Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar, sob a luz de Ronald Dworkin, as (em tese) divergentes decisões proferidas pelo plenário do Supremo Tribunal Federal nas ações penais n° 333 (Caso Ronaldo Cunha Lima), n° 396 (Caso Natan Donadon), e n° 536 (Caso Eduardo Azeredo), em que se restou caracterizado, no entendimento de alguns ministros, abuso de direito e tentativa de fraude processual dos réus no tocante a eventuais renúncias aos mandatos parlamentares, com consequente extinção do foro por prerrogativa de função. Para tal, será verificado o voto dos ministros contemporâneos a estes três casos, identificando melhor a coerência entre as decisões desta Casa, além de uma discussão a respeito do instituto do foro por prerrogativa de função, uma hipotética perpetuatio jurisdictionis e uma análise deontológica da categoria do abuso de direito.[1]
Palavras-chave: Foro por prerrogativa de função. Abuso de direito. Renúncia ao mandato. Perpetuatio jurisdictionis.
Abstract: The main of this paper is to analyze, with the theory of Ronald Dworkin, the (apparently) different decisions taken by the Supreme Brazilian Court (STF), in criminal cases nº 333 (Case Ronaldo Cunha Lima), nº 396 (Case Natan Donadon) and nº 536 (Case Eduardo Azeredo), in which have been identified, according to some judges’ understanding, abuse of rights and procedural fraud try, when it comes to eventual resignations of parliamentary mandates, that have, as consequence, the extinction of the forum by function prerogative. To do that, it will verified the ministers’ votes in all the cases, identifying the coherence among the decisions from that court, besides a discussion about the institute of forum by prerogative of function, a hypothetical perpetuatio jurisdictionis and a deontological analyses about abuse of rights category.
Key-words: Forum by prerogative of function. Abuse of rights. Resignation of parliamentary mandate. Perpetuatio jurisdictionis.
Sumário: Introdução. 1. Da prerrogativa de foro por exercício de função. 1.1. A legitimidade constitucional do foro por prerrogativa. 1.2. O foro por prerrogativa e o princípio do juiz natural. 1.3. Questões de ilegitimidade filosófica e problemas práticos do foro por prerrogativa. 1.4. Perpetuatio jurisdictionis e o foro por prerrogativa de função. 2. A categoria do abuso de direito. 3. Descrição dos casos. 3.1. Ação penal nº 333/PB – Caso Ronaldo Cunha Lima. 3.2. Ação penal nº 396/RO – Caso Natan Donadon. 3.3. Ação penal 536/MG – Caso Eduardo Azeredo. 4. Integridade interpretativa: existe uma única resposta correta. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Este trabalho analisará, sob a égide teórica de Ronald Dworkin, as divergentes decisões proferidas pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, em casos que, para a interpretação de alguns ministros, restou caracterizado abuso de direito e tentativa de fraude processual dos réus no tocante a eventuais renúncias aos mandatos parlamentares, com consequente extinção do foro por prerrogativa de função.
Para tanto, foram escolhidas as ações penais n° 333 (Caso Ronaldo Cunha Lima), n° 396 (Caso Natan Donadon), e n° 536 (Caso Eduardo Azeredo), no sentido de se discutir desde o instituto do foro por prerrogativa de função, passando pela aplicabilidade (ou não) da perpetuatio jurisdictionis e o cancelamento da súmula nº 394 do STF e concluindo com a delimitação objetiva do marco temporal, ainda que involuntariamente, fixado pela Suprema Corte que viria a caracterizar o exercício abusivo de renunciar ao mandato, como mecanismo (ou não) de defesa.
Objetiva-se aferir, com tanto, o posicionamento do Tribunal Supremo no que diz respeito aos modos empregados de supostos malabarismos processuais que culminam por deixar a critério do réu privilegiado a possibilidade de “escolha” de seu juiz natural, reverberando, em muitos casos, no alcance do benefício prescricional e fim da possibilidade de o Estado se fazer soberano (mesmo do ponto de vista investigatório) perante tais atores processuais.
Traçando a linha supramencionada, questiona-se: qual o entendimento do STF a respeito do que possa vir a ser abuso de direito e fraude processual com violação ao princípio do juiz natural em sede de defesa própria? Isso se dá porque os casos escolhidos são exemplos pontuais que não esgotam as situações em que a Suprema Corte já apresentou diversas decisões para casos semelhantes, tornando sempre ativa a inquietação jurídico-acadêmica em torno do que, de fato, quer dizer a Constituição (art. 102, CF).
Nessa perspectiva, responde-se que, apesar de diretamente não se poder responder, o STF firmou entendimento baseado num marco temporal que caracteriza o abuso de direito, que não se baseia exclusivamente no tempo da renúncia (a saber, da similitude dos casos Ronaldo Cunha Lima e Natan Donadon), mas também baseado em ações do réu no desenrolar do processo ou mesmo em situações em que, por analogia ao princípio da presunção de inocência, não se pode ser taxativo ao afirmar que houve abuso de direito quando a cessação do mandato (e, portanto, da competência) não se deu por motivo imputável ao réu (como a não reeleição).
