Resumo: O presente artigo objetiva analisar os novos aspectos do foro do idoso a partir da confrontação entre a regra do art. 80 do Estatuto do Idoso e a norma trazida pelo art. 53, III, "e" do Código de Processo Civil de 2015, com foco na ampliação do acesso à justiça e aperfeiçoamento da tutela judicial da pessoa idosa. Após a análise de textos legais, da doutrina e da jurisprudência relativa ao tema, este estudo conclui que a nova configuração do foro do idoso potencializa seu papel na promoção do acesso à justiça da pessoa idosa.
Palavras-chave: foro do idoso; Novo Código de Processo Civil; Estatuto do Idoso; competência; acesso à justiça.
Abstract: This article aims to analyze the new aspects of the elderly's forum, based on comparison between the rule of article 80 of the Statute of Elderly People and the norm of article 53, III, "e" of the New Civil Procedure Code, focused on the expansion of access to justice and improvement of judicial protection of aged people. After the analysis of the legal texts, doctrine and the jurisprudence relating to the theme, this study concludes that the new configuration of elderly's forum increases its importance on promoting the access to justice of aged people.
Keywords: elderly's forum; New Civil Procedure Code; Statute of Elderly People; competence; access to justice.
Sumário: Introdução – 1. O Estatuto do Idoso e a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana; 2. O microssistema jurídico de proteção ao idoso; 3. O foro do idoso no contexto do acesso à justiça; 4. O art. 80 da Lei nº 10.741/03; 5. A nova configuração do foro do idoso no NCPC; 5.1. Aplicabilidade do foro do idoso às lides individuais; 5.2. A natureza relativa da regra de competência do art. 53, III, "e" do CPC/15; 5.3. "Residência" do idoso como critério territorial; 5.4. Inexistência de ressalva quanto à competência da Justiça Federal e à competência originária dos Tribunais Superiores; 5.5. "Direito previsto no respectivo estatuto" como objeto das ações individuais; 5.5.1.Superação do critério da indisponibilidade do direito individual; 6. Algumas situações problemáticas; Conclusão.
Introdução
O Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/15) foi gestado com o desígnio de conferir maior organicidade ao sistema processual brasileiro, tornando-o mais coeso, eficiente e célere.
A Comissão de Juristas responsável pela elaboração do NCPC deixa claro, na Exposição de Motivos, que seu trabalho foi norteado pelo objetivo de desfazer os "nós" do sistema, resolvendo problemas que atravancam a marcha processual e afetam a efetividade da solução jurisdicional, sem descurar da intenção de imprimir ao código uma verdadeira “sintonia fina” com a Constituição Federal, por meio da promoção dos direitos fundamentais ali consagrados[1].
É nesse contexto que o legislador inovou ao incluir no Código de Processo Civil o art. 53, III, "e", que prevê norma especial de competência territorial mais benéfica à pessoa idosa (foro do idoso) nas lides que discutam direitos previstos no Estatuto do Idoso (EIDO).
O presente estudo busca identificar, a partir dos parâmetros trazidos pelo CPC/15, os novos contornos do instituto em tela, antes previsto exclusivamente no art. 80 da Lei nº 10.741/03. O objetivo é contribuir para o debate em torno da novidade legislativa, avaliando de forma mais detida o novo perfil do foro do idoso no contexto da promoção do acesso à justiça e outros direitos fundamentais desse grupo humano.
A problemática enfrentada é a necessidade de compatibilização entre as normas do Estatuto do Idoso e do NCPC, de modo a aperfeiçoar e impulsionar o campo de incidência do microssistema jurídico erigido em prol da concretização dos direitos fundamentais da pessoa idosa.
Parte-se da análise de textos legais, da doutrina e da jurisprudência relativos ao tema, para, ao final, concluir que a nova configuração do foro do idoso potencializa seu papel na efetivação do acesso à justiça da pessoa idosa.
1 – O Estatuto do Idoso e a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana
A Constituição de 1988 elevou a dignidade da pessoa humana ao patamar de fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III) e à qualidade de princípio norteador de todo o ordenamento jurídico, sagrando a pessoa humana como razão de ser da sociedade e do Estado.
Assumindo a condição de verdadeiro princípio matriz da Constituição, a dignidade da pessoa humana confere-lhe unidade e harmonia na medida em que estabelece o homem como principal vetor da atuação do Estado, demandando prestações estatais positivas e negativas, ao tempo em que se apresenta como substrato das próprias relações privadas, em razão da sua eficácia horizontal.
O ser humano passou a ser tutelado nos diversos aspectos da sua personalidade, diante da compreensão de que a vida digna pressupõe o respeito às escolhas e particularidades de cada indivíduo.
Ingo Wolfgang Sarlet traz importante definição para o princípio em tela, evidenciando o aspecto da valorização das características próprias de cada pessoa no âmbito do Estado Democrático de Direito:
"Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida".[2]
Nesse cenário de valorização do indivíduo em suas múltiplas dimensões, o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de Outubro de 2003) advém como importante instrumento de concretização do princípio da dignidade humana.
Ao declarar direitos da pessoa idosa e estabelecer instrumentos para sua tutela, busca promover a qualidade de vida e a auto-estima de indivíduos que lidam com o esmaecimento natural de suas faculdades físicas e mentais e com obstáculos impostos pela própria comunidade, dentre eles o preconceito, o desprezo, a exploração e o abandono.
Revela-se concretizador também do princípio da isonomia, por particularizar direitos fundamentais já reconhecidos na Carta Magna a todo ser humano, adaptando-os de modo a lhes conferir maior eficácia nas relações protagonizadas por pessoas de idade avançada.
O Estatuto confere, portanto, tutela jurídica especial a um grupo que se revela vulnerável diante das fragilidades comumente associadas à idade e à posição social dos seus integrantes.
2. O microssistema jurídico de proteção ao idoso
Em conjunto com a Lei nº 8.842/1994, que instituiu a Política Nacional do Idoso, o Estatuto do Idoso cria um microssistema jurídico. Quer-se dizer, com isso, que a lei veicula normas de diferentes áreas reunidas sob o pálio do princípio da proteção, com o objetivo de conferir tutela especializada integral a uma categoria social hipossuficiente, atendendo às suas peculiaridades.
De forma semelhante ao que foi feito pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), que inclusive lhe serve de nítida fonte inspiradora, o Estatuto do Idoso cria uma rede capilarizada de proteção a um grupo vulnerável, irradiando efeitos em todo o ordenamento jurídico. Para tanto, traz normas que interagem com as mais diversas áreas, destacando-se os Direitos Constitucional, Civil, Penal, Administrativo, Previdenciário, Trabalhista e Processual.
No intuito de aperfeiçoar esta tutela interdisciplinar, a Lei nº 10.741/03 adota um critério objetivo para identificar o grupo resguardado, de natureza puramente cronológica. Em termos legais, idoso é simplesmente o indivíduo com 60 anos ou mais[3], não se exigindo a verificação de critérios psicobiológicos, econômico-financeiros ou sociais.
O foco na tutela dos direitos fundamentais fica evidente na medida em que o Estatuto dedica todos os dez capítulos do seu Título II ("Direitos Fundamentais") à normatização dos direitos da pessoa idosa à vida (Capítulo I), à liberdade, ao respeito e à dignidade (Capítulo II), aos alimentos (Capítulo III), à saúde (Capítulo IV), à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer (Capítulo V), à profissionalização e ao trabalho (Capítulo VI), à previdência social (Capítulo VII), à assistência social (Capítulo VIII), à habitação (Capítulo IX) e ao transporte (Capítulo X).
As normas deste Título II reiteram e pormenorizam objetivos, princípios e direitos fundamentais previstos em diferentes dispositivos da Constituição de 1988, a exemplo dos arts. 3º, IV; 5º, caput e incisos diversos; 7º, XXX; art. 196; art. 201, I; art. 203, I e V.
Dedicados de forma mais específica à tutela do idoso, merecem especial destaque os arts. 229 e 230. Interpretados conjuntamente, estes dispositivos reforçam a necessidade de formação de uma ampla rede de proteção às pessoas com 60 anos ou mais, prevendo a responsabilidade da família, da sociedade e do Estado no amparo às pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. A norma consagra o cuidado com a dignidade do idoso e seu incremento por meio do princípio da solidariedade, que vincula diferentes agentes sociais à responsabilidade pela tutela integral da pessoa idosa.
