1. Introdução
Sabe-se que as estruturas administrativas do Estado estão vinculadas à realização do sistema de direitos. A Administração Pública é instrumental no contexto dos processos estatais e sociais de concretização dos direitos fundamentais. O interesse público pode ser visto, nesse sentido, como expressão da necessidade histórica em torno da efetivação dos direitos positivados, especialmente quando tais direitos são elevados ao status constitucional. Não foi outra a dimensão da construção das necessárias estruturas administrativas no contexto de construção do Estado Social de Direito, em suas diversas variações históricas. Contrapartida necessária aos novos direitos fundamentais (sociais), a versão administrativa do Estado Moderno ganhou força em vista de suas novas perspectivas interventivas no domínio social e econômico.
O novo paradigma Estado Social de Direito, que ganha força e nitidez durante o século XX, também redefine a função administrativa, a qual ganha novo contorno diante das exigências de efetivação dos direitos sociais constitucionalizados por força das reivindicações dos movimentos sociais e políticos do final do século XIX e início do século XX. A constitucionalização dos direitos fundamentais sociais, tais como, educação e saúde, implica para o Estado, do ponto de vista de sua dimensão jurídico-administrativa e institucional, a montagem de um complexo sistema normativo legal e infralegal, que serve de racionalização da burocracia e, portanto, da própria Administração Pública, quer considerada como complexo de atividades, quer considerada como complexo de agentes, órgãos e pessoas. Também nesse contexto, o próprio sistema normativo-administrativo se diversifica e ganha complexidade em vista das inúmeras tarefas que o Estado Constitucional, através de sua Administração Pública, deve implementar de forma massiva perante a população, conquanto destinatárias das ações civilizatórias do Estado.
Há nitidamente uma relação necessária entre a complexidade da Administração Pública e a constitucionalização dos novos direitos. Creio, de início, a título de introdução, que essa é uma perspectiva necessária para que possamos adentrar no tema a que nos propusemos analisar.
Não por acaso, já que pretendo demonstrar a construção das novas estruturas da Administração Pública da Cultura, num contexto de positivação constitucional dos direitos culturais. A expressão de um sistema normativo da cultura, que ganha destaque no plano jurídico-constitucional, especialmente a partir da Constituição Brasileira de 1988, serve-nos, portanto, de referência necessária para compreender o movimento atual em torno da construção da Administração Pública da Cultura que, como exposto, têm seu sentido na medida em que instrumentais à própria realização dos direitos culturais constitucionalizados.
Partimos, para efeito de desenvolvimento do presente trabalho, do § 3º do artigo 215 da Constituição Brasileira de 1988 (CB/88). Mais precisamente, interessa-nos abordar os desdobramentos estruturais para a Administração Pública Brasileira da previsão no texto constitucional do Plano Nacional de Cultura (PNC) e sua necessária relação com a criação de um Sistema Nacional de Cultura (SNC), composto por órgãos e pessoas da Administração Direta e Indireta das pessoas jurídicas estatais. Naturalmente que essa análise, para fins metodológico, restringe-se aos aspectos subjetivos da Administração Pública, uma vez que aquela previsão constitucional implicará na inadiável construção de novas estruturas administrativas responsáveis pela formulação das políticas culturais e pela implementação dos direitos culturais de forma integrada e coordenada, conquanto integrantes de um só Sistema Nacional da Cultura.
Em termos estruturais, o presente trabalho divide-se em 04 (quatro) partes. Na primeira, abordaremos a relação entre a previsão do Plano Nacional de Cultura e a criação do Sistema Nacional da Cultura. Em seguida, na segunda parte, abordaremos as perspectivas de construção do Sistema Nacional da Cultura a partir do contexto do sistema de distribuição de competências administrativas adotada pela Constituição Brasileira de 1988 e os limites desta experiência, em vista da limitação de integração administrativa prevista no parágrafo único do artigo 23 da Carta Constitucional Brasileira. Na terceira parte, analisaremos como o trabalho de integração e coordenação da Administração Pública da Cultura da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios está sendo realizada atualmente pelo Ministério da Cultura, apontando os instrumentos jurídico-administrativos que vêm sendo utilizados pelas partes na incipiente construção do esboço do Sistema Nacional da Cultura. Por fim, na quarta parte, apresentaremos algumas conclusões diante do horizonte histórico que nos apresentados neste momento, diante da necessidade de efetivação dos direitos culturais.
