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A Democracia segundo Kelsen

Resumo: O presente artigo visa a abordar a faceta do filósofo político Kelsen, injustamente acusado de favorecimento ao regime nazista. Será pormenorizado o conceito de democracia por ele desenvolvido, entendida como a síntese dos princípios da liberdade e da igualdade. Como se verá, Kelsen proclama a democracia como a melhor forma de Estado e refuta qualquer espécie de ditadura partidária, seja ela de esquerda ou de direita.


Palavras-chave: Democracia – Kelsen – liberdade – igualdade – maioria.


Sumário: 1- Introdução 2- A visão democrática de Kelsen 3- Conclusão


Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja qualquer membro a ela pertencente e na qual o indivíduo, mesmo se unindo a todos os outros, obedeça apenas a si mesmo e permaneça livre como antes. (Jean Jacques Rousseau)


Introdução


Um dos maiores juristas do século XX, Hans Kelsen, nascido em Praga, em 11 de outubro de 1881, e cuja formação jurídica deu-se em Viena, Heidelberg e Berlim,mica deu-se em 881 e cuja foram já foi acusado de antidemocrático e de ter ajudado a justificar regimes totalitários, como o nazista.


Considerando tratar-se de um judeu, que foi obrigado a emigrar para os Estados Unidos exatamente em virtude do nacional-socialismo de Hitler, soa pitoresca tal afirmação desavisada.


De fato, em sua obra “Teoria Pura do Direito”, que exerce enorme influência até hoje no pensamento jurídico ocidental, Kelsen busca, como o próprio nome indica, produzir uma teoria pura, isenta de ideologias, que se aproxime de uma autêntica ciência, com as consectárias características da objetividade e exatidão. Desse modo, reconhece a produção normativa do regime nazista como direito, haja vista sua concepção desse de forma avalorada e universal.


Todavia, como positivista e, portanto, mero descritor do objeto de sua ciência, não cabe a ele qualificar de certo ou errado, verdadeiro ou falso o conteúdo do que é descrito. Apenas identifica o que é o direito de determinado ordenamento jurídico. Se deverá ser aplicado, se é justo ou injusto, é tarefa posterior, que não lhe retira a qualidade de direito. Isso demonstra que, ao descrever determinada norma, o positivista não estará, necessariamente, concordando com ou discordando dela, mas apenas identificando o direito vigente.


Assentadas essas premissas, o presente trabalho tem por escopo refutar referidas críticas através da exposição da visão de Kelsen sobre a democracia, com o que será de vez rechaçada qualquer acusação que ainda lhe pese de partidário do nazismo.


Muito conhecido como jurista, os estudos de Kelsen, porém, não se esgotavam na seara do direito, sendo também historiador do pensamento político-jurídico, antropólogo-sociólogo e filósofo político.


É exatamente a faceta do filósofo político que se quer mostrar neste trabalho. É como filósofo político que ele desenvolve suas observações e críticas ao substrato material do direito, de forma absolutamente diversa do que expôs em sua Teoria Pura. Aí está, aliás, o maior erro de seus opositores: ler a obra do positivista como tese de filosofia política, ignorando, por outro lado, sua obra filosófica.


Em “A Democracia”, como será demonstrado, Kelsen assume, por vezes, uma defesa até mesmo apaixonada da democracia, que define como a síntese dos princípios da liberdade e da igualdade, proclamando-a como a melhor forma de Estado, ao mesmo tempo em que refuta qualquer espécie de ditadura partidária, seja ela de esquerda ou de direita. Veja-se, então, o que ensina Kelsen a esse respeito.


A visão democrática de Kelsen


Kelsen afirma que são intrínsecos à idéia de democracia dois postulados de nossa razão, a saber, as exigências de liberdade e igualdade, a aversão a ser comandado por ou submetido ao alheio, ao igual. Assim, da idéia de que somos iguais, deduz-se que ninguém deve mandar em ninguém.