O Estatuto do Idoso regulamenta os dispositivos constitucionais referidos, notadamente o art. 230. Assim é que, após enunciar direitos, a Lei nº 10.741/03 traz em seu Título III as medidas de proteção ao idoso, estabelecendo providências e instrumentos voltados para a efetivação daqueles.
Avançando na construção do sistema tutelar, o Título IV trata da política de atendimento ao idoso, com capítulo específico para as entidades de atendimento, inclusive com a previsão de fiscalização destas e de infrações administrativas caso não sejam cumpridas as determinações da lei.
Por fim, o Título V cuida do acesso à justiça, inserindo, dentre outras, a regra relativa ao foro do idoso. Passa-se ao seu exame.
3 – O foro do idoso no contexto do acesso à justiça
Em obra clássica, Mauro Cappelletti e Bryant Garth[4] explicam que o conceito de acesso à justiça nas sociedades do laissez faire se traduzia no direito formal de propor ou contestar uma ação, sem envolver qualquer exigência de atuação estatal positiva. Neste sistema alicerçado em uma concepção individualista dos direitos, ao Estado caberia tão somente garantir uma igualdade formal, sem qualquer preocupação com a efetividade dos direitos tutelados.
A partir do reconhecimento dos direitos e deveres sociais dos governos, comunidades, associações e indivíduos, o acesso à justiça passou a ser compreendido como o requisito fundamental de qualquer sistema jurídico moderno e igualitário, voltado para a efetiva garantia dos direitos de todos.
Na análise de Cappelletti e Garth, os países ocidentais, reconhecendo o acesso à justiça como o mais básico dos direitos humanos, passaram a envidar esforços voltados para a superação das barreiras que o inviabilizam.
Assim é que inicialmente surgiu a preocupação com a concessão de assistência judiciária para os pobres, movimento a que os autores denominaram "primeira onda" de efetivo acesso à justiça.
A segunda onda de reformas focou a viabilização da tutela de direitos difusos, já que a concepção tradicional do processo civil era voltada tão somente para a exequibilidade de direitos individuais, não atendendo à crescente demanda de proteção de interesses grupais.
A terceira onda ainda se encontra em curso e é mais abrangente. Denominada "enfoque de acesso à Justiça", o movimento soma aos progressos anteriores a formulação de mecanismos procedimentais voltados para a concretização dos novos direitos.
Tem como ponto de partida a percepção de que a tutela efetiva dos direitos sociais não se resolve apenas com a disponibilização de advogados aptos à defesa dos pobres ou dos direitos difusos, exigindo também a modernização de institutos processuais e da própria estrutura do Poder Judiciário. Objetiva, pois, a reforma de todo o sistema judiciário em prol da efetividade[5].
A chegada do Estatuto do Idoso no ano de 2003 pode ser compreendida como medida integrante desta terceira etapa do movimento de acesso à justiça, tendo em vista que em seu Título V e em outras passagens a lei prevê a estruturação de institutos e órgãos judiciais voltados para a tutela efetiva de partes hipossuficientes, de forma a promover a igualdade material entre os idosos e os demais membros da comunidade, seja de forma individual ou coletiva.
O art. 70 do EIDO traz, exempli gratia, a previsão de que o Poder Público poderá criar varas especializadas e exclusivas do idoso, em nítida tentativa de instrumentalizar órgãos judiciais com adaptações voltadas para as necessidades particulares deste grupo, notadamente no que se refere à especial celeridade que o atendimento às suas demandas exige.
No mesmo caminho, o art. 71 estabelece a prioridade na tramitação dos processos e procedimentos com idosos, trazendo novo instituto que aperfeiçoa o acesso à justiça de pessoas que não podem esperar o trâmite normal de um processo judicial.
Válido citar, também, os Capítulos II e III do Título V, que, dentre outras providências, aperfeiçoam a atribuição do Ministério Público para tutelar os direitos dos idosos em situações diversas, inclusive como substituto processual no ajuizamento de Ação Civil Pública, harmonizando-se com previsões da Lei nº 8.625/93 e Lei Complementar nº 75/93.
O foro do idoso, previsto inicialmente no art. 80 da Lei nº 10.741/03, reflete igualmente a tendência do enfoque de acesso à justiça, revelando inovação procedimental implementada com a finalidade de conceder vantagem à pessoa idosa nas lides que discutam seus interesses, estabelecendo a competência territorial de tais ações no foro do domicílio do litigante com 60 anos ou mais.
Apesar do avanço, a regra contida no Estatuto do Idoso ressentia-se de maior efetividade em razão de sua aplicabilidade limitada às lides coletivas, conforme posição majoritária na doutrina e jurisprudência.
A lacuna que afetava as demandas individuais tornou-se a matéria do art. 53, III, "e" do Código de Processo Civil de 2015, que então passa a atribuir nova feição ao instituto.
4. O Art. 80 da Lei 10.741/03
A previsão textual do art. 80 do Estatuto do Idoso, incluído no Capítulo III ("Da Proteção Judicial dos Interesses Difusos, Coletivos e Individuais Indisponíveis ou Homogêneos") do Título V ("Do Acesso à Justiça") é a transcrita: "Art. 80. As ações previstas neste Capítulo serão propostas no foro do domicílio do idoso, cujo juízo terá competência absoluta para processar a causa, ressalvadas as competências da Justiça Federal e a competência originária dos Tribunais Superiores".[6]
Como já referido, o dispositivo objetiva aprimorar o acesso à justiça e impulsionar a tutela dos direitos das pessoas de idade avançada, prevendo a competência do domicílio do idoso para as ações que objetivem efetivar os seus direitos, excepcionadas aquelas de competência da Justiça Federal (art. 109 da CRFB) e aquelas outras de competência originária dos Tribunais Superiores.
Formou-se intensa polêmica quanto ao alcance da regra. O artigo já de início estabelece uma limitação ao indicar as ações previstas no Capítulo III do Título V do Estatuto, o que leva à conclusão de que devem atentar para a regra de competência apenas as ações utilizadas para "instrumentalizar a proteção judicial dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis ou homogêneos".
O texto alude, em sua maioria, às ações de natureza coletiva, mas inclui também ações para tutela de direitos individuais indisponíveis, que podem ser de natureza individual.
Diante deste fato, uma primeira corrente firmou o entendimento de que mesmo ações individuais deveriam ser propostas no foro do domicílio do idoso, desde que tenham por objeto direitos indisponíveis. A posição é reforçada pelo teor do art. 82, que não exclui ações individuais da sua abrangência: "Para defesa dos interesses e direitos protegidos por esta Lei, são admissíveis todas as espécies de ação pertinentes"[7].
Contudo, parcela majoritária da doutrina e jurisprudência concluiu que a regra é válida apenas para ações coletivas, o que, data venia, se revela mais adequado.
Primeiro, em razão da previsão textual do próprio art. 80, estabelecendo que a competência em questão é absoluta. A extensão da regra às lides individuais poderia prejudicar o idoso litigante, porque podaria sua escolha e o submeteria a uma regra cogente de competência que nem sempre lhe será mais benéfica. O dispositivo tutelar teria seu efeito invertido, tornando-se prejudicial à parte hipossuficiente por restringir sua escolha e por criar incidentes que poderiam retardar a marcha processual[8].
Segundo, porque a regra em análise é voltada notadamente para ações coletivas, inclusive na hipótese das ações que discutam direitos individuais indisponíveis. É o que revela a regra do caput do art. 81, que estabelece rol de legitimados concorrentes para as ações civis fundadas em interesses difusos, coletivos, individuais indisponíveis ou homogêneos.
Note-se que não há previsão, no dispositivo, da legitimação individual de idosos que titularizam o direito vilipendiado, mas apenas de órgãos ou pessoas jurídicas que atuarão como legitimados autônomos ou substitutos processuais, a exemplo do Ministério Público.
Portanto, ao prever rol de legitimados para ajuizamento das ações que viabilizam o acesso à justiça dos idosos, o art. 81 trata exclusivamente de sujeitos que, na tutela dos direitos previstos no Estatuto, atuam no polo ativo de ações coletivas (autores coletivos). Tal limitação leva a crer que as ações tratadas no capítulo III do Título II do EIDO são, realmente, desta natureza (coletiva)[9].
