Resumo: O presente estudo tem por objetivo analisar a constitucionalidade do exame obrigatório de alcoolemia, utilizando-se do etilômetro. O trabalho evidencia a violência atual no trânsito em que o Brasil vive, com índices assustadores de mortandade. Realiza uma análise sob a luz da Constituição Federal da Lei Federal 11.705/08 que prescreve a obrigatoriedade. Além de expor conflitos entre direitos fundamentais na questão, o direito à vida, à integridade física e à segurança no trânsito, de um lado, e a presunção da inocência de outro. A solução deste conflito demonstra a importância da proteção à vida, integridade física e segurança no trânsito, e consequente constitucionalidade da obrigatoriedade do teste de alcoolemia, que representa um instrumento eficaz para reduzir as mortes causadas por acidente de trânsito.
Palavras-chave: Bafômetro – Constitucionalidade – Direitos Fundamentais – Segurança no trânsito – Presunção de inocência.
Sumário: Resumo. 1. Introdução. 2. Análise da constitucionalidade do exame obrigatório de alcoolemia. 2.1. A violência no trânsito. 2.2. Análise jurídica do exame de alcoolemia. 3. Considerações práticas desta análise. 4. Análise jurisprudencial. 5. Conclusão.
1. Introdução
Atualmente vivemos uma grave crise de segurança no trânsito, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), Lei Federal nº 9.503/97, há mais de 10 (dez) anos em vigência não proporcionou melhorias que evitassem a mortandade de pessoas em razão de acidentes de trânsito.
A Lei Federal nº 11.705/08, comumente chamada de “lei seca”, trouxe ao debate público a questão da embriaguez ao volante, criminalizando tal conduta, com o objetivo de proteger a segurança viária, a vida e a integridade física das pessoas, bens jurídicos, estes, demasiadamente violados pela violência no trânsito atualmente.
A partir de sua promulgação, a “lei seca” foi muito criticada por, ao alterar o CTB, estabelecer que o condutor que se recusar a se submeter ao teste de alcoolemia será aplicada as penalidades e medidas administrrativas como se estivesse dirigindo sob a influência de álcool. Muitos juristas entendem que tal disposição fere o princípio constitucional da presunção de inocência.
Em contraposição, defendemos a constitucionalidade do exame obrigatório de alcoolemia ao condutor que se encontre sob fiscalização, sob pena de não assegurarmos o bem jurídico tutelado pela lei, sem no entanto ser contrário à Constituição Federal.
2. Análise da constitucionalidade do exame obrigatório de alcoolemia
A nossa Carta Magna de 1988 traz em seu art. 5º, inciso LVII, a garantia da presunção de inocência, segundo a qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Tal sentença deve ser prolatada pelo juiz competente em processo penal que assegure o princípio da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, inciso LV) e do devido processo legal (art. 5º, inciso LIV).
Conduzir veículo automotor, na via pública, sob influência de álccol acima da permitida pela lei[1] é uma infração penal, que quando da sua prática autoriza o Estado a punir tal conduta (jus puniendi), pois viola os bens jurídicos da segurança no trânsito, vida e integridade física, que são de suma importância para a sociedade protegê-los.
O condutor de veículo automotor ao ser fiscalizado pela autoridade de trânsito competente[2] encontra-se na fase da persecução penal anterior ao processo. Fase esta, regida pelo princípio do in dubio pro societate, que permite ao Estado buscar de todas as formas legais a verdade real sobre os fatos, possibilitando no caso de dúvidas quanto a materialidade e autoria do crime, o juiz aceitar a denúncia, para que no processo verifique-se a culpabilidade do réu, momento em que passa a vigorar o princípio do in dubio pro reu, que quando restar dúvidas, a interpretação será favorável ao réu.
Estamos diante de um verdadeiro conflito entre direitos fundamentais: de um lado o direito a vida, a integridade física e a segurança no trânsito, e do outro, a presunção de inocência.
Está consagrado em nossa doutrina[3] que nenhum direito fundamental é absoluto. Até mesmo a vida, conforme nos ensina Alexandre de Moraes “o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos”[4], é relativo, já que a Constituição Federal estabelece[5] a pena de morte em caso de guerra declarada.
Quando há este tipo de conflito, como nos ensina Gomes Canotilho[6], a relativização dos direitos fundamentais permite o controle jurídico, baseado na ordem de valores objetiva daqueles.
Esse conflito, pela recente teoria neoconstitucionalista[7], pode ser solucionado pela ponderação. Técnica esta, que pode ser simplificada na operação de balanceamento, utilizando o princípio da proporcionalidade, em que o direito fundamental mais atingido no seu núcleo deve prevalecer sobre aquele não tão atingido no caso concreto.
2.1. A violência no trânsito
Passemos a analisar o caso concreto. No Brasil, o índice de mortes em acidentes de trânsito é alarmante. Tomando por base o ano com a maior mortandade, o de 2007, houve 66.836 mortes[8], o que pode deduzir a trágica notícia de 183 mortes por dia (7,6 por hora).
