A questão terminológica sobre o Direito das coisas sempre acarretou dúvidas infindas se confrontada com a expressão “direitos reais”. Direito das coisas é ramo de Direito Civil cujo conteúdo é formado de relações jurídicas entre pessoas e coisas determinadas ou ao menos, determináveis.
Entendendo-se que a coisa é tudo que não for humano. O que é radicalmente contestado pela teoria personalista que reafirma claramente ser os direitos reais, as relações entre pessoas porém intermediadas por coisas.
A teoria personalista nega a realidade metodológica aos Direitos Reais e ao Direito das Coisas, sendo entendidas como meras extensões metodológicas.
No Direito das Coisas expressão herdada do Código Napoleônico de 1804 há uma relação de domínio exercida pela pessoa (sujeito ativo) sobre a coisa, onde não há sujeito passivo determinado, por isso, erga omnes.
No passado havia no Código Civil de 1916 a previsão entre o direito das coisas alusão também à propriedade literária, científica e artística. Atualmente, o CC de 2002 não contém previsão para propriedade literária, cultural e artística que atualmente se encontra regulamentada pela Lei 9.610/1998.
Portanto, o vigente Código Civil pátrio continua disciplinado sobre a propriedade sobre bens corpóreos conceituados por alguns doutrinadores como coisas.
Coisa é gênero a abranger tudo aquilo que não é humano enquanto que bens são coisas com interesse jurídico e/ou econômico portanto, constituem espécie.
É certo que cogita a doutrina predominantemente de direitos reais apesar de que na opinião de José de Oliveira Ascensão a expressão “Direito das Coisas” se revela ser mais adequada, a significar o estatuto jurídico das coisas.
Mas o ilustre doutrinador luso prefere a expressão “Direitos Reais” por corresponder ao ramo de direito objetivo e não unicamente dos direitos subjetivos. A rigor, tanto uma expressão como a outra não são absolutamente corretas do ponto de vista técnico.
Flávio Tartuce e José Fernando Simão preferem a expressão “Direito das coisas” por ser a opção metodológica do Código Civil vigente, apesar da inclusão do instituto da posse que não representa direito real propriamente dito.
Os direitos reais sob o crivo da teoria realista ou clássica constituem poder imediato que a pessoa exerce sobre a coisa, com eficácia perante todos (erga omnes) opondo-se aos direitos pessoais ou obrigacionais por enfeixar uma relação entre pessoas onde se exige certa prestação que pode ser (de dar, de fazer ou de não-fazer).
Os adeptos da teoria realista se preocupavam muito com as externas manifestações desses direitos, particularmente com as conseqüências da oponibilidade erga omnes, objetivadas pela seqüela.
É o poder de utilização da coisa, sem intermediário o fator caracterizador dos direitos reais e, mesmo com a momentânea adesão à teoria realista ou clássica é verificável contemporaneamente a grande tendência de contratualização do Direito Privado. Apesar de que tal tendência colocaria em xeque toda divisão metodológica do Direito.
É certo que os direitos reais geram em torno do conceito de propriedade o que traz características próprias e, servem para distingui-los dos direitos pessoais, de crédito ou obrigacionais.
Além da oponibilidade erga omnes, há a existência do direito de seqüela (o ius perseqüendi) de reaver a coisa com quem quer que esteja, pois os direitos reais aderem ou “grudam” na coisa.
E, só por lembrar de “grud” (grifo nosso) é um bom processo mnemônico para recordar os atributos do direito de propriedade, a saber : Gozar ou fruir (ius fruendi); Reaver ou buscar (direito de seqüela ou reivindicatio); Usar ou utilizar (ius utendi) e, por fim, dispor ou alienar (o ius disponendi).
Outra importante característica é o direito de preferência a favor do titular do direito real e, se pode identificá-lo mais particularmente nos direitos reais em garantia (penhor, hipoteca ou anticrese).Aliás, é bom lembrar que a tendência natural de propriedade que é plena onde todos os seus atributos ou faculdades estão concentrados.