O terceiro argumento está no fato de que a competência estabelecida pelo art. 80 é do tipo territorial absoluta, nos mesmos moldes daquela prevista no art. 2º da Lei n. 7.347/85, que trata da competência territorial para a ação civil pública (equivocadamente denominada "competência funcional"[10]). Instituto semelhante é encontrado, também, no art. 209 da Lei nº 8.069/90 (ECA), que cuida da competência para ações cíveis fundadas em interesses coletivos ou difusos.
Vê-se que o Estatuto do Idoso pretendeu adotar um instituto processual típico de ações coletivas, já previsto em outras legislações especiais, o que reforça a posição da corrente majoritária, aqui endossada.
Conclui-se, neste passo, que o art. 80 do Estatuto do Idoso prevê o foro do domicílio do idoso como regra de competência territorial absoluta excepcional, aplicável às ações coletivas (que geralmente observam o foro do local do dano).
Apesar do progresso, remanescia no microssistema de tutela ao idoso o problema relativo à promoção do acesso à justiça nas demandas individuais. Perceba-se que os legitimados que atuam na defesa dos direitos coletivos dos idosos não sofrem da mesma fragilidade que os próprios tutelados. Havia, pois, uma grave incoerência em conferir a benesse a uma associação ou ao parquet, por exemplo, e não atribuir tal prerrogativa ao litigante pessoa natural com 60 anos ou mais, pois o estado de hipossuficiência deste último é ainda mais marcante.
Em face desta constatação, antes do advento do NCPC parcela dos juristas empreendia um esforço exegético para estender a regra do foro do idoso também às ações individuais sobre direitos indisponíveis, por analogia com a própria regra do art. 80 do EIDO ou mesmo com outras regras que protegem o litigante hipossuficiente, como a que trata do foro do alimentando.
Veja-se o posicionamento de Fredie Didier Jr. em edição de sua obra do ano de 2012:
"O Estatuto do Idoso, no art. 80, determina a competência absoluta do domicílio do idoso para as causas de que cuida o capítulo em que o artigo está inserido (direitos difusos, coletivos, individuais indisponíveis e homogêneos). Essa referência tem de ser interpretada como se dissesse respeito apenas ás causas coletivas. No âmbito individual, o idoso terá o beneficio, assim como o alimentando, de demandar e ser demandado em seu domicílio, mas se trata de hipótese de competência relativa".[11]
Apesar da razoabilidade desta corrente, havia certa resistência ao seu entendimento, notadamente por exigir uma adaptação profunda do instituto ao modificar a natureza da competência (de absoluta para relativa).
Assim, a maioria dos defensores da aplicação do foro do idoso às lides individuais acabava seguindo caminho diverso, adotando a tese de que o art. 80 seria diretamente e integralmente aplicável às lides individuais, com as dificuldades aqui já apontadas.
Esta questão culminava em desgastantes discussões trazidas em preliminares e exceções de incompetência, retardando por anos o julgamento do mérito de ações ajuizadas por litigantes que, em razão da idade, necessitavam de soluções urgentes.
5. A nova configuração do foro do idoso no NCPC
A exposição de motivos da Lei nº 13.105/15 informa que a elaboração do novo código foi orientada por cinco objetivos:
"(…) 1) estabelecer expressa e implicitamente verdadeira sintonia fina com a Constituição Federal; 2) criar condições para que o juiz possa proferir decisão de forma mais rente à realidade fática subjacente à causa; 3) simplificar, resolvendo problemas e reduzindo a complexidade de subsistemas, como, por exemplo, o recursal; 4) dar todo o rendimento possível a cada processo em si mesmo considerado; e, 5) finalmente, sendo talvez este último objetivo parcialmente alcançado pela realização daqueles mencionados antes, imprimir maior grau de organicidade ao sistema, dando-lhe, assim, mais coesão".[12]
Já de início, defende-se que a previsão do art. 53, III, "e" do CPC/2015, apesar da aparente singeleza, se coaduna, em alguma medida, com todos os objetivos citados.
O dispositivo traz o seguinte texto: "Art. 53. É competente o foro: III – do lugar: e) de residência do idoso, para a causa que verse sobre direito previsto no respectivo estatuto".[13]
Ao elucidar a aplicação do foro do idoso às lides individuais, com adaptações que serão adiante apreciadas, a norma resolve um problema deixado pelo art. 80 do Estatuto do Idoso, conferindo maior grau de organicidade ao sistema. Isso porque evita que o instituto atenda apenas aos legitimados para a propositura de ações coletivas, olvidando a tutela daqueles diretamente interessados que, em posição processual ainda mais precária, decidem atuar individualmente.
Atribui, igualmente, maior segurança jurídica às partes hipossuficientes, podando discussões processuais que retardariam a tutela jurisdicional e, desta forma, reduziriam o aproveitamento do processo. Portanto, concretiza princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana e do acesso à justiça, promovendo a decantada sintonia fina do sistema processual com a Constituição Federal.
Ainda que se diga que, antes do advento da nova lei, o ordenamento jurídico já agasalhava a tese da aplicabilidade do foro do idoso às lides individuais, o art. 53, III, "e" do CPC não só tem o mérito de buscar superar os debates em torno desta tese, conferindo maior segurança jurídica e integridade ao sistema, como também traz suas próprias contribuições para o aperfeiçoamento do instituto. Discorda-se, por este motivo, da posição segundo a qual o preceito nada teria trazido de novidade, limitando-se a reiterar a norma do art. 80 do EIDO.[14]
Nesse sentido, passa-se a destacar cinco aspectos que representam novidade na previsão do foro do idoso no bojo do NCPC: a) aplicabilidade direta às lides individuais; b) a natureza relativa da regra de competência; c) alusão à "residência" do idoso, em vez de "domicílio"; d) inexistência de ressalva quanto à competência da Justiça Federal e à competência originária dos Tribunais Superiores; e) referência aos direitos previstos no estatuto como forma de delimitar o objeto das ações que se submetem ao foro do idoso.
5.1. Aplicabilidade do foro do idoso às lides individuais
Durante a tramitação do projeto de lei que deu origem ao Novo Código de Processo Civil, a idéia de abarcar a regulação dos processos coletivos foi discutida pela Comissão de Juristas formada no Senado Federal.
O processualista Bruno Dantas, membro da comissão e ministro do Tribunal de Contas da União, reportou em entrevista concedida ao CONJUR que a ideia foi afastada diante das dificuldades teóricas e pragmáticas, estas últimas atreladas à forte resistência política sofrida por proposta semelhante à época (Projeto de Lei nº 5.139/2009, rejeitado pelo Congresso Nacional em 2010)[15].
Pode-se dizer, então, que a Lei nº 13.105/15 não é voltada para a disciplina específica dos processos coletivos, ainda que tenha mantido referências esparsas (ex: art. 139, X) e traga institutos que tenham repercussões coletivas, como o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR).
De fato, em grande parcela, as regras inseridas no NCPC se destinam à regulação do processo civil tendo por ponto de partida as ações individuais. Conforme ensinamento de Bruno Dantas, toda a base principiológica do processo civil ordinário é direcionada para o litígio individual, sendo este o contexto teórico em que deve ser compreendido o novo código.
Nessa linha, verifica-se que a aplicabilidade das normas do novo código às ações coletivas, reguladas em leis esparsas, se dá apenas de forma subsidiária e supletiva (art. 15 do NCPC).
Na abalizada doutrina de Geisa de Assis Rodrigues:
"Assim, o novo Código contém, igualmente, institutos cuja disciplina inaugural se deu no microssistema de processo coletivo, mas manteve sua esfera de abrangência principal voltada para o processo individual. Não houve, portanto, revogação nem expressa nem implícita de nenhuma norma do microssistema de processo coletivo, e o aplicador dessas normas continuará tendo que primeiro se valer das normas processuais que em simbiose o integram e aplicar subsidiariamente as regras do novo Código com a lógica da tutela coletiva".[16]
É certo que a prerrogativa de foro da pessoa idosa prevista no art. 53, III, "e" do NCPC compõe o microssistema jurídico voltado para a proteção do idoso, ainda que deslocado da legislação especial para a geral. Basta atentar para a referência expressa aos direitos previstos no Estatuto do Idoso, indicando que a nova regra objetiva complementar o sistema de proteção específico edificado por aquela lei.