No desenrolar deste trabalho acadêmico, valeu-se do uso da pesquisa documental e bibliográfica e, especialmente, de análises lógico-dedutivas sobre o teor das fontes para o alcance dos objetivos previamente estabelecidos (DESLANDES, 2002), muito disso porque a pesquisa dogmática do direito se restringe a técnicas específicas em razão de sua categorização como ciência social aplicada (LAKATOS, 2010).
Em face disso, procedeu-se a uma interpretação do método de pesquisa baseado em mapas temáticos e árvores de associação (SPINK, 2010), no intuito de se esmiuçarem as decisões proferidas pelas ministras e pelos ministros nos casos em tela (inclusive procedendo à comparação entre decisões do mesmo ministro, quando possível), no intuito de se verificarem dois tópicos fundamentais deste estudo: o primeiro, do ponto de vista teórico-jurídico, analisar, com os ensinamentos de Ronald Dworkin (1999; BAHIA, SILVA & VECCHIATTI, 2014), se as decisões divergentes em casos similares são íntegras, no que toca ao aspecto de segurança jurídica pela metáfora do romance em cadeia, e, após, do ponto de vista pragmático processual-penal-constitucional (BULOS, 2014; SILVA, 2015), verificar se, ainda que não intencional, as decisões fixaram marcos temporais que venham a assinalar a hipótese de abuso de direito, conforme extraído de alguns votos.
Anteriormente à aplicação da dedução lógico-científica, pelo uso dos procedimentos supra, construiu-se um campo de localização teórica tanto a respeito do foro por prerrogativa de função (KARAM, 2005; MENDES, 2012; BULOS, 2014; SILVA, 2015), como no que se referencia ao estudo do abuso de direito (LOPEZ, 2009; SOUSA, 2009); manifestando posse de um terreno preparado para receber a hermenêutica das decisões a seguir analisadas.
A principal dificuldade esteve na definição do problema de pesquisa e seu encaixe no procedimento de pesquisa (DINIZ, 2013), uma vez que o tema selecionado traz três elementos que requerem significativo fôlego para a construção acadêmica. Do foro por prerrogativa, optou-se por utilizar referencial teórico de preparação, especialmente porque discussões mais profundas sobre a temática já são bem comuns na pesquisa jurídica. Da renúncia ao mandato, preferiu-se interpretar não como uma temática, mas como um aspecto necessário ao desenvolvimento do tema privilegiado, que houve por ser o abuso de direito; dele, além de categorizá-lo teoricamente, procedeu-se à investigação do marco temporal ou o que o fez ser verificável nos casos tomados por referência.
Nesta toada, adotou-se o conceito de abuso de direito traduzido do ponto de vista deontológico, que é o livre exercício de direito legítimo, mas que, no caso concreto, é contrário ao direito considerado em objetividade e generalidade (SOUSA, 2009). A generalidade presumida é o interesse público inerente à prestação jurisdicional do exercício da justiça penal.
Na situação em que os casos escolhidos para análise, aparentemente iguais, produziram decisões distintas, buscaram-se os ensinamentos pautados pela análise de integridade do ponto de vista teórico do direito (DWORKIN, 2009) no sentido de apreciar se as decisões distintas constroem um “romance em cadeia” de superação por evolução ou se estão marcadas de diferença porque se constituem a partir de casos diferentes.
1. DA PRERROGATIVA DE FORO POR EXERCÍCIO DE FUNÇÃO
1.1. A legitimidade constitucional do foro por prerrogativa
As questões de competência processual são exaustivamente tratadas pela Lei Maior, como também por diplomas inferiores, como é o caso dos Códigos Processuais (Civil e Penal), além das leis de organização judiciária país adentro. Em questões de competência absoluta, define a lei (latu sensu) a quem compete originariamente processar e julgar quaisquer tipos de causa; é o que faz o texto constitucional pela literalidade de seu artigo 102, inciso I, especialmente pelas alíneas de “b” a “d”, quando estabelece o rol de foros por prerrogativa de função.
A esse respeito, aduz-se mencionar que são instituídos não em favor da pessoa, mas propriamente em razão da função pública que executam, fazendo valer a supremacia do interesse público e confundir no agente público a figura do próprio Estado (SILVA, 2015).
Foro privilegiado ou desprivilegiado?
Estes foros são muitas vezes também chamados de foro privilegiado, malgrado considerável parcela doutrinária rechace esta terminologia por alegar inexistência de qualquer privilégio (KARAM, 2005). Nesse aspecto, pontua, inclusive, a autora, tratar-se de uma situação reversa de privilégio, vez que os titulares de tais foros são tolhidos de outro direito fundamental que é o duplo grau de jurisdição/competência. Assevera Maria Lúcia Karam: “[…] privilégio pessoal para favorecer o réu, como críticas apressadas costumam apontar. Na realidade, a competência originária de tribunais pode até desfavorecer o réu. Pense-se na possibilidade de recorrer contra o pronunciamento condenatório. Quando atuante um juiz de 1º grau, um tal posicionamento poderá ser revisto e modificado por órgãos superiores. Na hipótese de competência originária destes órgãos superiores, tal possibilidade se estreita ou até mesmo se exclui. A competência por prerrogativa de função não é, pois, um privilégio. (KARAM, 2005, p. 38).”