Até o ano de 2007 o país vivia com uma tendência crescente da mortandade devido a acidentes de trânsito, o que se reverteu em 2008, com o surgimento da Lei Federal nº 11.705/08, quando o índice registrou queda de 15% no número de mortes, passando para 57.116[9]. Apesar de tratar-se de uma análise incipiente, já demonstra o impacto positivo da norma, que reverteu uma tendência crescente de mortes desde o ano 2000[10].
Comparativamente, a taxa média de óbitos por acidentes de trânsito segundo a frota de veículos é consideravelmente menor no estado de São Paulo, que registra 4,7 mortes a cada 10.000 veículos, do que no Maranhão, com 23,2 mortes a cada 10.000 veículos[11]. No ranking os estados do Nordeste e Norte aparecem com as maiores taxas de mortes, enquanto São Paulo, Rio Grande do Sul, Distrito Federal e Minas Gerais, registram as menores.
Isso pode evidenciar uma série de fatores como a qualidade das rodovias e vias urbanas, conscientização dos motoristas, além de uma fiscalização mais rigorosa por parte das autoridades de trânsito, especialmente a Polícia Militar e a Polícia Rodoviária Federal, que a partir de 2008 intensificou de sobremaneira a fiscalização de condutores sob a influência de álcool, com a aquisição de milhares etilômetros, comumente chamados de bafômetros, que verificam a concentração de álcool no ar alveolar expelido pelo examinado.
Paralelamente, no de ano de 2007, os homicídios no Brasil somaram 47.707[12] mortes. O que evidencia mais uma vez a gravidade da questão: mais pessoas morrem por acidente de trânsito (66.836) do que por homicídios. Isso gera grande impacto nas políticas públicas de segurança e criminal, fazendo-se necessárias medidas urgentes para que o Estado consiga proteger o bem jurídico mais importante, a vida.
2.2. Análise jurídica do exame de alcoolemia
Agora analisando os fundamentos de direito, o art. 5º, inciso II, de nossa Carta Magna enuncia o princípio da legalidade: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei”. A Lei Federal nº 11.705/08 alterou o CTB, prescrevendo a obrigatoriedade do exame de alcoolemia, sendo que em caso de recusa a sanção a ser aplicada é a do art. 165, do mesmo código, isto é, multa 5 (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses, além da medida administrativa de retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação. Tal sanção equipara-se a aplicada ao condutor que realiza o exame de alcoolemia, verificando-se a influência do álcool.
É importante ressaltar que a penalidade imposta pelo §3º do art. 277 do CTB para quem recusar a se submeter ao exame de alcoolemia difere-se em sua natureza, da imposta pelo art. 165, do mesmo código, quando o condutor dirigir sob a influência de álcool. Na primeira, o objetivo do dispositivo é fazer com que o condutor realize o exame, sob a luz do princípio da legalidade; de nada servirá uma lei, se esta não prever uma sanção em caso de seu descumprimento. Já na segunda, visa repreender a pessoa que dirige sob a influência de álcool com uma penalidade.
Alguns doutrinadores, entre eles Luiz Flávio Gomes[13], entendem que este dispositivo legal fere a garantia da presunção de inocência, uma vez que a pessoa não pode ser compelida a produzir prova contra si mesma.
Entretando, Alexandre de Moraes ensina que “os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5.° da Constituição Federal, não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito”. Assim, ninguém pode alegar a garantia da presunção de inocência para impedir que o Estado descubra a verdade real dos fatos, já que, como citado anteriormente, nesta fase pré-processual, vigora o princípio do in dubio pro societate, sendo, portanto, do maior interesse de toda a sociedade verificar se a conduta de uma pessoa é criminosa ou não.
A sociedade brasileira não suporta mais tanta violência no trânsito, tantas mortes. Segundo estudos[14], no período noturno, cerca 76% dos acidentes de trânsitos ocorrem direta ou indiretamente por influência do álcool.
O povo, por meio de seus representantes no Congresso Nacional, aprovou a “lei seca”, prevendo a obrigatoriedade do exame de alcoolemia por meio do etilômetro, porque acredita na sua importância para reduzir a violência no trânsito.
Assim, na solução do conflito entre os direitos fundamentais em questão, utilizando-se do princípio da proporcionalidade, não resta dúvida ao se afirmar que impera o direito à vida, à integridade física e à segurança no trânsito, já que tais direitos são os que mais foram atingidos em seu núcleo com tamanha mortandade.
3. Considerações práticas desta análise
É previsível que alguns critiquem esta análise com argumentações genéricas e infundadas de retorno ao “Estado Policial”, aos tempos da ditadura, quando o Estado fazia o que queria e não restavam sanções aos abusos.
No entanto, não concordamos, em hipótese alguma, com o retorno às práticas da ditadura militar. Defendemos um Estado Democrático de Direito, em que suas Instituições, entre elas as políciais, atuem em conformidade com a lei e o Direito.
Nossa análise evidenciou os fundamentos de fato e de direito que permitem concluir que a obrigatoriedade do exame de alcoolemia, prescrita na Lei Federal nº 11.705/08, é constitucional, além de ser um instrumento eficaz de proteção à vida.