Apesar disso, o artigo não compõe o microssistema de processo coletivo a que pertence a regra do art. 80 do EIDO. Integra, isso sim, o grupo de institutos cuja disciplina inaugural se deu no microssistema de processo coletivo, mas foi importado para o novo código e adaptado à lógica da tutela individual, conforme a referência feita por Geisa de Assis Rodrigues no trecho transcrito.
O art. 53, III, “e” não constitui exceção à esfera de abrangência geral do novo código, estando inserido no contexto teórico e normativo do processo civil ordinário. Por esse motivo, não se pode aderir ao entendimento de que o NCPC apenas reiterou a norma do art. 80, assim como não se concebe a possibilidade de revogação ou derrogação de uma norma pela outra, já que o âmbito de incidência é distinto.
Esta primeira novidade vem sendo destacada por boa parte dos juristas[17] que se dedica à análise do dispositivo, reconhecendo que sua inclusão no NCPC teve por escopo suprir a lacuna deixada pelo art. 80 do Estatuto do Idoso em razão dos problemas envolvidos na sua aplicabilidade às lides individuais.
5.2. A natureza relativa da regra de competência do art. 53, III, "e" do CPC/15.
Talvez o maior empecilho para a aplicação direta do art. 80 do Estatuto do Idoso às lides individuais seja a natureza absoluta da competência territorial ali prevista.
Sobre o instituto, interessante inicialmente trazer à baila a lição de Fredie Didier Júnior, esclarecendo a aparente contradição na existência de competência territorial submetida ao regime jurídico da competência absoluta.
O eminente processualista ensina que o instituto não causa qualquer perplexidade, pois "o regime jurídico é determinado pelo direito positivo e não interfere no conceito de competência territorial, que é lógico-jurídico" (grifos no original)[18]. Deste modo, ainda que as regras de competência baseadas em critérios geográficos sejam, geralmente, de competência relativa (dispositiva), pois atreladas à mera conveniência das partes, estas poderão excepcionalmente se submeter a regime jurídico da competência absoluta (cogente) caso haja previsão legal.
Como é cediço, as regras de competência absoluta se pautam pelo interesse público, sendo, por isso, inalteráveis pela vontade dos litigantes. Seu desrespeito gera vício de natureza grave, que pode ser alegado pelas partes e reconhecido pelo órgão julgador a qualquer tempo, mesmo de ofício.
Diante da gravidade do vício, a decisão de juízo absolutamente incompetente pode ser até mesmo objeto de Ação Rescisória no prazo de dois anos (art. 966, II do NCPC).
Tais características evidenciam que a mera aplicação do foro do idoso em sua feição original às lides individuais traria inúmeros problemas, a começar pela denegação ao hipossuficiente da possibilidade de optar pela não utilização da benesse processual, invertendo a lógica do instituto, que passaria a atuar de modo contrário aos interesses da pessoa idosa.
Nessa senda, vale a transcrição da lúcida posição do processualista Flávio Luiz Yarshell em precursor artigo escrito ainda sob a égide do CPC/73, criticando o entendimento pela aplicação pura e simples do art. 80 às lides individuais:
"(…), embora seja de se presumir que o aforamento da demanda seja mais benéfico ao idoso se for feito no foro de seu domicílio, isso não pode ser tido como uma verdade absoluta. É perfeitamente possível imaginar que um idoso prefira aforar a demanda no foro do domicílio do réu ou no local do fato (sendo este um dos critérios empregados pelo art. 100, par. ún., do CPC), por ser, dessa forma, mais fácil a colheita da prova (por exemplo, oitiva de testemunhas) e, portanto, mais célere o processo (evitando-se, por exemplo, citação por precatória). É possível também imaginar uma situação de litisconsórcio ativo, em que seja mais conveniente para os autores – dentre os quais um idoso – promoverem a demanda em outro foro que não o do domicílio do idoso".[19]
O jurista destaca, ainda, que a natureza cogente da regra de competência poderia fomentar incidentes processuais de graves consequências para a marcha do feito, como a possibilidade de remessa dos autos ao juízo absolutamente competente após o litigante atingir 60 anos, ou a impossibilidade de reunião de feitos com base no reconhecimento da conexão.
Apesar de tais inconvenientes, o caráter absoluto do foro do idoso nas lides individuais, notadamente aquelas que cuidam de direitos indisponíveis, foi defendido por respeitável corrente doutrinária antes do advento do NCPC.
Cite-se a manifestação de Roberto Mendes de Freitas Júnior, ao tratar, sob o pálio do CPC/73, da ação de alimentos proposta por idoso:
"Em face do artigo 80, do Estatuto do Idoso, que estabelece a competência absoluta do foro do domicílio do idoso para julgamento das causas que envolverem direitos individuais indisponíveis, a ação deve tramitar perante a Vara do Idoso existente da Comarca de seu domicílio. Não havendo Vara Especializada, o julgamento será afeto a uma das Varas de Família daquela localidade".[20]
Ainda que em tom crítico, Humberto Theodoro Júnior traz a mesma conclusão na edição de 2013 de seu já clássico Curso de Direito Processual Civil:
"Não se vê vantagem alguma em considerar absoluta a competência do foro do idoso. Poder-se-ia perfeitamente privilegiá-lo com tal foro, mas como regra relativa, a exemplo do que se faz com os credores de alimentos e com a mulher casada. Sendo absoluta a competência, não poderá ser prorrogada pelo juiz nem alterada pelas partes, sob pena de nulidade do julgamento por outro juiz que não o do foro do domicílio do idoso. Ora, muitas vezes, é muito mais conveniente, para o próprio idoso, a prevalência de um foro de eleição, ou do domicílio do réu, ou mesmo do local do evento danoso ou do cumprimento do contrato. Como está na lei, não há margem para opção alguma e a norma inflexível acabará por prejudicar aquele que se pretende tutelar".[21]
Cite-se, por fim, a interessante posição de Alexandre David Malfatti em sua Tese de Doutorado defendida junto à PUC-SP no ano de 2007, para quem a competência neste caso é absoluta, mesmo que assuma a peculiaridade de aceitar a renúncia pelo idoso de sua prerrogativa processual, quando não for impedido por razões de interesse público:
"Pensamos que se possa flexibilizar a interpretação da regra. Sem que se desfaça da natureza absoluta da competência, impõe-se reconhecer que a regra tem como critério a qualidade da parte que participa da demanda: pessoa idosa. O interesse público criou uma regra de competência territorial absoluta, fugindo à usual natureza relativa daquela modalidade de competência. Não se têm na competência territorial as dificuldades das outras espécies. Ainda que cogente a norma, pode-se defender que o beneficiário da norma poderá, em alguma medida, exercer a disponibilidade do direito".[22]
O cenário anterior a 18 de março de 2016, portanto, revelava-se turbulento quanto à definição do regime da regra de competência em questão, quando aplicada às lides individuais.
A celeuma parece continuar influenciando a posição de eminentes juristas mesmo após a introdução do novo dispositivo no CPC/15, como se percebe pelo comentário de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery ao artigo em tela, manifestando-se pela obrigatoriedade da regra, em aparente alusão ao regime de competência absoluta: "Com esta norma, o CPC pretende facilitar o acesso do idoso à justiça, obrigando a que todas as ações baseadas no EId tramitem no local de moradia da pessoa nessa condição".[23]
Respeitada a posição dos valorosos juristas, pensa-se que o art. 53, III, "e" do NCPC veio para superar a discussão ao estabelecer o foro do idoso como regra de competência territorial relativa para as lides individuais.
A convicção quanto à submissão da regra ao regime dispositivo decorre da análise sistemática do art. 46 e seguintes do CPC/15.
Após estabelecer, no caput do seu art. 46, o domicílio do réu como regra geral de competência territorial para ações fundadas em direito pessoal ou direito real sobre bens móveis (foro comum ou geral), o novo código elenca em seu art. 53 situações de foro especial, também de natureza territorial[24], dentre eles o foro do idoso.
Como dito, as regras de foro são normalmente de competência relativa, já que modificáveis pelas partes, não havendo afetação do interesse público na mera alteração do local de ajuizamento. Em casos excepcionais, o legislador poderá alterar o regime jurídico para o da competência absoluta, amparado no interesse público.
