Resumo: A constitucionalização do Direito Privado e suas repercussões nas relações contratuais. De tal sorte, o presente estudo pretende abordar a evolução do Direito Privado ao longo do Século XX, bem como a influência das teorias pós-positivistas na criação de um Direito Civil Constitucional, somando-se a análise de preceitos da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002, relativos à promoção da dignidade da pessoa humana e da livre iniciativa, finalizando com a avaliação das repercussões geradas nos contratos pela aplicação desse novo viés interepretativo.[1]
Palavras-chave: Constitucionalização. Direito Privado. Contratos. Autonomia Privada. Cláusulas Gerais.
Sumário: Introdução. 1. De Kelsen a Bobbio – as teorias pós-positivistas como fator de mudança de paradigma interpretativo do direito privado. 2. A constitucionalização do direito civil – da Constituição Brasileira de 1988 ao Código Civil de 2002. 3. As mudanças nas relações contratuais – os princípios contratuais e sua interpretação. Conclusão. Referências.
Introdução
A regulação operada no Direito Privado, do final do século XIX e primeira metade do século XX, sofreu grande influência dos três princípios basilares difundidos pela Revolução Frances, a saber, liberdade, igualdade e fraternidade, os quais tiveram grande reflexo na formação axiológica dos Códigos Privados.
No Brasil, as relações obrigacionais, que são o principal foco do presente estudo, tinham como fonte legislativa o Código Civil de 1916, e as doutrinas baseadas na escola francesa dirigiam-se unicamente à sua interpretação literal, sem contemplar a complexidade de conteúdo e a evolução dos atos e dos negócios jurídicos[2].
Essa escola hermenêutica tinha clara influência da teoria pura do direito de Kelsen, a qual via na norma um princípio estático, que não era passível de sofrer influência axiológica, o que limitava não só a sua interpretação, mas também a sua aplicabilidade à realidade contratual.
Após a segunda grande guerra mundial, novos doutrinadores passaram a questionar a teoria pura de Kelsen, mudando a perspectiva interpretativa da norma, pela valorização da hermenêutica teleológica e finalística, baseados na evolução dos fatos sociais e na aplicação das normas, a exemplo de Noberto Bobbio.
As teorias pós-positivistas deram margem às chamadas constituições pós-liberais[3] surgidas principalmente após a edição da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948[4], que tiveram por base o respeito à dignidade humana, privilégio da liberdade individual, a proteção à propriedade privada, da livre iniciativa e da livre concorrência.
As constituição pós-liberais tinham como meta principal a busca de uma sociedade livre, justa e solidária, mudando a conotação repressiva para uma atitude promocional do Estado, conforme avalia NALIN:
“O papel intervencionista no âmbito diretivo das empresas que fazem a dominação do mercado relevante se localiza num contexto de atual função do Estado, que ao invés de reprimir, estimula. Da leitura geral das obras de BOBBIO, Tércio Sampaio FERRAZ JUNIOR descreve que, além da intervenção do ‘desencorajamento’, ou seja desestímulo às condutas indesejadas, o Estado moderno atua no ‘encorajamento’, através de um ordenamento promocional, finalizando por ‘sanções positivas’ ou ‘premiais’ […]” (2008,p. 35).
De outro vértice, evolução das relações contratuais, suas bases negociais, sua condição de validade, interpretação e aperfeiçoamento, têm relação íntima com os processos econômicos que vigoram na sociedade na qual se inserem, de forma que a contextualização econômica influencia a evolução das regras contratuais, bem como cria novas perspectivas negociais.
A partir da adoção de princípios axiológicos na interpretação das regras contratuais, e com a aproximação do Direito Privado do Direito Constitucional, houve a ruptura do princípio da autonomia absoluta das partes ao celebrar o contrato, surgindo novas condições para validade e eficácia das obrigações contraídas pelas partes, tais como um comportamento leal e ético no estabelecimento das obrigações, com a necessidade de se observar a boa-fé objetiva e evitar o abuso de direito, atender a uma função social, ou seja, vislumbrar que mesmo em negócios jurídicos entre particulares, há reflexos à coletividade.
De tal sorte, o presente estudo pretende demonstrar qual a evolução do direito privado ao longo do Século XX, bem como a influência das teorias pós-positivistas na criação de um direito civil constitucional com a análise dos preceitos encartados na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002, finalizando com a avaliação das repercussões geradas nos contratos pela aplicação desse novo viés interpretativo.
1 De kelsen a bobbio – as teorias pós-positivistas como fator de mudança do paradigma interpretativo do direito privado[5]
O Código Civil de 1916 foi elaborado, aprovado e exercido, em grande parte de sua vigência, sob a égide interpretativa ditada pela teoria pura do direito de Kelsen, que não permitia ao interprete buscar o conteúdo valorativo da norma, o que comprometia a evolução dos negócios jurídicos e sua adequação à realidade.
A Revolução Francesa e o Estado Liberal, baseado nas idéias legislativas propostas por Napoleão, tiveram na “autonomia da vontade”[6] a principal máxima para “proteção” das relações jurídicas privadas, baseado no princípio da igualdade formal, contextualizado no tripé liberté, égulité, fraternite, fonte ideológica da declaração dos Direitos do Homem e do cidadão de 1948.
Paulo NALIN (2008, p. 42-43) sintetiza o contexto histórico no qual foi concebido o Código Civil de 1916:
“A evolução constitucional brasileira do século passado, refletida nos valores jurídicos, encartados pelo Código Civil de 1916, somente fez reproduzir a história da ascensão burguesa européia, de forma marcante, pela edição do Code, que colocava, no centro das suas atenções, a propriedade imobiliária e o contrato, como instrumento de acesso daquela classe emergente àquele valor jurídico supremo (propriedade imobiliária), em detrimento de uma decadente aristocracia. No Brasil monárquico, repetindo a história européia, os grandes proprietários, para sobreviver, podiam (legitimamente) vender seus latifúndios aos destituídos de títulos de nobreza, não obstante a concentração imobiliária ainda ser estigma em nosso perfil econômico”.
Porém, a Revolução Industrial submeteu o princípio da igualdade formal à liberdade absoluta, que na busca irrefreada pelo lucro, deixou de lado os ideais de fraternidade, escravizando pelos instrumentos jurídicos de contrato, aqueles que não tinham condições financeiras ou intelectuais para discutir suas cláusulas, condição esta de subjugação material que veio a ser reforçada pelo papel abstencionista do Estado..
