Rênio Líbero Leite Lima – Professor, Advogado, Servidor Público.
Resumo: O presente artigo tem por objetivo oferecer uma análise sobre a questão dos indivíduos envolvidos em relacionamentos paralelos ou simultâneos e sua caracterização como entidade familiar, observando seus efeitos práticos no direito sucessório. Para tanto, utilizou-se o método indutivo com análise de doutrina, jurisprudência e legislação, suficiente à respaldar a conclusão do estudo, bem assim, se observou o método dedutivo, através do qual se buscou identificar dados gerais sobre os fundamentos e princípios aptos à demonstrar que as soluções encontradas para os casos analisados não condizem com o princípio fundamental da dignidade humana. Donde se nota que a acepção moderna de família há muito subjugou o conceito tradicional e que as relações plurais amargam uma longa espera por soluções legislativas ficando, por enquanto, à deriva num mar de decisões judiais preconceituosas e injustas que, no mais das vezes não conseguem compreender o real e moderno conceito de família.
Palavras-chave: União Estável. Concubinato. Direito Sucessório.
Abstract: This article aims to provide an analysis of the issue of individuals involved in parallel or simultaneous relationships and their characterization as a family entity, observing their practical effects on inheritance law. For this, the inductive method was used with analysis of doctrine, jurisprudence and legislation, sufficient to support the conclusion of the study, as well as the deductive method, which sought to identify general data on the foundations and principles suitable for demonstrate that the solutions found for the cases analyzed do not match the fundamental principle of human dignity. From this it can be noted that the modern sense of family has long overpowered the traditional concept, and that plural relations bitterly await long-term legislative solutions, drifting into a sea of biased and unfair judgments that often fail. Understand the real and modern concept of family.
Keywords: Stable Union. Concubinage. Succession Law.
Sumário: Introdução. 1. Evolução Histórico-conceitual da Família. 2. O Moderno Conceito de Família e a Constituição Federal de 1988. 3. Famílias Simultâneas ou Paralelas. 4. Efeitos Sucessórios. Conclusão. Referências.
Introdução
A sociedade atual tem experimentado as mais diversas transformações socioculturais. Com o crescimento da consciência feminina que tem feito mais e mais mulheres se lançarem no mercado de trabalho e disputarem espaço com os homens, os avanços tecnológicos que tem proporcionado até mesmo o desenvolvimento embrionário de fetos tem dado cada vez mais independência aos indivíduos, transformando uma sociedade arraigada na cultura patriarcal em uma sociedade sem gênero.
Essa mesma dinâmica social tem proporcionado não o surgimento, mais o reconhecimento, ao menos em tese, de novas formas de união familiar. Casais que optam por morarem sozinhos e mesmo assim formam famílias (unipessoais); união de pessoas do mesmo sexo e até o relacionamento de mais de duas pessoas (poliamor).
Logicamente, essa nova, se é que pode assim se falar, realidade, tem imposto a necessidade de soluções judiciais para os mais diversos problemas familiares. À ausência de legislação específica, as decisões judiciais são por vezes dissonantes e até injustas, notadamente quando se está diante do fenômeno do poliamor onde uma ou mais pessoas mantem relacionamentos paralelos e simultâneos.
É que a praxe forense, no mais das vezes, assim como parte significante da doutrina ainda insistem em rechaçar a figura do concubino, expressão esta, aliás, preconceituosa. É que o indivíduo que se une à pessoa casada não separada de fato terá tratamento discriminatório em relação ao indivíduo casado, como se a dignidade daquele não tivesse o mesmo valor atribuído à deste.
No afã de proteger a família, o operador do direito talvez tenha se perdido em meio à nova realidade e, buscando a definição tradicional, deixa de saber, de fato, o que é família ou entidade familiar.
As consequências são de cunho sucessório e obrigacional e quase sempre tem observado soluções injustas.
