública (art. 3º da Lei n. 13.140/2015). (CAMBI; DINIZ, 2018).
Neste cenário, somando-se a instrumentos normativos como a já citada Resolução n. 179/2017 do CNMP, houve mais do que um esvaziamento normativo do art. 17, §1º, da LIA, mas sim sua revogação tácita com a publicação da Lei da Mediação (Lei n. 13.140/2015), um fator de grande relevo que já era capaz de demonstrar a inadequação da continuidade da aplicação da vedação prevista na Lei de Improbidade. Como já abordado, o referido dispositivo da LIA trazia em seu texto a vedação de conciliação, acordo e transação nas ações de improbidade administrativa. A Lei de Mediação, por seu turno, em art. 36, §4º, prevê:
“Art. 36. No caso de conflitos que envolvam controvérsia jurídica entre órgãos ou entidades de direito público que integram a administração pública federal, a Advocacia-Geral da União deverá realizar composição extrajudicial do conflito, observados os procedimentos previstos em ato do Advogado-Geral da União.
[…]
Da leitura do artigo, nota-se que este, expressamente, já permitia a autocomposição nas ações de improbidade, revogando, ainda que tacitamente, o § 1º, do art. 17, da LIA, apesar da relutância por parte de muitos intérpretes que permaneceram aplicando a vedação em questão.
Assim, já era de se notar que a vedação se mostrava inadequada ao modelo de realização de justiça que cada vez mais vinha fincando raízes em nosso ordenamento jurídico. O acordo entre as partes, tal como o realizado no compromisso de ajustamento de conduta, era uma alternativa que devia ser almejada pelo mundo jurídico, assim como pela sociedade, inclusive em conflitos que envolvessem hipóteses de improbidade administrativa.
Em que pesem as divergências existentes acerca da revogação ou não do art. 17, § 1º, da LIA, a Lei n. 13.964/2019, mais conhecida como Pacote Anticrime, colocou um ponto final em tal imbróglio. Isso porque o referido diploma legal trouxe, dentro de suas diversas mudanças, a alteração do dispositivo legal supracitado, passando a ser previsto expressamente a possibilidade de celebração de acordo de não persecução cível.
Assim, o Pacote Anticrime foi a primeira legislação que revogou expressamente a vedação então existente no art. 17, § 1º, da Lei de Improbidade, alterando-se a sua redação e passando a prever, de forma expressa, a admissão da autocomposição, através do denominado acordo de não persecução cível.
Na lição de Rogério Rudiniki Neto (2021, p. 291):
“O acordo de não persecução cível possui clara inspiração na figura do termo de ajustamento de conduta em atos ímprobos de menor potencial ofensivo. Esta figura foi pioneiramente criada no âmbito do Ministério Público do Estado do Paraná, por meio da resolução 01/2017 do Conselho Superior do MPPR, tendo a ideia sido, em seguida, adotada em âmbito nacional pela resolução n. 179 do Conselho Nacional do Ministério Público.
Quando da edição dessas resoluções partiu-se das seguintes premissas: em atos ímprobos de menor potencial ofensivo dificilmente serão impostas as sanções mais gravosas, sujeitas à reserva de jurisdição, previstas na Lei n.º 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), tais como a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos. Nesses casos, em geral, é imposta multa, além da obrigação de reparar o prejuízo ao erário, sendo contraproducente aguardar um longo e dispendioso processo judicial quando o próprio agente ímprobo pode ter interesse em resolver rapidamente sua situação mediante a realização de acordo com o Ministério Público”.
Em atenção às demandas atuais e aos novos métodos desenvolvidos pelo ordenamento jurídico brasileiro, não se deve negar que o Legislativo e o Executivo conseguiram vislumbrar a incompatibilidade do disposto no art. 17, § 1º, da Lei n. 8.429/92, com a busca por uma efetiva realização da justiça que os tempos atuais cada vez mais têm demandado.
Afinal, como já apontado por Fazzio Jr. (2016, p. 461-462) ao tratar dos acordos de leniência, ante a corrupção pública no Brasil se encontrar em um estágio tão avançado, far-se-ia necessária uma leitura mais aberta do tema, a fim de que o direito não se encontrasse defasado em cotejo com a realidade atual.