A situação que aqui se observa é a da regra geral, diante da previsão no NCPC do foro do idoso como competência territorial especial, sem qualquer ressalva. Submete-se, deste modo, à regra do caput do art. 63: "As partes podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde será proposta ação oriunda de direitos e obrigações".[25]
No mesmo sentido, leciona Humberto Theodoro Júnior em comentário ao foro do idoso feito na nova edição de sua obra:
"O novo Código, releva notar, cuidou dessa competência como sendo relativa, justamente por se tratar de critério territorial, estabelecendo o foro de residência do idoso como o competente para a causa que verse sobre direito previsto no Estatuto, no art. 53, III, e, sem qualificá-lo como necessariamente absoluto".[26]
Essa é também a posição de Daniel Amorim Assumpção Neves[27], Fredie Didier Júnior[28], e Salomão Viana[29], dentre outros juristas de nomeada.
Adere-se a este entendimento por sua adequação à lógica do sistema processual, mas também por seu acerto na promoção da dignidade do idoso. A inclusão da prerrogativa no regime dispositivo é medida que respeita e valoriza a autonomia da pessoa com 60 anos ou mais, já que resulta do reconhecimento da capacidade de decisão destas pessoas, que não podem ser tratadas como incapazes apenas em razão da sua idade.
Já nas ações coletivas o instituto assume o regime de competência absoluta, em decorrência da expressa previsão do art. 80 do Estatuto do Idoso – ainda que permaneça igualmente como regra de competência territorial, segundo o critério lógico-jurídico que fundamenta tal classificação.
Frise-se que inexiste antinomia quanto à regulação da competência das ações individuais que tratam de direitos individuais indisponíveis. Como esclarecido linhas passadas, o direito individual indisponível, ainda que heterogêneo, pode ser tutelado por ação coletiva (ex: ACP proposta pelo Ministério Público) ou ação individual. Às primeiras (coletivas) se aplica o art. 80 do Estatuto do Idoso. Às individuais, o art. 53, III, "e" do CPC/15. O campo de incidência dos dispositivos é diverso.
É possível sistematizar o pensamento até aqui exposto em três itens conclusivos:
a) Em ações coletivas cujo objeto é a tutela de direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, o foro do idoso se submete ao regime de competência territorial absoluta (art. 80 do Estatuto do Idoso);
b) Em ações coletivas cujo objeto é a tutela de direitos individuais indisponíveis, mesmo heterogêneos, o foro do idoso se submete ao regime de competência territorial absoluta (art. 80 do Estatuto do Idoso);
c) Em ações individuais cujo objeto é a tutela de direitos individuais previstos no Estatuto do Idoso, o foro do idoso se submete ao regime de competência territorial relativa (art. 53, III, "e" do NCPC);
5.3. "Residência" do idoso como critério territorial.
Divergindo do art. 80 do EIDO, a previsão do foro do idoso no novo código utiliza a expressão "residência" no lugar de "domicílio".
A modificação não parece ter ocorrido ao acaso, visto que o legislador revelou-se técnico ao empregar ambas as palavras concomitantemente em outras passagens do texto legal, a exemplo do art. 46, §1º e §2º e do próprio art. 53, em seu inciso II. Plenamente ciente, pois, da relevante distinção técnica entre estas, como era de se esperar.
De fato, o conceito de domicílio da pessoa natural trazido pelo Código Civil é mais restrito que o de residência. Diz o art. 70 que o "domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo"[30]. A configuração do domicílio exige uma residência qualificada pela vontade de se fixar definitivamente, o que se reflete na manutenção de relações jurídicas naquele local.
Residência é o local onde se estabelece moradia com pretensão de habitualidade. Note-se que o termo "moradia" é mais amplo, pois diz respeito tão somente ao local em que a pessoa se estabelece em determinado momento. Denota mera situação de fato. Assim, o quarto de hotel é a moradia do hóspede por alguns dias, mas não sua residência, por não haver a vontade de ali permanecer por mais tempo[31].
Sílvio de Salvo Venosa, na mesma toada, ensina que o conceito de residência adotado em nosso ordenamento, inclusive para fins processuais, baseia-se em dois elementos: "um material ou objetivo, a fixação da pessoa em determinado lugar, e outro subjetivo ou psíquico, ou seja, o ânimo de permanecer"[32].
Já domicílio, como referido, é o local onde a pessoa reside com ânimo definitivo, desenvolvendo suas relações jurídicas. Na doutrina de Paulo Nader, "corresponde ao centro de ocupações, local onde a pessoa se vincula e elege como seu habitat, seu centro de referência, ponto onde se concentram as suas obrigações pessoais"[33].
Maria Helena Diniz ressalta importante característica do domicílio ao destacar que este é "a sede jurídica da pessoa, onde ela se presume presente para efeitos de direito"[34]. Ocorre que essa presunção legal nem sempre corresponderá à realidade, notadamente nos casos em que o domicílio for imposto por lei (domicílio legal ou necessário).
Neste panorama, a alusão exclusiva à residência do idoso no art. 53, III, "e" amplia o acesso à justiça da parte hipossuficiente. Isso porque a pessoa idosa, para se beneficiar de sua prerrogativa quanto à competência de foro, não precisará fazer prova de domicílio ou da mudança deste (art. 74, parágrafo único do CC). Também não se submeterá ao domicílio legal para fins processuais, bastando demonstrar que reside naquela localidade em que pretende a tramitação do feito.
Alexandre Freitas Câmara, ao destacar a novidade, entende que a disposição derroga o disposto no art. 80 do Estatuto do Idoso, que fixava a competência do Estatuto do Idoso para tais causas[35].
Diverge-se do distinto processualista, na medida em que os dispositivos possuem âmbitos de incidência que não se confundem: um aplicável às lides individuais, outro às lides coletivas. Ambas as regras vigoram em sua integralidade, de modo que, nas ações coletivas, o critério a ser observado será, ainda, o domicílio do idoso (e não sua residência).
A mudança terá especial relevância nas hipóteses em que o idoso for relativamente incapaz, pois o domicílio legal necessariamente coincidirá com o do seu assistente (art. 76 do Código Civil), que excepcionalmente poderá não ser o do local de residência do assistido.
Outros problemas envolvendo o domicílio necessário poderão ser evitados, como o do servidor público idoso transferido temporariamente para localidade diversa da sua lotação original, considerando que seu domicílio legal será mantido na primeira localidade.
Cuida-se de alteração que amplia o leque de opções do idoso, considerando que este poderá escolher o foro de qualquer local em que tiver residência, mesmo que esta não coincida com o lugar de seu domicílio.
5.4. Inexistência de ressalva quanto à competência da Justiça Federal e à competência originária dos Tribunais Superiores.
O Novo CPC não repetiu a ressalva contida no art. 80 do Estatuto do Idoso, que exclui expressamente de sua abrangência as ações de competência da Justiça Federal (aqui entendidas aquelas consagradas no art. 109 da CRFB), assim como as ações submetidas à competência originária dos Tribunais Superiores.
Em relação à competência originária de Tribunal Superior, o silêncio do art. 53, III, "e" não enseja maiores debates, sendo certo que estas ações deverão ser propostas na sede dos órgãos julgadores, que possuem jurisdição sobre todo o território brasileiro.
Já para as ações de competência da Justiça Federal, o tema poderia suscitar alguma dúvida, considerando a possibilidade de repercutir naquelas lides em que o idoso pleiteia medicamentos em face da União (tutela do direito fundamental à saúde do idoso), ou mesmo nas ações previdenciárias.
Ocorre que o próprio art. 109 da CF/88 traz as regras de competência territorial da Justiça Federal, estabelecendo-as de forma taxativa e inalterável por normas infraconstitucionais[36].
Conforme interpretação do art. 109, §1º da CF/88, as causas propostas pela União em face de pessoa com 60 anos ou mais, submetidas à competência da Justiça Federal, serão aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio o idoso.
Já para as causas propostas pelo idoso em face da União, estabelece o art. 109, §2º da CF/88 que haverá competência concorrente da seção judiciária em que for domiciliado o autor; do foro em que houver ocorrido o ato ou fato; daquele onde esteja situada a coisa; ou, ainda, poderá o idoso optar pelo ajuizamento da ação no Distrito Federal.