O presente artigo foi elaborado a partir da coleta de dados encontrados em livros e publicações digitais. Adotou-se, para tanto, os métodos indutivo com análise da doutrina, jurisprudência e legislação para se chegar às conclusões observadas; e o método dedutivo, através do qual se buscou identificar dados gerais sobre os fundamentos e princípios aptos à demonstrar que as soluções encontradas para os casos debatidos não condizem com o princípio fundamental da dignidade humana.
O texto é, portanto descritivo e reflexo, pois que busca descrever as situações encontradas na doutrina e jurisprudência a fim de possibilitar a interpretação crítica destas e sua validade e eficácia jurídica.
A família tem o seu surgimento no momento mesmo em que surgem os primeiros agrupamentos humanos. É que o homem tem a necessidade de reproduzir-se e, para tanto, necessita de, em algum momento, unir-se a outro indivíduo. De igual modo, a criação da prole impõe a necessidade de uma união, ainda que temporária.
É possível afirmar, pois, que a convivência aos pares é um fato natural, que culmina na formação de um agrupamento humano informal, através de laços de afeto, instinto de manutenção da espécie e proteção.
Deste modo, resta claro que a organização da sociedade se deu e evoluiu a partir da estrutura familiar, daí porque, com o surgimento do estado e a criação dos ordenamentos jurídicos, se procurou dar proteção ao que viria a ser reconhecido como um instituto jurídico: a família.
Ora, se o Estado surge para garantir a vida em sociedade de forma ordeira e organizada, a manutenção do próprio Estado passava pela preservação da família que foi tida como a célula mãe da sociedade.
Não por menos, a evolução cultural da sociedade levou os Estados a cunharem fórmulas de proteção para esta célula social – a família. Criaram-se, portanto, institutos jurídicos como o Casamento, a Separação de Corpos, o Desquite, a Separação Judicial e o Divórcio. Todos, de algum modo, traziam e trazem, mecanismos de proteção à manutenção da família.
A definição de família, por sua vez, sofreu sensíveis transformações ao longo da história, especialmente nas últimas décadas. Um dos elementos determinantes para a formação dos primeiros grupos familiares – a necessidade de procriação – colaborou com a conceituação de família, ao menos nas sociedades ocidentais, como sendo a união de um homem e uma mulher com o objetivo de gerar filhos e perpetuar a espécie.
Os primeiros contornos conceituais do instituto da família desprezavam, contudo, a amplitude do conceito de afeto, restringindo, destarte, a formação de agrupamento familiar à união de um pai, uma mãe e filhos.
Modernamente, contudo, o conceito tradicional de família tem perdido espaço. É que um novo elemento e mais importante, qual seja, o afeto, tem se revelado muito mais adequado à estruturação conceitual de família. Não há se negar que o desejo, o carinho e o amor tenham muito mais força para formação de uma unidade familiar que a anacrônica necessidade de procriação.
Por outro viés, se o amor não tem gênero nem está limitado a número, seria possível se admitir como unidade familiar a união entre pessoas do mesmo sexo ou de mais de duas pessoas de iguau sexo ou sexos opostos, tal um homem e duas mulheres ou dois homens e uma mulher.
Esta discussão, contudo, tem encontrado, ainda, alguma resistência que busca fundamentar-se em princípios éticos, morais e nos bons costumes. Estes últimos, todavia, também tem passado por transformações.
O mesmo preconceito que se coloca contra o reconhecimento de grupos familiares sem gênero afeta também as situações de fato. A união estável, por exemplo já foi, entre nós, objeto de grande rejeição social, bem como as relações extraconjugais, fazendo com que, ainda hoje, a expressão concubinato coloque a pecha de imoral e antiética nas pessoas que mantém relacionamentos com indivíduos casados.