Possibilidade de abandono dos direitos reais, isto é, de renúncia a tais direitos; a viabilidade de incorporação da coisa por meio da posse (domínio fático); a previsão de usucapião com um meio de aquisição originária que atinge não só a propriedade como também outros direitos reais, como servidões (art. 1.379 do CC).
Há também uma suposta sujeição a um rol taxativo ou numerus clausus embora mui recentemente a Lei 11.481 de 31/05/2007 tenha introduzindo duas novas categorias de direitos reais sobre coisa alheia: a concessão de uso especial; e a concessão de direito real de uso que podem ser objeto de hipoteca conforme o art. 1.473 do CC.
A sensível influência da autonomia privada sobre o direito das coisas acaba por trazer a conclusão que o referido rol do art. 1.225 CC não é taxativo e, sim, meramente exemplificativo ou numerus apertus embora seja ainda pensamento minoritário em doutrina.
Outra característica relevante dos direitos reais é a regência do princípio da publicidade dos atos que se dá pela tradição (quando sobre bens móveis) ou pelo registro (bens imóveis).
São os direitos reais absolutos posto que possuem efeitos em face de todos (erga omnes) independentemente de sua determinação, mas tal absolutismo não significa poder ilimitado de seus titulares sobre os bens submissos à sua autoridade.
Definitivamente o “proprietário não pode fazer tudo!” pois vige a ponderação de valores que provém um cerceamento ético ao direito de propriedade, seja pela sua função social, pela boa-fé objetiva, seja pelos direitos de vizinhança, seja em função de outros direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana.
Isso sem contar o interesse público, o planejamento urbano ou rural e, códigos como de Obras o das Águas ou de mineração, e, ainda, o Código Brasileiro Aeronáutico.
Ademais a eficácia horizontal dos direitos fundamentais erige claras restrições aos direitos reais onde a ponderação de valores e o princípio da razoabilidade conciliando a concepção dos direitos reais com a personificação do direito civil contemporâneo cada vez mais eivado de normas de ordem pública.
As diferenças básicas entre direitos reais e direitos pessoais patrimoniais vão desde da estrutura que pressupõe poder jurídico e vínculo jurídico até o plano processual que projeta a tutela dos direitos reais e direitos obrigacionais.
Com base na teoria realista as relações diretas entre pessoas e coisas, sem qualquer intermediação por outrem, como sói nas formas originárias de aquisição de propriedade (ex: usucapião).
Evidente é que o objeto da relação jurídica de direito real é a coisa em si. Ao passo que a relação obrigacional dos direitos pessoais tem como objeto imediato a prestação que pode ser exigida pelo credor ao devedor.
Outra peculiaridade é que nos direitos reais apenas o sujeito ativo é francamente determinado enquanto o sujeito passivo é toda coletividade (sendo mesmo invariavelmente indeterminável).
Diferentemente do que ocorre com os direitos pessoais patrimoniais onde tanto o sujeito ativo como o passivo são plenamente determinados, ou ao menos, determináveis. Onde prevalecem relações jurídicas complexas provindas do sinalagma obrigacional.
Outra distinção refere-se aos princípios regentes dos direitos reais onde há marcante incidência do princípio da publicidade ou da visibilidade onde se ratifica a relevância da tradição e do registro imobiliário enquanto que os direitos pessoais há a incidência do princípio da autonomia privada da vontade, donde surgem os contratos e obrigações e, ainda, mormente impregnados pela eticidade da boa-fé objetiva.
A propósito, é curial ressaltar que nos direitos reais há a franca incidência da boa-fé subjetiva revelada pelo interior da crença ou intenção que correspondem a gutten glauben prevista no BGB (Código Civil Alemão). A boa-fé subjetiva corresponde a consciência ou ausência desta diante da situação jurídica (ausência de vícios da posse, vis, clam et precario).