Gilmar Mendes (2012) trabalha a respeito do foro por prerrogativa ressaltando o aspecto de que se constitui não em favor do indivíduo que ocupa o cargo público, mas em função do cargo em si, e menciona que a confusão sobre se o foro se dá em função da pessoa era típica do período anterior à edição da EC nº 35/2001, quando passou a ser desnecessário prévia autorização da Casa legislativa de origem para instauração de processo contra parlamentar. A possibilidade de impedimento de curso processual regular era sugestiva de privilégio, obviamente, em primeiro plano, por conta do corporativismo e, em plano ideológico, pela manutenção da separação e harmonia dos poderes. Essa possibilidade não mais subsiste, salvo a hipótese de eventual suspensão processual condicionada à manifestação da Casa de origem.
1.2. O foro por prerrogativa e o princípio do juiz natural
Sobre o foro por prerrogativa, ainda se levanta a questão de adequação ao princípio do juiz natural. Para isso, é relevante mencionar a Questão de Ordem suscitada na Ação Penal nº 333 (objeto de análise vindoura), na qual o réu requer a remessa dos autos ao juízo de primeira instância por aplicar a literalidade do art. 5º, XXXVIII, d, da Constituição Federal, visto que o processo se tratava de ação penal por tentativa de homicídio. No julgamento da ordem, os ministros entenderam, por unanimidade, que o constituinte originário foi taxativo ao designar ao STF a competência para processar e julgar os membros do Congresso Nacional em infrações comuns, entendidas dentre estas as de natureza penal (inclusive os crimes dolosos contra a vida) e as de natureza eleitoral, não subsistindo hipotética colisão de competência dentro do texto maior.
Questão diferente é a que vem descrita na súmula nº 721, do STF, cujas letras dizem: “A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição estadual”. A hipótese aqui se diferencia porque a norma estabelecida em ato infraconstitucional (Constituição estadual) não prevalece sobre dispositivo de natureza constitucional pura, que é a competência do Tribunal do Júri.
1.3. Questões de ilegitimidade filosófica e problemas práticos do foro por prerrogativa
O entendimento a respeito da legitimidade/necessidade do foro especial não é pacífico, especialmente pelo que se extrai da parte preliminar do voto proferido pelo Min. Luís Roberto Barroso, quando da análise de Questão de Ordem na Ação Penal nº 536. No caso, o ministro relator levantou aspectos segundo os quais se presta inadmissível ou, pelo menos, desarrazoada a manutenção de foro por prerrogativa, e faz isso com fundamentos pautados pela filosofia política e filosofia constitucional, ao afirmar o caráter não republicano de formulação de características especiais vinculadas a pessoas, dando-lhes tratamento diferenciado. Outro aspecto levantado pelo ministro, e aqui dialoga com a ideia de Maria Lúcia Karam supra, versa a respeito das situações em que o indivíduo se vê diante de um único grau de jurisdição, o que vai de encontro a normas internacionais de direitos humanos das quais o Brasil é signatário.
Em sede de problemas práticos, aduz o relator que a manutenção de foro sobrecarrega o Supremo Tribunal Federal de atribuições, deixando de ser um tribunal de teses jurídicas e pacificação da jurisprudência nacional à luz da Constituição e passa a ser um tribunal de análise fático-probatória. Aqui emerge um problema de natureza específica: a competência para o foro “privilegiado” é dada ao STF por disposição do constituinte originário, revelando, portanto, uma questão de caráter político e de diálogo institucional.
1.4. Perpetuatio jurisdictionis e o foro por prerrogativa de função
Por incidência do foro por prerrogativa de função, membros do Congresso Nacional são processados e julgados, nas infrações penais comuns, perante o STF, garantia firmada a esses agentes políticos, desde a expedição do diploma, caracterizado o termo a quo. Para isso, Bulos (2014) critica o fato de que o legislador constitucional não estabeleceu o termo final de tal foro, restando inferido que este se extinguiria quando não mais houvesse mandato, independentemente do motivo.
Entretanto, não era esse o entendimento da Suprema Corte enquanto vigente o enunciado da súmula nº 394, que dizia: “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”. O enunciado foi cancelado em 1999 quando os ministros houveram por bem entender que a prerrogativa se aplica a mandatários e não a não mandatários.
Ainda que entendamos por acertada a decisão do Tribunal pelo cancelamento da súmula em análise, a situação encontra um problema teórico quando se passa a analisar o caso específico da renúncia parlamentar. O art. 55, § 4º, da Constituição postula que a renúncia terá seus efeitos suspensos, se o parlamentar estiver sendo submetido a processo que possa levá-lo à perda do mandato, e, como se sabe, a condenação criminal transitada em julgado tem, como um de seus efeitos, a perda dos direitos políticos, o que, in casu, implica a perda do mandato.