Todavia, a necessidade prática impõe uma mudança no significado do princípio da liberdade, que passa da ausência absoluta de domínio, para a autodeterminação política do cidadão. Desse modo, se a dominação for inevitável, o homem quer ser dominado por ele mesmo. A liberdade natural é, então, transformada em liberdade social ou política, que significa sujeitar-se a uma ordem normativa de cuja criação o sujeito participe, ainda que através de seus “representantes” eleitos.


No entanto, assevera Kelsen, mesmo na democracia direta, a liberdade do cidadão dura apenas o momento do voto, e isso se votou com a maioria. O princípio democrático da liberdade parece reclamar, pois, uma maioria qualificada ou até mesmo a unanimidade, reduzindo ao mínimo possível a imposição de uma decisão à minoria.


Mais uma vez, porém, a força da realidade se impõe, e vê-se que a unanimidade – ou a maioria qualificada – é inadmissível para a vida corrente, até mesmo porque provoca uma estagnação da alteração legislativa, impedindo ou dificultando enormemente que as pessoas simplesmente mudem de idéia, ou se adaptem aos novos tempos. Essa exigência seria iníqua, inclusive, se se pensar que a maioria das pessoas que vive sob o império de uma determinada ordem estatal sequer havia nascido quando de sua aprovação, que é, portanto, vontade alheia e não própria.


De outra ponta, poder-se-ia pensar que a maioria qualificada ou a unanimidade poderiam ensejar uma ditadura da minoria, que impedisse uma mudança da vontade do Estado. Está claro que a igualdade, como postulado democrático, visa a assegurar a liberdade ao maior número possível de indivíduos.


A transformação da idéia de liberdade – sua limitação – no parlamentarismo é, assim, devida à soma de dois elementos: o princípio da maioria, que substitui a exigência de unanimidade, que seria a única compatível com a democracia, e a criação indireta da vontade coletiva, concretizada pela inarredável necessidade de divisão do trabalho. Tais derrogações da concepção clássica de democracia surgem como imposição prática da sociedade moderna, como meio de tornar possível a expressão da vontade coletiva, dada a inexeqüibilidade do governo exercido por todos os cidadãos. Destarte, a vontade geral é emanada do parlamento, eleito pelo povo.


O princípio da maioria absoluta, porém, é o que mais se aproxima da idéia de liberdade, ensejando que o maior número de indivíduos seja livre. De fato, se, para modificar a ordem vigente, fosse necessária menos que a maioria absoluta dos governados, a vontade estatal, no momento de sua criação, estaria em desacordo com o maior número de indivíduos que lhe estão sujeitos e que, portanto, são “não-livres”. Desse modo, a percentagem de indivíduos “não-livres” seria maior do que a de livres, subvertendo-se o princípio democrático. Por outro lado, como dito, a maioria qualificada poderia possibilitar uma obstrução da minoria à alteração legislativa, fazendo com que o maior número de indivíduos que queria a modificação reste vencido, e, por conseguinte, seja “não-livre”. O princípio da maioria preconiza que a ordem social esteja em conformidade com o maior número de sujeitos possível e em desacordo com o menor número possível.


Como máxima aproximação da idéia de liberdade à realidade política, o princípio da maioria pressupõe o da igualdade, pois, considerando-se que o grau de liberdade em uma sociedade é proporcional ao número de indivíduos livres, todos devem ter o mesmo valor político e a mesma pretensão à liberdade.


Kelsen rebate as críticas marxistas ao princípio majoritário, que segundo eles só poderia realizar-se numa sociedade fundada em plena comunhão de interesses entre seus membros. Afora ressaltar o fato de não existir tal sociedade, o autor, enfaticamente, conclui[1]:


“Pois então a democracia é o ponto de equilíbrio para o qual sempre deverá voltar o pêndulo político, que oscila para a direita e para a esquerda. E se, como sustenta a crítica feroz que o marxismo faz à democracia burguesa, o elemento decisivo é representado pelas relações reais das forças sociais então a forma democrática parlamentar, com seu princípio majoritário-minoritário que constitui uma divisão essencial em dois campos, será a expressão ‘verdadeira’ da sociedade hoje dividida em duas classes essenciais. E, se há uma forma política que ofereça a possibilidade de resolver pacificamente esse conflito de classes, deplorável mas inegável, sem levá-lo a uma catástrofe pela via cruenta da revolução, essa forma só pode ser a da democracia parlamentar, cuja ideologia é sim, a liberdade não alcançável na realidade social, mas cuja realidade é a paz.” 