2. Plano Nacional de Cultura e Sistema Nacional de Cultura
O Plano Nacional de Cultura está previsto no § 3º do artigo 215 da Constituição Brasileira de 1988. Tal dispositivo normativo não existia na versão originária do texto constitucional e fora acrescentado em nossa Carta Constitucional por força da Emenda Constitucional nº 48, de 10 de agosto de 2005, que veio dotar o Estado Brasileiro de instrumento normativo necessário para promover a integração das ações e políticas culturais da União, Estados, Municípios e Distrito Federal. Pretende-se, portanto, que as ações do Poder Público de proteção e promoção das formas de expressões culturais sejam unificadas a partir de um complexo de princípios que sirvam de referência normativa obrigatória quando da formulação das decisões de governo e da administração voltadas à garantia dos direitos culturais. Nesse sentido, vejamos o texto normativo em questão:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à:
I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;
II produção, promoção e difusão de bens culturais;
III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;
IV democratização do acesso aos bens de cultura;
V valorização da diversidade étnica e regional.
Percebe-se que a introdução do § 3º ao artigo 215 da Constituição veio dotar o Estado de valioso e inédito instrumento jurídico-normativo para garantir a própria efetividade dos direitos culturais já previsto no caput do artigo 215. Ou seja, se por um lado o texto originário de nossa Carta já previa a garantia do pleno exercício dos direitos culturais, o direito de acesso às fontes da cultura nacional, o direito de incentivo e valorização da difusão da pluralidade das manifestações culturais, por outro lado percebe-se que o texto de 1988 pecava pela inexistência de um mecanismo que possibilitasse a criação de um Sistema Nacional da Cultura, baseado em sólidos princípios de integração e coordenação.
Esse lapso normativo veio ser preenchido com o advento da Emenda Constitucional nº 48/2005 que veio prevê a possibilidade de criação legal do Plano Nacional de Cultura, definindo, inclusive, seus princípios integradores nos incisos I a IV.
A um só tempo, a previsão de criação do Plano Nacional de Cultura, através de lei (da União[1]), abre novas possibilidades de organização das Administrações Públicas da Cultura da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. É que o sentido orgânico-institucional do Plano Nacional de Cultura é justamente promover a integração e coordenação das políticas, ações e pessoas da administração pública responsável pela gestão e implementação de atividades voltadas à proteção, difusão, acesso, criação das diversas expressões culturais. Nesse sentido, é que o § 3º prevê que a criação do Plano Nacional de Cultura visa à integração das ações do poder público.
Pretende-se, assim, promover uma nova organização administrativa da cultura através da criação de um sistema institucional formado pelas administrações públicas federal, estadual e municipal. Esse arranjo institucional é organizado, em sua dinâmica e objetivos, através de normas princípios que estabelecem a liga necessária à integração e coordenação das esferas administrativas parciais. Nesse sentido, até mesmo para que o sistema seja possível, o estabelecimento de normas substantivas de organização institucional previstas nos incisos I a IV do § 3º do artigo 215 da Constituição Brasileira de 1988 visam, a um só tempo, garantir o matiz de organização que orientação as partes integrantes do Sistema Nacional de Cultura, bem como manter a autonomia administrativa constitucional das estruturais administrativas da União, Estados, Municípios e Distrito Federal.
O Sistema Nacional de Cultura é, assim, formado pela pluralidade das organizações administrativas integrantes da Administração Pública Direta e Indireta da União, Estados, Municípios e Distrito Federal que têm competência administrativa para formulação das políticas culturais, bem como para implementação (execução) da legislação de proteção e promoção da pluralidade das expressões culturais. A formação do SNC decorre, assim, da própria necessidade de integração e coordenação da Administração Pública da Cultura para fins de implementação do Plano Nacional de Cultura.
