A compreensão da democracia em Hans Kelsen

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Resumo: Este texto delimita o conceito de democracia, sob dupla perspectiva a saber: a definição de “povo”, e a pessoa física titular de direitos subjetivos, dentre eles, o direito político.[1]

Palavras chave: democracia, povo, direitos subjetivos.

Abstract: This text defines the concept of democracy, under two points of view to know: the definition of " people" and the individual holder of subjective rights , among them the political right .

Key words: democracy, people, subjective rights.

Sumário: Introdução. 1. O Sujeito do Direito na Perspectiva da Teoria Tradicional Explicitada por Hans Kelsen 2. A Compreensão da Democracia em Hans Kelsen: a noção de povo sob a perspectiva normativa. Conclusão.

INTRODUÇÃO

A monografia apresentada investiga e delimita as compreensões da democracia a partir do posicionamento adotado por Hans Kelsen.

Para a explicitação que se pretende oferecer em relação ao conceito de democracia, partir-se-á da definição do conceito de sujeito de direito de acordo com a teoria tradicional do direito, explicitada por Hans Kelsen, considerando-se, particularmente, a noção de pessoa física.

No Segundo capítulo, será explicitada a compreensão da democracia em Hans Kelsen, a partir da definição conceitual de povo, bem como daquela atinente ao direito subjetivo. Posteriormente, será trazida à baila uma definição acerca dos direitos políticos, bem como uma distinção entre essa categoria de direitos, e o direito subjetivo em sentido específico. Serão explicitadas as duas formas de democracia, quais sejam: a democracia direta e a indireta, que estão atreladas, de igual modo, à noção de direito subjetivo.

A partir da definição do conceito de direito subjetivo (especificamente o direito político) será estabelecida uma relação entre esse e as liberdades fundamentais, que caracterizam a democracia: a igualdade e a liberdade, trazendo-se à colação, oportunamente, o texto constitucional brasileiro de 1988. Será abordado, também nessa monografia o caráter irrevogável dos direitos e garantias fundamentais, que foram alçados à condição de cláusulas pétreas pelo legislador constitucional.

Em seguida, serão apresentadas as conclusões pertinentes.

1.O SUJEITO DO DIREITO NA PERSPECTIVA DA TEORIA TRADICIONAL EXPLICITADA POR HANS KELSEN: a pessoa física

É notório que Kelsen foi um dos maiores expoentes do positivismo jurídico. O Positivismo designa as correntes filosóficas aderentes à realidade, rejeitando as especulações que não podem ser justificadas empiricamente, levando-se em conta, nesse sentido, o positivismo comteano e também, o positivismo lógico (BARZOTTO, 2006, p. 642). Em relação ao Direito, o Positivismo: “[…] representa a tentativa de compreender o Direito como um fenômeno social objetivo. Recusa-se, assim, uma postura preocupada em fazer derivar o Direito de outras fontes que não as sociais (jusnaturalismo) , ao mesmo tempo, que se renega a fazer depender a existência do Direito de juízos morais particulares. Assim como o positivismo filosófico revela uma era pós metafísica, na qual o mundo é reduzido à sua descrição científica, o positivismo jurídico também partilha a visão de Direito desencantada própria do mundo contemporâneo, nas quais as práticas sociais, e, por tanto, o direito, parecem carecer de um propósito ou sentido últimos” (BARZOTTO, 2006, p. 643).

No contexto do positivismo jurídico Kelsen (2006, p. 191) vai definir, de acordo com a teoria tradicional, o conceito do sujeito de direito, que se identifica com o de pessoa nos termos seguintes: “pessoa é o homem enquanto sujeito de direitos e deveres.” A partir dessa definição clássica de sujeito de direito, cumpre ressaltar o conceito clássico da capacidade de exercício, ou capacidade de fato que: “[…] é definida como a capacidade de um indivíduo de produzir efeitos jurídicos através da sua conduta. Como por efeitos jurídicos não se podem entender ‘efeitos’ em sentido causal, a capacidade de exercício consiste na capacidade conferida a um indivíduo pela ordem jurídica de provocar conseqüências jurídicas através da sua conduta, quer dizer, de produzir as conseqüências que a ordem jurídica liga a essa conduta” (KELSEN, 2006, p. 164).