Assim, já era necessária uma atuação mais eficiente e resolutiva por parte dos órgãos públicos responsáveis diretamente pela tutela da Administração Pública. A expressar essa atuação eficiente e evolutiva, lançando mão das ferramentas disponíveis, a exemplo do já mencionado termo de ajustamento de conduta, que evidentemente forneceu bases ao acordo de não persecução cível.
Portanto, de forma a ratificar todo o pensamento construído pela doutrina e jurisprudência favoráveis à autocomposição nas hipóteses configuradoras de improbidade administrativa, o Pacote Anticrime trouxe uma grande segurança jurídica aos operadores de direito, fazendo com que as discussões em torno da vedação anteriormente contida no art. 17, § 1º, da Lei de Improbidade não fosse mais objeto de entrave aos métodos autocompositivos.
Malgrado tal contexto, o acordo de não persecução cível trazido pela Lei n. 13.964/2019 não cuidou de apresentar o campo de abrangência do novel instituto. Assim, na ótica de Renato de Lima Castro (2020, p. 212):
“[…] deve-se nominar acordo de não persecução cível como gênero, para abarcar todas as espécies abstratamente previstas na legislação, sendo espécies: compromissos de ajustamento de conduta; acordos de não persecução em sentido estrito não instrumentais e acordos de não persecução cível de caráter instrumental. Estes se concretizam nas colaborações premiadas ocorridas na improbidade administrativa ou no acordo de leniência. Já os acordos de não persecução em sentido estrito não instrumentais são aqueles que não exigem qualquer espécie de colaboração do autor do fato ímprobo. Recaem sobre os atos de improbidade administrativa de gravidade média/grave, ou de escassa gravidade, que são as modalidades de ato de improbidade de menor potencial ofensivo. Note-se que, no TAC, em decorrência de sua limitação legal contida na Lei de Ação Civil Pública e na Resolução nº 179/17 do Conselho Nacional do Ministério Público, o titular da pretensão poderá firmá-lo sem disponibilização do direito material, limitando-se o acordado ao prazo ou forma de cumprimento da obrigação pactuada. Assim, v.g., no parcelamento dos danos causados ao erário, ou do pagamento da multa imposta, parcela-se, sem disponibilidade do direito. O TAC, assim, pode ser efetivado a qualquer tempo. Já no acordo de não persecução cível em sentido estrito não instrumental, várias situações podem ocorrer. A uma, o ato de improbidade administrativa é dotado de escasso desvalor de comportamento e de resultado e que, segundo o princípio da proporcionalidade, assim como a eficiência administrativa, legitimam que o Ministério Público, fundado em um juízo discricionário devidamente motivado, justifique o rápido ressarcimento do erário, ou o pagamento de eventual multa imposta, sem a propositura de outras sanções decorrentes do ato de improbidade. Nesta hipótese, firma-se um instrumento, materializado no próprio acordo de não persecução cível, com antecipação da sanção que, segundo a magnitude do injusto ímprobo, é apropriada à espécie. Este acordo de não persecução cível pode ser na fase da investigação, ou no processo, até a contestação”.
Conquanto o Pacote Anticrime tenha solucionado as questões em torno da vedação da autocomposição nas hipóteses atos ímprobos e inserido no ordenamento a figura do acordo de não persecução cível, ainda restavam dúvidas acerca do alcance do instituto, demandando-se novas disposições legais para regular a matéria. Enquanto isso, os operadores do direito lançavam mão de instrumentos normativos já existentes como, por exemplo, a já citada Resolução 179/2017 do CNMP.
Solucionando tal panorama dúbio, foi publicada a Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021, que alterou grande parte da Lei de Improbidade Administrativa. A nova legislação revogou o art. 17 e seus parágrafos 1º a 4º, da LIA, trazendo uma nova redação. Nela, o caput do art. 17 tratou de abarcar apenas a legitimação do Ministério Público na propositura das ações relativas ao ato de improbidade administrativa, bem como a utilização do rito comum previsto no CPC como regra para o procedimento de tais ações.
É somente no art. 17-B, inserido pelo novel diploma legal, que a autocomposição nas hipóteses de improbidade administrativa toma forma e ganha campo de aplicação. De acordo com o referido dispositivo:
“Art. 17-B. O Ministério Público poderá, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo de não persecução civil, desde que dele advenham, ao menos, os seguintes resultados:
I – o integral ressarcimento do dano;
II – a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados.