Em 1934, Hans Kelsen inaugurava um novo período na história do Direito, ao publicar a Teoria Pura do Direito, que se tornou um clássico da escola juspositivista, cujo escopo era estabelecer, metodologicamente, o estudo autonômo da Ciência Jurídica, tendo como objeto de estudo precípuo a norma jurídica, destacada da Moral, da Justiça, ou mesmo da interpretação da própria norma por vias hermenêuticas tendentes a lhe desviar a aplicabilidade para uma prospecção de conteúdo, valor ou finalidade, divergindo, por evidente, das teorias apregoadas, por exemplo, por Norberto Bobbio. Chaïm PERELMANN (1998, p. 91-92) faz uma clara exposição sobre o positivismo jurídico de Kelsen:
“O positivismo jurídico, oposto a qualquer teoria do direito natural, associado ao positivismo filosófico, negador de qualquer filosofia de valores, pois a ideologia democrática dominante no Ocidente até o fim da Segunda Guerra Mundial. Elmina do direito qualquer referência à idéia de justiça e, da filosofia, qualquer referência a valores, procurando modelar tanto o direito como a filosofia pela ciências, consideradas objetivas e impessoais e das quais compete elminar tudo o que é subjetivo, portanto arbitrário.
O positivismo de Hans Kelsen e de sua escola apresenta o direito como um sisitema hierarquizado de normas, que difere de um sistema puramente formal pelo fato de a norma inferior não ser deduzida da norma superior mediante transformações puramente formais, como na lógica ou nas matemáticas, mas mediante a determinação das condições segundo segundo as quais poderá ser autorizada a criação de normas inferiores, dependendo a eficácia do sistema da adesão pressuposta a uma norma fundamental, a Grundnorm, que será a Constituicão original
Contrariamente a um sistema formal, que é puramente estático, o direito será concebido com um sistema dinâmico, a norma superior que determina o quadro em que aquele a quem é conferida a autoridade de exercer um poder legal, legislativo, executivo ou judiciário pode escolher livremente uma linha de conduta, desde que não saia dos limites fixados pela norma superior. […]
A teoria pura do direito, tal como Kelsen a elaborou, deveria, para permanecer científica, eliminar de seu campo de investigação qualquer referência a juízos de valor, à idéia da justiça, ao direito natural, e a tudo o que concerne à moral, à política ou à ideologia. A ciência do direito se preocupará com condições de legalidade, de validade dos atos jurídicos, com sua conformidade às normas que os autorizam. Kelsen reconhciam, sem dúvida, que o juiz não é um mero autômato, na medida em que as leis que aplica, permitindo diversas interpretações, dão-lhe certa latitude, mas a escolha entre essas interpretações depende, não da ciência do direito nem do conhecimento, mas de uma vontade livre e arbitrária, que uma pesquisa científicak, que ser quer objetiva e alheia a qualquer juízo de valor, não pode guiar de modo algum.”
Em contraposição, Norberto Bobbio, ilustre filósofo italiano do Direito, publica, especialmente no período compreendido entre 1969 e 1977, artigos que em 1977 seriam compilados na coletânea “Da Estrutura à Função”. Comentando a obra e estabelecendo paralelo com a visão kelseniana, Parodi (2009, p. 26-29) resume as lições do mestre italiano, e aduzindo a relevantes autores do cenário nacional, também contextualiza a importância desse marco teórico para a conceituação de “função social”, expressão que se tornou sinônimo do contemporâneo método hermenêutico:
“Bobbio desafia a visão kelseniana de um ordenamento coativo, passando ao entendimento do Direito promocional, que não elide a concepção da juridicidade como um meio coativo, mas o expande para um meio de estímulo e promoção das boas condutas, direcionando os comportamentos para determinados objetivos preestabelecidos, cuja obtenção pode ser prospectada de técnica legiferante que coaduna com as sanções positivas e os incentivos.
E afirma que a função do Direito – em relação à sociedade como totalidade ou em relação aos indivíduos que dela fazem parte – não teria sentido revolucionário, se o termo “Direito” for entendido como meio de coação, adquirindo sentido apenas se pretende falar das mudanças sociais, que, na conformidade do mecanismo podem ser produzidas, e, portanto, dos conteúdos políticos, econômicos e sociais que, um a um, possam vir a ser reduzidos àquela forma. Eis aí a função social em sentido amplo, podendo se revestir de seu aspecto – ou fim – social estrito, econômico, político, dentre outras expressões (e assim, elide qualquer argumento que vise a desmerecer a existência de uma função social da empresa, como se a mesma existisse unicamente com a missão de dar lucro para o empreendedor, visto que a concepção da função social parte do gênero, que em si abarca a espécie social estrita e a econômica). E assevera, ainda, o autor que as modificações funcionais e estruturais devem ser, igualmente, alimentadas, de maneira proporcional.
A função social é um mecanismo interpretativo pré e/ou pós-efetividade, em sentido revisional, modificando seu conteúdo classicamente conhecido ou limitando seu campo de atuação. Busca uma nova paradigmática hermenêutica, promovendo uma travessia dos significados modernos para os significantes contemporâneos, ancorando no solidarismo ético. Ensina Paulo Nalin (2001, p. 125-200) que o solidarismo é um espírito, um princípio de justiça, e não um simples regramento. Generalismo consistente, que permite, inclusive, o tutelamento das questões genéticas; a dignidade da pessoa humana é um princípio fonte, que influencia, de modo irrevogável, a todas as relações particulares (a este respeito Carlyle Popp, O Direito em Movimento. Curitiba : Juruá, 2007. p. 62). Do personalismo ético emanam novos princípios orientadores das relações privadas, a saber, a Boa-Fé (objetiva) Negocial, o Equilíbrio das Prestações, a Transparência, entre outros. Tudo se resumindo na solidariedade, fruto do espírito ético, apregoado nesta era. Novos princípios? Nem tanto. Mais valorizados e explicitados no ordenamento? Sem dúvida.