Para a teoria tradicional, o sujeito jurídico (ou pessoa jurídica) é uma unidade complexa de deveres jurídicos, e de direitos subjetivos. A pessoa física não é considerada um indivíduo. Trata-se de uma construção jurídica, que criada pela Ciência do Direito, visa a auxiliar a descrição dos fatos reputados como juridicamente relevantes. Sob essa perspectiva, a pessoa física é uma pessoa jurídica (KELSEN, 2006, p. 194).

2.A COMPREENSÃO DA DEMOCRACIA EM HANS KELSEN: a noção de povo sob a perspectiva normativa

As compreensões atinentes à democracia enfocam três idéias fundamentais e constantes, quais sejam: a idéia da soberania popular, a idéia da igualdade entre os homens, reputados como cidadãos, e a idéia de liberdade política. Kelsen enfoca, primeiramente, em que consiste essa liberdade política, e, também, a idéia de liberdade que é subjacente. Kelsen vai trazer à baila a discussão acerca da definição de povo, partindo de uma exclusão da definição clássica, que está assentada em uma unidade de indivíduos no plano sociológico. Kelsen redefine a noção de povo a partir de uma perspectiva normativa. Sob tal perspectiva, Kelsen assevera que a noção de povo se determina pela submissão indistinta de todas as pessoas a uma ordem jurídica estatal (GAVAZZI, 2000, p. 10).

No plano ideológico, e sociológico, o conjunto de indivíduos (o povo) é irreal, uma ficção, porém, a partir do momento em que a noção de povo é relida sob a perspectiva normativa, esse conjunto de indivíduos passa a ser titular dos direitos políticos que exerce (GAVAZZI, 2000, p. 11). Os direitos políticos são uma das categorias de direito subjetivo (KELSEN, 2006, p.155). Kelsen afirma, ainda, que: “o direito subjetivo é um poder de vontade conferido pela ordem jurídica” e, nesse sentido, define os direitos políticos como “a capacidade ou poder de influir na formação da vontade do Estado, o que quer dizer: de participar – direta ou indiretamente – na produção da ordem jurídica – em que a ‘ vontade do Estado’ se exprime” (KELSEN, 2006, p. 155).

Kelsen desmistifica, a partir do sentido jurídico de povo, os sistemas representativos, pois, neles, a representação é uma ficção, permeada por valores ideológicos, diversos, tanto nos sistemas de democracia representativa, quanto na autocracia (GAVAZZI, 2000, p. 11). Nesse sentido, “o povo não pode ser determinado em termos sociológicos” (GAVAZZI, 2000, p. 12). O fato de não haver possibilidade de se determinar o povo a partir de uma perspectiva sociológica garante a Kelsen um posicionamento fundado na isenção de qualquer preconceito (GAVAZZI, 2000, p.12).

É a participação dos súditos nessa produção normativa levada a efeito pelo Legislativo que caracteriza a democracia, e a contrapõe à autocracia, pois nessa, os súditos restam excluídos da participação na formação da vontade estatal. Na autocracia, os súditos não têm direitos políticos (Kelsen: 2006, pp: 155).

A legislação democrática pode se realizar de duas formas, quais sejam: a democracia direta, quando a atividade legislativa é levada a efeito, imediatamente, pelo povo, ou seja, pelos destinatários das normas jurídicas (os súditos), quando então, esses exercem o seu direito subjetivo de participarem nas assembléias populares legislativas, exteriorizando as suas opiniões e proferindo o seu voto; ou pode, também, a legislação competir ao povo, de modo mediato, através de um parlamento eleito. Nesse caso, o processo legislativo que forma a vontade estatal é decomposto em duas fases: a primeira diz respeito à escolha do parlamento e a aprovação das leis pelos parlamentares eleitos. Nesse caso, os eleitores, considerados como uma formação mais ou menos vasta de indivíduos, exercem o seu direito subjetivo de voto, havendo, também, um direito subjetivo atinente aos eleitos, no tocante ao direito de integrarem o parlamento, exprimido, suas opiniões, e votarem. Em ambos os casos há direitos políticos (KELSEN, 2006, p. 155).