Verifica-se, num Estado democrático, uma nova transformação na idéia de liberdade política. Haja vista a liberdade individual restar irrealizável, e diante da rejeição ao domínio pelo igual, cria-se uma pessoa anônima, o Estado, resultado de uma “vontade coletiva”. O indivíduo que cria esse ente só é considerado livre no seu seio e à sua liberdade substitui-se a soberania popular, que nada mais é do que o Estado autônomo, livre. Daí a afirmação de que “o cidadão só é livre através da vontade geral e de que, por conseguinte, ao ser obrigado a obedecer ele está sendo obrigado a ser livre.”[2]


A democracia, no plano ideológico é realizada pelo povo, visto como unidade e como sujeito do poder. Todavia, a realidade denota que o povo ocupa essa posição de sujeito do poder apenas na medida em que participa da criação da ordem estatal e nem todos que constituem o povo como indivíduos submetidos a normas da ordem estatal podem participar do processo de criação dessas normas (direitos políticos).


Observe-se que restrições do direito ao voto a certas categorias de indivíduos, como os analfabetos, os loucos, os escravos e as mulheres, não descredenciam o regime como democrático. Some-se ao grupo dos impedidos, aqueles que simplesmente não desejam valer-se de seu direito.


Auxiliando no exercício desses direitos políticos, Kelsen destaca a importância dos partidos políticos, base da moderna democracia. Numa crítica à monarquia, acusada de dissimular, no ataque aos partidos políticos, sua aversão à democracia, assevera, verbis:


“Ainda hoje não se tem consciência suficiente de que a hostilidade da velha monarquia para com os partidos e de que a profunda contraposição construída entre os partidos e o Estado, particularmente pela monarquia constitucional, significam uma hostilidade mal dissimulada contra a democracia. Está claro que o indivíduo isolado não tem, politicamente, nenhuma existência real, não podendo exercer influência real sobre a formação da vontade do Estado. Portanto, a democracia só poderá existir se os indivíduos se agruparem segundo suas afinidade políticas, com o fim de dirigir a vontade geral para os seus fins políticos, de tal forma que, entre o indivíduo e o Estado, se insiram aquelas formações coletivas que, como partidos políticos, sintetizem as vontades de cada um dos indivíduos.”[3] 


Ressalta Kelsen que a democracia do Estado moderno é a democracia indireta, parlamentar, em que a vontade geral é formada pela maioria de eleitos pela maioria dos titulares dos direitos políticos, que são, assim, reduzidos a um simples direito de voto.


Ensina o autor que a luta contra a autocracia nos fins do século XVIII e início do século XIX foi travada em favor do parlamentarismo, tido como vital para a democracia moderna, que só sobreviveria se ele fosse capaz de resolver as questões sociais de seu tempo. Para ele o parlamentarismo é a única forma real possível da idéia de democracia, tendo sido a luta pelo parlamentarismo a luta pela liberdade política e que qualquer negação do parlamentarismo significa a negação da própria democracia.


Haja vista a exigência inconteste de divisão do trabalho, já que a democracia direta revela-se impraticável, recorre-se à ficção da representação, considerando-se o parlamento apenas como um representante do povo, com o que se o legitima do ponto de vista da soberania popular, ainda que os deputados não possam receber instruções obrigatórias do povo, sendo, portanto, independentes dele após sua investidura.


