A Constituição e seu papel frente às contingências da sociedade (pós) moderna

Vivemos em uma sociedade cujas aberturas, às mais diferentes possibilidades de escolha, tornam a vida em coletividade cada dia mais complexa. Isso significa dizer que as relações humanas estão dia após dia se transformando em uma velocidade tal, que as estruturas do poder normativo, até então vigentes, já começam – se é que já não estão – mostrando-se ineficazes na sua tarefa de regulação das condutas humanas.

A esse período de incertezas e imprecisões, convencionou-se chamar de Pós-modernidade, haja visto que a modernidade já nos deixou, com um dissabor de frustrações e projetos a realizar os quais pairam na penumbra das irrealizadas promessas de um período cheio delas (falsas ou não).

Habermas, jusfilósofo alemão, refuta a idéia de uma pós-modernidade. Com efeito, assim como em outras, na obra Der philosophische diskurs der moderne1, apregoa a existência de uma modernidade, tardia, mas ainda vigente, cujos projetos ainda estão por se realizarem.

Vive-se atualmente, e isso é inegável, numa sociedade altamente complexa, cujas possibilidades de escolhas são sempre maiores que as que efetivamente se podem realizar. A isso, indiferente às discussões acerca da existência de um período pós-moderno ou não, se dá a certeza de o que se vislumbra no presente é uma transformação social, nas relações entre os seres, cuja arrogância, acredita tudo poder solucionar, mas que na prática, vem demonstrando sua hiposuficiência na solução dos conflitos surgidos nesse período de nossas vidas.

Bem já aduziu o Prof. André Trindade, estudioso da sociedade contemporânea e das teorias sociais sistêmicas, apontando como um paradigma da modernidade (pós-modernidade), o papel do Direito frente às contingências desse nosso período marcado pelas incertezas e velocidade na troca das experiências sociais. Segundo o professor “a normatividade procura acompanhar a dinâmica social pós-moderna, no entanto é vencida pela progressiva adaptabilidade e ampliação das trocas sociais/culturais (globalização).” 2

Inegavelmente, as tradicionais formas de elaboração do direito e da normatividade estão se mostrando cada diz mais obsoletos, num sentido pragmático. Urge pois a busca de mecanismos jurídicos aptos à corresponderem aos anseios da sociedade hodierna, uma sociedade altamente complexa e globalizada.

Nessa seara, eis que a Constituição avulta-se com inestimável importância na construção do moderno Direito. Seu papel na atualidade nunca foi tão debatido, e nunca se pôde verificar como agora o seu poder normativo, aplicado aos fatos da vida concreta.

Diferentemente do que fora dito por Lassalle, em sua Über die Verfassung, em que pese sua contribuição ao estudo da Constituição enquanto reflexo do que denominou fatores reais do poder, não podemos entender ela como uma mera “folha de papel”, como insiste colocar.3 Devemos, antes, nos aproximar mais do que Hesse, combativamente buscou demonstrar na famosíssima Die normative Kraft der Verfassung,4 escrita justamente para refutar o ideário de Lassale, apontando o que convencionou chamar de Wille zur Verfassung. Assim, não somente a vontade de poder, mas preponderantemente a vontade de Constituição é o fator decisivo para se operar a força normativa da constituição.

Diante de uma sociedade altamente complexa, globalizada, ressalta-se a importãncia da Constituição, com sua força normativa, no regramento das condutas e das relações humanas.

Com efeito, mais precisamente, os princípios constitucionais têm demonstrado sua função, ao posssibilitar a abertura do sistema jurídico para uma melhor interpretação da realidade, aplicando-se o Direito a cada caso, per si, buscando minimizar as expectativas na pacificação dos conflitos, cada vez mais de interesses meta-individuais.

Já em idos de 1975, Peter Häberle, constitucionalista contemporâneo, dá o tom da moderna interpretação constitucional voltada à sua efetivação nas sociedades modernas. Segundo ele: “Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade.” 5

Não se pode, assim, olvidar que o grande ápice do conjunto normativo, senão melhor dizendo, o grande centro de irradiação do direito na atualidade acha-se nos princípios constitucionais.

