Sumário: 1. Introdução. 2. O Acesso à Justiça como legitimação do Estado democrático de Direito. 3. Obstáculos à compreensão popular. 4. Projeto de Lei 7448/2006.
1. Introdução[1]
Há muito já se debate acerca do acesso à Justiça no Brasil. O país já possuía controvérsias a respeito dessa acessibilidade desde seu período colonial. Uma das tantas dificuldades peculiares à época era a formação das Juntas de Ouvidores[2], cujos integrantes deveriam ser bacharéis, o que era dificultado pelo fato de o Brasil ainda não possuir universidades e a admissão em Coimbra ser restrita. Vale frisar que, algum tempo depois, a maior parte da população ainda era analfabeta; fato que fez com que até mesmo alguns semi-analfabetos fossem juízes, porquanto muitos deles serem empossados no cargo devido ao seu prestígio social.[3]
Na sequência, é possível observar um dos entraves iniciais à Justiça nacional: a falta de estrutura organizacional. Este aspecto da Justiça sempre deteve grande ênfase em discussões acerca do alcance do Judiciário. Hoje já se vêem inúmeros avanços significativos nesse campo, como ocorre, por exemplo, com o surgimento da Justiça Itinerante[4]. Lamentavelmente, entretanto, outras questões não possuem a mesma preocupação. Na verdade, algumas delas, como a que aqui se tratará, não são sequer conhecidas por parte de alguns juristas. Com o passar dos séculos, ao contrário do que ocorria com as decisões do remoto período dos Ouvidores, as atuais decisões judiciais foram se tornando excessivamente herméticas aos grupos mais técnicos e intelectuais. Quando se fala em acesso a Justiça, portanto, deve-se englobar todos os seus aspectos, inclusive a compreensibilidade das decisões proferidas. É primordial notar que o acesso à Justiça não pode se reduzir à possibilidade de ingressar com uma ação judicial ou de obter a prestação jurisdicional constitucionalmente avalizada sem o devido zelo que a permeia. O problema que se focaliza é a questão do acesso à Justiça, tema que deveras é debatido, entretanto, aqui com a inclinação para um viés mais sutil: por meio das decisões judiciais.
2. O Acesso à Justiça como legitimação do Estado democrático de Direito
Ao tratar de qualquer tema, jurídico ou não, há sempre a necessidade de buscar sua conceituação, ou, ao menos, um parâmetro para as análises mais complexas. Todavia, quando se fala em “acesso à Justiça” esta se torna uma árdua tarefa. Como já dito, muitas vezes a percepção sobre o que vem a ser o acesso à Justiça é limitada à possibilidade de encetar em juízo. No entanto, é de se ressalvar que esta compreensão não pode ser tão restrita. É necessário examinar com atenção o contexto no qual esse tema brota.
De forma breve, vale lembrar que a Justiça no Brasil colônia era tida como artigo de luxo sem uma distinção entre os poderes que, por sua vez, concentravam-se nos dirigentes do Estado. Havia uma estrutura fortemente burocratizada que afastava a maior parte da população, a qual nem ao menos gozava de conhecimento para agir judicialmente, visto que a forma mais comum de incluir-se na Justiça era por meio da influência exercida socialmente. Ainda hoje subsistem fortes vestígios daquele sistema. No entanto, se faz necessária a observação da evolução do sistema democrático ao longo desse período que delimita o Brasil colonial do Brasil democracia. Frise-se, portanto, que a subsistência de um sistema restritivo do alcance ao Judiciário não tem mais porque existir, visto o caráter de soberania popular que envolve tal sistema federativo. Sendo assim, com a democracia que conduz o país, é inconcebível acatar as dificuldades aqui tratadas.
Nesses parâmetros, tem-se que o acesso à Justiça é uma autêntica manifestação do Estado democrático de Direito. Nele não basta, por exemplo, intentar uma ação da qual não se possa compreender seu resultado ou apreciar sua eficácia. É necessário que todas as etapas legais sejam acompanhadas e depreendidas pelas partes ou quem quer que tenha interesse em conhecer da causa. A democracia nos reflete a idéia de algo popular, palpável a todos. Neste sentido, sabiamente leciona José Renato Nalini ao afirmar que:
“A decisão de justiça não é uma dissertação acadêmica, mas um ato de caráter utilitário, de aplicação concreta. É necessário, de início, que ela seja perfeitamente inteligível e que aqueles aos quais interessa possam compreendê-la sem recorrer ao Gran Larousse em dezenove volumes.”