Desse modo, o Sistema Nacional de Cultura é instrumenta do Plano Nacional de Cultura e, do ponto de vista jurídico-administrativo, consiste, em seus aspectos estrutural-subjetivo e finalístico, no complexo de agentes, órgãos, pessoas estatais e paraestatais e organizações da sociedade civil responsáveis pela formulação de políticas públicas culturais e pela execução das leis de proteção e promoção da pluralidade das expressões culturais em conformidade com os princípios de coordenação e integração constitucionalmente adotados para efetivação do pleno exercício dos direitos culturais, acesso às fontes da cultura nacional e difusão das manifestações culturais.
Há de se observar que o Sistema Nacional de Cultura, como experiência a ser construída, se identificará mais pelos seus aspectos de organização interna em torno da realização da pluralidade dos direitos culturais positivados na Constituição Brasileira de 1988. É uma experiência de organização administrativa no contexto de um Estado Federal e, naturalmente, essa organização política-administrativa só é possível se:
i) existirem princípios de integração e coordenação das estruturas administrativas parciais;
ii) co-existência de partes autônomas e
iii) sob o aspecto formal, um complexo normativo que sirva de meio estabilizador das relações entre as partes envolvidas visando o cumprimento das metas de desenvolvimento cultural, conforme previsão plurianual. O capítulo seguinte destina-se a abordar os dois últimos tópicos acima especificados.
Do ponto de vista estrutural, observe-se que o Sistema Nacional de Cultura seria formado pelos subsistemas administrativos da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, bem como por organizações da sociedade civil. Ressalte-se que o Sistema Nacional seria formado pela integração e coordenação do Sistema Federal de Cultura, dos Sistemas Estaduais e Distrital de Cultura, pelos Sistemas Municipais de Cultura, bem como pelas organizações civis representativas dos setores da cultura. A organização dos sistemas parciais que formarão o Sistema Nacional de Cultura revela-se fundamental para as formulações dos entes federados e dos setores da cultura que conduzirão, posteriormente, à consolidação do Plano Nacional de Cultura, que pressupõe, naturalmente, para sua legitimidade o prévio e necessário debate com a sociedade através de conferências nacionais, estaduais e municipais, bem como dos respectivos conselhos de políticas culturais e colegiados setoriais representativos dos setores da cultura.
Percebe-se, mais uma vez, a íntima relação entre o processo de institucionalização constitucional de direitos e a conseqüente organização administrativa do Estado para possibilitar a efetivação promoção dos direitos culturais que, para sua implementação, a par das exigências quanto à definição de políticas públicas culturais e a conseqüente produção legislativa, pressupõe a necessária atuação da administração pública, conquanto instrumento da sociedade no processo de concretização de seu sistema de direitos.
Passaremos a abordar no capítulo seguinte, as perspectivas de construção do Sistema Nacional da Cultura a partir do contexto do sistema de distribuição de competências administrativas adotada pela Constituição Brasileira de 1988 e os limites desta experiência, em vista da limitação de integração administrativa prevista no parágrafo único do artigo 23 da Carta Constitucional Brasileira de 1988.
3. A Construção do Sistema Nacional de Cultura sob a Perspectiva do Sistema de Repartição de Competências Administrativas Adotado na CB/88
As possibilidades de construção e organização administrativa do SNC devem ser olhadas sob a perspectiva do sistema de distribuição de competências administrativas adotadas pela Carta Constitucional de 1988. As competências administrativas consistem em poderes definidos constitucionalmente às pessoas políticas estatais para definirem políticas públicas voltadas para realização dos direitos constitucionais, bem como poderes instrumentais para a execução das respectivas legislações, cuja implementação tenha que ser realizada pelo Estado através de definição de estruturas administrativas próprias.