Os princípios constitucionais, dentro da visão pós-positivista de Paulo Bonavides, enquanto adepto à visão kelseniana, fazem “a congruência, o equilíbrio e a essencialidade de um sistema jurídico legítimo. Postos no ápice da pirâmide normativa, elevam-se, portanto, ao grau de norma das normas, de fonte das fontes. São qualitativamente a viga-mestre do sistema, o esteio da legitimidade constitucional, o penhor da constitucionalidade das regras de uma Constituição.” 6

Tomando o seu verdadeiro lugar, que é o de centralizador e ápice do ordenamento jurídico, os princípios, de fato, consubstanciam-se como o baluarte da moderna construção jurídica, tendo sido apontados como a melhor forma de solução das lides atuais, que se sabe, envolvem questões que já não se findam no paradigma da sociedade individual-patrimonialista, mas sim, voltados às questões de interesse difuso, alicerçados nos modernos anseios humanitários internacionais.

Nessa busca pelas soluções das contingências da sociedade moderna (ou pós-moderna), os princípios são formas de absorção dos anseios sociais, moldando o corpo normativo, muitas vezes paralisado pela lentidão dos modelos legislativos tradicionais.

Nessa toada, Walter Rothenburg, bem aduziu acerca dos princípios e sua função desenvolvedora do ordenamento, voltado ao conteúdo axiológico da modernidade. Para ele, “trazendo em si o norte axiológico do ordenamento jurídico, os princípios reclamam retomada e aperfeiçoamento através de atividade normativa integradora, incorporando e garantindo desde logo um eventual desenvolvimento normativo já verificado, dotados que são os princípios de uma eficácia impeditiva de retrocesso.” 7

Devido ao seu alto grau de abstração, podem os princípios constitucionais amoldarem-se e, de maneira muito próxima às realidades, serem efetivamente normas mais justas e eficazes na obtenção da almejada homeostase social.

A realização efetiva dos ideários previstos na Constituição somente ocorrerá tendo-se uma “vontade de constituição”, nos dizeres de Hesse, traduzida num engajamento maciço dos operadores do direito na extração do melhor sentido que se pode dar aos princípios constitucionais.

Logo, deflui-se que o apregoado por Konrad Hesse em sua Die normative Kraft der Verfassung alcança sentido e concretude, na atualidade, ao complementar-se através do pensamento exposado por Peter Häberle em sua famosíssima Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten: a intrepretação pluralista e aberta coaduna-se com os anseios da atual sociedade, pós-moderna ou simplesmente moderna, mas altamente complexa, cujas expectativas e anseios se apresentam ao operador do direito a uma velocidade tal, que não se pode ficar alheio às exigências de uma realidade hiper complexa.

A melhor forma do Direito lidar com essas prementes expectativas da sociedade altamente globalizada e ávida na solução de contingências, é a exploração máxima dos princípios constitucionais. Justamente é essa a função da Constituição hoje, a de oferecer respostas na medida exata e na mesma velocidade com que as contingências surgem, com vistas à tão sonhada homeostase social.

Notas:

(1) Cf. HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. (Der philosophische diskurs der moderne.) Tradução de Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
(2) TRINDADE, André Fernando dos Reis. Autopoiese da União Européia: a organização circular do Sistema Jurídico Europeu. In: SCHWARTZ, Germano (org.). Autopoiese e Constituição – os limites da hierarquia e as possibilidades da circularidade. Passo Fundo: UPF, 2005, p. 179.
(3) Cf. LASSALE, Ferdinand. Über das Verfassungswesen. Berlim: Buchhandlung Vorwärts Paul Singer, 1907. (A Essência da Constituição. 6ª ed. Tradução de Walter Stönner. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001).
(4) Cf. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.
(5) Cf. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.
(6) BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 265.
(7) ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. 2ª tiragem. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 82.

Bibliografia:

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.
HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. Tradução de Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.
LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6ª ed. Tradução de Walter Stönner. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001.
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. 2ª tiragem. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.
SCHWARTZ, Germano (org.). Autopoiese e Constituição – os limites da hierarquia e as possibilidades da circularidade. Passo Fundo: UPF, 2005.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Ronny Carvalho da Silva

 

Pós-graduando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor do curso de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos-SP.

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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