A situação passa a ter uma nova roupagem (e isso influenciará a análise dos casos mais a frente) porque a competência para suspender os efeitos da renúncia, no caso do artigo supramencionado, é da própria Casa legislativa de que faz parte o parlamentar. Nos casos escolhidos para estudo, a Casa em nenhuma das vezes optou pela suspensão dos efeitos da renúncia, mesmo ciente da possibilidade de condenação. Se os motivos são corporativistas ou se dão em razão de poder institucional, não se entrará no mérito; o que se tem é que: o recebimento da renúncia pela Casa é de plenos efeitos, assim, em não subsistindo o mandato, extingue-se a prerrogativa (termo ad quem), logo, incabível a perpetuatio jurisdictionis.
2. A CATEGORIA DO ABUSO DE DIREITO
A temática em questão, ainda que eminentemente característica da doutrina civilista, é invocada nos casos em análise por entenderem, alguns ministros, que os réus extrapolaram o livre direito de renunciarem ao mandato na tentativa de fraudar o andamento processual e escapar do julgamento. O Código Civil de 2002 normatiza em seu art. 187 que: “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
A professora Teresa Ancona Lopez (2009) destaca que o berço teórico do abuso de direito é francês e data do final do século XIX para o início do século XX, mas ressalta que decisões que condenavam pessoas sob a justificativa do abuso remontam à época da edição do Code Napoleón, sendo o mais emblemático o caso “Clément-Bayard” (versus Cocquerel)[2]. A autora também destaca que a categoria não está vinculada apenas ao exercício de direito subjetivo, havendo a necessidade tão somente de que o agente seja titular do direito que abusa. Acrescenta que: “Na verdade, resume-se ao "exercício inadmissível de posições jurídicas". De outro lado, também não se confunde com os atos emulativos e com os atos ilícitos típicos, não se ligando, dessa forma, o abuso do direito somente à responsabilidade civil. O abuso do direito é, como vem previsto em nossa dogmática, ato antijurídico ou ilícito atípico que afronta os valores e princípios do sistema, como a boa-fé, os bons costumes e a finalidade econômica e social do Direito”. (LOPEZ, 2009, p. 1)
A professora e advogada Maria Sueli Rodrigues de Sousa traduz o abuso de direito em uma perspectiva deontológica, como sendo: “[…] o exercício de direito legítimo que no caso concreto é contrário ao direito considerado em sua generalidade e objetividade, como conjunto de regras para assentar expectativas e promover o entendimento, considerando que o abuso de direito se configura como o ato que, a princípio, autorizado legalmente, se executa em desconformidade ao ordenamento jurídico no seu todo ou com excesso na sua limitação e que abuso de direito pressupõe a existência deste, o que se considera abuso é a ofensa à justiça sob a justificativa de exercício de direito legítimo”. (SOUSA, 2009, p. 201).
É fato evidente que a renúncia ao mandato parlamentar constitui livre exercício de direito potestativo de quem o detenha; não é isso que se questiona. O que se traz à baila é que: o exercício do mandato implica existência de foro por prerrogativa de função; no caso de ser processado criminalmente, o parlamentar não se desfaz apenas do mandato, mas também do foro que deste decorre. A priori não parece ilícito que o parlamentar tome tal decisão, principalmente porque o foro especial esvazia a capacidade recursal de que é dotado o foro comum, daí porque Maria Lúcia Karam (2005) adverte não se tratar muito bem de um foro privilegiado.
A grande questão, e isso é reiteradamente rememorado pelos ministros defensores de que houve abuso de direito nos casos, está no momento do processo em que a renúncia ocorrera, trazendo à luz uma, ainda que não objetivada, pré-noção de que o objetivo do réu seja o de atrapalhar o andamento processual, especialmente quando esta renúncia ocorre na véspera do julgamento (AP 396).
3. DESCRIÇÃO DOS CASOS
3.1. Ação Penal nº 333/PB – Caso Ronaldo Cunha Lima
Em breve síntese, narra a denúncia que em 05 de novembro de 1993, o então governador do estado da Paraíba (Ronaldo Cunha Lima – PMDB) adentrou a um restaurante em João Pessoa no qual estava almoçando o ex-governador do estado Tarcísio Burity (PMDB) e, contra este, disparou dois tiros; a vítima não falecera no local, mas chegou a permanecer em coma por duas semanas. O MPF ofereceu denúncia contra Ronaldo Cunha Lima ao STJ com base no artigo 121, parágrafo 2º, IV, c/c artigo 14, II, ambos do Código Penal (tentativa de homicídio qualificado pela impossibilidade de defesa da vítima). O Tribunal da Cidadania pediu autorização à Assembleia Legislativa da Paraíba para processar o então governador, mas teve o pedido negado; considerando que o fato imputado não tinha correlação com o exercício do mandato por não se tratar de crime de natureza política, o STJ decidiu por sobrestar a ação pelo tempo em que o acusado permanecesse no cargo.