Nas esferas administrativa e judiciária, pode-se verificar, também, os direitos políticos, notadamente, referentes ao direito de voto, tendo em vista que os órgãos administrativos do governo, e os órgãos jurisdicionais podem ser eleitos. Sob essa perspectiva, se a função desses órgãos vem a ser uma função legislativa, o direito de voto representa, tal como o voto parlamentar, um poder jurídico exercido no sentido de se cooperar indiretamente na produção normativa, respeitados os limites da competência de cada órgão (KELSEN 2006, p. 156).

Sendo para Kelsen (2006, p. 156) tanto o direito privado subjetivo em sentido estrito, quanto os direitos políticos, categorias de direito subjetivo, cumpre esclarecer a distinção entre eles na medida em que: “Se o direito privado subjetivo em sentido específico – esse poder jurídico conferido para fazer valer o não cumprimento de um dever jurídico – é abrangido, juntamente com o chamado direito político, que também é um poder jurídico, sob um e o mesmo conceito de direito subjetivo , isto só é possível na medida em que em ambos se exprima a mesma função jurídica: a participação dos súditos do Direito na produção jurídica – na função da produção jurídica, por tanto. No entanto, ao discorrer assim, temos de ter em conta que, como já foi acentuado, o direito privado subjetivo em sentido técnico específico também se distingue do chamado direito político pelo fato de, naquele, o poder jurídico ou competência conferida pela ordem jurídica a um indivíduo para participar na produção do Direito servir para fazer valer um dever jurídico existente em face do mesmo ou de um outro indivíduo, ao passo que tal já não sucede no direito subjetivo político. O credor é pela ordem jurídica autorizado a intervir, isto é, ele tem o poder jurídico de intervir na produção da norma jurídica individual da decisão judicial através da instauração de um processo , para assim fazer valer o não cumprimento do dever jurídico que o devedor tem de lhe fazer uma determinada prestação. O sujeito do direito político, por exemplo, o eleitor, é autorizado a intervir, ou, por outra, ele tem o poder jurídico de intervir na produção de normas jurídicas gerais, mas este poder jurídico não serve para fazer valer um dever jurídico em que um outro sujeito se ache constituído em face dele. O exercício desse poder jurídico pode ser garantido – embora não tenha de o ser através de um dever jurídico posto a cargo de um outro indivíduo, tal como o exercício de uma competência pode ser – mas não tem necessariamente de ser – conteúdo de um dever jurídico do titular da competência” (KELSEN, 2006, p. 156-157).

Dentre os direitos políticos, estão também referenciados os direitos fundamentais e os direitos de liberdade reconhecidos pela Constituição, quais sejam: a igualdade perante a lei, a inviolabilidade da propriedade , a liberdade da pessoa, a liberdade de opinião, especificamente, a liberdade de imprensa , a liberdade de consciência , incluída aqui, a liberdade religiosa, e a liberdade de associação e reunião (KELSEN, 2006, p. 157-158).

Nesse sentido, traz-se à colação o texto constitucional brasileiro de 1988:“Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade nos termos seguintes: IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente; XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; XXII – é garantido o direito de propriedade” (BRASIL, 1988).   

As garantias constitucionais não são, necessariamente, direitos subjetivos, sejam eles reflexos ou direitos privados subjetivos em sentido estrito (técnico). Referidas garantias expressam proibições que visem à lesão da igualdade e da liberdade mediante leis ou decretos – lei. Não pode haver quaisquer proibições que versem sobre a limitação ou anulação da igualdade e da liberdade. Qualquer lei que as viole pode, novamente ser anulada, constatando-se a sua inconstitucionalidade, mediante a instauração de um processo especificamente previsto. Os direitos fundamentais podem ser violados, através não só das leis ou decretos – lei, mas também, através dos decretos regulamentares, atos administrativos e decisões judiciais, quando tais normas se estabelecem sem observar-se qualquer fundamento legal, ou ainda, quando referidas normas contrariarem proibição material da Constituição (KELSEN, 2006, p. 157-158).