Diante de tantas transformações socioculturais que trazem este novo conceito de família, ainda em formação, os operadores do direito se veem num limbo interpretativo e de usurpação de competência legislativa pelo poder judiciário, ainda mais porque as transformações aqui discutidas trazem consequências não apenas para o direito das famílias, mas também porque lançam um desafio de cunho sucessório, cujas soluções não encontram na jurisprudência pátria um alinhamento razoável, com decisões contraditórias e comprometedoras da ordem jurídica.
A família moderna está mais bem lastreada em vínculos afetivos e, portanto em critérios sociopsicológicos que na necessidade de reprodução, admitindo-se, inclusive, família sem filhos. É que a consagração do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana a partir da Revolução Francesa do Século XVIII tem imposto o reconhecimento de um olhar muito mais fraternal e menos ideológico da família.
GLANS (2005, p.30), sustenta que família “é o conjunto formado por um ou mais indivíduos, ligados por laços biológicos ou sociopsicológicos, em geral morando sob o mesmo teto, e mantendo ou não a mesma residência. Pode ser formada por duas pessoas casadas ou em união livre, de sexo diverso ou não, com ou sem filhos; um dos pais com um ou mais filhos (família monoparental); uma pessoa morando só, solteira, viúva, separada ou divorciada, ou mesmo casada, com residência diversa daquela de seu cônjuge (família unipessoal); pessoas ligadas pela relação de parentesco ou afinidade (ascendentes, descendentes e colaterais – e estes até o quarto grau)”.
A Constituição Brasileira de 1988 não deixou desapercebida a dignidade da pessoa humana, fazendo deste princípio um Fundamento da República logo em seu 1º Artigo, Inciso III. Dessa forma, a Dignidade Humana se consolidou constitucionalmente o primeiro dos princípios, reconhecendo o ser humano como figura central do estado de direito.
“A expressão entidade familiar alargou o conceito de família. A ela é assegurada a especial proteção do estado como base da sociedade” […]. (DIAS, 2020, p. 439).
Destarte, a especial proteção do Estado à Família deixou de ser dirigida ao casamento unicamente, passando a albergar toda e qualquer espécie de entidade familiar. Não por menos, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (2011), reconheceu, nos autos da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 em julgamento conjunto com a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, que “[…] O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos […] A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no §3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”, não pretendeu diferenciá-la da “família”. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito de família. […]”
É que “a atávica necessidade que cada um de nós sente de saber que, em algum lugar, encontra-se o seu porto e o seu refúgio, vale dizer, o seio de sua família, este lócus que se renova sempre como ponto de referência central do indivíduo na sociedade; uma espécie de aspiração à solidariedade e à segurança que dificilmente pode ser substituída por qualquer outra forma de convivência social”. (OLIVEIRA 2002, p.7).
Porquanto, o pluralismo das relações familiares deu novos contornos à estrutura da sociedade. Observa-se, assim, uma nova acepção da igualdade de todos perante a lei e do próprio conceito de família que passa a admitir toda e qualquer espécie de união entre pessoas, não se limitando a questões de gênero nem quantitativas, exigindo do ordenamento jurídico respostas rápidas para a dinâmica social.
Para tanto, a fuga ao preconceito de uma sociedade como a brasileira que, de origem judaico-cristã tem bases patriarcais, tem sido o maior desafio. Prova disso é que embora a Lei ainda não preveja diretamente a possibilidade de união homoafetiva, o Poder Judiciário tem tratado de sanar esta lacuna admitindo e reconhecendo a união de pessoas do mesmo sexo e destinando a estes o mesmo tratamento jurídico dispensado ao casamento.
Para um país de maioria católica, outro grande desafio entre nós é a questão religiosa que, em certa medida, agudiza o preconceito em face de entidades familiares que se afastem do conceito tradicional de família.
Por outro lado, a atividade sexual deixou de ser preponderante na formação da família. Os avanços tecnológicos permitem, hoje, a concepção sem a necessidade do coito. Do mesmo modo, a liberdade humana, hodiernamente, também contempla a liberdade sexual, de escolha e a busca pela felicidade. Esses e outros fenômenos acabaram por romper a barreira ideológica da definição de família tradicional.