Nas eleições de 1994, Ronaldo Cunha Lima elegeu-se senador pelo estado, tomando posse em 1995, o que desencadeou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Federal, caindo a relatoria para o ministro Moreira Alves. O relator, então, solicitou licença à Casa legislativa do réu para julgá-lo, nos termos do artigo 53/CF anterior à EC nº 35/2001.[3] O Senado, após quatro anos parado o pedido, julgou a solicitação prejudicada, uma vez que requerimento de igual teor houvera sido feito junto à Assembleia, que o negara; em 2000, a ação foi novamente sobrestada e foi suspenso o curso de prescrição. Com a edição da EC nº 35/2001, a denúncia foi recebida à unanimidade na forma de ação penal; o réu foi interrogado pelo ministro Moreira Alves e confessou a prática da tentativa de homicídio, mas afirmou ter agido em legítima defesa da honra.[4]
O ministro Joaquim Barbosa assumiu a relatoria da ação, em virtude da aposentadoria do ministro Moreira Alves, ficando o cargo de revisor para o ministro Eros Grau que, após análise dos autos, pediu dia para julgamento da ação. A pauta de julgamento que incluía a ação fora publicada no dia 26 de outubro de 2003, no entanto, em 31 de outubro do mesmo ano, o réu (então deputado federal pela Paraíba) apresentou carta de renúncia à mesa da Câmara dos Deputados, ato que foi publicado no dia de julgamento da ação (04 de novembro de 2003). A situação motivou a apresentação de questão de ordem pelo relator.
Para o Min. Joaquim Barbosa, o réu agira de má-fé com o inadmissível objetivo de fraudar o andamento processual de uma ação que já se arrastava por mais de dez anos, visando, com isso, protelar o curso e ser, eventualmente beneficiado pela prescrição. Ainda que apoiado pela Min.ª Carmen Lúcia e pelos ministros Cezar Peluso e Ayres Britto, a questão de ordem apresentada pelo relator para manter a competência do STF foi rejeitada pela maioria dos ministros sob a alegação de, entre outras coisas, a súmula nº 394 havia sido cancelada, não mais subsistindo competência do Supremo para conduzir ação de que é réu agente não detentor de prerrogativa inerente à função.
3.2. Ação Penal nº 396/RO – Caso Natan Donadon
A denúncia foi originariamente oferecida pelo Procurador-Geral de Justiça do estado de Rondônia, em 1999, contra sete pessoas imputando-lhes os crimes de formação de quadrilha e peculato em concurso material e de pessoas; procedimento investigatório constatou ilicitude em contrato publicitário firmado entre a Assembleia Legislativa do Estado de Rondônia e a Empresa MPJ – Marketing, Propaganda e Jornalismo Ltda. O grupo criminoso seria liderado pelo então presidente do poder legislativo local, Deputado Estadual Marcos Antônio Donadon, cabendo o comando administrativo a seu irmão Natan Donadon.
Recebida a denúncia pelo juízo criminal ordinário de Porto Velho, foi marcada audiência de interrogatório para o réu Natan Donadon, que, mesmo tendo sido notificado, não compareceu, havendo sido decretada sua prisão preventiva. O juízo a quo tomou ciência de que o réu havia tomado posse como deputado federal e, considerando a circunstância do foro por prerrogativa de função, determinou a revogação da prisão e o desmembramento dos autos com a respectiva remessa ao Supremo Tribunal Federal. Recebida a ação, a então relatora, ministra Ellen Gracie, manteve o desmembramento dos autos e validou os atos praticados anteriores à diplomação e à posse do réu.
Com a aposentaria da então relatora, os autos foram remetidos ao gabinete da ministra Carmen Lúcia, que conduziu até o fim da instrução processual. O ministro revisor, Dias Toffoli, pediu dia para julgamento e a pauta que incluía a ação foi publicada em 20 de outubro de 2010, designando o dia 28 do mesmo mês para julgamento. Entretanto, no dia 27 de outubro, o advogado e o réu peticionaram manifestação informando a renúncia do réu perante a Câmara dos Deputados.
A ministra relatora apresentou questão de ordem na data prevista para julgamento para manter, no STF, a competência para julgar a ação, ponderando que o prazo prescricional estivesse a sete dias de se dar; alegou ainda que a proximidade da prescrição tornaria inviável a remessa dos autos ao juízo de primeira instância, haja vista a irretratabilidade da renúncia, tornando inutilizado todo o trabalho até então dispensado pela corte e resultando em ineficácia da função estatal do controle jurisdicional punitivo, no caso de eventual condenação.
A ministra Carmen Lúcia ressaltou que as características do foro por prerrogativa são garantias que asseguram o livre exercício do mandato e destacou que a renúncia é ato unilateral expresso de vontade pelo que se abdica das funções do direito renunciado ao mesmo tempo em que se desobriga dos deveres a ele inerentes. Com isso apontou que o ato de renúncia é de plenos efeitos no âmbito do direito privado, mas encontra limites quando no âmbito do direito público, uma vez que este é guiado pela finalidade pública. In casu, apontou a relatora, a situação era de que a renúncia implicaria na caracterização evidente da tentativa de se desonerar de eventual obrigação vindoura.
Para fins de sustentação da justificativa, a ministra levantou a questão do que se refere à hipótese de suspensão da renúncia nos casos em que o parlamentar seja submetido a processo que possa levar à perda do mandato (art. 55, § 4º, CF) e apontou que: “A ratio legis da Constituição Federal é tornar ineficaz o ato unilateral de renúncia daquele que foi denunciado em processo criminis, na condição de parlamentar, se livrar, com abuso de direito, das ações em curso, inclusive daquelas que estão tramitando na Casa à qual pertence o renunciante. (SILVA, 2015, p. 39).”