Perceba-se que nessas hipóteses a pessoa idosa não poderá pretender o ajuizamento da ação no foro de sua residência, mas apenas no seu domicílio, pois o art. 53, III, "e" do CPC/15 não está autorizado a disciplinar a questão, que tem índole formalmente constitucional.
Apesar disso, é inegável que a regra de competência territorial esculpida no art. 109 da CF/88 já confere ampla proteção à parte que contende contra a União, privilegiando o lugar do domicílio daquela, além de ofertar outras opções quando estiver na condição de autora. Essa proteção apenas não poderá ser adensada pela prerrogativa do foro do idoso no NCPC, sendo indevido, na Justiça Federal, o ajuizamento de ações individuais no foro da residência da pessoa idosa, se diverso do domicílio.
Portanto, o silêncio do dispositivo do NCPC quanto à ressalva trazida no art. 80 do Estatuto do idoso não terá implicações práticas.
5.5. "Direito previsto no respectivo estatuto" como objeto das ações individuais.
A previsão textual que exige análise mais cuidadosa é a referência aos direitos previstos no estatuto do idoso. Há, aqui, nítida intenção de limitar o objeto das lides individuais submetidas à regra de competência especial. Pergunta-se: a quais direitos o dispositivo faz alusão?
A questão se faz pertinente na medida em que o art. 2º e os caputs dos arts. 3º e 4º do Estatuto do Idoso trazem uma ampla previsão dos direitos fundamentais da pessoa idosa e suas garantias. Estes direitos são em seguida minudenciados no Título II ("Dos Direitos Fundamentais"), em 34 artigos.
A conjugação destas normas configura um feixe de direitos e garantias muito extenso, que pode abarcar, a depender da interpretação adotada e do caso concreto, todos os aspectos da vida da pessoa, mesmo aqueles de natureza puramente patrimonial. Some-se a isso o fato de que o rol de direitos citados não é taxativo, podendo ser ampliado por outras leis.
Diante da novidade legislativa ainda recente, não se encontrou, até o presente momento, aprofundamentos doutrinários sobre este aspecto do dispositivo do CPC/15. Apesar disso, presume-se que a magnitude da teia protetiva erigida pelo EIDO poderá fomentar posição excessivamente ampliativa, defendendo que toda ação que tenha por objeto a efetivação do direito de pessoa idosa poderia ser proposta na residência do idoso.
Ainda que tal entendimento resulte em adensamento da proteção ao sujeito vulnerável, sua adoção levaria à conclusão de que toda e qualquer ação que tenha um idoso como sujeito ativo ou passivo estaria submetida à regra do art. 53, III, "e" do NCPC.
Esse não foi o desiderato da lei, pois a alusão aos direitos previstos no Estatuto do Idoso teve o evidente escopo de restringir de algum modo a aplicação da prerrogativa. Do contrário, bastaria ao legislador ter mencionado a presença de pessoa idosa em um dos polos da ação como critério para aplicação da regra especial de competência.
Em posição diametralmente oposta, é possível igualmente vislumbrar a defesa de interpretação muito restritiva baseada no art. 79 do EIDO, tese já aplicada por parcela dos juristas para interpretar o alcance do art. 80 do Estatuto do Idoso[37].
Para esta corrente, a previsão original do foro do idoso visava tão somente à tutela dos direitos arrolados no art. 79 do Estatuto:
"Art. 79. Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados ao idoso, referentes à omissão ou ao oferecimento insatisfatório de:
I – acesso às ações e serviços de saúde;
II – atendimento especializado ao idoso portador de deficiência ou com limitação incapacitante;
III – atendimento especializado ao idoso portador de doença infecto-contagiosa;
IV – serviço de assistência social visando ao amparo do idoso."[38]
É possível, pois, que os defensores da aplicabilidade de tal restrição ao art. 80 do EIDO busquem expandir a tese também para o art. 53, III, "e" do CPC, diante da inexistência de balizas mais precisas fornecidas pelo novo código.
Se a primeira posição pecaria por tornar letra morta a expressão "causa que verse sobre direito previsto no respectivo estatuto", a segunda interpretação incorreria em equívoco ainda mais grave por amesquinhar todo o microssistema protetivo fundado pela Lei nº 10.741/03, ao considerar que os direitos ali tutelados são apenas aqueles arrolados no art. 79.
Ademais, o próprio parágrafo único deste dispositivo prevê a necessidade de tutelar outros direitos, ao dispor que "As hipóteses previstas neste artigo não excluem da proteção judicial outros interesses difusos, coletivos, individuais indisponíveis ou homogêneos, próprios do idoso, protegidos em lei"[39]. Trata-se, como se vê, de rol meramente exemplificativo.
É compreensível que a configuração original do foro do idoso e sua localização topográfica na Lei 10.741/03 pudesse, ainda que de modo questionável, fomentar interpretações no sentido de que os efeitos do art. 80 seriam limitados ao restrito rol de direitos do dispositivo que o precede (art. 79). Entretanto, o novo perfil trazido pelo NCPC rechaça de vez essa linha de entendimento ao aludir aos direitos previstos no Estatuto do Idoso, considerado o microssistema em sua integralidade.
Afastadas estas duas possibilidades interpretativas mais extremas, é preciso igualmente rejeitar uma terceira. É que também não é razoável atribuir um significado formalista ao texto do art. 53, III, "e" do NCPC para entender que apenas as demandas fundamentadas em algum dispositivo específico do Estatuto do Idoso estariam sujeitas à aplicação do foro do idoso.
Não é oportuno, por exemplo, exigir que a petição inicial faça menção a algum artigo da Lei 10.741/03 como causa de pedir ou pedido. Igualmente, não é exigível que o litigante hipossuficiente busque a aplicação de algum direito previsto de forma mais direta e pormenorizada no Estatuto, a exemplo do art. 15, §3º, que, adensando a previsão genérica do direito à saúde, veda a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade.
Isso porque, adotado este pensamento, mais uma vez se estaria diante de posição que ignora a finalidade do instituto, que é aperfeiçoar a tutela de direitos fundamentais próprios da pessoa idosa levando em conta o amplo aspecto de proteção englobado pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesse panorama, entende-se que a chave para a compreensão do alcance da expressão "direito previsto no respectivo estatuto" está no art. 2º e no caput do art. 3º do Estatuto do Idoso, verbis:
"Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.
Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária". [40]
A norma do art. 2º evidencia que a Lei nº 10.741/03 cuida de direitos fundamentais específicos, associados às peculiaridades de um segmente populacional determinado, sem, com isso, prejudicar o gozo de todos os demais direitos fundamentais inerentes a qualquer pessoa humana. Já o art. 3º enumera alguns desses direitos fundamentais, como o direito à vida, à saúde e ao trabalho, e os coloco sob a égide do princípio da solidariedade.
Em outros termos, ainda que ao idoso se garanta todo o conjunto de direitos fundamentais, o Estatuto reconhece seu foco nos direitos fundamentais inerentes à situação etária destas pessoas, conformando uma tutela especial que viabiliza a proteção integral dos idosos.
Flávia Piva Almeida Leite corrobora esta compreensão em seu comentário ao dispositivo:
"Para dar maior proteção e concretização aos direitos desse segmento da população, o legislador ordinário elaborou o Estatuto do Idoso, que, além de reafirmar o direito à vida, à segurança, à liberdade, à propriedade, à saúde, à educação, ao lazer, ao trabalho, entre outros que foram assegurados às demais pessoas, confere em seu art. 2º, de forma inédita, direitos específicos e diferenciados aos idosos. Dessa forma, o idoso é titular de todos os direitos fundamentais, sem prejuízo da proteção integral que o estatuto confere". [41]
O enfoque na proteção de direitos fundamentais se reflete no Título II do EIDO, "Dos Direitos Fundamentais", com capítulos voltados para a tutela do direito à vida, à liberdade, ao respeito e à dignidade, dos alimentos, à educação, cultura, esporte e lazer, profissionalização e trabalho, previdência social, assistência social, habitação e transporte. Em todos estes capítulos, a lei tutela particularidades dos direitos fundamentais quando estabelecidos em amparo à pessoa idosa.
Compreende-se, pois, que o critério que atrai a aplicabilidade do foro do idoso é a nota de fundamentalidade dos direitos tutelados e sua vinculação ao status especial decorrente da idade avançada. É imprescindível que haja uma relação de pertinência entre o direito fundamental tutelado e a condição peculiar da pessoa com 60 anos ou mais.