“Por isso, não se afirme que a discussão, em nível jurídico, dos direitos da (o) amante traduz a frouxidão dos valores morais de nosso tempo, pois, se crise ética e valorativa há no mundo de hoje – e, de fato, creio existir – deriva, sem dúvida, de outros fatores (sucateamento do ensino, desigualdade social ainda acirrada, níveis alarmantes de insegurança pública, falta de visão filosófica e espiritual da vida), e não da infidelidade em si, que, conforme dissemos, é assunto dos mais antigos”. (GAGLIANO, 2008).
Entre avanços e retrocessos, certo é que os relacionamentos paralelos ou simultâneos estão entre os que mais tem sofrido consequências do descaso legislativo e do preconceito social e religioso, posto que ainda são vistos como relacionamentos espúrios que ao revés da proteção do estado, nesta visão comezinha, merecem a reprimenda legal, o que tem sido o combustível para discursos inflamados contra o inevitável e necessário reconhecimento da pluralidade de relações familiares.
De um modo ou de outro, certo é que a Carta Política de 1988 ao consagrar a dignidade humana como Fundamento, acabou por elevar o ser humano a patamar mais elevado, não se admitindo mais discursos de ódio ou preconceito contra a opção de vida das pessoas e facilitando, deste modo, as soluções paliativas engendradas pelo Judiciário até aqui.
Porquanto, a pedra de toque do reconhecimento de união livre ou paralela entre indivíduos não é mais a existência ou não de um vínculo formal (matrimonial) antecedente, mas sim o afeto, o desejo entre duas ou mais pessoas de estarem juntas e compartilharem carinho, atenção e cuidado.
O vínculo afetivo e sexual de um indivíduo com duas ou mais pessoas ao mesmo tempo, inobstante sempre tenha existido, era visto como espúrio, clandestino e carregado de preconceito.
Modernamente, esse tipo de relacionamento já pode ser compreendido, observadas determinadas condições, como entidade familiar e receber a também proteção estatal.
Três, portanto seriam as espécies de união paralela ou simultânea (aqui compreendidas como expressões sinônimas). A primeira delas e de mais fácil compreensão é a união estável que já goza de reconhecimento legal e inclusive constitucional. Esta é a união pública e duradoura de duas pessoas com o objetivo de constituição familiar. As outras duas são da espécie concubinato, podendo ser puro ou impuro.
Concubinato impuro é o relacionamento não eventual em que um ou ambos os envolvidos estão impedidos de se casar por já estar ou estarem em matrimônio. Para este caso, doutrina e jurisprudência majoritárias entendem ser impossível o reconhecimento da caracterização de entidade familiar.
Já o Concubinato puro é, igualmente, uma relação não eventual entre duas pessoas em que uma delas é casada. Entrementes, se difere do concubinato impuro porque, neste caso, a pessoa não casada desconhece, completamente, a situação matrimonial do seu companheiro, agindo, desta forma de boa-fé.
Portanto para que seja reconhecida, a união estável pressupõe algumas condições elencadas no Código Civil, quais sejam, que a convivência seja pública, contínua, duradoura e com o objetivo de constituição familiar. Há ainda uma outra condição aparente que é aquela disposta no artigo 1.521 em combinação com o inciso VI deste dispositivo de Lei: “Art. 1.521“Não podem casar: VI – as pessoas casadas”. A interpretação analógica é automática: não poderiam estar em união estável as pessoas casadas.
O artigo 1.723 estabelece, em seu parágrafo primeiro que: “§ 1 o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.” (grifo nosso).
Para o Superior Tribunal de Justiça, a união estável é capaz de gerar direitos, conforme o Enunciado nº 97 do CJF – STJ, in verbis: “Art. 25: no que tange à tutela especial da família, as regras do Código Civil que se referem apenas ao cônjuge devem ser estendidas à situação jurídica que envolve o companheiro, como, por exemplo, na hipótese de nomeação de curador dos bens do ausente (art. 25 do Código Civil).”