I- da oitiva do ente federativo lesado, em momento anterior ou posterior à propositura da ação;
II- de aprovação, no prazo de até 60 (sessenta) dias, pelo órgão do Ministério Público competente para apreciar as promoções de arquivamento de inquéritos civis, se anterior ao ajuizamento da ação;
III- de homologação judicial, independentemente de o acordo ocorrer antes ou depois do ajuizamento da ação de improbidade administrativa
5 (cinco) anos, contado do conhecimento pelo Ministério Público do efetivo descumprimento”. (BRASIL, 2021).
Assim, o outrora denominado acordo de não persecução cível se tornou o atual acordo de não persecução civil, alterando-se apenas o último termo dado ao instituto, sendo delimitado legalmente o procedimento a ser tomado para os casos que admitirão a autocomposição.
Nota-se que a legislação trouxe os requisitos necessários para que o acordo de não persecução civil seja oferecido pelo órgão ministerial, além de destacar quais os resultados mínimos que devem ser atingidos através da solução negocial, quais sejam, o ressarcimento integral do dano e a devolução à pessoa jurídica lesada da vantagem obtida indevidamente.
Interessante notar, também, que a legislação encerrou as discussões em torno do momento adequado para o oferecimento do acordo de persecução civil. Assim como o Código de Processo Civil privilegia que a conciliação seja oferecida a qualquer tempo, o § 4º, do art. 17- B, transcrito alhures, dispõe que a solução negociada poderá ser feita no curso da investigação de apuração do ilícito, no curso da ação de improbidade e, até mesmo, no momento da execução da sentença condenatória, demonstrando o quanto o Processo Coletivo busca, cada vez mais, a solução adequada dos conflitos através da autocomposição.
Conclusão
Diante do estudo desenvolvido, nota-se que a realidade jurídica contemporânea cada demanda a necessidade de aplicação dos meios adequados para a solução dos conflitos emergentes na sociedade, com vistas, principalmente, ao acesso à justiça. É evidente que os meios de resolução de controvérsias não são exclusivos dos processos judiciais conflituosos, notando-se que, em muitos casos, a via consensual se mostra mais efetiva e célere, sendo intensamente estimulada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Por essa razão, sua possibilidade no âmbito dos processos coletivos não é só possível, como recomendada. De análise do microssistema do processo coletivo, extrai-se a plena compatibilidade da solução negociada para os litígios de caráter coletivo.
A partir dessa conclusão, entende-se também adequada a via consensual nos casos de hipóteses configuradoras da improbidade administrativa. Muito embora a Lei n. 8.429/92, em seu art. 17, § 1º, vedasse as soluções consensuais nas ações de improbidade administrativa, sendo essa vedação estendida à fase pré-processual, atualmente não é possível mais vislumbrar quaisquer óbices à proibição em comento, ante a recente publicação da Lei n. 14.230/2021, que instituiu o acordo de não persecução civil, a partir de um panorama jurídico inaugurado por medidas como a Resolução n. 179/2017 do CNMP e do Pacote Anticrime.
As arguições em torno da indisponibilidade do interesse público enquanto fundamento à vedação de autocomposição no âmbito da improbidade administrativa não têm mais espaço no atual contexto jurídico, visto que não somente na nova disposição legal, mas também na própria tutela do interesse público, a autocomposição se impõe enquanto dever.
Assim, depreende-se que andou bem o Legislativo e o Executivo ao aprovar e sancionar as mudanças legais que acabaram por revogar a vedação prevista no extinto art. 17, § 1º, da Lei n. 8.429/92, já que tal proibição não possuía mais razão de ser na realidade contemporânea.
O combate à corrupção e à improbidade administrativa requer medidas efetivas e céleres para recomposição do patrimônio público e para a tutela da moralidade administrativa. Dessa forma, o acordo de não persecução civil, previsto legalmente, demonstra-se, assim como o termo de ajustamento de conduta, como instrumento de autocomposição capaz de pôr fim ao litígio sem deixar de realizar a tutela dos direitos, sendo, em muitos casos, a solução adequada disponível.
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