A definição do local de pagamento como determinante para o protesto de duplicatas mercantis

1. Introdução.


Nas linhas seguintes, procuraremos esboçar resumidamente os aspectos jurídicos que devem ser levados em conta quando da escolha do local do protesto de duplicatas mercantis. Cuida-se de questão que revela importância prática patente, mas cujos contornos teóricos não devem ser escusados. Neste mister, prossigamos.


2. O Protesto e o Lugar do Pagamento. 


O art. 13, § 3°, da Lei das Duplicatas (Lei Federal nº. 5.474/68) determina que o protesto deve ser tirado na praça de pagamento apontada no título. No entanto, admite-se que o protesto seja promovido no lugar do domicílio do devedor (e não no lugar do pagamento indicado no título) se este não sofre prejuízo algum com tal procedimento.


Por sua vez, a indicação do local do pagamento é um dos requisitos essenciais que precisa constar do corpo da duplicata (LD, art. 2º, § 1º, VI), devendo corresponder a certas regras de direito. Sendo a duplicata um título de crédito causal, vinculada a um determinado negócio jurídico (compra e venda mercantil ou prestação de serviços), é necessário que a designação do lugar do pagamento expresso no documento reflita aquilo que de fato foi ajustado entre as partes. Nessa perspectiva, duas hipóteses se colocam: (i) ajuste entre as partes acerca do lugar do pagamento; (ii) ausência se ajuste.


3. Ausência de Previsão do Lugar do Pagamento: Conseqüências.


Não existindo designação da praça de pagamento, aponta a doutrina que o protesto deve ser efetivado no lugar do domicílio do devedor[1], o qual precisa estar expresso no título, por exigência legal (LD, art. 2º, § 1º, IV).


Entretanto, a maioria das faturas hoje em dia são endereçadas a clientes com opção de pagamento através de toda a rede bancária nacional até determinada data, ou seja, o pagamento pode ser feito em qualquer lugar, a critério do devedor.  Após a data impressa na fatura, não raro prevê-se a obrigação de o cliente procurar um escritório da empresa ou pagar a fatura em agências de um banco específico.


Note-se que há, nesses casos, uma indeterminação na fatura quanto ao lugar do pagamento. De um lado, pode o cliente pagar o título em qualquer agência bancária; de outro, após a data estipulada, pode procurar qualquer escritório da empresa ou agência bancária.


Tal indeterminação acaba trazendo, na prática, a conseqüência de ser considerado o lugar do domicílio do devedor para fins de protesto do título, já que o art. 327 do Código Civil estabelece que o pagamento, em regra, deve ser efetuado no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem diversamente.


Desse modo, inexistindo expressa designação do lugar do pagamento no negócio jurídico firmado entre as partes, cai-se na regra geral para se saber onde efetuar o protesto: no local do domicílio do devedor. 


Observe-se que as eventuais ações judiciais baseadas nos títulos protestados deverão necessariamente tramitar na comarca do lugar do protesto. Assim, uma vez protestado um título em Recife, por ali ter domicílio o devedor, todas as ações relacionadas com tal título haverão de ser processadas e julgadas naquela comarca.


4. Previsão Implícita do Lugar do Pagamento e Emprego da Cláusula de Eleição de Foro: Riscos.


A situação se mostra um pouco diferente se, ao invés do entendimento de que há uma indeterminação do lugar do pagamento, for acolhida a tese de que existe a designação de mais de um lugar. Nesse caso, é preciso supor uma previsão implícita do lugar do pagamento que a emitente da duplicata anseia fazer valer.


O parágrafo único do art. 327 do Código Civil preceitua que cabe ao credor a escolha do lugar em que deverá ser efetuado o pagamento quando forem designados dois ou mais lugares:


“Art. 327. Efetuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem diversamente, ou se o contrário resultar da lei, da natureza da obrigação ou das circunstâncias.


Parágrafo único. Designados dois ou mais lugares, cabe ao credor escolher entre eles


Partindo-se da idéia de que a previsão de pagamento através da rede bancária significa a designação implícita de mais de um lugar, e sopesando-se que a emitente pode eleger contratualmente determinada comarca como o foro competente para a solução de quaisquer questões ligadas ao negócio jurídico do qual resultou o título, é possível cogitar a tese de que competiria à emitente, com base no art. 327, parágrafo único, optar por definir o lugar do pagamento.


Partindo desse ponto de vista, ao tirar na capital de certo Estado os protestos de faturas de consumidores domiciliados no interior, por exemplo, estaria a empresa emitente, a princípio, agindo em exercício regular de direito. Tal entendimento, todavia, pode despertar incontáveis celeumas.


Primeiro, por um motivo já mencionado: a expressão “pagável em rede bancária” utilizada nas imensa maioria das faturas denota, a nosso ver, uma indeterminação da praça de pagamento do título, o que traz a aplicação da regra geral do pagamento (e do protesto) no lugar do domicílio do devedor.


