Resumo: Na execução de obrigação de fazer, quando esta diz respeito à prática de um ato administrativo, pode ser requerido ao juiz a substituição do ato administrativo pelo próprio ato judicial executório, a exemplo do que ocorre com atos da vida civil.
1. INTRODUÇÃO: A rotineira ineficácia do acesso aos tribunais.
O consumidor da prestação jurisdicional, em nosso país, muitas vezes se ressente da efetividade das decisões judiciais, principalmente quando são proferidas contra o Poder Executivo. Este se coloca como se estivesse acima do controle jurisdicional e chega ao absurdo de ‘selecionar’ aquelas decisões que cumprirá. Esta prepotência da Administração Pública coloca em xeque o próprio Estado democrático de direito que tem, dentre outras, a finalidade de por fim ao arbítrio, tanto que se consagrou na nossa Lei Magna a garantia do pleno acesso aos tribunais no art. 5º, XXXV, quando ali ficou preceituado, como cláusula pétrea, que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Ora, se nem a lei, ou seja, se nem mesmo o Poder Legislativo que é o representante do povo, pode impedir que o Judiciário proteja um direito ou mesmo afaste uma ameaça a um direito, tanto que se consagrou entre nós o controle da constitucionalidade das leis pelo Poder Judiciário, como se admitir que um membro do Poder Executivo se coloque acima deste controle ?
2. O acesso aos tribunais no sentido material.
O Poder Judiciário como guardião da Constituição, ou como depositário dos direitos constitucionalmente reconhecidos e, conseqüentemente, seu garante, não há de exercer este controle apenas sob a ótica formal, no sentido de se limitar a declarar um direito sem torná-lo efetivo. Conseqüentemente, este controle não se refere apenas ao direito de ação, ou seja, ao direito da parte provocar a manifestação judicial, mas também ao direito à jurisdição, aqui colocado como o direito de receber efetivamente, concretamente – via Poder Judiciário – aquele direito que por este foi reconhecido e tem sido negado pelo requerido; é o que se pode chamar de direito ao acesso aos tribunais no sentido material.
Toda a norma constitucional deve ser interpretada de modo a se lhe reconhecer a maior eficácia possível, e isto de maneira especial quando se trata de direito individual fundamental, eis que tais direitos deixaram de ser uma simples parte do Texto Maior, para se constituir em seu verdadeiro núcleo, e dentro deste núcleo está o direito individual de acesso aos tribunais.
O problema é que muitas vezes, mesmo com a decisão judicial o resultado não acontece, ou seja, o direito do acesso aos tribunais fica restrito ao seu aspecto formal, ou, em outras palavras, o cidadão exercita seu direito de ação e o Estado-juiz, apesar de reconhecer o direito, não cumpre seu dever constitucional[1] de concretizá-lo, dada a resistência oferecida por parte daquele que tem a obrigação de cumprir a decisão. O cidadão, como é óbvio, não pode ficar satisfeito com uma prestação jurisdicional só de palavras, pela metade.
3. Uma situação singular.
Alguém é aprovado em concurso público, não é nomeado e impetra um mandado de segurança para garantir sua nomeação; o Poder Judiciário acolhe o pleito e a determina. O administrador desobedece. Como executar a decisão judicial? Como tornar realidade o direito de ser nomeado que foi reconhecido pelo órgão constitucionalmente competente?
4. A execução no mandado de segurança.
A execução da sentença concessiva de segurança, diz Hely Lopes Meirelles , “é imediata, específica ou in natura, isto é, mediante o cumprimento da providência determinada pelo juiz sem a possibilidade de ser substituída pela reparação pecuniária. … Se o ato ordenado judicialmente depende de tramitação e formalidades administrativas para sua perfeição, deverá iniciar-se imediatamente o seu processamento regular, sob pena de considerar-se desatendida a ordem, … O não atendimento do mandado judicial caracteriza o crime de desobediência à ordem legal (Código Penal, art. 330), e por ele responde o impetrado renitente, sujeitando-se até mesmo à prisão em flagrante, dada a natureza permanente do delito.”[2]