Kelsen justifica a necessidade do parlamento, lembrando que até mesmo numa autocracia o monarca vê-se obrigado a recorrer ao apoio de um Conselho de Estado ou órgão análogo, que é responsável pela preparação, deliberação e aprovação dos princípios e normas gerais de seu regime. O motivo para, tanto o monarca quanto o povo, não fazê-lo sozinhos é que lhes faltaria conhecimento, poder ou porque teriam medo da responsabilidade.


Desde a consolidação do regime parlamentar, grupos de extrema direita e esquerda, afirma, opõem-se cada vez mais ferozmente contra essa forma política, incitando à ditadura ou à organização corporativa. Todavia, as tentativas de abolição do parlamento para implantação da ditadura ou para a organização corporativa do Estado, ao fim e ao cabo, visam apenas à reformá-lo, estabelecendo-se como deve ser convocado e composto e quais serão a natureza e a extensão de sua competência.


Sem embargo, Kelsen sustenta que qualquer reforma do parlamentarismo só pode ser tentada com o intuito do reforçar o elemento democrático. Destaca a importância de se utilizar ou mesmo de se ampliar a utilização dos mecanismos de participação popular, como o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular. Para recuperar a crença no parlamento, propõe um controle permanente dos deputados por parte dos grupos de eleitores constituídos em partidos políticos e a responsabilidade do parlamentar perante seus eleitores.


Aliado a essas providências prega o fim – ou ao menos a limitação – da imunidade, formal e material, que chama de irresponsabilidade perante a autoridade do Estado e dos tribunais e que remonta à época da monarquia feudal, e o estabelecimento da fidelidade partidária, já que o voto do eleitor significa uma adesão ao partido e não ao candidato. Essa última medida pressupõe uma organização partidária sólida e relativamente estável dos eleitores. Conclui que a perda do mandato deve ser formal, declarada por um tribunal independente e imparcial, mediante provocação do partido cujos interesses possam ser comprometidos.


Críticas são feitas ainda ao parlamento, acusado de estar afastado do povo e de carecer, em sua atual composição, de conhecimentos técnicos necessários à elaboração de boas leis nos diversos campos da vida pública. A alternativa visualizada seria, assim, de “parlamentos técnicos”, que seriam eleitos por grupos técnicos profissionais de eleitores, e que funcionariam juntamente com o “parlamento político”, que seria o órgão coordenador. Cogita-se ainda de um “parlamento econômico”, tendo o político como consultivo ou munido de veto suspensivo.


Kelsen ressalta as dificuldades práticas de tal formação, haja vista não se poder determinar nitidamente a distinção entre o que é econômico e o que é político, dada a interligação dos dois assuntos e pelo fato de que, em um órgão legislativo de dois elementos, formados por princípios díspares, o acordo só poderá ser ocasional.


Respondendo àqueles conservadores que defendem a substituição do parlamentarismo por uma organização corporativa, em que se permita a cada grupo profissional a participação na formação da vontade do Estado, na medida de sua importância no seio social, Kelsen aponta que os interesses profissionais não abarcam todos os interesses da sociedade, que é composta também por motivações religiosas, éticas, estéticas, entre outras.


Ademais, o número de organizações que pretenderá um lugar no poder de decisão é enorme e sua delimitação será arbitrária, sem contar que seus interesses são conflitantes. Quem determinará o grau de importância de cada grupo profissional? Quem fixará a hierarquia e quais serão os princípios norteadores? Não haverá a criação de um novo sistema, mas a substituição do parlamentarismo democrático por um outro sistema de representação, um “parlamentarismo profissional”. O princípio “mecânico” da maioria, que criticam, continuará vigendo.


Destarte, a única saída para a composição de conflitos que satisfaça a todos os interesses em jogo é a atribuição do poder de decisão a uma autoridade eleita democraticamente, ou imposta de forma autocrática. É muito mais sensato um sistema que leve em conta a vontade de cada eleitor como membro do Estado e, portanto, interessado nas diversas questões que o compõem, do que considerá-lo simplesmente como profissional de determinada área.