Obviamente, não há de se pensar em todos os cidadãos conhecendo de todos os diplomas legais; porém, o juiz, ao prolatar uma sentença, deve ressalvar que o faz, comumente, a pessoas sem estudo técnico-jurídico. O magistrado, ao mesmo tempo em que julga, ensina e difunde o Direito. Interessante é a comparação de que a sentença é como aula de Direito, pode ser clara, atraente e eficaz; ou obscura, aborrecida e destituída de relevo[5]. Assim, a análise da forma com que se apresentam as sentenças judiciais se perfaz conveniente para apreciarmos o real alcance da Justiça.
Não obstante, antes de explanar a respeito das decisões extintivas, vale advertir que, por mais que o leigo esteja amparado por um profissional com o competente conhecimento jurídico, ele possui, ainda, o pleno direito de reconhecer o que se passa com sua causa, desde seu ingresso até sua fase final. Ou seja, é preciso ressaltar que a prestação jurisdicional está sendo dada ao cidadão que integra a lide, e não a seu advogado, que possui um status de mero interlocutor na causa. Caso contrário estariam sendo desrespeitadas garantias constitucionais, como a dignidade da pessoa humana e o próprio acesso à Justiça.
Ora, é preciso atentar para estatísticas como a do Censo de 2010, na qual se constatou que a cada cinco brasileiros um é analfabeto funcional[6]; e a melhor forma de manifestar oposição a estes dados é aproximar nossa população do conhecimento, e isso inclui o conhecimento jurídico. Por meio de dados como este, há a oportunidade de tomar consciência da necessidade de manter um certo nível de clareza nas diligências processuais. Em suma, as sentenças mais claras surgem como essenciais a uma sociedade que detém um percentual tão elevado de cidadãos sem instrução, tanto como meio de promoção do conhecimento quanto, ao mesmo tempo, meio de o Direito se fazer compreensível.
O próprio Direito, como a ciência que é, preocupou-se em resguardar a todos os direito de acesso à Justiça. A atual Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXXV, preceitua que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Esta garantia fundamental pressupõe a possibilidade de receber a devida prestação do Poder Judiciário, sem distinções entre seus cidadãos. Pressupõe, porém, em suas entrelinhas, não o mero cumprimento dos encargos que a Justiça possui frente aos seus jurisdicionados, mas seu cumprimento com excelência e efetividade. Qualidades estas que, por sua vez, englobam a devida compreensão das fases processuais até o deslinde da demanda. Desta feita, levantar dificuldades na compreensão de processos judiciais por excesso de requinte na linguagem não é apenas lamentável àqueles que não detêm conhecimento especializado, mas lamentável, particularmente, ao Direito, que passa por cima de suas próprias regras e orientações. É imprescindível que a parte no processo seja capaz de compreender o que se determina sobre sua vida. Imprescindível, ainda, que os magistrados sejam ávidos colaboradores a esta compreensão.
3. Obstáculos à compreensão popular
Há alguns elementos que auxiliam enquanto outros perturbam o entendimento das sentenças. É plausível a utilização de expressões populares, mesmo que entre aspas, como meio de dar um significado mais próximo daquele a quem a decisão é dirigida. De encontro com isso vai o uso demasiado de expressões latinas. Para alguém que nunca estudou Direito – e até para alguns que estudaram – é comum e de simples entendimento o significado como o de “ad kalendas grecas”[7]? Nem sempre, nem para todos. Mas não só as expressões latinas trazem conflitos de compreensão; até mesmo expressões simples para os operadores do Direito podem promover grandes transtornos aos mais leigos. Falar-se em “execução” para alguém sem a noção do sentido jurídico da expressão poderá lhe trazer a idéia de assassinato à queima-roupa, significado para o qual a expressão é vulgarmente empregada. Há ainda termos um pouco mais distantes da imaginação popular: é de se esperar que uma viúva não saiba que estamos falando dela quando a denominamos de consorte supérstite. Note-se, então, que pequenos termos como esses podem, e devem, ser substituídos por outros mais simples, visando sempre o acesso a Justiça em seu mais amplo sentido. Se não substituídas, ao menos esclarecidas. Nesse ponto é que alguns defensores das tradições jurídicas se opõem. É justo que se mantenham as diversas transmissões históricas do Direito, entretanto, é justo também que se pese em que grau tais tradições influem na serventia da Justiça. É nítida a relevância da linguagem técnica para o Direito, do mesmo modo que para qualquer ciência. Não se pode prescindir da correção nos termos, nem da arte representada pela boa redação. Isso é essencial e intrínseco ao Direito.