5. Outras alternativas para a efetividade da decisão.
Além da caracterização do crime de desobediência, poder-se-á afirmar que é o caso de intervenção federal do Estado, – o art. 34, VI da nossa Carta Política não deixa dúvidas a respeito -; outra solução seria a imposição de multa à pessoa física do administrador, superando a teoria do órgão. Várias são as soluções apresentadas, sempre no sentido de prestigiar o princípio da efetividade das decisões do Poder Judiciário, porém não se pode esquecer que inúmeros julgados, embora, felizmente, não haja unanimidade a respeito, acolhem uma postura em sentido contrário, ou seja, de que nada acontece com o funcionário público que resistir injustificadamente ao cumprimento de uma decisão judicial, como se ele, o funcionário público, estivesse acima do guardião da Constituição. Postura esta que se pode dizer que é conservadora[3] porque valoriza excessivamente uma interpretação gramatical, quando esta é considerada, principalmente hoje, apenas a “porta de entrada” do processo interpretativo que é por excelência sistemático.[4] Outra crítica que se pode fazer a esta postura é de que ela privilegia a ordinarização do nosso ordenamento jurídico, ou seja, interpreta-o a partir da legislação infra-constitucional, quando deveria fazer caminho diverso, ou seja, partir dos valores constitucionais, colocando a legislação ordinária não como um fim em si mesma mas como instrumento de realização dos valores constitucionais, afinal os princípios deixaram de ser normas suplementares[5]
6. A solução proposta.
Todas as soluções citadas, e com certeza muitas outras que ainda o serão, são válidas e podem mesmo ser consideradas como soluções que se situam dentro da moldura kelseniana[6]. A proposta deste trabalho não é de criticá-las, mas apenas oferecer uma outra via, uma outra solução possível, ainda dentro da moldura kelseniana, talvez mais rápida e eficaz e com certeza menos onerosa, que é a do suprimento da declaração de vontade do administrador público pela decisão judicial, com base no art. 641 do CPC, que diz: “condenado o devedor a emitir declaração de vontade, a sentença, uma vez transitada em julgado, produzirá todos os efeitos da declaração não emitida.”
7. O alcance do art. 641 do CPC.
Este dispositivo poderá, num primeiro momento, através de uma leitura apressada, parecer ser vinculado à existência de um pré-contrato, ou seja, ser interpretado restritivamente, como de aplicação que se limita às relações contratuais; visto como um complemento do art. 639, seu vizinho[7]. Mas não é assim, basta uma leitura mais atente para se verificar que o alcance do contido no art. 641 vai além das relações contratuais. A respeito, é esclarecedora a lição de Teori Albino Zavaski: “A relação que existe entre o disposto no art. 641 e no art. 639 é relação de gênero e espécie, de continente e conteúdo. O art. 641 trata da demanda e provimento jurisdicionais destinados a satisfazer pretensão decorrente do não cumprimento de obrigação de declarar vontade, genericamente [8]considerada, enquanto que o art. 639 trata da mesma ação, quando a declaração de vontade descumprida for, especificamente, a de concluir contrato.”[9] Do que se pode, facilmente, concluir que o alcance do art. 641 é muito maior do que o do 639; se este se refere ao suprimento da vontade em contrato feito pelas partes, aquele alcança o suprimento da vontade de uma maneira geral. A expressão “devedor” constante no art. 641 deve ser entendida como sujeito passivo da obrigação de fazer, eis que é dentro desta seção do capítulo de execução das obrigações de fazer e não fazer que o dispositivo se situa.
8. O suprimento da declaração da vontade do administrador público.
Os mais afoitos poderiam argumentar que o suprimento aqui proposto caracterizaria invasão de competência; a solução importaria em violação ao princípio da separação dos poderes consagrado no art. 2º da Constituição Federal.
Porém, numa análise mais cuidadosa, percebe-se que este argumento é geralmente usado quando o Judiciário decide fazendo prevalecer o ordenamento jurídico sobre os interesses (ou “interesses”[10]) do Executivo. O objetivo de tal crítica é de cunho anti-democrático: impedir que a arbitrariedade administrativa seja embaraçada por qualquer decisão judicial. Se nos deixarmos por ela seduzir, chegaremos à absurda conclusão de que nenhuma sentença pode ser proferida contra a autoridade, ou – o que é pior – que toda sentença proferida contra a autoridade estaria condenada a ser letra morta.
Ainda quanto a esta questão, é importante também salientar que a teoria constitucional atual não fala em “Poderes”, mas em funções, ou seja, a função legislativa, a função executiva e a função judiciária. Deixou de haver exclusividade no exercício das funções, tanto que o legislativo tem função de julgar e de administrar, o executivo está legislando mais do que nunca e o judiciário já tem sido chamado de ‘semi-legislador’, um podendo suprir as omissões do outro porque o Poder é um só e a finalidade de todos é a concretização do programa constitucional de 1988.
Além disto, não haveria invasão de competência porque uma decisão judicial no sentido inicialmente referido não deixa à autoridade pública a opção de realizar ou não a nomeação, mas ao contrário, obriga-a a tanto, por isso não se trata de um ato administrativo discricionário, mas vinculado.