 De fato, o parlamentarismo permite que o princípio majoritário impeça o domínio de classe, protegendo os interesses da minoria. A proteção da minoria é alcançada essencialmente com os direitos e liberdades fundamentais, cuja proteção constitucional deve ser especial, acobertada por um procedimento diferenciado. Desse modo, ter-se-á a proteção da minoria qualificada contra a maioria absoluta.


Tem-se, pois, que o princípio da maioria qualificada, em certas ocasiões, concretiza de forma mais eficaz o princípio de liberdade, representando uma tendência à unanimidade na formação da vontade geral. Na verdade, o verdadeiro significado do princípio da maioria na democracia real é de “princípio majoritário-minoritário”, dado que a técnica dialético-contraditória do procedimento parlamentar tende a resultar num compromisso entre os dois lados na formação da vontade geral.


Kelsen acredita que o melhor sistema eleitoral para o parlamento é o proporcional, afirmando que a idéia de proporcionalidade será tanto melhor concretizada quanto maior for o número de mandatos postos à disposição. O fato de esse sistema favorecer a formação de diversos partidos minúsculos desloca a necessidade de superar as diferenças entre os grupos em prol da união por um bem comum maior da esfera do eleitorado para a do parlamento. Com isso, a vontade do Estado será formada por um processo no qual estarão representados os mais diversos interesses.


Quanto a esse dado, adverte para o que chama de “um dos problemas mais escabrosos e perigosos do parlamentarismo”, o obstrucionismo, que pode ser técnico ou físico, violento. Todavia, admite, com exceção da obstrução violenta, que pode servir como um meio para orientar a vontade parlamentar para um compromisso entre maioria e minoria.


O sistema da eleição proporcional é o mais adequado para permitir que todos os grupos políticos estejam representados no parlamento na proporção de sua força, retratando, assim, a realidade dos interesses em conflito.  Se apenas a maioria tivesse representação no parlamento, não haveria como formar-se um compromisso verdadeiramente democrático. A influência que a minoria exerce sobre a formação da vontade da maioria será proporcional à sua representação no parlamento e essa participação na vontade geral impede o arbítrio da maioria, fortalecendo o princípio de liberdade.


De fato, de acordo com o sistema de representação proporcional, o representante é eleito com os votos do seu próprio grupo, sem o ser contra os votos de outro. É, destarte, a máxima aproximação possível do ideal de autodeterminação em uma democracia representativa, e, por conseguinte, o tipo mais democrático de sistema eleitoral.


Afirma-se, com razão, que na democracia ideal não há lugar para chefes. Não obstante, como a realidade social é o domínio, deve-se perguntar como se cria o chefe. No sistema da ideologia democrática, a direção exercida pelo chefe não tem valor absoluto, seu mandato é temporário, seus atos exigem publicidade e ele não é considerado uma divindade, mas um igual, sujeito a crítica e responsável perante aqueles que o elegeram – e que, posteriormente, podem ser eleitos para ocupar a sua posição.


Kelsen critica a separação de poderes, que afirma gerar uma supervalorização da função legislativa e que, estando no âmago da monarquia constitucional, possibilita ao monarca ainda exercer um poder próprio no campo da execução. Mas consegue ver nessa separação duas características favoráveis ao princípio democrático: a divisão impede a concentração, que, por sua vez, implica na expansão do exercício arbitrário e barra também a influência direta do governo na formação da vontade geral do Estado, já que reduz sua função à ratificação legislativa das leis. Critica ainda a república presidencial, acusando-a de enfraquecer a soberania popular, na medida em que, à frente de milhões de indivíduos está um único homem eleito para representá-los.


Os marxistas fazem uma dicotomia entre o que denominam democracia formal burguesa, em oposição à democracia social, que defendem. A democracia social ou proletária é uma ordem social que garante aos indivíduos não só uma participação igual na formação da vontade da coletividade, como uma igualdade com relação aos bens materiais.


