Quando falamos em trabalho escravo, a imagem que vem à mente da maioria das pessoas volta-se para o nosso passado, para a era de pilhagens que violou o solo da África e das Américas, para as barbáries genocidas do pré-capitalismo mercantilista, para o tráfico transatlântico de africanos, para as senzalas, para as lutas dos movimentos abolicionistas, para as Leis Euzébio de Queiroz, Rio Branco e Áurea, entre outras. A maioria das pessoas, assim, refuta a ideia de trabalho escravo contemporâneo, atribuindo a ela a pecha de mero truque semântico falacioso ou de simples exercício retórico, pois a escravidão não poderia ser contemporânea: é coisa do passado, da qual a Lei Áurea já deu conta há mais de um século. Assim, a recorrência da escravidão, nos nossos dias, embora esteja na pauta dos meios de comunicação e seja reconhecida oficialmente pelo Estado brasileiro, não é conhecida, nem compreendida pela sociedade brasileira, tampouco vem sendo suficientemente estudada nos espaços acadêmicos, sendo comum a negação do fenômeno ou a sua relativização. A literatura sobre o tema no país ainda é escassa e subsistem mitos que obscurecem a compreensão da natureza e da amplitude desse fenômeno, como o de que se trata de um fenômeno residual no capitalismo contemporâneo, próprio de regiões mais atrasadas, vinculado a umas poucas e inexpressivas ações inescrupulosas isoladas.
No entanto, a escravidão contemporânea é uma realidade e não está restrita a regiões ou países subdesenvolvidos, tampouco corresponde somente à ação de alguns poucos criminosos isolados, mas está diretamente relacionada às relações assimétricas de poder existentes no âmbito das sociedades capitalistas e tem por raiz última a superexploração do trabalho dos “outros”, ou seja, de pessoas às quais se aplica a pecha de “diferentes”, estigmatizadas, estando habitualmente relacionada ao tráfico de pessoas, pois são os migrantes pobres (nacionais ou estrangeiros), em situação de hiperfragilidade e enganados por falsas promessas, que usualmente se submetem ao trabalho escravo: assim como as diferentes formas de exclusão social que estão com ela relacionadas, a escravidão dos nossos dias, definida como a condição ultrassubordinada do trabalhador privado da liberdade por meio da coação, tem raízes profundamente ancoradas na estrutura econômica, social e cultural ditada pelo capitalismo contemporâneo, que projeta para a sociedade, de cima para baixo, em uma ordem que reúne a alta burocracia de empresas gigantescas e a tecnocracia estatal, em um contexto de enorme concentração e centralização do capital e do poder, a concepção do “outro” ou do “diferente” (no Brasil, o negro, o nordestino pobre, o peão de trecho, o boliviano) não como sujeito de direitos humanos, mas como objeto de estranhamento cultural, de neutralização e de superexploração. A escravidão está sempre relacionada à pobreza e à discriminação: entre 2003 e 2007, um terço dos trabalhadores resgatados do trabalho escravo no Brasil pelo Ministério do Trabalho e Emprego era oriundo do Maranhão, o estado mais pobre da Federação; por outro lado, o coletivo imigrante com maior presença no Brasil, em situações de escravidão, é formado por bolivianos, sobretudo por aimarás e quíchuas, egressos de um dos países mais empobrecidos das Américas.