Segundo, porque a cláusula de eleição de foro a ser utilizada como parâmetro na escolha do local do protesto encontra-se inserida, na maioria das vezes, em típico contrato de adesão. Tal espécie de contrato, caracterizado pela predisposição de todas as cláusulas por uma das partes, não deixa margem para a discussão do seu conteúdo pelo aderente (cliente), razão pela qual tem a jurisprudência limitado o alcance de determinadas estipulações, como a eleição de foro.


De todo modo, uma vez demonstrado pela parte aderente (cliente) que a cláusula de eleição de foro lhe acarreta dificuldades no acesso à Justiça, é possível que seja declarada em juízo a nulidade e a ineficácia de tal cláusula e, por conseguinte, a irregularidade dos eventuais protestos realizados no foro eleito, com fundamento no entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça[2]. Bastaria, para tanto, a propositura de uma ação cautelar de sustação/cancelamento de protesto.


De fato, para um devedor domiciliado no sertão do Estado, e.g., poderá se revelar extremamente gravoso discutir judicialmente o protesto das duplicatas contra ele emitidas na capital ou em outro Estado. É que toda e qualquer ação pertinente às duplicatas protestadas deverá correr, como dito, no foro do lugar do protesto. E as dificuldades para o ajuizamento e acompanhamento de causas na capital poderão ser levantadas como fatores que restringem sobremaneira o acesso do devedor ao Judiciário. Nessa hipótese, a jurisprudência caminha no sentido da invalidade da cláusula de eleição de foro:


CONTRATO DE ADESÃO. CLAUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO.


I – O SO FATO DE TRATAR-SE DE CONTRATO DE ADESÃO NÃO TORNA INEFICAZ A CLAUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO, SENDO NECESSARIO QUE SUA ADOÇÃO TORNE INVIAVEL OU AO MENOS DIFICULTE A DEFESA DA PARTE ADERENTE, DIFICULTANDO-LHE O ACESSO AO JUDICIARIO.


II – PRECEDENTES.


III – RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.” (STJ, Terceira Turma, REsp 143889 / SP, Rel. Min. WALDEMAR ZVEITER, DJ 27.04.1998 p. 156)


“Não se aplica o foro do contrato, quando o sentido da cláusula é puramente impedir ou dificultar o acesso de uma das partes ao Judiciário. Exigir que a parte que teve título, alegadamente apontado, com irregularidade, tenha que se deslocar a comarca distante, no centro do país, equivale a impedi-la de buscar seus direitos, o que se afasta do sentido finalístico e até ético da lei.” (TJRS, QUINTA CÂMARA CÍVEL, AGRAVO DE INSTRUMENTO N º 193.046.091, RELATOR: SR. JORGE ALCIBÍADES PERRONE DE OLIVEIRA


Importa lembrar o cancelamento de protestos realizados no foro de eleição traria, além da necessidade de realizar novos protestos (desta vez no foro do domicílio do devedor), a responsabilidade da empresa emitente pelo pagamento dos ônus sucumbenciais das ações de cancelamento de protesto julgadas procedentes. Em outros termos, a emitente teria que pagar aos clientes/devedores as custas processuais e os honorários advocatícios pertinentes, fixados no percentual entre 10 e 20% do valor atribuído à causa, o qual deve coincidir com o valor dos títulos objeto dos protestos.


Vale alertar que é bastante comum a cumulação de pedidos de sustação/cancelamento de protestos com requerimentos de indenização por danos morais. Isso significa que, na hipótese de a emitente restar vencida num semelhante processo, poderá vir também a ser condenada a pagar ao devedor indenização a título de danos morais.


4. Conclusão.


Em resumo do que foi exposto, cabe sopesar as vantagens e desvantagens da realização dos protestos no foro de comarcas eleitas ao talante das empresas emitentes, ou no foro do domicílio do devedor, levando-se em consideração os riscos jurídicos que poderá acarretar a decisão a ser tomada.


 


Notas:

[1] ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de Crédito. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 700.

[2] CLAUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO. CONTRATO DE ADESÃO. PREVALENCIA. A CLAUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO, INSERIDA EM CONTRATO DE ADESÃO, E EM PRINCIPIO LICITA, SALVO DE ACARRETAR SERIO GRAVAME A PARTE ADERENTE. RECURSO CONHECIDO PELO DISSIDIO, E PROVIDO. (STJ, Terceira Turma, REsp 68730 / SP, Rel. Min. CLAUDIO, DJ 20.11.1995, p. 39589, LEXSTJ vol. 80 p. 277)

Informações Sobre o Autor

Matheus Carneiro Assunção

Acadêmciode Direito (UFPE) e Administração (UPE), pesquisador bolsista do CNPq.


Equipe Âmbito Jurídico

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