O que aqui se propõe não é o afastamento do Poder Judiciário de suas funções, mas sim que este exerça efetivamente sua função de solucionar o conflito.
9. O art. 641 e a disciplina das sanções elencadas no art. 461 do CPC.
No exemplo citado, o direito de ser nomeado foi reconhecido pela via do mandado de segurança, uma ação mandamental; assim a concretização do resultado deveria se dar, regra geral, através das alternativas apresentadas no art. 461 e seus parágrafos. Esta afirmação é correta, mas não absoluta, de vez que as alternativas ali previstas são exemplificativas, o que facilmente se extrai do contido no § 5º que diz: “Para a efetivação da tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias[11], tais como[12] a busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial.” A expressão “medidas necessárias” tem um alcance genérico, que significa dizer que toda a medida que seja aceita pelo ordenamento jurídico pode ser utilizada para a efetivação da tutela. Além disto a locução conjuntiva “tais como” deixa evidente que as medidas ali enumeradas, como busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, não são exaustivas[13], por isso a medida judicial de suprimento da vontade do sujeito passivo a obrigação de fazer, prevista no art. 641 pode conviver harmonicamente com o 461, pois ambos visam a mesma coisa, a efetividade da decisão judicial.
10. Quanto ao pedido.
Não se questiona que, a teor do art. 286 do CPC, o pedido deve ser certo ou determinado. Mas nem sempre esta substituição da vontade do Administrador pela decisão judicial deve constar necessariamente do pedido inicial. Uma ação mandamental admite uma execução de natureza constitutiva como seria na prática, a nomeação do funcionário, no exemplo ora analisado.[14] Esta conclusão está em sintonia com a teoria das cargas das sentenças, exposta por Pontes de Miranda que esclarece “a sentença mandamental supõe declaração, constituição e condenação, em doses fortes ou mínimas, porém o mandado do juiz, como eficácia é o que mais importa”.[15] Assim, nenhuma sentença é, por exemplo, totalmente condenatória ou totalmente constitutiva, declaratória ou mandamental.[16]
Deve ser lembrado, também, que a lei, em alguns casos, determina que o provimento da sentença seja mais completo que o pedido, sem ser considerada a parte excedente nula, por ser “extra petita”. Os casos mais conhecidos são os juros, a correção (estes dois não necessariamente declarados, art. 293 do CPC e art. 1º da Lei 6899, de 8/4/81) e as prestações vincendas (declaradas expressamente, art. 290 do CPC).
11. A possibilidade de inserção de novo provimento.
O art. 641 citado vem dar um importante passo adiante neste sentido, ou seja, desde que declarado expressamente na sentença que o Administrador está obrigado a emitir uma declaração, se não o fizer, permite-se a inserção de um novo provimento, qual seja, o do suprimento desta vontade pela decisão judicial. O suprimento não é automático neste caso, pois o correto é que o Administrador, cumprindo a ordem judicial, proceda a nomeação. Só em caso de resistência é que valerá o novo provimento inserido.
12. O princípio da menor onerosidade.
Um argumento fundamental em favor desta alternativa é o de que ela atende ao princípio processual da menor onerosidade consagrado no art. 620 do diploma processual civil, que determina: “Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor”. O suprimento da vontade do administrador renitente, pela decisão judicial, é certamente menos oneroso àquele, que a sua prisão ou a aplicação de uma multa, além do que é mais vantajoso para o credor da tutela, que a recebe de maneira mais rápida e eficaz.
13. Da possibilidade de um provimento desta natureza ser deferido liminarmente ou através de tutela antecipada, frente ao contido no art. 5º da Lei 4.348 e na Lei 9.494.
O citado art. 5º diz que não será concedida a medida liminar de mandados de segurança impetrados visando à reclassificação ou equiparação de servidores públicos, ou à concessão de aumento ou extensão de vantagens, enquanto que a Lei 9.494 fala que esta limitação, dentre outras, aplica-se à tutela antecipada contra a Fazenda Pública. Tais dispositivos, por se tratarem de exceção, devem ser interpretados restritivamente. Sendo restritivamente interpretados estes dispositivos, eles alcançam o ato de nomeação? Se a análise for feita sob a ótica do prejuízo do possuidor do direito, veremos que a resposta é negativa. A não nomeação é muito mais onerosa que a não reclassificação ou não equiparação, pois estes últimos já estão exercendo o cargo e recebendo a respectiva remuneração, enquanto o outro está privado de qualquer remuneração. Assim, se a lei veda a imediata proteção do direito à reclassificação ou equiparação, não se pode concluir que esta vedação alcance também a proteção imediata da nomeação, pois seria dar-se uma interpretação extensiva para um ato de exceção.