Ao argumentar isso, a relatora asseverou que a renúncia deveria ter os efeitos suspensos até o trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, exatamente pela possibilidade de perda de mandato, não tendo, portanto, se aperfeiçoado, razão pela qual entendeu pela manutenção do julgamento pautado para o STF.
O ministro revisor afirmou, em seu voto, que a intenção do réu era de exclusivamente escapar do julgamento, em razão da proximidade da prescrição, caracterizando o que o julgador entendeu como abuso do direito de defesa. Nessa perspectiva, acompanhou a relatora.
Os votos dos demais ministros foram marcados por alusões ao instituto da perpetuatio jurisdictionis e da análise do caso para caracterizar o abuso de direito; extrai-se das intervenções dos ministros Ayres Britto e Cezar Peluso que a renúncia, no caso, constituiria fraude à lei, enquadrando-se na hipótese de que o réu se valeria de determinada norma que lhe facultasse visando a renúncia para afastar a incidência de norma cogente (SILVA, 2015).
Por fim, ficou vencido apenas o Min. Marco Aurélio que destacou que a competência do STF é absoluta e não pode ser estendida para além da existência do mandato por não haver disposição constitucional a respeito e exemplificou que ainda que a renúncia ocorresse durante o julgamento, deveria o Supremo declinar da competência.
3.3. Ação Penal 536/MG – Caso Eduardo Azeredo
O ex-governador do estado de Minas Gerais e então deputado federal foi denunciado ao Supremo Tribunal Federal pela Procuradoria-Geral da República pela suposta prática dos crimes de peculato e lavagem de dinheiro em concurso material e de pessoas. O STF recebeu a denúncia e determinou o desmembramento dos autos em razão da prerrogativa de foro, permanecendo na Suprema Corte apenas a ação contra Eduardo Azeredo.
Recebida a denúncia, o processo foi devidamente instruído, entretanto, doze dias após a apresentação de alegações finais, o Supremo fora comunicado de que réu havia renunciado ao mandato de deputado federal, trazendo à tona mais uma vez a questão da perpetuatio jurisdictionis no caso de foro por prerrogativa.
O relator da ação penal, Min. Luís Roberto Barroso, iniciou seu voto apresentando duras críticas ao instituto do foro por prerrogativa, e o fez sob as égides da filosofia política e da filosofia constitucional, como já foi outrora mencionado. Nesse sentido, apresentou sugestões para analisar de forma objetiva (em razão da recorrência) em quais hipóteses a renúncia ao mandato constituiria abuso para se determinar o declínio (ou não) de competência do STF.
Aduziu o ministro Barroso que o marco temporal objetivo deveria ser o recebimento da denúncia pelo tribunal para a configuração da perpetuatio jurisdictionis, tornando eventual renúncia sem efeito no âmbito processual. Contudo, alegando o fato de que no processo penal o réu não pode ser surpreendido em homenagem à segurança jurídica, o ministro relator decidiu que a tese proposta não poderia ser aplicada ao caso em análise.
A situação trazida pelo ministro é, minimamente, estranha, uma vez que viola uma regra básica de precedente judicial, pela qual, a referência jurisprudencial se constrói pelas decisões aplicadas e não pelas sugestões apresentadas; nesse sentido, parecia atuar o ministro como legislador positivo ao afirmar que “para os próximos casos, esta regra valerá, mas para este não”, violando o princípio da separação de poderes.
Outro argumento que sustentou a tese do relator foi o de que o processo já estivesse inteiramente instruído e que, ao remeterem-se os autos à primeira instância, caberia ao juiz apenas o julgamento; este aspecto foi rebatido pelo Min. Joaquim Barbosa, que divergiu em partes do relator, ao votar pela manutenção do processo no STF e afirmar que a ação estava próxima de prescrever e que, ainda que devidamente instruída, a remessa dos autos não dispensaria o juízo de primeiro grau de uma análise minuciosa e criteriosa para a devida formação do convencimento.
Outros ministros votaram no sentido de declinar da competência para o juízo do primeiro grau neste caso e, ao mesmo tempo, levantaram hipóteses sobre qual deveria ser o marco temporal ajustado de forma objetiva para que se caracterize o abuso de direito e não se conheça da renúncia ao mandato, como: a finalização da instrução, proposta pela Min.ª Rosa Weber, a liberação para julgamento pelo revisor, proposta pelo Min. Dias Toffoli, ou a situação em que a renúncia não se dá por motivo explícito, proposta pelos ministros Luiz Fux e Teori Zavascki.
4. INTEGRIDADE INTERPRETATIVA: Existe apenas uma resposta correta?
Dworkin (1999), ao formular sua teoria do direito, fez-se valer da metáfora do romance em cadeia para dizer que o juiz, ao proferir sua decisão, deve verificar se o teor daquilo que está decidindo é coerente em relação àquilo que já fora decidido em casos parecidos, isto é, se aquela decisão encontra integridade no ordenamento seja para confirmar seja para superar o entendimento anterior. Nesse sentido, filosofa: “Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante. Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integridade. (DWORKIN, 1999, p. 276).”