Consoante a inteligência do Artigo 1.723, §1º acima discutido, portanto, as pessoas casadas podem formar união estável com outras desde que haja boa-fé do companheiro não casado ou que tenha se observado a separação de fato do casado. Ao menos esse é o entendimento de parte da doutrina que ainda vislumbra a existência do concubinato para os casos do não separado de fato em novo relacionamento ou da ausência de boa-fé de sua nova companheira.
A boa-fé, neste caso, representa a ignorância do companheiro da condição de casado da outra parte, sendo oportuno, nestes casos, a aplicação analógica da regra atinente ao casamento putativo, vale dizer, a união estável seria putativa e como tal reconhecida como entidade familiar a gerar efeitos para o companheiro de boa-fé, configurando o chamado concubinato puro.
Para DINIZ (2015, p.48), todavia, “no concubinato impuro, que se configura nas relações não eventuais em que um ou ambos os amantes estão comprometidos ou impedidos legalmente de se casar, perde-se a o caráter de entidade familiar”
Assim como a festejada autora acima, o Superior Tribunal de Justiça – STJ, entendeu não ser possível a existência de dois relacionamentos simultâneos serem considerados como entidades familiares: “AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.235.648 – RS (2011/0027744-0). AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. CASAMENTO E CONCUBINATO SIMULTÂNEOS. 1. A orientação jurisprudencial desta Corte é firme no sentido de que a relação concubinária, paralela a casamento válido, não pode ser reconhecida como união estável, salvo se configurada separação de fato ou judicial entre os cônjuges. 2. Agravo regimental não provido […]”[1]
PEREIRA (2011, p.73), argumenta que “as uniões livres, mais ou menos duradouras e especialmente o concubinato, cuja quase estabilidade não deixa de atrair atenções e despertar interesses da ordem jurídica. É obvio que não gera consequências iguais ao matrimônio, mas não deixa de produzi-las, mormente no plano econômico.”
Para os que ainda defendem a ocorrência do concubinato há a necessidade de exclusividade de relacionamento sólido para o reconhecimento da União Estável. Deste modo, o casamento continuaria a ser o maior óbice ao reconhecimento da união estável quando um dos companheiros é casado. Portanto, é a separação de fato que viabiliza o reconhecimento da união estável.
Há, ainda, uma outra realidade para a qual os tribunais pátrios ainda têm olhar míope, é a questão do poliamor. Para GAGLIANO (2008), “O poliamorismo ou poliamor, teoria psicológica que começa a descortinar-se para o Direito, admite a possibilidade de coexistirem duas ou mais relações afetivas paralelas, em que os seus partícipes conhecem e aceitam uns aos outros, em uma relação múltipla e aberta”.
Visto com preconceito nas sociedades ocidentais, o poliamor não é novidade entre nós. Por razões sociológicas e culturais as pessoas torcem o nariz para esta realidade, mas o fato é que o ser humano pode amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo e não raro o faz.