Quando um condutor estiver sob a fiscalização de trânsito, que for suspeito de dirigir sob a influência de álcool, será submetido ao exame de alcoolemia[15]. Nenhum condutor será submetido arbitrariamente ao teste, somente pela vontade da autoridade de trânsito, sendo necessário a suspeita de estar sob a influência de álcool para ser realizado o exame. A autoridade de trânsito avaliará, conforme sua experiência profissional, se o condutor apresenta sinais característicos de uma pessoa sob a influência de álcool; sendo que, em caso positivo, submeterá o condutor ao exame.
No caso de recusa a se submeter ao teste, será penalizado na forma do art. 165, do CTB, além de ser conduzido ao Distrito Policial, para deliberação da autoridade policial, que expedirá requisição para exame pericial no Instituto Médico Legal (IML). Neste exame, que pode ser o laboratorial (coleta de sangue), que novamente pode ser prejudicado pela recusa do condutor, ou o clínico. Perícia esta, realizada por um médico que atestará a influência de álcool, conforme os notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados.
É importante salientar que não é permitido que a autoridade de trânsito obrigue coercitivamente o condutor a realizar o teste do etilômetro. Entretanto, deverá cientificar o condutor das penalidades que sofrerá ao recusar submeter-se ao exame.
Quando da recusa ao exame de alcoolemia, utilizando-se do etilômetro, o exame pericial no IML é de suma importância para verificar se o condutor está ou não praticando o crime de embriaguez ao volante, previsto no art. 306, do CTB: “conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”, sendo que em seu parágrafo único estabelece que o Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para a caracterização do crime. Assim, surgiu o Decreto nº 6.488, de 19 de junho de 2008, que em seu art. 2º, inciso II, trouxe a equivalência para o exame realizado com o etilômetro, sendo necessário concentração igual ou superior de 3 (três) décimos de miligrama de álcool por litro de ar expelido dos pulmões.
No caso de o médico perito ao realizar o exame clínico do condutor, atestar somente que ele está alcoolizado, restará somente a infração administrativa do art. 165, do CTB; já no caso de ele estar embriagado, além da infração administrativa, haverá o crime do art. 306, do CTB.
4. Análise jurisprudencial
Quando a Lei Federal nº 11.705/08 foi publicada, ínumeras pessoas impetraram habeas corpus preventivo, objetivando um salvo conduto para não se submeter ao exame de alcoolemia, além de não sofrer as penalidades impostas por sua recusa. Acontece que em alguns poucos casos Tribunais concederam o referido salvo conduto, no entanto a esmagadora maioria das decisões foram contrárias, inclusive, a do Ministro Joaquim Barbosa do Supremo Tribunal Federal[16]. Em seu voto, o Ministro considera que o habeas corpus não é o instrumento adequado, além de tal pedido não ofender a liberdade de locomoção. E atualmente, tal corrente não se sustenta.
O Superior Tribunal de Justiça entende que o crime de embriaguez ao volante, art. 306 do CTB, pode ser atestado por diversas formas permitidas pelo Direito, entre elas a testemunhal. Nas palavras do Ministro Felix Fischer[17] é “um exagero formal pretender que a embriaguez possa ser atestada apenas por via de exame técnico quando ela, em muitas situações, é facilmente perceptível, a uma observação perfunctória, exteriorizada por sinais inequívocos, como a dificuldade de se expressar e deambular, o odor característico, a sonolência, etc…”. Superando assim, a ultrapassada tese de que o único meio de prova legítima para se atestar a embriaguez seria o exame laboratorial.
5. Conclusão
A violência no trânsito no Brasil tornou-se insustentável, sendo necessária a adoção de medidas eficazes para reduzir o índice de mortandade nos acidentes de trânsito.
Atualmente, o exame de alcoolemia realizado por etilômetro na fiscalização de trânsito mostra-se um importante recurso para a diminuição no índice de mortes em acidentes de trânsito.
Não nos faltam exemplos de como dirigir sob a influência de álcool pode resultar em verdadeiras tragédias. A obrigatoriedade do exame de alcoolemia não é somente um instrumento jurídico, mas um elemento pacificador de uma sociedade que vive sob a vigência de uma violência excessivamente desmedida no trânsito.
A Lei Federal 11.705/08 alterou o CTB trazendo um importante instrumento para prevenir a ocorrência de vítimas fatais, a obrigatoriedade do exame de alcoolemia aos condutores fiscalizados.
Após a edição dessa lei, surgiram diversos questionamentos acerca da constitucionalidade da obrigação. Alguns doutrinadores chegaram a defender a inconstitucionalidade do dispositivo legal por contrariar o princípio da presunção da inocência. Em uma análise mais profunda da questão, conflitando os direitos fundamentais no caso concreto, expôs a deficiência dessa tese.
A obrigatoriedade do exame de alcoolemia está em congruência com nossa Carta Magna, ao defender de sobremaneira o direito à vida, à integridade física e à segurança no trânsito.
2º Tenente da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Instrutor da Escola Superior de Soldados e Tutor da rede de Ensino à Distância da Secretaria Nacional de Segurança Pública. Bacharel em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco. Acadêmico de Direito pela Universidade Católica de Santos
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