A intervenção estatal interessa à sociedade, para que sejam regulados os limites básicos das relações, em prol de que o equilíbrio material e moral entre as pessoas seja preservado, visando ao atingimento do ideário humanista: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos. Estimula-se o comportamento solidário, ajustado o conteúdo dos institutos à sua finalidade constitucional. O contrato deixa de ser um mecanismo de troca, para significar um instrumento de consolidação socialmente responsável de direitos materiais, o que equivale a dizer que a transação é efetuada sem lesão financeira ou moral para ambas as partes, desequilíbrio que refletiria, inevitavelmente, em toda a comunidade, a qual é natural e mecanicamente interdependente.
Solidarismo não é perfumaria, servindo a Carta Constitucional como patamar teórico das relações privadas, donde se extraem os valores que embalam o sistema jurídico. Para a dignificação contratual do homem, é eleito o valor da solidariedade, como fio condutor que refunda um contrato. A nova paradigmática atinge a todos os conceitos jurídicos, inclusive os clássicos, impondo-lhes nova leitura.”
O papel mais relevante dessa mudança de concepção foi o surgimento das chamadas constituições pós-liberais, que alteram o papel do Estado, saindo de sua cômoda posição protetivo-repressiva para a promocional, a exemplo da Constituição Mexicana de 1917 e a de Weimar de 1919, que romperam o modelo liberal de constituição que prevalecia na Europa e instituíram o Estado Social[7].
O Estado promocional passa a agir por meio de medidas de encorajamento e desencorajamento, onde se considera como momento inicial, para a primeira, a ameaça, enquanto para a segunda, uma promessa. “Enquanto a ameaça da autoridade legítima faz surgir, para o destinatário, a obrigação de comportar-se de um certo modo, a promessa implica, por parte do promitente, a obrigação de mantê-la” (BOBBIO, p. 18).
Nalin (p. 42-43) faz uma paralelo entre o Estado Liberal e o Estado Social, este adotado pela Constituição Brasileira de 1988:
“A ideologia do Estado Social distancia-se daquela outra, do Estado Liberal, sem retalhar as conquistas da liberdade (contratual plena) e da igualdade (formal), todavia funcionalizando-as, para centralizar a atenções no próprio ser e não mais no ter, com a introdução de uma cláusula geral de solidariedade social, indiscutivelmente contida em nossa Carta. Esta dobra gigantesca impõe a tarefa de releitura do Código Civil, por intermédio da ideologia constitucional, em difusão. A autenticidade do atual desenho social de nossa Carta se faz com a sempre presente circunscrição dos direitos individuais, nela contidos, a um propósito de justiça social, conforme define seu art. 170, caput.
A cláusula da justiça Social, ensina Frédérique Ferrand, é a notável presença de um Estado Social na Alemanha, pois “Le caractere social de L’État allemand este affirmé dans l’art. 20, al. 1er GG. […]. Par État, la Loi fondamentale entend um État qui assure um minimum de sécurité et de protection sociale et poursuit notamment des objectifs de justice sociale”.
O princípio da hierarquia constitucional mantém a unidade do sistema jurídico, em seus mais diversos (micro) ordenamentos, servindo a Constituição e leis constitucionais (v.g. disposições transitórias, emendas etc.) de fonte ordenadora e reguladora das inúmeras normas infraconstitucionais, mantendo, em torno de si, a unidade do sistema como um todo.”
Portanto, no ordenamento jurídico brasileiro, foi a Constituição Federal de 1988 que marcou a passagem definitiva do Estado Liberal para o Estado Social e, muito embora o contrato já tivesse na jurisprudência uma flexibilização de suas cláusulas, foi após a edição da Carta Federal que o ordenamento privado passou a dar maior relevância para a visão constitucional do direito privado, com sua conseqüente influência na interpretação das cláusulas contratuais, deslocando o foco da norma do patrimônio econômico para a proteção do sujeito de direitos em si considerado.
2 A constitucionalização do direito civil – da constituição federal de 1988 ao código civil de 2002
Como se viu no capítulo anterior, no Brasil, foi somente após a Constituição Federal de 1988 que se viu, verdadeiramente, a mudança do Estado Liberal para o Estado Social, iniciando-se a partir daí a ruptura dos princípios contratuais rígidos, baseados no positivismo de Kelsen.
A Constituição de 1988 marcou também a definitiva transição entre o Estado protetivo-repressivo e o Estado promocional, pois trouxe em seu contexto diretrizes e princípios que definitivamente demonstram que não há mais que se falar em abstencionismo estatal.
Dessa forma, há na Carta Magna diversas previsões relativas ao Direito Privado, alterando significativamente a liberdade que tinham as partes ao estabelecer normas individuais em um contrato. Nesse sentido, leciona Giovanni E. Nanni (2001, p. 165-166):
“A partir do advento da Constituição Federal de 1988, a liberdade de firmar normas individuais, isto é, negócios jurídicos, foi modificada, ou, em termos mais precisos, a autonomia privada das pessoas sofreu interferência.
E a limitação da autonomia privada, na seara do direito obrigacional é inferida na liberdade contratual, na possibilidade de intervenção econômica do Estado etc., evitando-se o individualismo que marca o Direito Civil tradicional, conduzindo-se a um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil que é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I), mediante os fundamentos da República e do Estado Democrático de Direito: a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (CF, art. 1º, II, III, e IV).
Essas noções conduzem ao escopo do Estado Democrático de Direito direcionado ao Direito Privado no senso da justiça social e distributiva, prestigiando a liberdade, a justiça, a solidariedade e a igualdade que são necessariamente pilares estruturais das relações jurídicas.
Independentemente da tradicional discussão sobre as fontes das obrigações, o que se constata é que a lei, o contrato, o ato ilícito, ou qualquer outro meio idôneo a produzir uma obrigação devem receber uma nova interpretação consonante ao Texto Constitucional, buscando-se sempre preservar a liberdade e a igualdade”.
Assim, a Constituição Federal de 1988 tratou de matérias que notadamente dizem respeito à esfera privada, tais como a livre iniciativa, livre concorrência e a valorização do trabalho (CF, 1º IV, e 170), porém, sempre em consonância com a importância do indivíduo, na relação com sua dignidade (CF, 1º, III).
O estado interfere diretamente na autonomia privada (melhor denominação da autonomia da vontade, como explicado anteriormente), impondo-lhe limites objetivos, como se vê das seguintes observações de NANNI (2001, p. 180-181):
“É cabível a advertência de que o art. 41 da Constituição italiana assegura a livre iniciativa econômica privada, de forma similar aos citados artigos da Lei suprema Brasileira, explicitando assim a sintonia de pensamento ao que se expõe nessa passagem.