Nesse aspecto, o jurista postula que somente uma única resposta para casos que versem sobre a mesma temática seria a correta, ao traduzir na figura do “juiz Hércules” a pessoa capaz de, dentre tantas possibilidades, encontrar a única resposta que se enquadra.
Para os professores e advogados Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia, Diego Bacha e Silva e Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, a teoria do autor norte-americano não foi seguida quando do julgamento das ações penais em análise, uma vez que em situações materialmente idênticas, os ministros se equivocaram ao alegar “distinções substanciais”, conforme aduzem: “Contudo, na linguagem do sistema de vinculação a precedentes, o que o STF fez foi uma distinção inconsistente entre os precedentes. Ora, a singela análise dos votos do caso Donadon deixa evidente que o STF efetivamente estabeleceu um princípio imanente à decisão (uma ratio decidendi apta a justificar decisões futuras), a saber, a vedação ao abuso de direito. É evidente que, neste julgamento, o STF definiu que a constatação de abuso de direito na renúncia de parlamentar, com o claro intuito (manipulativo) de alterar a competência para julgamento da causa, não tem o condão de gerar o deslocamento da competência para o juízo de primeira instância. Esse é o princípio subjacente a tal decisão, pela qual o tribunal pode aferir a existência ou não de tal abuso no caso concreto, donde constatado o abuso de direito no caso Azeredo, então eles são equivalentes (“idênticos no essencial”), de sorte a se justificar a ele a aplicação analógica do entendimento firmado no caso Donadon. (BAHIA, SILVA, VECCHIATTI, 2014). (grifos dos autores).”
Efetivamente, não estão os ministros obrigados a obedecer à teoria da integridade nas decisões judiciais, haja vista que, essencialmente, podem se tratar os casos em análise de matérias essencialmente diferente, mas a teoria de Dworkin é aqui invocada porque os julgados circundam uma matéria comum, que é a caracterização do abuso de direito por parte dos réus.
Aspecto relevante que há de ser mencionado é a situação do estranho entendimento adotado quando do julgamento do caso Eduardo Azeredo, em que a decisão proferida acabou por ser diferente do entendimento firmado para julgamentos futuros. A tese proposta pelo ministro relator discute o fato de que a situação se enquadra no âmbito do processo penal em que deve prevalecer a segurança jurídica em homenagem ao princípio da não surpresa; o que traz problema à decisão é o fato de que o ministro propõe que nos casos vindouros passe a ser adotado um entendimento que não aquele.
Esta atitude do julgador é sugestiva de invasão da competência do legislador, pois se infere que se dá por estabelecido um parâmetro objetivo para proferir julgamento, não sob o aspecto de súmula ou jurisprudência que é papel do judiciário, mas como orientação/regra de julgamento, que se assemelharia ao papel da lei no ordenamento jurídico.
Também se analisa que as decisões são distintas quanto à caracterização do abuso de direito. É característico de um órgão colegiado que haja divergência de entendimentos; isso traz a expressão fundamental do princípio de livre convencimento motivado do juiz. Quando se toma por baliza o primeiro caso, é aceitável entender que a corte não atue em uníssono uma vez que a situação é nova e traz aspectos não tratados para discussão.
No caso Ronaldo Cunha Lima (AP 333), a tese de configuração do abuso de direito restou vencida, apesar das argumentações dos ministros Ayres Britto e Cezar Peluso consubstanciadas em densa doutrina para entender que o ato do réu, ainda que resguardado pela autonomia da vontade em renunciar ao mandato, teria se dado com o intuito premente de fraudar a concretização da justiça, tendo, portanto, o réu abusado do direito de renunciar.
Firmada a tese vencedora (de que não se pode presumir o abuso de direito), entendimento diverso se tomou na colenda corte quando da apreciação do caso Natan Donadon (AP 396), em que, em situação parecida (de renúncia ao mandato às vésperas do julgamento), entendeu o Supremo que ali o réu agira de má-fé e com o evidente objetivo de fraudar a lei, ficando caracterizado o abuso. Eis aqui o primeiro problema: qual a diferença entre este caso e o anterior para caracterizar aqui a mudança de entendimento? Dworkin admite que a tese outrora vencedora seja modificada/superada quando não mais aplicável, mas as distinções entre ambos os casos são mínimas.
A tese que se firmou para a AP 396 foi a da proximidade do prazo prescricional e eventual perda da pretensão punitiva do Estado, mas, no caso da AP 333, a possibilidade de prescrição é também alertada pelo então relator Min. Joaquim Barbosa ao ressaltar que o réu já era idoso, alterando, portanto, a contagem do prazo prescricional. Vê-se, então, que, diante de situações aparentemente iguais, a decisão prevalecente foi bem distinta.
Duas decisões diferentes figuravam no marco jurisprudencial a orientar a decisão do caso Eduardo Azeredo (AP 536) que, negando a decisão mais recente proferida contra Natan Donadon, teve como tese de referência a acolhida no caso Ronaldo Cunha Lima. O STF decidiu que no momento em que se encontrava o processo não se poderia presumir que o réu estivesse tentando escapar de julgamento próximo, ainda que inevitável, porque ainda não incluído em pauta.