Sendo um fenômeno social, portanto, deve ser preocupação do direito que ao longo de décadas tem ignorado esta realidade. A propósito, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, assim decidiu: “A 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça reconheceu que um cidadão viveu duas uniões afetivas: com a sua esposa e com uma companheira. Assim, decidiram repartir 50% do patrimônio imóvel, adquirido no período do concubinato, entre as duas. A outra metade ficará, dentro da normalidade, com os filhos. A decisão é inédita na Justiça gaúcha e resultou da análise das especificidades do caso. (…) Para o Desembargador Portanova, ‘a experiência tem demonstrado que os casos de concubinato apresentam uma série infindável de peculiaridades possíveis’. Avaliou que se pode estar diante da situação em que o trio de concubino esteja perfeitamente de acordo com a vida a três. No caso, houve uma relação ‘não eventual’ contínua e pública, que durou 28 anos, inclusive com prole, observou. ‘Tal era o elo entre a companheira e o falecido que a esposa e o filho do casamento sequer negam os fatos – pelo contrário, confirmam; é quase um concubinato consentido’. O Desembargador José Ataides Siqueira Trindade acompanhou as conclusões do relator, ressaltando a singularidade do caso concreto: ‘Não resta a menor dúvida que é um caso que foge completamente daqueles parâmetros de normalidade e apresenta particularidades específicas, que deve merecer do julgador tratamento especial”.[2]
Como bem observou a decisão acima, infindáveis são as possibilidades que podem surgir de relações afetivo-familiares, o que demanda outra ordem de compreensão. O que nas palavras de PEREIRA (2001, p. 170). “Quem pretende focalizar os aspectos ético-sociais da família, não pode perder de vista que a multiplicidade e variedade de fatores não consentem fixar um modelo social uniforme”.
Demonstrando a grande divergência que carrega o tema, ao julgar o do Recurso Extraordinário 397.762-8, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal – STF, negou à concubina que conviveu 37 anos com um homem casado, o direito de dividir pensão previdenciária com a viúva.
Neste mesmo julgado, contudo, o voto divergente do Ministro CARLOS AYRES BRITTO, acentuou que: “Já para o ministro Carlos Britto, ao proteger a família, a maternidade, a infância, a Constituição não faz distinção quanto a casais formais e os impedidos de casar. Para o ministro, ‘à luz do Direito Constitucional brasileiro o que importa é a formação em si de um novo e duradouro núcleo doméstico. A concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isto é família, pouco importando se um dos parceiros mantém uma concomitante relação sentimental a dois’. O ministro votou contra o recurso do estado da Bahia, por entender que as duas mulheres tiveram a mesma perda e estariam sofrendo as mesmas conseqüências sentimentais e financeiras”.[3]
Em que pese o tradicionalismo da jurisprudência pátria, a resistência ao tema dos relacionamentos plurais começa a dar sinais de cansaço. Alguns tribunais começam a colocar luz sobre o tema e parte da doutrina tem tratado de convencer os operadores do direito qual caminho seguir. É preciso, contudo, que este mesmo sentimento consiga chegar ao Congresso Nacional, pois não se trata apenas de discutir valores, mas sim de observar e regulamentar fatos sociais que insistem em se repetir em nossa sociedade.
O ativismo judiciário acerca da matéria aqui estudada, qual seja a entidade familiar em face dos relacionamentos plurais, não se restringe ao Livro IV do Código Civil Brasileiro, sendo também de interesse constitucional e tendo grandes repercussões no direito sucessório.
Sendo ordem constitucional que a união estável terá os mesmos efeitos jurídicos do casamento em regime de comunhão parcial de bens, não há se negar ao companheiro a titularidade de direitos sucessórios, inclusive da meação.
A primeira situação a se observar é a sucessão do casado. É que consoante dispõe o artigo 1.830 do Estatuto Civil, ao cônjuge sobrevivente, somente caberão direitos sucessórios do de cujos desde que não esteja separado judicialmente ou de fato há mais de dois anos. Ressalvado, claro, o patrimônio construído com esforço comum.
A união estável, por seu turno, encontra também regulamentação legal, sendo que o artigo 1.725 do Diploma Civil resguarda a sucessão do companheiro, equiparando sua situação ao casamento em regime de comunhão parcial de bens, salvo a existência de contrato de união estável dispondo de maneira diversa.
As maiores digressões, contudo, espraiam na situação em que um dos companheiros é casado com ou sem separação de fato. É que Doutrina e Jurisprudência têm se ocupado de sanar as lacunas legislativas nem sempre com posições equilibradas, o que acaba por comprometer a segurança jurídica do direito posto.