Expõe ainda BIANCA, no que tange à influência da Constituição na autonomia privada, asseverando que como toda liberdade, mesmo a negocial, insere-se em um contexto de valores constitucionais hierarquicamente ordenados. Em particular, a evolução em senso social dos direitos fundamentais tende a privilegiar a liberdade individual a solidariedade social. A autonomia privada, portanto, pode e deve ser controlada para garantir relações justas. E, concluindo o seu pensamento, a liberdade negocial permanece de qualquer maneira um valor constitucional e as suas limitações devem precisamente ser socialmente justificadas resolvendo-se de outra forma na lesão de um direito fundamental da pessoa.
Por conseguinte, nota-se aquilo que é mais relevante na autonomia privada quando identificável na Constituição, a livre iniciativa e o respeito à dignidade da pessoa humana, inferindo-se a indispensável utilidade do direito civil constitucional nas apreciações das relações jurídicas privadas.
A consagração constitucional da livre iniciativa, instrumentaliza a autonomia privada que pode sofrer maiores ou menores restrições e intervenções no campo do direito civil.
Assegura, essencialmente no campo obrigacional, a liberdade contratual, em que os outros dispositivos da própria Constituição Federal e da legislação infraconstitucional vão trazer limitações a essa liberdade de contratar.
Dessa forma, as limitações impostas à livre iniciativa atingem também a autonomia privada, face à relação existente entre ambas. Essas limitações viabilizam no direito das obrigações, além do próprio poder de iniciativa, as interferências admitidas nos negócios em decorrência da autonomia privada, como, por exemplo, negócios contrários à boa-fé, a resolução ou adequação dos contratos por onerosidade excessiva, a lesão, o enriquecimento sem causa etc.
E as limitações existentes tanto com a relação à livre iniciativa, a autonomia privada ou à liberdade contratual refletem exatamente a aversão, dentre outros aspectos, ao individualismo ou ao voluntarismo a que aludimos no presente trabalho. A liberdade total gera o desequilíbrio e cria a possibilidade de prevalência da vontade individual, razão por que a legislação institui limitações ao âmbito de atuação das partes, à liberdade de firmar normas individuais, constituindo então a chamada autonomia privada. Isso tudo, sem olvidar-se da função social do contrato, eis que o contrato deve ser um meio destinado a uma função digna e social, não preponderando a sua instituição para fins meramente individuais e desproporcionais. As limitações não negam mas sim, prestigiam a autonomia privada.”
Vale lembrar que entre a Constituição de 1988 e o Código Civil de 2002 houve uma espécie de vácuo legislativo em matéria privada, sendo que o Código do Consumidor de 1990 teve relevante papel na formação jurisprudencial, destacando-se nesse período movimentos como o Direito Alternativo, o qual introduz a equidade nos julgamentos e, mais recentemente, o chamado ativismo judicial, que permite ao juiz a utilização de Princípios Gerais de Direito na subsunção do fato à norma [8].
Muito embora não houvesse previsão no Código Civil de 1916 que amparasse essa nova visão do Direito, a Constituição já podia ser utilizada como argumento para aplicação de regras mais flexíveis ao Direito Privado.
Neste sentido, salutar se faz a citação do entendimento de Paulo Luís Netp LOBO (1995, p. 44):
“Talvez uma das maiores características do contrato, na atualidade, seja o crescimento do princípio da equivalência das prestações. Este princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis. O que interessa não é mais a exigência cega de cumprimento do contrato da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e onerosidade excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária.”
O mencionado princípio da equivalência das prestações citado por LOBO, tinha como característica a preservação da base objetiva do contrato, segundo a qual a parte não poderia se obrigar por aquilo que no decorrer das prestações pudesse ser corrompido por imposições econômicas insustentáveis, como, por exemplo, a alteração abrupta da taxa de câmbio decorrência da adoção de uma banda cambial flutuante, como a ocorrida em 1999.
A defesa dos agentes financeiros à época baseava-se na inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor à aquisição de capital de giro e também na máxima da pacta sunt servanda, segundo a qual não poderia haver intervenção estatal no estipulado pelas partes por força da autonomia da vontade, além de que foram igualmente submetidas às taxas cambiais impostas pela flutuação do câmbio, eis que buscaram capital no exterior para repassar aos mutuários (Resolução 63 do Banco Central do Brasil – autorizava os agentes financeiros nacionais e estrangeiros com filial no Brasil a buscar recursos no exterior em dólar e repassar aos mutuários atrelado à taxa de câmbio).
Nesse caso, a solução inicial adotada pela jurisprudência foi o reequilíbrio das obrigações, pela substituição do dólar pelo INPC como fator de correção, com base na cláusula rebus sic standibus[9], porém, isso se alterou pela orientação do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de dividir o prejuízo entre as partes envolvidas nesse tipo de contrato (empréstimo lastreado no dólar)[10].
Em que pese o fator controverso do caso em análise, é possível se vislumbrar um arremedo da aplicação do princípio da equidade (ou razoabilidade e proporcionalidade), e a tentativa que o julgador de buscar um amparo constitucional para a solução do debate (muito embora não o tenha feito expressamente).
Veja-se, portanto, que já havia mesmo antes do advento do vigente Código Civil, uma construção legislativa baseada em fatos (mesmo que deturpados no caso antes mencionado[11]), ou mesmo em Princípios Gerais do Direito, o que também reflete uma teoria pós-positivista, in caso Teoria Estruturante do Direito, de Friedrich Muller (2007, p. 148-149), que assim se resume:
“Em oposição a esse mito a teoria estruturante do direito desenvolveu desde meados dos anos 60 uma concepção nova, pós-positivista da teoria do direito: a norma não está já contida no código legal. Este contém apenas formas preliminares, os textos das normas. Eles se diferenciam sistematicamente da norma jurídica, que deve ser primeiramente produzida em cada processo individual de decisão jurídica, i.e., “trazida para fora” [hervorgebracht]. Além disso o âmbito da norma [Normbereich] pertence constitutivamente a ela. A “norma jurídica”se transforma assim em um conceito complexo, composto de programa da norma e de âmbito da norma. E “atividade concretizante” não significa mais tornar mais concreta uma norma jurídica genérica, que já estaria contida no código legal, mas significa, a partir de uma ótica e uma reflexão realistas, construção da norma jurídica no caso decisório individual, sendo que os elementos do trabalho textual se tornam cada vez “mais concretos”, de uma fase a outra. Isso dinamiza ao mesmo tempo o trabalho dos juristas no eixo norma-caso, apreende esse trabalho de modo realista do caso e textos das normas na codificação, textos do programa da norma e do âmbito da norma, texto da norma jurídica e da norma decisória ( a parte dispositiva da decisão). Mas a dinamização próxima à realidade apreende também o eixo-norma-realidade: o âmbito da norma co-constitui a norma jurídica. Ele é desenvolvida a partir do âmbito da coisa [Sachbereich] e do âmbito do caso, i.e., diferenciado e operacionalizado. Além disso, os elementos de trabalho são hierarquizados: no caso do conflito entre eles, impõe-se por razões ligadas à democracia ou ao Estado de Direito os dados lingüísticos; não deve existir nenhuma “força normativa do fático” (Georg Jellinek). Em casos de conflito metodológico entre os elementos individuais da concretização temos à disposição um catálogo de regras de preferência. O primado cabe aqui grosso modo aos respectivos argumentos mais próximos do texto da norma.”