Ao se verificar que, em três casos similares, o plenário da corte proferiu três decisões distintas há de analisar se há elementos objetivos que definam o entendimento a ser adotado. É o que se fez ao analisar em qual ponto pode ser entendido que o réu abusa do direito de renunciar. Majoritariamente, o marco temporal houve por entendido como sendo a inclusão do processo em pauta para julgamento (aqui se desconsideraria o plano dos fatos para não discutir a situação atípica do caso Ronaldo Cunha Lima). Em se tratando da definição de marco temporal, haveria de se considerar que os casos não seriam parecidos, motivo pelo que não se aplicaria a tese dworkiniana.
Acolhida em partes, mas materialmente afastada a hipótese de se considerar como ponto objetivo o marco temporal da renúncia, há de se verificar que aspectos das decisões levam em consideração o comportamento do réu no desenrolar do processo. No caso Natan Donadon, é também ponto central da decisão a menção de que o réu tivesse mantido ao longo do processo a mudança de foro tornando dificultosa a instrução e a consequente inclusão em pauta para julgamento. Aqui se pode dizer que há um elemento distintivo dos casos.
O problema são os efeitos pragmáticos. Os casos são essencialmente iguais, mas o STF houve por entender que, majoritariamente (duas decisões de declínio de competência contra uma de manutenção) que não há como presumir o abuso de direito do réu no campo do processo penal porque, em sede teleológica, se faria presumir dolo do réu ao agir para fraudar o julgamento; principiologicamente essa teoria não é cabível no processo penal. Também, conclusivamente, é sugestivo de que o plenário supremo agiu de modo a garantir que, na dúvida, prevaleçam as garantias do réu, como o duplo grau de competência na jurisdição e até mesmo a presunção de inocência.
CONCLUSÃO
O foro por prerrogativa de função é elemento polêmico das democracias representativas, em especial o Brasil. Grande parcela da doutrina é categórica ao afirmar que sua existência se dá não em razão da pessoa que exerce o cargo, mas em razão do cargo em si (MENDES, 2012; BULOS, 2014) e que seu objetivo é o de proteger o exercício do cargo de eventuais perseguições de natureza política que ponham em risco o interesse público.
Contrariamente a isso, é de se apontar para o problema de que essa característica eventualmente se torna prejudicial ao ocupante do cargo por ficar desprovido de princípios básicos da filosofia constitucional como o duplo grau de competência na jurisdição, tornando o famigerado “foro privilegiado” em situação que não traz em si muitos privilégios (KARAM, 2005).
Em razão da situação de “desprivilégio”, conforme alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, a alternativa encontrada por alguns réus titulares de prerrogativa de foro tem sido a renúncia ao mandato para “escapar” do julgamento e passar a titularizar a possibilidade de duplo grau para julgamento. Este ato foi, por alguns julgadores, apontado como abusivo e indicativo de fraude processual.
O entendimento do STF foi o de que em alguns casos houve o abuso de direito (AP 396) e em outros este não ocorreu (AP 333 e AP 536), levando-nos a entender que a definição do abuso de direito estivesse adstrita a um marco temporal em que ocorresse a renúncia ao mandato, tornando, para esse aspecto, os casos não iguais, mas distintos materialmente, sendo afastada a teoria dworkiniana da produção de integridade.
O marco temporal houve por ser, na prática, se a renúncia acontecesse na véspera imediata do julgamento, considerada esta o dia imediatamente anterior (aqui mais uma vez é desconsiderada a AP 333, uma vez que a renúncia desta também se deu na véspera imediata, mas entre a data da renúncia e a data do julgamento, o ínterim fora preenchido com feriado prolongado) ao prevista para sessão de julgamento, e se esta estivesse próxima da data de prescrição da pretensão punitiva.
A questão que se entendeu como definitiva para o entendimento de que os casos são, em tese, distintos de modo a justificar a produção de decisões diferentes é a de argumentação que prepondera na discussão do caso Natan Donadon, pois avalia o comportamento do réu no desenvolvimento do processo. Para os ministros, a sucessiva e constante alteração de foros se deu com o intuito de dificultar a instrução visando ao benefício da prescrição, razão outra pela que ficou configurado o abuso de direito.
A definição de questões objetivas para condução de julgamento e entendimento de condutas não é papel do judiciário, razão pela qual restou inconclusivo o entendimento a respeito de uma fixação de marco temporal. O aspecto ressaltado neste trabalho é fruto da análise fática, assim como é o que se extrai da verificação do comportamento do réu, mas este aspecto sob análise subjetiva.
Da análise dos casos e da aplicação das teorias estudadas, especialmente as de verificação de abuso de direito, depreende-se que o entendimento do Supremo Tribunal Federal está adstrito a dois aspectos funcionais para caracterização do abuso que culmina em fraude processual: o primeiro é o marco temporal, no sentido de saber quando houve a renúncia e, consequentemente, quando ocorrerá a prescrição, e o segundo é o comportamento do réu no desenvolvimento do processo, no sentido de analisar axiologicamente se o ato de renúncia pode ser tratado sem ser considerado abusivo por referência nos atos anteriores do réu.
Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Piauí
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