 A igualdade dos sujeitos que se submetem à ordem jurídica deve ser interpretada também por um outro viés, na medida em que não de pode impor os mesmos deveres e conferir os mesmos direitos a todos os indivíduos. Deve-se por tanto, reconhecer as diferenças, desde que não contrariem disposição expressa pelo texto constitucional, no tocante à proibição de distinções específicas, como, por exemplo, a proibição quanto às distinções de raça, religião, classe ou patrimonial, isto, porque expressamente vedadas pelo texto constitucional, razão pela qual leis que propugnem referidas distinções podem ser anuladas com fundamento na sua inconstitucionalidade. Contudo, são permitidas distinções entre crianças e adultos, pessoas sãs e enfermas mentais, homens e mulheres[2] (KELSEN, 2006, p. 158).

Dessa forma, se, por exemplo, em uma sentença judicial, a pena cominada na lei a ser aplicada é imposta ao delinqüente porque ele é branco e não negro, um cristão, ou um judeu, ou ainda, quando uma sentença imponha pena àquele que não cometeu qualquer delito, pode referido pronunciamento jurisdicional ser anulável, tendo em vista a constatação da sua inconstitucionalidade decorrente da ilegalidade. O mesmo ocorre nos casos em que há privação da propriedade, sem que o proprietário expropriado seja indenizado. Nesse caso, o ato administrativo, pode ser anulado, com base na sua inconstitucionalidade. No mesmo sentido, podem ser anuladas com fundamento na sua inconstitucionalidade, leis que versem sobre a proibição da prática de determinada religião (KELSEN, 2006, p. 159).

A garantia dos direitos fundamentais existe na medida em que a Constituição pode modificá-los mediante um processo especial, que exige, para tanto, maioria qualificada do órgão legislativo, considerando-se, também, uma resolução tomada reiteradamente, além de demais pressupostos idênticos (KELSEN, 2006, p. 159).

Salienta-se, entretanto, que de acordo com o texto constitucional de 1988, especificamente, o artigo 60, parágrafo 4º, nem mesmo por maioria qualificada, pode haver emenda constitucional que verse sobre a abolição, ou restrição dos direitos fundamentais. Eis o dispositivo constitucional: “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: […] §4º Não poderá ser objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:I – a forma federativa de Estado;II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III- a separação dos Poderes;IV – os direitos e garantias individuais […] ” (BRASIL 1988).

O dispositivo constitucional supra citado abarca as cláusulas pétreas, aquelas que não podem ser objeto de emenda constitucional. Sobre elas esclarece-nos Luís Roberto Barroso: “É inegável que o reconhecimento de limites materiais faz surgir duas espécies de normas: as que podem ser revogadas pelo poder de reforma e as que não podem. As que são irrevogáveis tornam inválidas eventuais emendas que tenham essa pretensão, ao passo que as normas constitucionais revogáveis são substituídas pelas emendas que venham a ser aprovadas com esse propósito. A questão, no entanto, envolve a função de cada uma dessas categorias de normas dentro do sistema, mas não a sua posição hierárquica.

Com efeito, hierarquia em Direito designa o fato de uma norma colher o seu fundamento de validade em outra, sendo inválida se contravier a norma matriz. Ora bem: Não é isso que se passa na situação aqui descrita. Pelo princípio da unidade da Constituição, inexiste hierarquia entre normas constitucionais originárias, que jamais poderão ser declaradas inconstitucionais umas em face das outras. A proteção especial dada às normas amparadas por cláusulas pétreas sobrelevam seu status político ou sua carga valorativa, com importantes repercussões hermenêuticas, mas não lhes atribui superioridade jurídica […]

A locução tendente a abolir deve ser interpretada com equilíbrio. Por um lado, ela deve servir para que se impeça a erosão do conteúdo substantivo das cláusulas protegidas. De outra parte, não deve prestar-se a ser uma inútil muralha contra o vento da história, petrificando determinado status quo. A Constituição não pode abdicar da salvaguarda de sua própria identidade, assim como da preservação e promoção de valores e direitos fundamentais; mas não deve ter a pretensão de suprimir a deliberação majoritária legítima dos órgãos de representação popular, juridicizando além da conta o espaço próprio da política. […]

A observação panorâmica das cláusulas pétreas abrigadas nas Constituições dos países democráticos revela que, em geral, elas veiculam princípios fundamentais e, menos freqüentemente, regras que representem concretizações diretas desses princípios. Não é meramente casual que seja assim. Princípios, como se sabe, caracterizam-se pela relativa indeterminação de seu conteúdo. Trazem em si, porém um núcleo de sentido, em cujo âmbito funcionam como regras, prescrevendo objetivamente, determinadas condutas. Para além desse núcleo, existe um espaço de conformação, cujo preenchimento é atribuído prioritariamente aos órgãos de deliberação majoritária por força do princípio democrático” ( BARROSO, 2010, p. 168-170) .