A prerrogativa processual existe para reforçar o acesso à justiça do indivíduo enquanto pessoa idosa. Despindo-se o litigante desta condição no bojo do processo – ainda que não possa apartar da sua personalidade o seu status etário -, a tutela conferida ao indivíduo deverá ser a mesma ofertada a qualquer pessoa.
5.5.1. Superação do critério da indisponibilidade do direito individual.
Outro ponto a ser destacado é quanto à indisponibilidade dos direitos individuais tutelados, requisito que possui previsão textual no art. 80 do Estatuto do Idoso, mas não foi repetido no dispositivo do NCPC.
A dúvida que se busca dirimir é se a indisponibilidade é requisito do direito a ser tutelado nas lides individuais submetidas ao foro do idoso.
Cuida-se de questão que envolve tema complexo, cuja análise aprofundada não cabe nos estreitos limites do presente estudo.
Entende-se, porém, que a nota de indisponibilidade ou irrenunciabilidade dos direitos individuais não é decisiva para a incidência da prerrogativa de foro nas lides individuais, mas apenas nas coletivas, diante da previsão expressa do art. 80 do EIDO.
Inicialmente, é preciso destacar que o próprio conceito de indisponibilidade é equívoco e polêmico, havendo autores que o associam à irrenunciabilidade de um direito fundamental pelo seu titular, enquanto outros tratam essa característica como sinônima de inalienabilidade, defendendo a inexistência de caráter patrimonial.
Não há consenso, também, quanto à sua indissociabilidade em relação aos direitos fundamentais, já que para alguns doutrinadores a indisponibilidade seria intrínseca à definição de direito fundamental, enquanto, para outros, se situaria no patamar normativo[42].
Apesar da celeuma que inviabiliza a cristalina definição do termo, adere-se ao entendimento de que certos direitos fundamentais apresentam algum grau de disponibilidade, mesmo que em caráter excepcional, ou apenas em relação ao seu exercício.
Postas tais premissas, entende-se que nas ações coletivas voltadas para a tutela de direitos individuais a atuação dos entes e órgãos legitimados só se justifica quando este direito tutelado for homogêneo ou indisponível, em razão da expressa previsão legal contida no Estatuto do Idoso. Perceba-se que, nesse caso, a indisponibilidade só se exige dos direitos individuais puros, pois os homogêneos poderão ser disponíveis (ainda que renunciáveis apenas pelos indivíduos, e não pelo autor coletivo[43]).
Já nas ações individuais – foco do atual questionamento – defende-se que o foro do idoso seja aplicável à tutela de direitos fundamentais, mesmo que disponíveis em algum grau.
Veja-se o exemplo do direito à previdência social. Este é considerando um direito fundamental pelo próprio Estatuto do Idoso (art. 29 e seguintes, compondo o Capítulo VII, do Título II, "Da Previdência Social"). Apesar disso, é forte o entendimento pela sua disponibilidade, considerando que o beneficiário pode transacioná-lo e renunciá-lo sem maiores problemas.
Induvidoso que o foro do idoso será inaplicável à maioria das ações previdenciárias, tendo em vista que estas se submetem à competência da Justiça Federal (art. 109 da CRFB), como elucidado no tópico 5.4. Apesar disso, as ações acidentárias típicas, que discutem direitos da seguridade social decorrentes de acidente de trabalho, são da competência residual da Justiça Comum (art. 109, I, da CRFB), conforme Súmulas 501 do STF e 15 do Superior Tribunal de Justiça. Não há detalhamento da competência territorial pela Constituição Federal nessa hipótese[44], o que abre espaço para a discussão quanto à aplicabilidade do foro do idoso a tais lides.
Antes do advento da inovação legislativa, alguns julgados negavam a aplicação da prerrogativa de foro ao idoso adotando como justificativa o caráter de disponibilidade de aspectos do direito à previdência social[45].
Entende-se que o argumento empregado somente se sustentava diante da literalidade do art. 80 do Estatuto do Idoso, sendo incabível no cenário atual. O art. 53, III, "e" abre novas portas ao deixar de reproduzir a restrição do dispositivo do EIDO em relação aos direitos individuais "indisponíveis".
A referência abrangente contida no novo dispositivo, que alude genericamente aos direitos previstos no respectivo estatuto, engloba também os direitos fundamentais tidos por relativamente disponíveis por parcela da doutrina e jurisprudência, a exemplo do direito à previdência social. Assim, pensa-se que o foro do idoso passa a ser aplicável também a tais lides, quando propostas na Justiça Comum, no exercício da sua competência residual.
Apesar da ampliação do campo de aplicação desta prerrogativa de foro, é preciso esclarecer que o entendimento aqui defendido não permite a inclusão das ações de natureza predominantemente patrimonial. O instituto não se aplica, exempli gratia, aos casos de ação de execução de cheque de idoso, ação sucessória, ação de indenização fundada em contrato de compromisso de compra ou, ainda, ação sobre direito tributário[46], visto que nestas prevalece o caráter patrimonial.
Repita-se que a nota distintiva dos direitos albergados pela prerrogativa de foro do idoso é sua natureza de direito fundamental, o que não é incompatível com um eventual aspecto de patrimonialidade, desde que não prevalecente.
Nessa linha, Letícia de Campos Velhos Martel, citando entendimento de Luís Roberto Barroso, explica que há direitos fundamentais conhecidos pelo seu cunho existencial que são dotados de uma “esfera econômica”, de modo que não haveria contradição em admitir simultaneamente as duas esferas em um mesmo direito fundamental. Em outra passagem, a jurista afirma que muitos direitos fundamentais traduzem-se justamente em valores pecuniários, de modo que seria possível falar também em direitos indisponíveis de natureza patrimonial[47].
Portanto, à guisa de compilação dos argumentos até aqui expostos, defende-se interpretação ampliativa do texto do art. 53, III, "e" do NCPC, no sentido de que a menção à Lei 10.741/03 remete às demandas que instrumentalizam a defesa de todo e qualquer direito fundamental próprio da pessoa idosa, absolutamente indisponível ou não, independentemente de referência explícita ao Estatuto ou previsão pormenorizada do direito na lei, desde que afastada a natureza predominantemente patrimonial.
De se registrar que o legislador não aproveitou o ensejo para incrementar ainda mais a proteção à pessoa idosa, preferindo, lamentavelmente, excluir do campo de incidência da prerrogativa de foro as ações de índole econômica. Mesmo em ações de viés patrimonial, a pessoa idosa apresenta-se muitas vezes como litigante vulnerável, não dispondo de meios para litigar no foro do domicílio do réu. Melhor teria sido estabelecer como regra geral a aplicabilidade da prerrogativa a qualquer ação com partes idosas.
Não se pode ignorar, porém, a barreira trazida no dispositivo. Nessa trilha, a interpretação ora defendida promove a máxima concretização de direitos fundamentais (art. 5º, §1º da CRFB) sem desconhecer os limites semânticos do texto legal, que traz expressa e relevante restrição à aplicação da prerrogativa.
6 – Algumas situações problemáticas
Demonstrado o novo perfil do foro do idoso, resta abordar brevemente algumas questões que serão enfrentadas pelo operador do direito quando da aplicação da nova regra de competência territorial especial.
A primeira delas diz respeito à colisão com outras normas de competência especial de natureza relativa, a exemplo do que ocorre quando uma ação em que pessoa maior de 18 anos pede alimentos em face de pessoa idosa que não reside no mesmo domicílio ou residência do alimentando[48]. Nesse caso, deve prevalecer o foro do idoso (art. 53, III, "e" do NCPC) ou o foro do alimentando (art. 53, II)?
Antes da vigência do CPC/15, a questão era resolvida pela jurisprudência pátria em favor do alimentando, sob a alegação de que a regra do art. 80 do Estatuto do Idoso seria inaplicável ao caso, por não envolver interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis ou homogêneos do réu[49].