Foi neste contexto social que, depois de quase 30 (trinta) anos de tramitação no Congresso[12], foi aprovado o Código Civil de 2002 (Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002), o qual teve como principais características a unificação do Direito das Obrigações e a adoção da técnica das cláusulas gerais (ou abertas), ao lado da técnica regulamentar, como resultado de um processo de socialização das relações patrimoniais (TEPEDINO, 2006, P. 6).
Cabe aqui destacar a exortação feita por Nanni pela aprovação do referido Código Civil:
“Em nosso firme entendimento, a maior contribuição para essa evolução seria a aprovação do Projeto de Código Civil, pois entrando em vigor, ter-se-ia um vasto leque de inovações que impingiriam a todas as pessoas o resultado daqueles conceitos clássicos do atual Código, muitos dos quais já envelhecidos, pois a atual lei civil foi baseada numa sociedade completamente diferente da de agora.
O projeto de Código Civil, cuja comissão foi presidida pelo Professor Miguel REALE, é marcado pela busca do justo e do razoável, em prol da ampla proteção ao cidadão, baseado, segundo o próprio Miguel REALE, nos princípios de socialidade, eticidade e operabilidade.
Embora seja por muitos ignorado, o Projeto de Código Civil é permeado de importantes inovações que indubitavelmente instituíram maior proteção aos sujeitos seja na esfera individual, pessoal, familiar, negocial, patrimonial etc.
O maior reflexo do novo texto civil seria na autonomia privada, como expusemos anteriormente. “Talvez as mais profundas alterações ocorram no campo da autonomia privada das pessoas, interferindo, quando necessário, na liberdade negocial, no seu poder de criar normas individuais ou ainda no próprio cumprimento dos negócios firmados em virtude dessa autonomia, para atender a interesses que mereçam tutela, voltados para o âmbito do social, do adequado, do razoável e do justo.
Por isso é tão importante frisar o avanço que representa a assimilação do conceito de autonomia privada, posto que as novas posturas trazem imediato reflexo em sua circunferência.
E não são poucas as figuras que o Projeto de Código Civil traz em seu corpo. Pode-se citar, à guisa de exemplificação, o pleno reconhecimento da boa-fé como padrão de comportamento e interpretação dos negócios, o negócio jurídico, a instituição da lesão e do estado de perigo como defeitos do negócio jurídico, o enriquecimento sem causa, a reparação do dano material e mora, a responsabilidade civil pelo abuso de direito, a responsabilidade civil decorrente do risco, a desconsideração da pessoa jurídica, a liberdade de contratar atrelada aos limites da função social do contrato, a possibilidade de rescisão ou revisão do contrato por onerosidade excessiva, a assunção de dívida, os títulos de crédito, o direito de empresa, os direitos da personalidade, a restrição à aplicação das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade nos testamentos etc.” (2008. p. 219-220).
Miguel Reale ao traçar uma visão geral Projeto do Código Civil, cuja estrutura está baseada principalmente nos princípios da socialidade, eticidade e operabilidade, deixa clara sua intenção de dotar o direito de uma maior flexibilidade:
“O novo Código, por conseguinte, confere ao juiz não só poder para suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou inajustável à especificidade do caso concreto.
Como se vê, ao elaborar o projeto, não nos apegamos ao rigorismo normativo, pretendendo tudo prever detalhada e obrigatoriamente, como se na experiência jurídica imperasse o princípio de causalidade próprio das ciências naturais, nas quais, aliás, se reconhece cada vez mais o valor do problemático e do conjetural.
O que importa numa codificação é o seu espírito; é um conjunto de idéias fundamentais em torno das quais as normas se entrelaçam, se ordenam e se sistematizam.
Em nosso projeto não prevalece a crença na plenitude hermética do Direito Positivo, sendo reconhecida a imprescindível eticidade do ordenamento. O código é um sistema, um conjunto harmônico de preceitos que exigem a todo instante recurso à analogia e a princípios gerais, devendo ser valoradas todas as consequências da cláusula rebus sic stantibus. Nesse sentido, é posto o princípio do equilíbrio econômico dos contratos como base ética de todo o Direito Obrigacional.
Nesse contexto, abre-se campo a uma nova figura, que é a da resolução do contrato como um dos meios de preservar o equilíbrio contratual. Hoje em dia, praticamente só se pode rescindir um contrato em razão de atos ilícitos. O direito de resolução obedece a uma nova concepção, porque o contrato desempenha uma função social, tanto como a propriedade. Reconhece-se, assim, a possibilidade de se resolver um contrato em virtude do advento de situações imprevisíveis, que inesperadamente venham alterar os dados do problema, tornando a posição de um dos contratantes excessivamente onerosa.