Tendo em vista que os direitos e garantias fundamentais reconhecidos pela Constituição de 1988 são, conforme alhures explicitado, cláusulas pétreas, poderia ser questionado quando referidos direitos e garantias se convertem em um direito subjetivo individual. Nesse sentido pronuncia-se Kelsen acerca da violação da igualdade e da liberdade: “Se a norma individual do ato administrativo ou do ato judicial que ofende o direito à liberdade fundamental garantidos pela Constituição não é posta com base numa lei inconstitucional, mas sem qualquer fundamento legal, então o direito subjetivo do indivíduo, isto é, o seu poder jurídico de provocar a anulação desta norma individual, não se distingue em nada de qualquer direito subjetivo que consista no poder jurídico de provocar a anulação de um ato administrativo ou judicial com fundamento na sua ilegalidade. O processo instaurado através da reclamação ou recurso do indivíduo não conduz à anulação individual ou geral de uma lei inconstitucional, mas apenas à anulação de uma norma individual que é ilegal. Somente quando o indivíduo tenha o poder jurídico de provocar a anulação individual ou geral de uma lei, que pelo seu conteúdo, viola a igualdade ou liberdade constitucionalmente assegurada, é que o chamado direito ou liberdade fundamental é um direito subjetivo do indivíduo” (KELSEN, 2006, p. 161-162).

O direito subjetivo individual pode ser um simples direito reflexo, leia-se reflexo de um dever jurídico em face de um indivíduo, ou um direito privado subjetivo em sentido técnico de fazer valer o não cumprimento de um dever jurídico, que existe em face dele, de mediante ação judicial, intervir na produção normativa individual (sentença) que impõe uma sanção decorrente do não cumprimento do dever jurídico. Pode ser, também, um direito político considerado um poder jurídico, que confere ao indivíduo, como membro das assembléias legislativas populares, a sua intervenção na produção legislativa (democracia direita), ou indiretamente, mediante o exercício do direito de voto em relação àqueles indivíduos que integrarão o parlamento (democracia indireta). O direito subjetivo para a administração pode significar um poder jurídico, decorrente da competência atribuída, para tanto, ao órgão no que diz respeito à produção jurídico – normativa. Pode-se tratar, ainda, de direito subjetivo, no sentido de o indivíduo interferir na produção normativa de caráter geral ou individual. Nesse caso, tem-se como pressuposto, um caso concreto. Tal intervenção se dá tanto nos casos da produção jurídico – normativa de caráter geral, quanto individual, quando resta configurada, a violação à igualdade e à liberdade fundamentais. Por derradeiro, um direito subjetivo pode se externar a partir da permissão positiva de uma autoridade (KELSEN, 2006, p. 162).

Na esteira do raciocino que até aqui se explicitou, podemos afirmar que a essência da democracia “é simplesmente uma das técnicas possíveis de produção das normas da ordenação” (Gavazzi, 2000, p. 13). Em outras palavras, “democracia significa identidade entre governantes e governados, entre sujeito e objeto do poder, governo do povo sobre o povo” (Kelsen: 2000, p. 35). Nesse sentido, os homens são considerados sujeitos do poder, na medida em que figuram como participantes na construção da ordem jurídica estatal, e é a partir dessa idéia, que ocorre a distinção entre a noção de povo como conjunto de indivíduos e a noção de povo sob uma perspectiva sistemática, na medida em que o povo se submete às normas que ele mesmo criou (KELSEN, 2000, p. 36-37).