O problema não se restringe a países periféricos, alcançando diversos países centrais, como os europeus, que convivem com o escândalo da superexploração da mão-de-obra de estrangeiros em seus territórios para sustentar o seu atual modelo de desenvolvimento econômico. Países como a Inglaterra e a Suécia, assim, ainda convivem com formas contemporâneas de escravidão em seus territórios ([1]). Entretanto, em países como o Brasil, em que essa assimetria determinada histórica e culturalmente é ainda mais severamente agravada por problemas nacionais crônicos e resilientes como a insuficiência das políticas agrárias, a concentração de renda, o uso socialmente nocivo da propriedade, as largas desigualdades sociais e regionais e a consequente pobreza e exclusão social e econômica de um grande número de pessoas, a escravidão contemporânea toma maior relevo. No Brasil, a transição do modo de produção baseado no escravismo para o modo de produção baseado no trabalho “livre” sequer foi efetiva. O processo político, econômico, social e cultural de que decorreu a passagem da utilização massiva do trabalho escravo para o trabalho “livre” no Brasil revela que não houve uma ruptura substancial no campo da regulação do trabalho, mas apenas renovados processos de recomposição no modo de produção. O trabalho escravo contemporâneo no Brasil é uma realidade que guarda, nas suas diversas expressões, uma estreita relação com os sistemas de relações de trabalho implantados ao longo do século XIX e no início do século XX, com a crise do sistema escravista, impostos aos colonos imigrantes e aos libertos nacionais e pautados na proteção do tomador de serviços em detrimento dos trabalhadores, com regulamentos (dos quais a Lei Sinimbu é um claro exemplo) que impunham consideráveis restrições contratuais, rígida disciplina e obrigação de trabalhar, e que, de certa forma, reproduzem, até hoje, ainda que à margem da lei, o contexto fático em que a escravidão tradicionalmente se inseria.
O que é, todavia, a escravidão contemporânea? Com base nos textos das Convenções 29, 95, 105 e 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da convenção das Nações Unidas sobre a abolição da escravatura, do Pacto de San José de Costa Rica, da Instrução Normativa n. 1/1994, do Ministério do Trabalho, e do artigo 149 do Código Penal, na sua atual redação, podemos afirmar que as expressões contemporâneas da escravidão são encontradas em situações em que o trabalhador é coibido à prestação de trabalho em condições destinadas à frustração dos direitos básicos que lhe são assegurados por lei, permanecendo vinculado de forma compulsória à prestação mediante quaisquer meios de coerção, inclusive fraudes, violência física ou psicológica ou ameaças. Assim, ainda que a escravidão contemporânea possa variar em suas manifestações, ela sempre pressupõe, mais do que o trabalho em condições indecentes, o recurso à coação e a negação da liberdade. Nesse contexto, a utilização da expressão “escravidão” não constitui engodo semântico ou mero exercício retórico. Quando falamos em conceitos jurídicos, temos que ter em conta que os conceitos são portadores de significado, mecanismos de categorização que nos permitem delinear um ato jurídico ou um fato de que resultam determinados efeitos segundo o ordenamento. Dessa forma, os conceitos, sobretudo no âmbito das ciências sociais, não são estáticos: conceitos muito caros ao direito têm admitido diferentes formulações e implicações no tempo e no espaço. Basta, para tanto, recordar a clássica distinção de Benjamin Constant entre liberdade dos modernos e liberdade dos antigos. Ou recordar que a escravidão reinventada pelos europeus nos séculos XV e XVI não tem a mesma significação que a escravidão no Mundo Antigo, sendo que mesmo entre os gregos e os romanos conheceram-se distintos sistemas de escravismo, com diferentes implicações.
A escravidão contemporânea está relacionada, portanto, a expedientes como a imposição de dívidas impagáveis e, no caso de trabalhadores estrangeiros, a retenção de documentos pessoais, em conexão íntima com o tráfico de pessoas. Traz, em si, uma severa violência que lhe é subjacente, que se manifesta através dos diferentes mecanismos empregados para subjugar o trabalhador e mantê-lo cativo. O trabalhador, empregado clandestinamente, ganha salários irrisórios e toma emprestado ao seu senhor, que lhe cobra até mesmo as toscas ferramentas de trabalho, acrescentando, dia após dia, mais um elo à cadeia que prende o trabalhador ao seu serviço. Chegando a proporções exageradas, o infeliz jamais poderá saldar a sua dívida, tornando-se assim completamente alienado de vontade própria na execução do seu serviço. É escravo de sua dívida, uma das peculiares modalidades do cativeiro. Se tenta retirar-se do local de prestação de serviços antes de quitar a sua dívida, é alvo de retaliações. No limite, perde a vida.