Tal reconhecimento vem estabelecer uma função mais criadora por parte da Justiça em consonância com o princípio de eticidade, cujo fulcro fundamental é o valor da pessoa humana como fonte de todos os valores. Como se vê, o novo código abandonou o formalismo técnico-jurídico próprio do individualismo da metade deste século, para assumir um sentido mais aberto e compreensivo, sobretudo numa época em que o desenvolvimento dos meios de informação vêm ampliar os vínculos entre os indivíduos e a comunidade”. (REALE, 2011)[13]
Contudo, apesar dessas inovações, de nada adiantaria a adoção de conceitos abertos pelo Código Civil, sem que houvesse uma interpretação dos mesmos segundo a Constituição Federal de 1988. Nesse sentido pontua Tepedino (2006, p. 08):
“Na experiência brasileira, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Cidade são bons exemplos de ampla utilização da técnica das cláusulas gerais e de conceitos jurídicos indeterminados associada a normas descritivas de valores. O novo Código Civil brasileiro, inspirado nas codificações anteriores aos anos 70, introduz inúmeras cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, sem qualquer outro ponto de referência valorativo. Torna-se imprescindível, por isso mesmo, que o intérprete promova a conexão axiológica entre o corpo codificado e a Constituição da República, que define os valores e os princípios fundantes da ordem pública. Desta forma dá-se um sentido uniforme às cláusulas gerais, à luz da principiologia constitucional, que assumiu o papel de reunificação do direito privado, diante da pluralidade de fontes normativas e da progressiva perda de centralidade interpretativa do Código Civil de 1916.
Dito diversamente, as cláusulas gerais do novo Código Civil poderão representar uma alteração relevante no panorama do direito privado brasileiro desde que lidas e aplicadas segundo a lógica da solidariedade constitucional e da técnica interpretativa”.
Já há quase dez anos da vigência do Código Civil de 2002 percebe-se claramente a constitucionalização do Direito Civil, aplicando-se às regras de Direito Privado princípios alicerçados em anos de construção legislativa e jurisprudencial, para dar base a uma técnica interpretativa pautada da realidade social.
Joaquin Arce y Flores-Valdez, citado por Nanni (2008, p. 164), busca definir o Direito Civil Constitucional:
“Sistema de normas y principios normativos institucionales integrados en la Constituición, relativos a la protección de la persona en si misma y sus dimensiones fundamentales familiar y patrimonial, en el orden de sus relaciones jurídico-privadas generales, y concernientes a aquellas otras materias residualmente consideradas civiles, que tienen por finalidad fijar las bases mas comunes y abstratas de la regulación de tales relaciones y materias, as las que son suceptibiles de aplicación inmediata o pueden servis de marco de referencia de la vigencia, validez e interpretación de la normativa aplicable o de pauta para su desarrollo.”[14]
No contexto civil constitucional, apesar do Direito Alternativo não ter se mantido ao longo do tempo, vê-se no processo civil que movimentos como o ativismo judicial podem dar amparo à implantação desse conceito, ao disponibilizar ao magistrado uma melhor forma de aplicar as chamadas cláusulas abertas do vigente Código Civil.
O ativismo judicial, diferentemente do Direito Alternativo, não tem por base a equidade no julgamento, mas sim, os Princípios Gerais de Direito, resguardados na Constituição Federal.
Segundo essa nova perspectiva, o juiz deixa de ser mero aplicador do direito positivo e passa a ter papel fundamental na construção normativa, pois não só faz incidir a norma ao caso concreto, mas também cria o direito, a ponto de Mauro Capelletti afirmar que “toda interpretação é criativa, e sempre se mostra inevitável um mínimo de discricionariedade na atividade jurisdicional.” (CAPELLETTI, 1999. p. 42). A esse respeito, destacam-se os comentários de Eduardo Cambi:
“A jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal, já incorporou os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, tanto em relação ao controle dos atos legislativos (p. ex.: considerou inconstitucional Lei do Estado do Paraná, que determinava a pesagem de butijões de gás, no ato da venda para consumidor, em face da imensa dificuldade material, quando não da impossibilidade, de fazê-lo, entendendo se o ato legislativo não razoável, julgou inconstitucional ato normativo do Estado do Piauí, que permitia que pessoa estranha à carreira de delegado de polícia exercesse esta função) quanto dos administrativos (p. ex., determinou que candidato aprovado em concurso para delegado de polícia não poderia ser reprovado na prova de esforço físico, por ser os agentes policiais que fazem as perseguições; também, reconheceu que candidato à escrivão de polícia não poderia ser reprovado por não possuir altura mínima; ainda, considerou inadmissível o “julgamento de consciência” de candidato à magistratura, aprovado no certame, para excluí-lo do concurso público, com base em decisão secreta sobre sua vida pública e privada; por fim, julgou irrazoável Edital de concurso público que atribuía ao tempo de serviço público pontuação superior a títulos referentes à pós-graduação)” (CAMBI, 2009, p. 176-177).
O processo, por sua vez, tem de atender à sua função social, que na visão do professor Barbosa Moreira, tem em vista dois objetivos primordiais, quais sejam:
i. A promoção da igualdade, pela eliminação ou atenuação das diferenças de tratamento entre os membros da sociedade, em razão da diversidade de condição econômica, posição social, cultural, racial, religiosa ou política;
ii. A otimização do sistema jurídico, a fim de assegurar, na medida necessária, a primazia dos interesses da coletividade sobre os estritamente individuais.
De tal sorte, o ativismo judicial amolda-se perfeitamente ao sistema jurídico de cláusulas abertas, possibilitando ao magistrado uma maior flexibilidade ao aplicar a norma ao caso concreto, mas, ao mesmo tempo, limitando sua atividade aos Princípios Gerais do Direito.
Assim, uma série de novas regras e normas de comportamento são postas aos operadores do Direito na analise e elaboração dos contratos, devendo, pois, interpretar o Código Civil com a visão dos princípios insculpidos na Carta Magna, principalmente aqueles previstos nos artigos 1º, II, III e IV; 3º, I e IV; e 170.
3 As mudanças nas relações contratuais – os princípios contratuais e sua interpretação[15]
Diante de uma configuração cível constitucional, conforme acentua Miguel Reale, o Código civil foi elaborado com base nos princípios da socialidade, eticidade e operabilidade, visando assegurar aos operadores do direito uma maior maleabilidade na interpretação das normas nele contidas, rompendo de vez com a higidez da codificação de 1916.
Contudo, sua a interpretação deve ser restrita aos limites de princípios sociais, morais e éticos contidos na Constituição, e, para tando, cabe primeiramente analisar como se forma o contrato (plano existencial), para depois falar de seus requisitos de validade e eficácia e sua influência no plano interpretativo.
O contrato é um negócio jurídico, que decorre de fato que gera reflexos no mundo fenomênico, os quais não se restringem às partes envolvidas. Assim, sendo, deve ser analisado em três planos: existência, validade e eficácia (AZEVEDO, p. 24).