A fixação das competências administrativas define, por si, o próprio âmbito de autonomia administrativa das pessoas estatais, quanto à esfera de ação, programas, atividades que, pragmaticamente, devem realizar através de sua ação administrativa a ser materializada pelo conjunto da Administração Direta e Indireta ou, sendo, o caso através de atuação com as pessoas e agentes privados. Essa perspectiva da realização dos direitos fundamentais abre possibilidades e legitima a atuação do Estado quanto às inúmeras funções administrativas que lhe são fixadas pela Constituição de 1988, expressa ou implicitamente, em seu artigo 21 (competência administrativa privativa da União), artigo 23 (competência administrativa comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios), artigo 25, § 1º (competência administrativa residual dos Estados) e, por fim, incisos III a IX do artigo 30.
Pode-se dizer, grosso modo, mesmo porque esta questão sairia do corte epistemológico do presente artigo, que a própria definição de normas de conteúdos administrativos, que implicariam um fazer por parte das pessoas políticas estatais, são responsáveis a um só tempo pela própria definição das estruturas administrativas estatais (órgãos e pessoas descentralizadas) que passam a ser definidas, conforme o peculiar conteúdo administrativo (competências) que lhe são fixadas legalmente. Dessa forma, como exemplo, pode-se dizer que o Sistema Nacional de Cultura (forma) está vinculado ao conteúdo pré-determinado pela própria Constituição, qual seja, o Plano Nacional de Cultura (conteúdo) e, no segundo momento, pelos aspectos normativos infraconstitucionais (leis e atos administrativos normativos).
Enfim, as normas que definem conteúdos materiais para a Administração Pública são definidoras, sob o aspecto orgânico-estrutural ou, ainda, institucional, daquela mesma burocracia racionalmente organizada, a qual, sob o aspecto subjetivo, passa a ser responsável, em nome do próprio Estado, pela realização das atividades, ações e programas a serem executados nos limites estabelecidos na própria legislação, que figura, como elemento formal, como elemento de organização, eficiência e correição.
Quer-se dizer, portanto, para fins de desenvolvimento do presente trabalho, que a construção do Sistema Nacional de Cultura, conquanto sistema administrativo, já tem seus próprios fundamentos na própria repartição de competências administrativas fixada pela Constituição Brasileira de 1988. É a própria Constituição que confere a autonomia da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para formularem políticas de promoção da diversidade das expressões culturais, na medida em que, sob o ponto de vista normativo, o artigo 23, incisos III, IV e V, estipula deveres no necessário cuidado com as matérias ali estabelecidas (proteção, promoção, difusão, criação da cultura), conquanto conteúdo que se reportam necessariamente a instâncias da Administração Pública responsáveis, igualmente, pela implementação daquilo que previamente foi definido pela legislação.
Não é outro, portanto, o fundamento das autonomias administrativas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios quanto ao desenvolvimento comum de atividades, ações e programas de proteção, promoção, difusão e fomento das artes e do patrimônio cultural brasileiro. Acontece, porém, como círculos de autonomia, esses sistemas administrativos parciais foram sendo construídos ao longo do tempo de forma isolada o que impedia, por exemplo, a promoção da circulação nacional e interregional dos bens e projetos culturais. As tradicionais competências administrativas de promoção e proteção da cultural vêm sendo exercidas, até aqui, a partir de uma perspectiva institucional de cada uma das pessoas políticas estatais, fruto da própria autonomia administrativa que a Constituição lhes assegura. Com efeito, diga-se, esse não é um problema relativo tão somente à implementação dos direitos culturais, mas de todas aquelas matérias previstas no artigo 23 da Carta Constitucional Brasileira.
Com efeito, o modelo do nosso Estado Federal – e do nosso arranjo de federalismo, cria sérias dificuldades para a formação de um Plano Nacional de Cultura e, igualmente, de um Sistema Nacional de Cultura que seja integrador das administrações públicas federal, estadual e municipal e que, a um só tempo, garanta a esfera de autonomia administrativa das pessoas estatais.