Neste diapasão, pelo que se tem observado das decisões judiciais em boa parte, especialmente do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, pode-se afirmar que de um relacionamento paralelo em que um dos companheiros é casado e separado de fato, a pessoa com quem ainda é casado ou casada terá a meação dos bens adquiridos até o momento da separação de fato, deste que haja prova desta.
Já o companheiro do indivíduo casado e separado de fato com quem se envolveu em união estável fará jus, em termos sucessórios, ao patrimônio constituído após a separação de fato.
Por outro jaez, não havendo se operado a separação de fato ou mesmo não se comprovando esta, o acervo patrimonial caberá ao consorte com quem era casado, não se reconhecendo direitos sucessórios ao concubino.
Questão controversa é a patilha de bens no concubinato impuro quando o concubino contribuiu para formação do patrimônio. A solução que, inobstante não seja pacífica, seria a mais justa, é que, comprovado o esforço comum, o concubino faria jus quinhão patrimonial que ajudou a construir.
Havendo dependência econômica por parte do concubino (impuro), somente lhe restariam direitos no campo obrigacional (Direito das Obrigações), sendo que mesmo a concessão de pensão alimentícia é discutível, posto que a questão não está pacificada na jurisprudência.
Já a situação do companheiro ou companheira de pessoa casada não separada de fato, mas que tem boa-fé (concubinato puro), isto é, que não conhecia a situação de casado do outro, tem observado as mais variadas soluções com ou sem reconhecimento de direitos sucessórios.
Há, ademais, aqueles que levantam a voz contra o que se tem apresentado como verdadeira injustiça em matéria sucessória: assim, SANTOS eleva o tom: “reconhecida a união dúplice ou paralela, por óbvio, não se pode mais conceber a divisão clássica de patrimônio pela metade entre duas. Na união dúplice do homem, por exemplo, não foram dois que construíram o patrimônio. Foram três: o homem, a esposa e a companheira. Logo, a clássica divisão pelo critério da meação é incompatível com a formação de patrimônio por três pessoas, e não mais por duas. Aqui é preciso um outro pensar, diria um outro paradigma de divisão. Aqui se pode falar em uma outra forma de partilhar, que vai denominada, com a vênia do silogismo, de “triação”, que é a divisão em três e que também deve atender ao princípio da igualdade. A divisão do patrimônio pressupõe que os beneficiados sejam contemplados igualmente com sua parcela, da forma mais justa e equânime possível. Por isso, quando temos um único casal divide-se o patrimônio por dois. Mas quando o direito passa a regular a partilha da união dúplice nada mais responde ao critério igualizador do que a divisão por três”.[4]
Mais uma vez o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul lança luz sobre o tema: “APELAÇÃO. UNIÃO DÚPLICE. UNIÃO ESTÁVEL. PROVA. MEAÇÃO. “TRIAÇÃO”. SUCESSÃO. PROVA DO PERÍODO DE UNIÃO E UNIÃO DÚPLICE. A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união entre a autora e o de cujus em período concomitante a outra união estável também vivida pelo de cujus. Reconhecimento de união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. MEAÇÃO (TRIAÇÃO) Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre as companheiras e o de cujus. Meação que se transmuda em “triação”, pela duplicidade de uniões. DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. POR MAIORIA”.[5]
Entrementes, o Superior Tribunal de Justiça é quem, no mais das vezes tem dado a última palavra em matéria sucessória nos relacionamentos paralelos ou simultâneos e, por sua vez, tem negado reconhecer direitos sucessórios ao companheiro de pessoa casada não separada de fato.
Há, ainda, a repercussão sucessória para os casos onde se formou prole na relação paralela. O Superior Tribunal de Justiça tem corrigido ou confirmado decisões de instâncias inferiores para reconhecer que “o concubinato ou relação paralela, diferentemente da união estável e do casamento, pode produzir efeitos jurídicos se eventualmente houver prole ou aquisição patrimonial por ambos os concubinos, o que depende da demonstração cabal”.[6]
Por consequência, é de se admitir, ainda, outra prolífica discussão na seara processual, qual seja, aquela atinente às provas no processo civil, posto que a solução para cada caso passará, consoante reconhece o Superior Tribunal de Justiça, pela demonstração cabal de esforço comum na construção do acervo patrimonial o que, naturalmente, ensejará o surgimento de decisões aparentemente contraditórias e mesmo efetivamente conflitantes.