14. As limitações da liminar impostas pelo art. 7º, II da Lei 1.533.
Este dispositivo aparentemente limita o alcance da liminar em mandado de segurança apenas a suspensão do ato que deu motivo ao pedido, não admite, em princípio uma ordem positiva, ou seja, de obrigação de fazer. Neste sentido, inclusive, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça dizendo: A parte não tem o direito de obter, em mandado de segurança, providência cautelar de natureza diversa … da prevista em lei (suspensão dos efeitos do ato impugnado – art. 7º, II, da Lei n. 1.533/51. (RSTJ 24/201) . Todavia esta limitação não reflete a amplitude do poder geral de cautela conferido ao juiz pelo art. 5º, XXXV da Constituição Federal. Se assim é, tem-se que esta limitação não foi recepcionada pela Carta da República e a conclusão lógica deste raciocínio é que o juiz poderá, através de uma liminar em mandado de segurança, antecipar, embora provisoriamente, os efeitos de obrigação de fazer.
15. A antecipação da tutela e o provimento constitutivo.
Será possível antecipar provimento constitutivo? Para Cândido Dinamarco, como a lei não especifica o modo de conceder a antecipação da tutela, o juiz terá a seu dispor “um leque indefinido de possibilidades”, segundo as peculiaridades de cada caso concreto. (in A Reforma do CPC, 3ª ed., Ed, Malheiros, nº 105).[17] No magistério de Nelson Nery Jr. (in Aspectos Polêmicos da Antecipação da Tutela), em todas as ações de conhecimento terá cabimento, em tese, a antecipação da tutela. … Na ação constitutiva, o bem da vida nela pleiteado pode ser objeto de adiantamento, e assim também “os efeitos que eventualmente decorram da sentença constitutiva”.[18] Não pensa diferente Athos Gusmão Carneiro quando conclui que “nas ações constitutivas, o elemento nuclear do pedido poderá ser adiantado se compatível com a provisoriedade ínsita na antecipação da tutela.”[19] De cujas lições doutrinárias é fácil concluir que nada impede a antecipação da tutela – via liminar em mandado de segurança – da nomeação provisória do autor do pedido.
CONCLUSÕES:
a) o acesso aos tribunais deve ser interpretado no seu sentido material, ou seja, de que a parte não tem direito apenas à ação, mas também a jurisdição, no sentido de obter em concreto aquele direito que lhe foi reconhecido pelo Poder Judiciário. O Poder Judiciário não pode ser um poder só de palavras, mas de realização.
b) dentre as várias alternativas para a efetividade das decisões judiciais há a do art. 641 do CPC. que trata do suprimento da vontade do sujeito passivo da obrigação de fazer, por uma decisão judicial;
c) a hipótese do art. 641 do CPC, é genérica – uma cláusula aberta – e, conseqüentemente, não se limita a relações contratuais ou aos casos específicos previstos em lei;
d) o suprimento do ato administrativo por uma decisão judicial, quando o comportamento do administrador público é ilegal ou abusivo, está no âmbito da competência constitucional do Poder Judiciário;
e) as hipóteses de sanção previstas no § 5º do art. 461 para a efetividade da decisão judiciais são exemplificativas, podendo nelas ser incluída a do art. 641 do CPC.
f) o suprimento do ato de vontade do administrador público, pela decisão judicial, não precisa fazer parte do pedido inicial, pode decorrer de um novo provimento de carga constitutiva;
g) uma ação mandamental comporta execução de natureza constitutiva;
h) a alternativa do suprimento da declaração de vontade prevista no art. 641 do CPC em relação a outras alternativas como intervenção, prisão ou multa, atende melhor ao princípio processual da menor onerosidade;
i) a nomeação provisória de funcionário público através de sentença substitutiva não é vedada pelo art. 5º da Lei 4.348 ou pela Lei 9.494, porque estas, por serem normas de exceção, devem ser interpretadas restritivamente;
j) a limitação da liminar em mandado de segurança inserida no art. 7º, II da Lei 1.533, não foi recepcionada pelo art. 5º, XXXV da Constituição Federal, portanto, por força do poder geral da cautela do juiz, conferido pela nossa Carta da República, o juiz pode, em liminar de mandado de segurança, ordenar comportamento positivo da autoridade administrativa, ou seja, obrigação de fazer.
k) é cabível antecipação de tutela de provimento constitutivo, desde que compatível com a provisoriedade.
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