Como orientar as autonomias das pessoas estatais para criar a construção de uma organização administrativa que efetive a integração entre a criação, a preservação e a indústria cultural no âmbito nacional, bem como promova a promova a transversalidade da política cultural? Essa questão nos leva especialmente a análise do parágrafo único do artigo 23 da Constituição Federal de 1988 que prevê a possibilidade de leis complementares fixarem normas para a cooperação (administrativa) entre União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
Parece-nos que esta lei complementar seria elemento normativo de racionalização da atuação administrativa das pessoas políticas estatais quando em exercício das competências administrativas comuns. Se de um lado é certo que a autonomia administrativa é garantida às pessoas políticas-administrativas, por outro, é necessário que tais autonomias sejam articuladas em vista da gestão e promoção pública da cultura. A lei complementar teria, enfim, o papel de coordenar os esforços das pessoas estatais da administração pública direta e indireta, garantindo a formação, circulação e estruturação de bens e serviços culturais o que, por conseqüência, garantia o efetivo equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
No entanto, essa lei complementar no que se refere à cooperação da administração pública da cultura da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios infelizmente não existe e a previsão da instituição, por lei (ordinária) do Plano Nacional de Cultura, parece-nos, não é substitutiva da lei complementar, embora seja um instrumento fundamental para promover o pleno desenvolvimento dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional. Esse ponto parece-nos crucial. É que a lei prevista no § 3º do artigo 215 da Constituição Federal de 1988 será o instrumento para criar, do ponto de vista normativo, os pontos fundamentais (objetivos, diretrizes, princípios) de uma política pública de cultura democrática e permanente. Será, noutras palavras, a estrutura substantiva que possibilitará a construção e, ao mesmo tempo, norteará a atuação das pessoas e órgãos integrantes do Sistema Nacional de Cultura, aqui considerado em seu aspecto orgânico-estrutural.
O Plano Nacional de Cultura (PNC) a ser criado por lei ordinária deve, naturalmente, ser decorrente de um pacto entre as pessoas políticas-administrativas integrantes da federação, bem como da participação da sociedade civil. Mas a efetividade do PNC dependeria, por outro lado, do improvável advento de uma lei complementar para, nos termos do parágrafo único do artigo 23, fornecer as bases normativas de cooperação entre as pessoas estatais titulares de autonomia administrativa. Mas a criação de uma lei complementar que organizaria, sob o aspecto institucional, o exercício das autonomias administrativas pelas pessoas estatais, parece-nos, no momento, um caminho improvável e, sendo assim, esse vazio impossibilitaria a implementação integrada e coordenada do Plano Nacional de Cultura, pois o mesmo depende da necessária articulação dos sistemas federal, estadual, distrital e municipal da cultura.
Mas, neste momento, cabe-nos perguntar se o Plano Nacional de Cultura poderia ter êxito à míngua da lei complementar prevista no parágrafo único do artigo 23 da Constituição Brasileira de 1988? Ou, noutros termos, é possível a construção do Sistema Nacional de Cultura através de outros instrumentos jurídicos que possibilitem a integração e coordenação dos Sistemas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais de Cultura, articulados em prol da efetivação do vindouro Plano Nacional de Cultura? Por fim, a autonomia das pessoas políticas-administrativas e, portanto, uma pretensão de organização administrativa para além dos sistemas parciais, poderia ser direcionada para a construção do Sistema Nacional de Cultura?
Passamos, então, ao capítulo 3 do presente trabalho, no qual abordaremos de a forma criativa e democrática que está sendo utilizada para a construção do Sistema Nacional de Cultura, bem como seu fundamento jurídico-administrativo.
4. Autonomia Administrativa e o Sistema Nacional de Cultura
A questão que se coloca neste capítulo talvez seja a mais curiosa do ponto de vista do Estado Federal que tem, como uma de suas características, a garantia da autonomia das pessoas políticas estatais (esferas parciais). Quando referimo-nos ao parágrafo único do artigo 23 da Constituição Federal de 1988, que exige lê complementar para promover a coordenação administrativa da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios quanto ao exercício das competências administrativas comuns previstas em seu caput, exsurge uma questão complexa de formação de vontade política nacional necessária à criação daquele diploma normativo que visa, a nosso ver, articular o exercício da autonomia administrativa que a própria Constituição assegura às pessoas estatais.