As provas da separação de fato, do esforço comum e da dependência econômica são da mais alta relevância para o asseguramento de direito sucessório e mesmo obrigacional ao companheiro não casado, posto que sem estas, dificilmente se reconhecerá o relacionamento havido como de caráter familiar.
Conclusão
Apesar de serem uma realidade, as famílias poliafetivas carecem de reconhecimento jurídico, orbitando na insegurança jurídica de decisões judiciais as mais variadas e de discussões doutrinárias acaloradas.
O reconhecimento legislativo, igualmente caminha a passos lentos e, mesmo a despeito de um amadurecimento cultural, a questão longe está de ser pacificada.
Enquanto isso, doutrina e jurisprudência majoritárias tendem a não reconhecer as entidades familiares poliafetivas, no mesmo sentido tem se posicionado o Superior Tribunal de Justiça.
As decisões judiciais, à ausência de legislação pertinente, têm rechaçado a condição de concubinato impuro, expressão carregada de preconceito, mas que ainda se faz presente no dia a dia forense.
Porquanto, o companheiro de pessoa casada não separada de fato ou judicialmente deixará, via de regra, de observar direitos sucessórios, somente os conseguindo excepcionalmente e ainda quando demonstrada cabalmente a concorrência, isto é, o esforço comum na aquisição do patrimônio.
Logicamente, a concepção dessa maioria jurisprudencial está arraigada em uma forte cultura patriarcal e religiosa que em pouco ou nada contribuem com os objetivos fundamentais da República estampados no artigo 3º, de se construir uma sociedade livre, justa e solidária, e de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outras forma de discriminação.
É conclusivo pois, que vivemos em uma sociedade plural e igualmente múltiplos são os relacionamentos entre as pessoas, sendo inadmissível que, em pleno século XXI, com a consagração da dignidade humana como fundamento da República, se possa diferenciar pessoas em razão do formalismo matrimonial que, cada vez mais entra em desuso.
Destarte, o que seria inadmissível do ponto de vista teórico faz parte da prática forense: não se reconhecem, via de regra, direitos sucessórios ao indivíduo que compartilha de convivência com pessoa casada não separada de fato ou judicialmente.
O desenvolvimento sociocultural hodierno reclama, destarte, soluções legislativas para o tratamento isonômico de todos os envolvidos em relacionamentos poliafetivos, visto que são um fato social do qual não se pode negar a existência e ainda mais em razão do princípio da proibição do retrocesso social de sorte que o alcance dos direitos sociais não pode retroagir.
Referências
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[1] https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24921924/agravo-regimental-no-recurso-especial-agrg-no-resp-1235648-rs-2011-0027744-0-stj/inteiro-teor-24921925, em 15 de dezembro de 2019.
[2] http://www.conjur.com.br/static/text/60967,1, acessado em 14 de dezembro de 2019.
[3] http://conjur.estadao.com.br/static/text/66860?display_mode=print. Acessado em 14 de dezembro de 2019.
[4] SANTOS, Marília Andrade dos. Meação em razão da extinção de união estável adulterina: estudo de caso. Acessado em: 14 de dezembro de 2019.
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[5] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível Nº 70011258605, Oitava Câmara Cível, Relator: Rui Portanova, julgado em 25/08/2005. Disponível em: www.tjrs.jus.br. Acesso em 15 de dezembro de 2019.
[6] https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI271826,41046-STJ+So+ha+partilha+de+bens+entre+examantes+se+comprovado+o+esforco. Acesso em 15 de dezembro de 2019.
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