O negócio jurídico (aí compreendido o contrato) compõe-se de elementos gerais, sem os quais não poderá existir, a saber: “a) intrínsecos (ou constitutivos): forma, objeto e circunstâncias negociais; e b) extrínsecos (ou pressupostos): agente, lugar e tempo do negócio” (AZEVEVEDO, p. 34), elementos categoriais, que são manifestados pela natureza jurídica de cada tipo de negócio, os quais podem ser inderrogáveis, quando decorrem da ordem pública, e derrogáveis, quando decorrem da manifestação de vontade das partes. .
De tal sorte, em se tratando o contrato o exercício da liberdade das partes, baseada na autonomia privada, há que se concebê-lo dentro dos limites de razoabilidade e eticidade ditados pelo Código Civil e pela Constituição Federal.
A interpretação atual dos contratos tem uma relação muito mais ligada à conduta moral e ética do que ao próprio fim econômico das relações contratuais. Os princípios constitucionais do solidarismo e da dignidade da pessoa humana são prova disso. Além disso, os novos princípios incorporados ao ordenamento civil, asseguram a satisfação das regras contratuais de acordo com normas de conduta vigiadas pela boa-fé, aplicadas objetivamente, para propiciar uma maior liberdade real.
Judith Martins Costa, faz a diferenciação entre boa-fé objetiva e subjetiva, a qual é prudente fixar:
“A expressão ‘boa-fé subjetiva’ denota ‘estado de consciência’, ou convencimento individual de obrar [a parte] em conformidade ao direito [sendo] aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se ‘subjetiva’ justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antiética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.
“Já por ‘boa-fé objetiva’ se quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao § 242 do Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standart jurídico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade’. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standart, de tipo meramente subsuntivo”. [….]
As boa-fé objetiva qualifica, pois, uma norma de comportamento leal. É, po isso mesmo, uma norma necessariamente nuançada, a qual, contudo, não se apresenta como um “princípio geral” ou como uma espécie de panacéia de cunho moral incidente da mesma forma a um número indefinido de situações. É norma nuançada – mais propriamente constitui um modelo jurídico – na medida em que se reveste de variadas formas, de variadas concreções, “denotando e conotando, em sua formulação, uma ploridiversidade de elementos entre si interligados numa unidade de sentido lógico”. (1999, p. 411-412)
Sobre o papel da boa-fé objetiva no Código Civil, destaque-se os comentários de USTÁRROZ:
“Da boa-fé decorrente deveres de lealdade entre os participantes da relação, agora vistos ambos como co-responsáveis pelo correto adimplemento. Três, pois, as funções da cláusula geral, a saber: (a) auxiliar a interpretação dos negócios jurídicos, tendo como norte as expectativas que esse gerava nas partes; (b) a formação de deveres laterais (nebenpflichten) que se somam aos primários elencados no contrato, com o fito de salvaguardar a higidez patrimonial dos sujeitos contra atos do alter; e (c) a limitação do exercício de direitos subjetivos, com forma de permitir que o trato alcance os fins colimados por sua celebração.
Presta-se, por isso, a boa fé objetiva para tutelar as justas expectativas das partes com a relação negocial, impondo a ambos sujeitos o dever de cooperação e a abstenção da prática de atos lesivos aos legítimos interesses do par. Protege-se, enfim, a confiança entre os negociantes, que podem contar com um comportamento correto de seu companheiro durante todo o iter obrigacional, nas fase pré e pós negociais, inclusive.” (2002, P. 153)
Portanto, apesar de não estar propriamente extinto, o princípio da pacta sunt servanda tem dado lugar a interpretações mais flexíveis das obrigações contratuais, de acordo com as cláusulas abertas inseridas no ordenamento legal pela prática diária das relações contratuais[16]., tem ele lugar hoje como sub-princípio da boa-fé objetiva.
Alinhadas com a moral e a ética aplicadas às relações contratuais encontram-se a proibição do abuso de direito, a observância de uma função social nos contratos, a observação dos usos e costumes do local onde o contrato foi celebrado, o respeito ao meio ambiente. Enfim, uma séria de conceitos metajurídicos que podem influenciar tanto na formação, quanto na execução e interpretação dos contratos.
Como se viu, um ordenamento civil constitucional deve romper com o individualismo, razão pela qual o contrato deverá atender a função social tanto na sua formação quando na execução (artigo 421 do CC). De igual sorte, deve compreender que tanto em sua constituição como na sua execução, todo negócio jurídico deve se pautar pela lealdade, o que, por si só exclui o abuso (artigo 187 do CC). A esse respeito acrescentem-se os comentários de MIRAGEM:
“O artigo 187 do Código Civil, ao positivar a teoria do abuso do direito, e definir como ilícito o exercício abusivo, da mesma forma estabelece o paradigma para determinação da regularidade ou não do exercício de direitos. Trata-se de conceitos cujo significado, em maior ou menor grau, é desenvolvido pela doutrina e jurisprudencial nacional e comparada para efeito do controle da atuação jurídica e seu cotejo com os preceitos estabelecidos pelo ordenamento jurídico. O fim econômico ou social, a boa-fé e os bons costumes são conceitos plurissignificativos, indeterminados, cujo adensamento de seu sentido e significado estão associados ao trabalho da doutrina e da jurisprudência. Expressam, igualmente, em seu sentido atual, standarts de conduta socialmente desejadas, na medida em que o respeito aos mesmos, na qualidade de limites ao exercício de direitos sujetivos, representam espécie de legitimação do exercício dos poderes e faculdades estabelecidos pelo ordenamento.”
O fim último da aplicação das regras morais e éticas aos contratos é a busca incessante da igualdade entre os contratantes, mesmo considerando os interesses conflitantes de cada parte, o qual pode ser compreendida no estudo feito por Ripert (2002, p. 89-90) acerca do assunto, in verbis:
“Uma vez que respeitem as leis e os bons costumes, os contratantes têm o direito de pugnar pelos seus interesses. Dá-se então a luta das vontades egoístas, esforçando-se cada um por obter a maior vantagem em troca do menor sacrifício. Luta fecunda porque é produtora de energias e conservadora de riquezas, mas luta, e, todo caso fatal, visto que o interesse é o principal móbil das ações humanas, pelo menos, quando se trate de troca de produtos e de serviços.