Todavia, argumenta Kelsen, é a liberdade e não a igualdade que define a idéia de democracia. Aliás, a igualdade material pode talvez ser melhor realizada em regimes ditatoriais. O que se quer, afinal, é substituir o postulado da liberdade pelo de justiça – igualdade –, utilizando-se do termo democracia, em razão do forte apelo ideológico que subjaz a ele, para, na verdade, construir um sistema de ditadura política.


Ao responder à pergunta sobre que conteúdo deve o povo dar às leis por ele criadas, Kelsen assevera que a democracia adota uma concepção crítico-relativista do mundo, não admitindo a possibilidade de conhecimento da verdade absoluta (concepção metafísico-absolutista, característica dos regimes autocráticos). A decisão política, então, é resultado do acordo da maioria, presentes iguais condições de exposição, discussão e argumentação, e garantidos os direitos fundamentais da minoria. Desse modo, a minoria, que não está necessariamente equivocada, pode tornar-se maioria a qualquer momento.


Assim, a democracia angaria adeptos também pelo fato de o processo dialético da vontade do Estado que enseja, no confronto entre maioria e minoria, resultar em uma conciliação, obtida através de ampla discussão. Assegura a paz interna e, por conseguinte, a externa, haja vista sua ideologia racionalista e pacifista. A liberdade de opinião, de imprensa, religiosa e de ciência pertencem à essência da democracia. O liberalismo inerente à democracia moderna não significa apenas autonomia política do indivíduo, mas também autonomia intelectual, essência do racionalismo.


O caráter racionalista da democracia intenta preestabelecer, mediante leis, os atos individuais dos tribunais e órgãos administrativos, visando a torná-los previsíveis, em nome da segurança jurídica. Há, então, a racionalização do processo mediante o qual o poder do Estado se manifesta, já que é atrelado ao princípio da legalidade.


Kelsen ressalta que não pretende desenvolver uma justificação absoluta da democracia, ou provar que ela é a melhor forma de governo. Como análise científica, objetiva, de um fenômeno social, só pode sustentar que essa forma de governo tenta pôr em prática a liberdade em conjunto com a igualdade e que, se esses valores devem ser realizados, a democracia é o meio apropriado.


Uma justificação relativista e condicional deixa a cargo do indivíduo atuante na realidade política a decisão sobre o valor a ser posto em prática. Essa responsabilidade, todavia, gera uma resistência, pois poucas pessoas estão dispostas ou são capazes de aceitá-la. A conseqüência imediata é a transferência desse encargo para uma autoridade extrínseca, por vezes encontrada na religião. Cresce, assim, o movimento intelectual contrário ao relativismo e ao positivismo racionalista, baseado na metafísica religiosa e no direito natural, que coloca o problema da democracia como problema de justiça divina, absoluta.


Não se pode deixar de reconhecer, não obstante, que, racionalmente, tanto a essência de Deus, quanto a justiça absoluta estão além do conhecimento humano, não sendo objeto possível da ciência. Pode-se ter uma crença no absoluto, em Deus, mas não compreendê-lo.


Na esteira desse raciocínio, a afirmação de que a democracia pressupõe a existência de um bem comum objetivamente determinável, que constitui a vontade do povo é falsa e, caso não o fosse, tornaria a democracia irrealizável. O povo não tem uma vontade uniforme; a chamada “vontade do povo” é uma figura de retórica e não uma realidade. O governo do povo não pressupõe uma vontade do povo, mas que o povo participe na formação desse governo, através de eleições democráticas, com voto igualitário, universal, livre e secreto. Essa é a característica essencial da democracia.


O significado original do termo “democracia”, criado pela teoria política da Grécia antiga, é o de “governo do povo” (demos = povo e kratein = governo), e designa a participação dos governados no governo. Tentativas de deturpar esse conceito em prol de suas ideologias foram levadas a efeito pela doutrina comunista e do nacional-socialismo, afirmando-se que democracia é o governo “para o povo”. De fato, o governo do povo é desejado por ser, supostamente, para o povo. Mas definir o que seria interesse do povo não é tarefa das mais fáceis. Pode ser aquilo que o povo acredita ser de seu interesse, ou o que o governo diz que é. Um governo do povo, se exercido por homens sem preparo para tanto, pode revelar-se um governo contra o povo. Muitos autores políticos tentaram demonstrar que uma autocracia é um governo para o povo melhor que o governo do povo. Isso demonstra que governo do povo não é o mesmo que governo para o povo e que, visto poder haver um governo para o povo autocrático, essa característica não pode ser um dos elementos da definição de democracia.