Mas um projeto de construção de um Plano Nacional de Cultura e, paralelamente da necessária organização administrativa para gerir este plano – o Sistema Nacional de Cultura, envolve necessariamente um processo democrático de formação de vontade assegurando a participação da sociedade civil – produtores e usuários – nas definições de políticas e investimentos públicos nas diversas expressões culturais. Trata-se de uma organização que, por definição, deveria atender à complexidade da realidade cultural brasileira. Perguntar-se-ia, então, se a lei complementar, de competência do Congresso Nacional, seria indispensável para a criação do Sistema Nacional de Cultura (SNC), enquanto expressão dos entes federados e da sociedade civil na construção e implementação de políticas públicas de cultura.
O certo é que, à míngua da Lei Complementar, a montagem do SNC vem sendo conduzida pela União, através do Ministério da Cultura, através da celebração de compromissos bilaterais com as unidades da Federação, para fins de fixar uma agenda em torno de planos e ações públicas para serem implementados em conjunto de forma coordenada. A integração, busca de uma unidade, é possibilitada pela fixação de prioridades em torno de planos, ações e programas que sejam comuns. A coordenação pressupõe, no plano da execução, o exercício das autonomias de forma articulada.
Assim, se de um lado as pessoas da federação gozam de autonomia política e administrativa, vale dizer, não agem de forma hierarquizada, a criação do Sistema Nacional de Cultura baseia-se em relações horizontais entre os seus integrantes, pressupondo a consolidação dos sistemas de cultura da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Os Municípios, por exemplo, podem agir de forma coordenada através da criação de sistemas intermunicipais ou mesmo criando consórcios públicos de cultura, à semelhança ao que já existe na área da saúde.
No presente contexto, percebe-se que a garantia da autonomia das pessoas estatais, bem como a inexistência de lei complementar, não se revela como impedimento para a construção de um sistema integrador e coordenador das políticas e ações, programas e planos para a cultura brasileira. É que àquela mesma autonomia administrativa das pessoas da administração pública direta pode ser exercida para, através de outros instrumentos jurídicos, criar integração das políticas culturais.
Nesse sentido, a União vem assinando protocolos de intenções com Estados e Municípios para a implantação do Sistema Nacional de Cultura. E é justamente o exercício da autonomia das pessoas estatais que está garantindo, do ponto de vista jurídico, a criação de uma estrutura administrativa organizada juridicamente para permitir a execução de plano, ações e programas necessários à promoção e proteção dos direitos culturais.
A assinatura dos protocolos de intenções entre a União, Estados e Municípios foi o primeiro momento da construção coletiva do Sistema Nacional de Cultura (SNC). Esse momento assinala o compromisso dos governos federal, estaduais e municipais com a construção do sistema. Por meio desses protocolos, criam-se condições institucionais para a implementação do SNC, tais como: criar órgão gestor de cultura onde não houvesse e fortalecer os já existentes, criar ou fortalecer os mecanismos de fomento à atividade cultural, criar ou fortalecer os conselhos municipais e estaduais de cultura e demais processos de participação social na cultura.
Nada impede que posteriormente haja o advento de lei complementar organizando o Sistema Nacional de Cultura, o que seria fundamental para conferir a necessária estabilidade quanto à manutenção continuada dos seus objetivos institucionais e cristalizar, tal qual já ocorreu com o Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, um sistema organicamente estruturado em torno de princípios, objetivos, diretrizes e normas de definidoras de níveis de responsabilidade para cada integrante do sistema.
A autonomia administrativa das pessoas estatais também é responsável pela criação dos órgãos gestores e dos conselhos de cultura dos Municípios e dos Estados. Do ponto de vista da União, o Decreto nº 5520/2005 veio criar o Conselho Nacional de Política Cultura e instituiu o Sistema Federal de Cultura, servindo de exemplo para que, posteriormente, os Estados e os Municípios também possam criar seus Sistemas Estaduais e Municipais de Cultura, visando a integração de órgãos, programas e ações culturais. Note-se que a autonomia administrativa das pessoas estatais já se orientam para a construção do sistema nacional de cultura, abrindo sólidas perspectivas de integração e coordenação da administração pública da cultura, especialmente, nesse primeiro momento, em vista da criação do Plano Nacional de Cultura e, em seguida, à sua implementação.