O que se instiga aqui é a possibilidade de redigir uma sentença utilizando os termos técnicos, apesar disso, traduzindo-os ao longo da manifestação. Seria como ler um texto em um idioma sem muito conhecimento, mas que possuísse trechos explicativos em sua língua pátria. Por mais que não se compreenda cada palavra, se compreende o todo. Destarte, a manutenção da linguagem jurídica tradicional não deve servir como obstáculo à elaboração de sentenças menos pomposas, visto que é possível elaborar uma decisão técnica e singela.
Logo, basta que se olhe a tradição sob uma nova perspectiva. O costume do uso da linguagem culta, rebuscada e técnica, tipicamente jurídica, não deve ser um problema, mas sim uma solução. A redação de uma sentença deve apresentar toda cientificidade de modo a ensinar o leitor, contudo, não pode ser extremamente científica, ao passo que isso não atenderia o objetivo de acessibilidade à Justiça. Em vista do exposto é que se pondera a atenção na elaboração de sentenças que mantenham o equilíbrio entre o “juridiquês”[8] e o coloquialismo.
4. Projeto de Lei 7448/2006
Com o escopo de rever essa sujeição dos magistrados às tradições do “juridiquês” é que sobreveio o Projeto de Lei 7.448 de 2006[9]. Ele prevê a alteração do art. 458 do Código de Processo Civil, para que sejam tomadas medidas que colaborem com a compreensão das decisões judiciais pelos mais leigos. Uma dessas medidas é a reescrita da parte dispositiva da sentença em linguagem informal com o seu envio ao endereço pessoal da parte. Ademais, há ainda a previsão da tradução para o português de expressões estrangeiras. Outra determinação interessante é a aplicação dessas disposições apenas para casos em que haja pessoas físicas envolvidas. Este é um ponto importante, visto que são elas as mais vulneráveis à incompreensão das sentenças, bem como costumam ser as mais afetadas por essas decisões.
O projeto de lei vem como objeto à materialização do princípio das decisões fundamentadas. Ou seja, o Estado é responsável por oferecer a devida prestação jurisdicional, e, para tanto, precisa fundamentar suas decisões de modo a convencer e tornar inteligível os motivos pelo qual decidiu daquela forma. Para a deputada que propôs o projeto, seguir a simplicidade nas formulações escritas é respeitar a democracia.
As críticas ao projeto existem. A mais apontada entre elas é o aumento no trabalho dos magistrados para reformular a sentença em outra linguagem e, ainda, a maior burocratização ao ter de enviá-la diretamente à parte. Ao revés, há de se avaliar os benefícios gerados por esta carga de trabalho. Há de se prezar que o respeito ao Direito e seus princípios fundamentais estejam acima dessas dificuldades.
Portanto, com a aprovação do referido projeto, as possibilidades de acesso a Justiça se ampliariam. Ampliariam-se, do mesmo modo, o cumprimento às determinações legais que professam a dignidade humana, as decisões fundamentadas – o que inclui a compreensão dessa fundamentação, caso contrário, tal princípio não faria sentido – e, por fim, o próprio acesso à Justiça.
Como desfecho, nada melhor para sintetizar todas as idéias aqui exprimidas que as palavras de Arthur Schopenhauer, para o qual:
“Não há nada mais fácil do que escrever de tal maneira que ninguém entenda; em compensação, nada mais difícil do que expressar pensamentos significativos de modo que todos compreendam. O ininteligível é parente do insensato, e sem dúvida é infinitamente mais provável que ele esconda uma mistificação do que uma intuição profunda. (…) Quem tem algo digno de menção a ser dito não precisa ocultá-lo em expressões cheias de preciosismos, em frases difíceis e alusões obscuras, mas pode se expressar de modo simples, claro e ingênuo, estando certo com isso de que suas palavras não perderão o efeito. Assim, quem precisa usar os artifícios mencionados antes revela sua pobreza de pensamentos, de espírito e de conhecimento”. [10]
Em vista de todo o exposto é que se traduz a relevância da conscientização daqueles que atuam em prol da Justiça, permitindo o acesso de todos por meio do instrumento mais basilar do Direito: a palavra.
Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
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