Noutro giro, consolida-se o entendimento de que a democracia, como sistema ou processo, é uma forma de governo. O argumento do formalismo usado para desacreditar o regime democrático camufla o desejo de instaurar uma autocracia, fazendo com que o povo desista de participar do governo e confie que sua vontade será satisfeita se o governo agir em seu interesse. Com esse governo “para o povo”, então, se alcançaria a verdadeira democracia e não aquela meramente formal, que pressupõe o sufrágio universal, igualitário, livre e secreto.


Essa manipulação de conceitos foi utilizada pela doutrina soviética, que, preconizando a ditadura do proletariado, se intitulava baluarte da verdadeira democracia – a democracia para o povo, em oposição à democracia burguesa, ou para os ricos. Do mesmo modo, os ideólogos do partido nacional-socialista, não querendo demonstrar que se voltavam contra a democracia, utilizaram o recurso de denegrir o sistema político democrático da Alemanha, que seria uma plutocracia, ou uma democracia apenas formal, que permitia a uma minoria rica que governasse a maioria pobre. Exaltavam o partido nazista que, fazendo parte da elite, tinha por fim realizar a verdadeira vontade de seu povo, que era a grandeza e a glória da raça alemã. E ainda, o fascismo, sobre o qual Mussolini afirmava que “opõe-se à democracia, que equipara a nação à maioria, rebaixando-a ao nível dessa maioria; não obstante, é a mais pura forma de democracia (…)”[4].


Por outro lado, deve-se se assentar que a questão da essência da democracia não deve ser confundida com a da eficiência do governo democrático. Tem-se que não é possível associar a essência da democracia a um sistema religioso determinado, que asseguraria a um governo democrático um grau de eficiência mais alto do que qualquer outro, o mesmo se podendo afirmar de um certo sistema econômico, em detrimento de outro.


Respondendo à questão sobre se existe relação essencial entre democracia e os sistemas econômicos rivais, capitalismo e socialismo, Kelsen afirma que nenhum dos dois sistemas estão relacionados por natureza a um sistema político específico, já que, por definição, um sistema político é um processo ou método para a criação e aplicação de uma ordem social, enquanto um sistema econômico constitui o conteúdo da ordem social.


Pondera, porém, que é possível, no que tange à eficiência, que a democracia favoreça mais o capitalismo e que a autocracia seja mais benéfica ao socialismo. Mas destaca que essa é uma opinião própria, fundada na experiência histórica, não possuindo base científica.


Outrossim, para que se instaure a chamada “ditadura do proletariado”, intitulada de a “verdadeira democracia”, faz-se necessário que essa classe tome o poder e isso, historicamente, faz-se pelo uso da força. Para manter esse poder, recorre-se com freqüência a medidas ditatoriais como um forte aparato repressivo, representado por uma polícia secreta e uma organização militar. Ademais, o fim último da doutrina socialista é a abolição do Estado e, por conseguinte, da forma de Estado denominada democracia. Assim, politicamente, o socialismo marxista é anarquismo.


O conceito moderno[5] de democracia, todavia, também não coincide com o da Antiguidade, visto que foi modificado pelo liberalismo político, com sua tendência a restringir o poder do governo em prol da liberdade individual, fazendo inserir naquele conceito a garantia de certas liberdades intelectuais, em especial da liberdade de consciência. Mas essa democracia liberal ou moderna é apenas um tipo de democracia, não sendo os princípios da democracia e do liberalismo idênticos. Pode-se afirmar que existe até mesmo um antagonismo entre eles, já que o princípio da democracia estabelece que o poder do povo é irrestrito (soberania popular), enquanto o liberalismo importa na restrição do poder governamental, independentemente da forma que o governo possa assumir, podendo resultar na restrição do poder democrático.