Sonhar-se-á com uma igualdade absoluta nesta discussão contratual? Mas essa igualdade não se encontra nunca, mesmo quando é aparente; ela não pode existir entre dois seres que têm um pensamento, uma vontade e um fim diferentes. Enquanto a superioridade depender da formação intelectual e moral da pessoa humana, da moderação dos seus desejos, da compreensão dos seus interesses. Da precisão dos acontecimentos, a moral aprova que ela se afirme pela vantagem contratual, ainda que com prejuízo de outrem. É uma falsa concepção de igualdade nos contratos que inspira esse brado muitas vezes ouvido contra a superioridade de um dos contratantes. A desigualdade é fatal, e é justo que as qualidades manifestadas no negócio jurídico sejam motivo de vantagem.
Mas se cada um se apresentar com as suas qualidades naturais ou adquiridas, não é necessário que a luta contratual seja desleal, a não ser que um dos contratantes abuse de sua superioridade. Consagrar a liberdade de contratar sob o pretexto de que nem o objeto nem a causa da obrigação são ilícitas, seria, na realidade, permitir a exploração do homem, o que a moral reprova.
Para o impedir, a lei civil procurou assegurar por diferentes meios a lealdade do contrato. Há regras para esse jogo de interesse. A proteção dos contratantes é garantida pela exclusão daqueles que um estado permanente físico ou moral revela fora das condições de lutar utilmente e pela assistência que lhes é prestada. É também garantida pela análise sutil do valor do consentimento, análise que vem proteger uma vontade mal assegurada. Não é ocasião de recordar aqui essas regras, que, aliás, supomos conhecidas. Trata-se simplesmente de mostrar em que pontos as regras estabelecidas pela lei ou destacadas pela jurisprudência respondem ao desejo de moralizar o contrato.”
O abuso praticado pelas partes ao defender seus interesses é constantemente combatido por normas jurídicas abertas[17], bem como pela nova conotação do ordenamento jurídico privado. Não existem mais direitos absolutos em nosso ordenamento.
A conduta dos contratantes não pode mais se pautar em interesses individuais e egoístas, pois devem guardar a boa-fé tanto na elaboração quanto no cumprimento das obrigações contratuais, observando a função social e o respeito aos usos e costumes do local no qual é celebrado. Tudo decorrência direta do princípio constitucional do solidarismo. O contrato, de fato, deve ser um instrumento realizador da justiça social, na feliz expressão de Priscilla Arantes, pois “a justiça contratual está relacionada ao acesso dos indivíduos a uma contratação equânime” (2006, 174/199).
Esse fator interpretativo deve-se em grande parte à atração de princípios constitucionais para o ordenamento civil privado. Gustavo Kloh Muller Neves afirma que “o Direito Civil está penetrado por toda a ordem constitucional, e não por um só tipo de norma, já que toda e qualquer norma poderá incidir sobre e regular uma relação civil” (2002, p. 18).Também nesse sentido, comenta NALIN:
“Em verdade, não pode o civilista brasileiro hodierno, por todo o instrumental oferecido pela Carta de 1988 e com a superação do estigma de mera “Carta Política”, imaginar que o destinatário da norma constitucional é, somente, o legislador ordinário, prisioneiro de sua atividade, para minuciosamente regulamentar, em sentido muito amplo, a família, a propriedade, o contrato e a empresa, sendo imprescindível revisitar os institutos civilísticos, contidos na Constituição, inclusive para revitalizá-los à luz da legalidade constitucional, sem jamais suprimi-los.
Definitivamente, o caminho é outro, contendo a Carta uma verdadeira “força geradora” do Direito Privado, destinada tanto ao legislador como ao juiz e para os demais órgãos do Estado. O Código Civil não pode mais ser visto como uma categoria superior de “Carta” constitucional, como normalmente acontecia nos diplomas oitocentistas, sempre fundados sobre o instituto da propriedade e dos bens pertencentes aos particulares. Atualmente, aquele antigo desenho não mais prevalece, perante uma Constituição normativa que põe, no centro de seu ordenamento, a pessoa humana, consagrando a ela um valor preeminente. É com base nesta relocação das figuras legais que se busca reconstruir a idéia de contrato, sempre centrada na figura da pessoa humana (sujeito contratante) e na sua proteção constitucional”. (2008, p. 46-47)
Dessa forma, além de princípios de ordem moral e ética como os antes citados, toda a ordem de princípios constitucionais devem estar presentes nas relações contratuais, principalmente quando houver intervenção no meio ambiente, nas relações de consumo, na ordem econômica, enfim, toda e qualquer relação que envolver o ser humano como indivíduo.
Portanto, é indispensável ao operador do direito fazer um exercício de reflexão sobre essa nova visão do direito contratual antes de elaborar ou interpretar um Contrato.
Conclusão
As novas regras contratuais trazem a vertente de um privilégio à equidade das obrigações, tornando cada vez mais imperiosa a intervenção estatal para garantir esse equilíbrio, fazendo com que a justiça verdadeira prevaleça.
Porém, há ainda um longo caminho a ser trilhado no desenlace entre o arraigado culto ao Direito pronto e estático e as novas formas de se interpretar o contrato e a legislação privada em cotejo com a Constituição Federal.
Ainda, há que se romper de vez o arbítrio das decisões judiciais que, sob o manto da justiça social, dão margem à insegurança jurídica e a instabilidade dos laços que dão margem ao progresso da sociedade.
A liberdade contratual não foi proibida, as partes continuam livres para entabular seus negócios, porém, deverão fazê-los em observância ao bem comum, tomando por base a lealdade e o equilíbrio do contrato, tendo em foco o indispensável respeito ao princípio constitucional da dignidade humana.
Não poderão exercer as obrigações contratuais em detrimento do interesse de terceiros, ou ainda, com o objetivo de macular o mitigar o interesse da contra-parte.
Por fim, o individualismo não mais predomina no ordenamento civil brasileiro, de modo que toda e qualquer relação contratual deve ser concebida em conformidade com os preceitos constitucionais do respeito à dignidade humana, solidarismo e ética.
Advogado, Pós Graduado em Direito Processual Civil pelo IBEJ – Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos, Pós Graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania pela UNICURITIBA. Membro do Projeto de Pesquisa “Livre Iniciativa e Dignidade Humana – Ano II”, do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário de Curitiba – UNICURITIBA.
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