No caso brasileiro, a verdade é que a escravidão nunca chegou a desaparecer por completo ao longo da nossa história. A fase ascendente do movimento abolicionista, que culminou na edição da Lei Áurea, encerrou-se bruscamente, sem proporcionar as mudanças estruturais desejadas pelos grandes teóricos do movimento, como Joaquim Nabuco. Assim, em 1940, na exposição de motivos da Parte Especial do Código Penal, Francisco Campos já denunciava não ser desconhecida, entre nós, a prática de “plagium”, pela qual alguns trabalhadores perdiam de fato o seu “status libertatis” (sic.), ficando submetidos ao completo e arbitrário poder de outrem. Na década de 1960, a Polícia Federal já atuava sobre o tráfico de trabalhadores em várias regiões do país e, em 1968, o ministro Gama e Silva, titular da Justiça, referia-se a esses trabalhadores como “escravos brancos” ([2]). Nessa mesma época, segundo uma notícia publicada no Jornal do Brasil de 5-12-1968, a Polícia Federal encaminhou à Justiça no estado de Goiás um relatório sobre o tráfico de escravos e o aliciamento de peões na cidade de Mozarlândia, leiloados por fazendeiros ao preço de setenta e seis cruzeiros cada um.
Mas a questão da escravidão, nas suas expressões contemporâneas, veio à pauta dos graves problemas nacionais somente a partir de 1971, com as denúncias de D. Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, na carta pastoral “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”. Na mesma época, a Comissão Pastoral da Terra em Conceição do Araguaia, no Pará, e o padre Ricardo Rezende Figueira trataram de denunciar a escravidão de trabalhadores nos empreendimentos largamente incentivados pela ditadura militar para a exploração e a ocupação da região da Amazônia Legal. Na época, os aparelhos do Estado, ocupados na repressão de quaisquer movimentos de resistência social, colaboravam diretamente para a emergência de situações de escravização. Hoje, como demonstra o quadro anexo, a escravidão ainda está concentrada na área dos estados do Pará, Maranhão, Mato Grosso e Tocantins, em que empreendimentos “modernos” recorrem às formas mais arcaicas e desumanas de exploração do trabalho.
O enfrentamento oficial e efetivo do problema somente iniciou-se, e ainda de forma tímida, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, com a criação dos grupos móveis de fiscalização, inseridos na Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE) do Ministério do Trabalho e Emprego. Em 2003, durante o primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil, como parte de um acordo celebrado diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos para por fim à demanda apresentada pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pela Comissão Pastoral da Terra, que denunciaram a inércia da Justiça brasileira no caso do trabalhador José Pereira, submetido à escravidão no Pará, lançou o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (PNETE), programa que teve a sua segunda fase recentemente lançada em 2008. Entre 1995 e 2008, o Ministério do Trabalho e Emprego, através dos seus grupos móveis de fiscalização, resgatou 32.849 trabalhadores rurais da escravidão, número que aponta para a relevância do problema:
As ações no âmbito do PNETE, que levaram o Brasil a ser citado pela OIT como um exemplo mundial no combate à escravidão contemporânea no informe “Uma aliança global contra o trabalho escravo” (2005), têm, todavia, se demonstrado insuficientes. Os números das denúncias de escravidão catalogadas pela Comissão Pastoral da Terra entre 1997 e 2007 podem auxiliar na mensuração do problema:
Nesse número, no entanto, não estão incluídos os trabalhadores estrangeiros em situação irregular nas grandes metrópoles brasileiras. Em São Paulo, por exemplo, a superexploração de imigrantes (especialmente de bolivianos) em situação de permanência irregular no país também tem recriado situações de escravismo.
No Brasil, o combate à escravidão precisa avançar. A eliminação da escravidão ainda depende de uma ação conjunta dos poderes públicos e da sociedade civil, de um projeto coletivo e amplamente popular, que contemple, mais do que simples ações de repressão à escravidão, e sem prejuízo destas, ações que viabilizem a reinserção social dos trabalhadores libertados e que também deem conta de obstar a submissão de outras pessoas à escravização, dando especial atenção às questões que envolvem as demandas das pessoas mais debilitadas da sociedade, demonstrando-se eficientes nos campos da geração de emprego e renda, de amparo aos trabalhadores e da redução das desigualdades sociais e regionais.