A nova feição do foro do idoso, de alcance mais abrangente, exigirá que a questão seja abordada sob ângulo diverso. Ainda que a parcela (alimentos) tenha natureza patrimonial, é nítida sua relação direta com direitos fundamentais enumerados pelo próprio Estatuto em seu art. 3º, já que a dignidade e a subsistência do próprio idoso alimentante podem ser afetadas por ações desse jaez. Além disso, o pedido envolve a análise de aspectos peculiares à condição etária da pessoa idosa, como particularidades relativas às suas relações familiares; à forma de remuneração do idoso, muitas vezes já aposentado; aos gastos diferenciados com saúde em razão de enfermidades típicas da idade, etc. A reunião desses fatores enseja a potencial aplicação da prerrogativa processual do novo art. 53, III, "e" do NCPC.
A saída para situações como essa não é simples. Ordinariamente, a colisão entre regras que estabelecem competências territoriais especiais leva à aplicação do foro comum, sendo devido o ajuizamento da ação no foro do domicílio do réu (no caso, o alimentante idoso).
Entretanto, como as duas normas concretizam valores de especial dignidade, defende-se que a solução deve ser obtida em cada caso, em um juízo de ponderação, a partir da análise da parte mais vulnerável na situação concreta.
Na hipótese da ação de alimentos, a despeito da mudança de prisma, tende-se a manter a prevalência do foro do alimentando mesmo no contexto do CPC/15, pois aquele que pede alimentos costuma enfrentar situação de maior vulnerabilidade em relação ao alimentante, mesmo que este seja idoso.
Vale ressaltar, que, por óbvio, havendo conflito com regra de competência absoluta, esta última deverá prevalecer sobre o foro do idoso, a exemplo do que se dá com o art. 47 do NCPC.
De se destacar que a jurisprudência também privilegia o alimentando nas hipóteses de ação de alimentos cumulada com ação de investigação de paternidade, conforme teor da Súmula nº 1 do Superior Tribunal de Justiça[50], inteligência que se estende a outras ações, a exemplo da cumulação com petição de herança[51].
Nestes casos, porém, o argumento vitorioso é a prevalência do foro especial do alimentando (art. 100, II do CPC/73, atual art. 53, II do CPC/15) em detrimento do foro geral – a que se submete, por exemplo, a ação de investigação de paternidade. O raciocínio não ajuda a resolver a situação ora apreciada, pois nesta ambas as regras de competência são especiais e relativas.
Situação similar ocorrerá quando autor e réu forem idosos. Daniel Amorim Assumpção Neves defende a prevalência do foro do domicílio do réu, posicionando-se pela aplicabilidade da regra geral (foro comum)[52].
Data maxima venia, na linha do que já defendido, ousa-se discordar do ilustre processualista neste ponto. Pensa-se que a solução proposta pelo jurista deve ser subsidiária, adotada apenas caso seja inviável aplicar critério que melhor atente para o caráter tuitivo do instituto.
Primeiro, deve o magistrado se utilizar de critérios psicobiológicos, econômico-financeiros ou sociais para privilegiar o idoso em situação de maior vulnerabilidade (mais idoso, com maior dificuldade de deslocamento, em situação de maior hipossuficiente do ponto de vista econômico-financeiro, etc.). Caso não haja distinção relevante entre os litigantes, aí sim, aplica-se o foro geral, prevalecendo o foro do domicílio do réu.
A terceira situação problemática diz respeito às ações com cumulação objetiva. Havendo diversos pedidos na mesma ação, sendo que alguns não se submetem à aplicação do foro do idoso, onde deverá ser proposta a ação?
Entende-se que cabe ao juízo do local de residência do idoso a competência para apreciação dos demais pedidos, desde que estes não se submetam a regra de competência absoluta. Aplica-se, pois, a mesma lógica da Súmula nº 1 do STJ, prevalecendo o foro especial sobre o comum.
A última questão digna de atenção neste breve estudo é possivelmente a mais complexa e relevante, por ser de ocorrência mais comum. Perquire-se quanto à possibilidade de afastar o foro do idoso quando este prejudicar a celeridade e a eficiência da prestação jurisdicional.
É certo que nem sempre a escolha feita pela pessoa idosa será a mais adequada para a melhor qualidade da prestação jurisdicional. O local da residência do idoso pode ser muito distante daquele em que deverão ser produzidas as provas, fato que poderá retardar e encarecer o processo.
Mantendo o critério adotado na análise das demais situações, considera-se que, mais uma vez, caberá ao juiz ponderar os valores em jogo e, em situações de extrema desproporcionalidade, poderá rejeitar a opção do idoso caso esta seja excessivamente prejudicial à demanda e à parte contrária.
Pode-se imaginar a hipótese de processo ajuizado por idoso que envolva a oitiva de várias testemunhas e a produção de complexa prova pericial em local distante da residência do autor, que, por sua vez, demonstra vigor físico, elevado status social, situação financeira confortável e facilidade de acesso ao foro do domicílio do réu, que é o mesmo local em que as provas deverão ser produzidas.
A prevalência do foro do idoso, no caso, além de dificultar a defesa do réu e complicar, encarecer e atrasar o andamento do feito ao embaralhar notificações e exigir a utilização de cartas precatórias, acabará por prejudicar o próprio reclamante ao retardar o provimento jurisdicional.
A soma destes fatores poderá conformar valor que supera a mera comodidade do idoso, nos casos extraordinários em que sua vulnerabilidade for suficientemente atenuada por circunstâncias fáticas. Conformadas tais condições, pensa-se que restaria excepcionalmente justificada a superação da regra de competência territorial especial.
Conclusão
Antes do advento do NCPC, a aplicabilidade do foro do idoso às lides individuais envolvia polêmica, decorrente da sua previsão legal no art. 80 do Estatuto do Idoso, dispositivo claramente voltada para as ações coletivas.
Verificava-se divergência mesmo no seio da própria corrente que se posicionava pela aplicabilidade à lides individuais desta regra especial de competência, notadamente quando ao regime jurídico a que esta se submetia – se dispositivo ou cogente – e quanto aos direitos tuteláveis por meio das ações submetidas ao foro do idoso.
Este quadro de dissenso minava a celeridade dos feitos em que se pretendia a aplicação da prerrogativa processual e a própria segurança jurídica, gerando debates estéreis travados em exceções de incompetência e preliminares que atrasavam a obtenção de solução efetiva para a lide.
O art. 53, III, "e" do Novo Código de Processo Civil foi inserido com o desiderato de sanar as controvérsias, conferindo maior coesão e organicidade ao sistema processual.
A partir da vigência do novo dispositivo, seu campo de incidência nas lides individuais se torna evidente, ao mesmo tempo em que se esclarece que a previsão do art. 80 do Estatuto do Idoso é dirigido às ações coletivas, em ratificação à posição doutrinária e jurisprudencial que já era majoritária.
Além disso, a regra do NCPC confere nova conformação ao foro do idoso, ampliando sua efetividade ao evidenciar que, nas lides individuais, a competência é do tipo territorial relativa, sendo faculdade do hipossuficiente a utilização ou não da prerrogativa. Do mesmo modo, o local do ajuizamento da ação deverá observar critério mais flexível, baseado na mera residência do idoso, podendo ou não coincidir com seu domicílio.
Por fim, a nova configuração do instituto afasta interpretações restritivas quanto ao alcance da regra, inclusive aquelas que a vinculavam ao rol do art. 79 do Estatuto do Idoso.
A expressão "direito previsto no respectivo estatuto", inserida no art. 53, III, "e" do NCPC com o evidente propósito de limitar sua aplicação, faz alusão às ações voltadas para a tutela do amplo conjunto de direitos fundamentais da pessoa idosa, ainda que dotados de certo caráter não predominante de disponibilidade e patrimonialidade, desde que relacionados à condição etária deste grupo de pessoas.
Não é preciso, pois, que o direito a ser tutelado seja explicitamente referenciado pelo Estatuto, seja no art. 3º, no art. 79 ou qualquer outro. Não se exige, também, que haja previsão pormenorizada do direito na lei. Basta que se trate de direito fundamental próprio da pessoa idosa e sua tutela poderá ser maximizada por meio da adoção do foro do idoso.
Promove-se, assim, o acesso à justiça e o respeito a este grupo populacional crescente em número e importância social, amenizando a desventura de uma sociedade que ainda não aprendeu a valorizar seu próprio futuro.
Pós-graduando em “Direito do Trabalho e Previdenciário na Atualidade” PUC-MG. Especialista em Direito Civil e Processual Civil UCDB-MS.Bacharel em Direito UFPI. Analista Judiciário do TRT da 16 Região
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