Também não é demais anotar que o exercício da autonomia das pessoas estatais também será fundamental para a definição dos sistemas e políticas setoriais. Ou seja, a montagem de subsistemas ou políticas setoriais nas áreas de biblioteca, museus, fomento às artes, em suas variadas linguagens ou agrupamentos de linguagens, e promoção do patrimônio cultural material e imaterial, possibilitando a formulação destas políticas setoriais em âmbito local, regional e nacional.
A criação dos subsistemas da administração pública da cultura, formados pelos órgãos da administração direta (como as secretarias de cultura e suas subdivisões) e pelas pessoas da administração descentralização (como as fundações de cultura), é fundamental para que haja, em níveis nacional, regional e local, a coordenação e atuação cultural dos respectivos governos. A integração e coordenação dos subsistemas são necessárias para que o conjunto das atividades culturais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios transcenda a atuação da pasta da Cultura e são indispensáveis à avaliação sistêmicas e a coordenação dos esforços e investimentos públicos voltados à consecução de objetivos similares.
Os subsistemas da administração pública da cultura serão responsáveis, portanto, pela articulação, gestão, informação e promoção de políticas públicas de cultura em âmbito federal, estadual e municipal. A estruturação desses subsistemas depende do exercício da própria autonomia das pessoas estatais envolvidas e, como já visto, consiste em passo decisivo para a criação do Sistema Nacional de Cultura, a ser constituído com a participação das pessoas políticas e da sociedade civil.
Percebe-se, portanto, que a construção do Sistema Nacional de Cultura representa um avanço no pacto federativo da cultura na medida em que pressupõe, no que concerne à gestão pública governamental, a concatenação equilibrada das pessoas estatais através de sistemas, órgãos e políticas federais, estaduais e municipais de cultura, no contexto do princípio constitucional da autonomia político-administrativa de cada um dos três entes federados.
5. Conclusões
A construção do Sistema Nacional de Cultura – SNC, no presente momento, se dá num horizonte de perspectivas de integração e coordenação da Administração Pública da Cultura em face da adoção do Plano Nacional de Cultura – PNC. A premissa institucional para o funcionamento do SNC implica tarefa de planejamento compartilhado entre as pessoas portadoras de autonomia administrativa, bem como torna indispensável a participação social, definição de fontes de financiamento, de estruturação de políticas setoriais, de informação e de institucionalização dos órgãos administrativos gestores das políticas culturais.
O sistema de gestão e formulação de políticas públicas participativo e federativo – SNC, projeta-se sobre um plano nacional de desenvolvimento cultural, do qual se espera, conforme a definição do novo parágrafo 3º do artigo 215 da Constituição, além das metas para o desenvolvimento cultural do país, aquelas objetivando “a integração das ações do poder público”. Portanto, a Lei do Plano Nacional de Cultura será, provavelmente, o primeiro marco constitucional do Sistema, prevendo orientações a se buscar em sua implementação.
Do ponto de vista da cooperação dos entes federados, de que resultará a efetividade do SNC, algumas premissas são fundamentais. O SNC deverá se guiar pelo princípio da descentralização administrativa e da participação social e se constituirá, a exemplo do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, em uma rede regionalizada e horizontalizada (preservação das autonomias administrativas), com níveis de hierarquização, através da fixação de responsabilidade para os subsistemas, permitindo um crescente nível de complexidade dos serviços e oportunidades de acesso à cultura.
Entretanto a regulamentação do § 3º do artigo 215 da Constituição Federal de 1988, que instituiu o Sistema Nacional de Cultura e que prevê a adoção do Plano Nacional de Cultura, implica numa ordenação sistêmica (para promover a integração e coordenação) mais definidora da cooperação federativa (compatibilidade do exercício das autonomias parciais) e das articulações intersetoriais da cultura. A integração será alcançada através da fixação dos princípios, programas, metas, objetivos e diretrizes a serem previstas na Lei do Plano (plurianual) Nacional de Cultura, a qual, guardadas as devidas particularidades no caso da LDB, também deverá definir as responsabilidades prioritárias dos entes federados com relação à cultura, embasando a estruturação de resultados que eventualmente deverão ser previstos no Plano Nacional de Cultura.