Depende, além disso, de ações concretas da cidadania. A inércia, se não a verdadeira omissão dos poderes públicos, inclusive o Legislativo e o Judiciário, tem realmente favorecido os criminosos e colaborado para a perpetuação dessa mazela. Nesse contexto, impõe-se a necessidade de se reforçarem as garantias sociais dos direitos a partir das próprias ações da cidadania. Assim, a cidadania deve buscar a abertura de novos canais de participação política para que os destinatários dos direitos e das políticas públicas possam, de fato, exercer um papel ativo na discussão e na tomada de decisões a respeito dos assuntos que lhes dizem respeito e que são importantes para o delineamento dos direitos humanos. Diante das omissões dos poderes públicos, os casos de graves violações de direitos humanos podem e devem ser levados a instâncias como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mais do que isso, a cidadania deve valer-se de mecanismos de autotutela como protestos populares, ocupações de espaços públicos, boicotes ao consumo e, sobretudo, ocupação de propriedades que não cumprem a sua função social, bem como outros que poderiam parecer “prima facie” ilegais ou desprovidos de um estatuto jurídico específico, mas que, diante do bloqueio dos canais tradicionais, podem ser concebidos como um exercício qualificado da democracia. Se a cidadania não se limita à participação meramente formal na deliberação dos assuntos de interesse público pelas urnas, é legítimo que, se bloqueados os canais de participação, os poderes públicos e mesmo os particulares sejam obrigados a reconhecer (ou, ao menos, a tolerar) exercícios de autotutela que tenham por objeto a preservação de um bem maior.
Nesse contexto, por exemplo, deveríamos substituir os abaixo-assinados infrutíferos, diante do emperramento do projeto de Emenda Constitucional que trata da expropriação de terras em que forem encontrados trabalhadores submetidos à escravidão, pela abertura a fórceps de novos espaços de negociação e de diálogo social, levando inclusive os poderes públicos a reconhecerem como legítimas práticas diretas como a posse mediante ocupação de propriedades rurais que não cumprem a sua função social, como aquelas em que trabalhadores são reduzidos à escravidão, pois a própria Constituição dispõe, no seu artigo 184, que compete à União “desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo a sua função social”, e claramente dispõe a seguir, no seu artigo 186, que a função social da propriedade rural somente é cumprida quando a propriedade atenda, entre outros requisitos, à observância das disposições que regulam as relações de trabalho e ao bem-estar do trabalhador ([3]).
Mas, além disso, erradicar a escravidão depende de algo mais. Depende de um novo olhar sobre o “outro”, de forma que, ao falar do “outro”, cada pessoa descubra, nele, a sua própria imagem refletida. Isso implica um trânsito desde um homem construído a partir de dualidades excludentes (bom-mau, sujeito-objeto, empresário-trabalhador, nacional-estrangeiro) a outro homem, que se reconhece como parte de um todo plural, diversificado, em que as relações intersubjetivas são pautadas pela alteridade. A neutralização, a eliminação ou a exploração do “outro” é uma prática sempre disposta a colocar-se em marcha no contexto conservador da ordem mundial, em que se acentuam cada vez mais as desigualdades, avultando-se o processo de paulatina desintegração sofrido pelas sociedades. É necessário, nesse contexto, reforçar pautas que tendam para a geração de uma cultura social e política que derrube as barreiras da exclusão e o fechamento social. Assim, o enfrentamento da questão da escravidão contemporânea exige vontade política, articulação social, planejamento de ações e definição de metas objetivas, mas, além disso, exige pensar um modelo de desenvolvimento mais humano, mais justo e mais democrático, para o que é preciso um maior compromisso, se não uma verdadeira mudança ética da sociedade civil.
O núcleo central do problema posto não é, pois, se podemos ou não conviver com o capitalismo, mas sim se podemos continuar tolerando o escândalo da superexploração humana, da pobreza, da fome e das enormes desigualdades, indispensável para o modelo de desenvolvimento econômico contemporâneo. Superar a apatia pela rebeldia transformadora: este é o grande desafio.
Juiz do Trabalho (TRT-SP) e Professor da Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul. Pós-Graduado em Ciência Política, em Direitos Sociais e em Imigração e Mediação Intercultural, Mestre em Direito e Doutorando em Direito e em História Social (PUC-SP e Universidad de Castilla – La Mancha). Autor dos livros “Trabalho Escravo: A Abolição Necessária” (Ed. LTr, 2008) e “Direito do Trabalho” (2.ed., Ed. Elsevier, 2009).
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