Já no plano dos direitos dos pessoais patrimoniais labora-se com a eticidade estatuída pela boa-fé objetiva ou treu and glauben prevista no art. 422 do CC é a chamada boa-fé lealdade.
Ensina Larenz que cada um deve guardar fidelidade à palavra dada e não defraudar a confiança ou abusar da confiança alheia.
Porém direitos reais de eficácia erga omnes (contra todos) princípio do absolutismo enquanto que os direitos pessoais possuem efeitos apenas inter partes fruto da vetusta consagração da regra res inter alios e do princípio da relatividade dos efeitos contratuais já bastante mitigado pela função social do contrato e da boa-fé objetiva.
Portanto, pode-se afirmar que a eficácia oponível a todos dos direitos reais não é tão absoluta assim.
Há por enquanto o entendimento majoritário em doutrina que alega que os direitos reais seguem rol taxativo ou seja numerus clausus do art. 1.225 do CC com a aplicação do princípio da tipicidade enquanto que seguem os direitos pessoais um rol exemplificativo ou numerus apertus o que se pode atestar pelo teor do art. 425 do CC (contratos atípicos).
O aclamado direito de seqüela peculiar dos direitos reais dando azo a tutela petitória e possessória ao passo que nos direitos pessoais quando descumpridos acarretam responsabilidade patrimonial incidente nos bens do devedor.
O caráter permanente dos direitos reais, sendo o instituto basilar a propriedade, que se antagoniza diametralmente com o caráter transitório dos direitos pessoais.
Embora atualmente vejamos contratos que se perpetuem no tempo, os chamados contrato relacionais ou cativos ou de longa duração, operando autênticos casamentos contratuais apreciados com lucidez pela brilhante professora gaúcha Cláudia Lima Marques.
Apesar dessas contundentes diferenciações, há todavia institutos híbridos que se situam na nebulosa zona intermezza situada exatamente entre os direitos reais e os direitos pessoais, é o caso por exemplo, das obrigações propter rem também chamadas de obrigações ambulatoriais que apesar de serem obrigações pessoais de um devedor, aderem definitivamente à qualidade de título de direito real (art. 1.345 do CC).
Outro conceito intermediário é o ato emulativo ou abuso de direito de propriedade (arts. 187 e 1.228, segundo parágrafo do CC), onde vige proibição pois tal ato não traz ao seu titular nenhuma comodidade ou utilidade e, é animado pela frívola intenção de prejudicar a outrem.
Instituto aliás, merecedor de artigo de minha lavra e da Professora Denise Heuseler em análise detida às lições de José Oliveira Ascensão.
Convém lembrar a presteza de Gustavo Tepedino que convoca a interpretação harmônica do sistema civil-constitucional e, aonde se vê que no art. 5º da CF de 1988 em seus incisos XXII e XXIII há indicação expressa de que a propriedade atenderá a sua função social.
Percebendo que o direito de propriedade é triplamente fundamental, ligado ao direito social à moradia, e, com base no patrimônio mínimo (de Luiz Edson Facchin).
Ainda se sustenta que o direito de propriedade como direito subjetivo não é absoluto onde se pode prever no caso de iminente perigo público, a possibilidade de autoridade competente utilizar a propriedade particular assegurando-se ulterior indenização.
Ademais, nos faz ainda identificar o art. 170 da CF de 1988 que a ordem econômica pátria é fundada nos princípios da propriedade privada conforme os ditames da justiça social.
Em síntese as questões relativas aos direitos reais devem atender aos interesses dos indivíduos e, sobretudo, da coletividade, na persecução prática da efetivação do direito de propriedade. Sendo encarado sob o prisma da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e, da isonomia ou igualdade lato sensu, formando assim a tríade essencial composta de dignidade- solidariedade – igualdade.
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.
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