Outra característica do SNC é que o mesmo deverá ser um sistema notoriamente público, de articulação de governos e agentes privados, cada qual respeitado em sua autonomia e pelo reconhecimento das peculiaridades da respectiva natureza institucional ou ocupacional, norteados pelos princípios da construção do bem comum e de uma cultura de gestão articulada e interativa.
No que se refere às agências governamentais integrantes da Administração Pública da Cultura é necessário que haja distribuição de competências entre os diversos níveis do sistema. Nesse sentido, a Administração Direta e Indireta da União está vocacionada a exercer, a exemplo da área educacional, “funções redistributiva e supletiva”, de forma a garantir equalização de oportunidades culturais e padrão mínimo de qualidade dos serviços, mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. A assistência financeira, contudo, continua a depender de vinculação orçamentária, objeto de Projeto de Emenda Constitucional – PEC nº 150, em tramitação no Congresso Nacional, para que a União (e também os Estados) exerça este contrapeso e todas as regiões e coletividades do país (e dos Estados) tenham oportunidades mais significativas para participarem do desenvolvimento social e econômico da Nação.
O SNC também se orientará pela estratégia de financiamento público da cultura, a fim de garantir, destacadamente para as localidades carentes de fontes próprias de receita, e objetivando o desenvolvimento das expressões culturais próprias destas localidades, a justa aplicação dos fundos para desenvolvimento urbano, educacional e assistencial dos Municípios, como aspectos efetivamente determinantes para se assegurar as condições equânimes para o bem-estar social e o desenvolvimento humano visado por tais fundos.
Também no Sistema Nacional de Cultura a União deverá assumir a responsabilidade de operar ou coordenar a posição de “cabeça” dos sistemas ou políticas setoriais da cultura, efetivando-os diretamente ou subsidiando-os, a partir de uma premissa descendente – nacional, macrorregional, estadual – buscando, nesta supervisão, a necessária cooperação com as instituições notórias dos entes federados ou do setor privado, detentoras de expertise necessária para a liderança de diferentes iniciativas e posições nas cadeias produtivas da cultura. Observe-se que esta posição da União não deve implicar supressão da autonomia administrativa dos Estados, Distrito Federal e Municípios, mas representar uma simples responsabilidade a ser definida no bojo do arranjo institucional traçado para atuação conjunta das pessoas estatais.
Também se chama a atenção de que os meios de comunicação e de conectividade são base constitucional de um sistema público, em que os cidadãos, nas respectivas interações sociais e com o Estado, são os sujeitos finais da universalidade e da capilaridade a que se objetiva a organização sistêmica, que resultará da dinamização da troca e circulação de conhecimento, bens e serviços culturais, na diversidade ampla da sociedade brasileira e mundial.
Por fim, percebe-se uma nova organização da Administração Pública da Cultura que inclui os órgãos e pessoas da administração direta e indireta da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Do ponto de vista institucional, não se deve perder a dimensão da realidade estatal quanto à realização dos direitos culturais. A administração pública não é o titular dos direitos dos cidadãos, mas é instrumento destes na realização histórica de seu sistema de direitos. A Administração Pública da Cultura deve, assim, constituir-se frente a diversidade da cultura o que exige uma nova dimensão organizacional para trabalhar as diferenças e seus desafios frente a uma ordem objetiva de direitos. Nesse sentido, a construção do SNC e do PNC são conquistas que, certamente, contribuirão para esse processo de afirmação dos direitos culturais.
Mestre em Direito Público pela PUCMINAS. Professor de Direito Administrativo e Constitucional da PUCMINAS. Pós-graduando em Administração Pública pela PUCMINAS. Procurador da Fazenda Nacional em Minas Gerais.
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