De fato, há uma substancial diferença entre democracia e liberalismo. A liberdade dos indivíduos de criar a ordem estatal caracteriza o regime democrático, independentemente das restrições que a ordem estabelecida lhes impõe a posteriori. 


Conclusão


De tudo que se expôs, resta clara a posição de Kelsen, como filósofo político, a favor da democracia, que, segundo ele, embora não esteja necessariamente vinculada a nenhum sistema econômico específico, desenvolve-se melhor em um sistema capitalista.


Rechaça-se, portanto, qualquer apoio a movimentos ditatoriais, quer ligados à religião, à idéia de nação ou raça, como o nazismo, ou a um sistema econômico, como o socialismo.


A democracia é definida como a síntese dos princípios da liberdade, vista como autodeterminação política do indivíduo, e da igualdade, pressupondo, modernamente, a liberdade religiosa, de opinião, de expressão e de ciência, como consectárias do pensamento liberal.


O racionalismo que daí resulta, leva ao relativismo e ao positivismo, que rejeita concepções metafísicas de verdade absoluta, ligadas ao Direito natural.


Dada a impossibilidade prática da realização de uma democracia direta, eleva-se a democracia indireta, representativa, parlamentar, baseada no voto universal, igualitário, livre e secreto e na composição por partidos políticos, como a única forma moderna de governo legítima democraticamente.


Assenta-se o parlamentarismo como o regime que melhor possibilita a concretização do ideal democrático, haja vista que sua técnica dialético-contraditória enseja um verdadeiro compromisso entre maioria e minoria na formação da vontade estatal.


O princípio da maioria e o sistema eleitoral proporcional são vistos como os mais democráticos, por assegurar o maior número possível de indivíduos com representação parlamentar, possibilitando que, desse antagonismo de forças, surja a vontade do Estado como autêntica expressão da vontade geral.


Kelsen propõe uma reforma no parlamento, visando a reforçar seu caráter democrático e angariar, com isso, mais adeptos, através da criação ou fortalecimento do referendo, do plebiscito, da iniciativa popular, do controle dos representantes, da fidelidade partidária, da responsabilidade dos parlamentares perante o eleitorado e do fim ou da limitação da imunidade formal e material.


Alerta ainda para o perigo de descambar-se para governos ditatoriais com a concretização das alternativas propostas à forma por ele defendida de democracia, como o foram as experiências do socialismo soviético, do nazismo e do fascismo, e como pode vir a ser o da chamada “organização coorporativa”.


Vê-se, pois, pela exposição da visão democrática de Kelsen, que, já no início do século passado, disseminava idéias que até hoje não se conseguiu incorporar a muitos dos governos ditos democráticos, e que sua concepção de democracia, se estritamente observada, poderia ter evitado o sofrimento e o horror causado pelos diversos regimes autocráticos, ao invés de justificá-los ou fomentá-los, como afirmam seus opositores.


 


Referências bibliográficas

KELSEN, Hans. A Democracia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

____________ . O que é Justiça? 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

____________ . Teoria Pura do Direito. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

SGARBI, Adrian. Teoria do Direito – primeiras lições. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

_____________. Clássicos da Teoria do Direito. 2. ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.


Notas:

[1] KELSEN, Hans. A Democracia. p. 78

[2] Ibid., p. 34.

[3] Ibid., p. 39/40.

[4] Ibid., p. 190.

[5] À época em que escrito o livro, início do século XX, ainda predominavam as exigências de prestações negativas por parte do Estado.

Informações Sobre o Autor

Daniela Mendonça de Melo

Especialista em Direito Público pelo Centro Universitário Newton Paiva. Mestranda em Direito pela PUC-Rio. Advogada da União.


Equipe Âmbito Jurídico

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