CONCLUSÃO

Após as explicitações acerca dos conceitos de sujeito de direito na teoria tradicional, bem como dos atinentes ao direito subjetivo como expressão de um poder jurídico, a partir do qual se verifica a categoria dos direitos subjetivos políticos, interpretados sob concepção normativa da noção de povo como interveniente na produção jurídico-normativa estatal, pode-se concluir que Kelsen traçou muito bem a sua compreensão de democracia, na medida em que enfocou o exercício efetivo dos direitos políticos, especificamente do direito de voto nas duas espécies de democracia: a direta quando o sujeito participa através da expressão da sua opinião e do exercício do direito de voto, diretamente, nas assembléias legislativas; e indiretamente, quando, mediante o exercício do direito de voto, o sujeito dos direitos políticos elege os indivíduos que integrarão o parlamento, que por sua vez, vão exprimir a sua opinião, e também, exercerão o direito de voto.

Na obra, Kelsen deixou muito bem explicitados os fundamentos da democracia moderna, quais sejam a igualdade e a liberdade, exercidas indistintamente por todos os sujeitos dos direitos políticos, tendo em vista os direitos e garantias fundamentais reconhecidos pela Constituição, que no caso da presente monografia, puderam ser trazidos à baila tomando-se como referência os dispositivos do texto constitucional de 1988, especificamente elencados no artigo 5º. O caráter irrevogável desses direitos e garantias fundamentais reconhecidos pela Constituição de 1988 deve-se ao fato de terem sido erigidos à condição de cláusulas pétreas de acordo com o artigo 60, parágrafo 4º da Carta Constitucional brasileira, já que os direitos e garantias fundamentais reconhecidos no artigo 5º supra mencionado, não podem ser abolidos mediante emenda constitucional.

Por fim, pode-se afirmar que se o sujeito dos direitos políticos interfere mediante o exercício do direito de voto na produção legislativa estatal como participante, da ordem jurídica, o povo pode ser considerado o sujeito dos direitos fundamentais, na medida em que são, também sob a perspectiva democrática kelseniana autores e destinatários (referenciais de imputação) da ordem jurídico –normativa que ele mesmo construiu, na medida em que só se pode afirmar a existência de um Estado de Direito, e, conseqüentemente, de uma democracia legitimamente instituída, se a igualdade e a liberdade de todos os sujeitos de direito não sofrem nenhuma restrição ilegal, ou desconforme ao texto constitucional.

Diante de todas as considerações tecidas no decorrer do presente texto monográfico, pode-se afirmar que só existe uma democracia a partir do reconhecimento constitucional dos direitos fundamentais exercidos igual e livremente por todos aqueles indivíduos que se submetem à ordem jurídica que eles mesmos construíram. Se o povo se submete à ordem jurídica que ele mesmo criou quando do exercício dos direitos políticos, significa dizer que Kelsen, ao seu modo, compreende o povo como autor e destinatário da Constituição. Essa, afinal é a essência da democracia nos Estados modernos e porque não dizer, também, dos contemporâneos.

 

Referências
BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
BARZOTTO, Luis Fernando. “Positivismo jurídico”. In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito.. São Leopoldo/ Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
GAVAZZI, Giacomo. Introdução: Kelsen e a doutrina pura do direito” In: A democracia. KELSEN, Hans. 2 ed. Trad. Ivone Castilho Benedetti et al. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KELSEN, Hans. A democracia. 2 ed. Trad. Ivone Castilho Benedetti et al. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
____. Teoria pura do direito.7 ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
Notas
[1] Esta monografia foi exigida no ano de 2010, como requisito parcial para aprovação na disciplina Fundamentos Filosóficos da Interpretação do Direito ministrada pela professora Doutora Maria Theresa Vaz Calvet de Magalhães, no curso de mestrado em Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos – Juiz de Fora.
Maria Theresa Vaz Calvet de Magalhães é Docente Colaboradora na Pós Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Doutora em Sciences Politiques et Sociales pela Université Catholique de Louvain  UCL Bélgica e Pós Doutora pelo Institut Supérieur de Philosophie Université Catholic de Louvain UCL Bélgica.
[2] Embora o texto de Kelsen se refira à permissão das distinções entre homens e mulheres, ressalta-se que, de acordo com o caput do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil promulgada aos 05 de outubro de 1988, homens e mulheres não sofrem qualquer discriminação de gênero.

Informações Sobre o Autor

Bruno Alberto Maia

Doutor em Ciéncias Jurídicas e Sociales pela Universidad del Museo Social Argentino, Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela UNIPAC Juiz de Fora, Advogado voluntário do Centro de Defesa da Cidadania de Belo Horizonte


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Equipe Âmbito Jurídico

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