A dignidade da pessoa humana como direito fundamental e sua aplicação na relação de trabalho

1- INTRODUÇÃO


O presente trabalho tem por objetivo analisar a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações de trabalho, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana. Há que se assinalar, neste ponto, a importância prática do assunto, tendo em vista se tratar de tema objeto de discussão cada vez mais constante no dia-a-dia da  Justiça do Trabalho. 


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Uma das discussões mais atuais dentro do debate relativo à publicização do direito privado ou mesmo da superação da dicotomia entre Direito Público e direito privado é aquela relativa à vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. A questão se coloca tanto no sentido se existe tal vinculação, bem como, respondendo-se afirmativamente à primeira indagação, em que medida se dá tal vinculação.


Esse trabalho, portanto, volta-se à análise do tema, o que é empreendido através da análise: do conceito e do conteúdo dos direitos fundamentais; do princípio da dignidade da pessoa humana; das teorias sobre a vinculação dos particulares a direitos fundamentais; dos parâmetros necessário para a aplicação dos direitos fundamentais e  da aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana na relação de trabalho.


2 – DEFINIÇÃO E CONTEÚDO DOS DIREITO FUNDAMENTAIS


A conceituação do que sejam direitos fundamentais é particularmente difícil, tendo em vista a ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no envolver histórico.  Aumenta essa dificuldade, o fato de se empregarem várias expressões para designá-los, como “direitos naturais”, “direitos humanos”, “direitos públicos subjetivos”, “liberdades fundamentais” [1] etc.


A expressão direitos fundamentais, consoante assinala José Afonso da Silva (2005, p. 56) não significa esfera privada contraposta à atividade pública, mas sim “limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela dependem”.  Da definição exposta pelo autor, verifica-se sua posição no sentido de limitar a expressão ao campo de abrangência da proteção dos particulares contra o Estado.


Uma noção mais atualizada dos direitos fundamentais, porém, conduz à conclusão de que estes representam a constitucionalização dos direitos humanos que gozaram de alto grau de justificação ao longo da história e que são reconhecidos como condição para o exercício dos demais direitos.  Haveria, dessa forma, “um conteúdo mínimo de direitos fundamentais que caracterizam o direito de um Estado Democrático” (SAMPAIO, 2006, p. 17).


Segundo José Afonso da Silva( 2005, p. 58), os direitos fundamentais teriam os seguintes caracteres: a) historicidade;b) imprescritibilidade; c) irrenunciabilidade.  São, assim, os direitos fundamentais históricos, o que rechaça qualquer fundamentação no direito natural.  São imprescritíveis dada a sua natureza de direitos personalíssimos de natureza em geral não patrimonial; são, por fim, irrenunciáveis, embora possam deixar de ser exercidos.


Quanto ao conteúdo dos direitos fundamentais, esse foi sendo paulatinamente alterado, a partir da verificação do seu caráter histórico.  Com efeito, consoante assinala Canotilho (1989, p. 425), os direitos fundamentais “pressupõem concepções de Estado e de Constituição decisivamente operantes na atividade interpretativo-concretizadora das normas constitucionais”. 


Inicialmente, no constitucionalismo liberal, os direitos fundamentais eram considerados os direitos de liberdade do indivíduo contra o Estado, constituindo-se essencialmente nos direitos de autonomia e defesa.  Os postulados desta teoria liberal vem bem expostos por Canotilho (1989, p. 426) que aponta os seguintes: 1) os direitos fundamentais são direitos do particular contra o estado; 2) revestem concomitantemente o caráter de normas de distribuição de competências entre o indivíduo e o Estado; 3) apresentam-se como pré-estaduais, sendo vedada qualquer ingerência do Estado; 4) a substância e o conteúdo dos direitos fundamentais, bem como sua utilização e fundamentação, ficariam fora da competência regulamentar do Estado; 5) a finalidade e o objetivo dos direitos fundamentais é de natureza puramente individual.


A teoria da ordem dos valores, associada à doutrina de Smend e à filosofia de valores, definia os direitos fundamentais como valores de caráter objetivo, o que levava a conseqüências indicadas por Canotilho (1989, p. 427): 1) o indivíduo deixa de ser a medida dos direitos, pois os direitos fundamentais são objetivos; 2) no conteúdo essencial dos direitos fundamentais está compreendida a tutela de bens de valor jurídico igual ou mais alto; 3) através da ordem de valores dos direitos fundamentais respeita-se a totalidade do sistema de valores do direito constitucional; 4) os direitos fundamentais só podem ser realizados no quadro dos valores aceitos por determinada comunidade; 5) a dependência do quadro de valores leva à relativização dos direitos fundamentais; 6) além da relativização, a transmutação dos direitos fundamentais em realização de valores justifica intervenções concretizadoras dos entes públicos, de forma a obter eficácia ótima dos direitos fundamentais.


A teoria institucional dos direitos fundamentais, capitaneada por Peter Haberle parte da afirmação de que os direitos fundamentais não se esgotam em sua vertente individual, mas possuem um caráter duplo, ou seja, individual e institucional.  Cabe, desse modo, à teoria, “o mérito de ter salientado a dimensão objetiva institucional dos direitos fundamentais” (CANOTILHO, 1989, p. 428) embora se esqueça de outras dimensões dos direitos fundamentais, como a esfera social.


A teoria social dos direitos fundamentais parte da tripla dimensão destes direitos: individual; institucional e processual.  Essa dimensão processual “impõe ao Estado não só a realização dos direitos sociais, mas permite ao cidadão participar da efetivação das prestações necessárias ao seu livre desenvolvimento” (SAMPAIO, 2006, p. 30).


A teoria democrática funcional defende que os direitos são concedidos aos cidadãos para serem exercidos como membros da comunidade e no interesse público.  Por outro lado, consoante ressalta Canotilho (1989, p. 429) “a liberdade não é a liberdade pura e simples, mas a liberdade como meio de prossecução e segurança do processo democrático, pelo que se torna patente o seu caráter funcional”.  A teoria parte assim da idéia de um cidadão ativo, com direitos fundamentais colocados a serviço do princípio democrático.


Expostas as teorias historicamente relevantes que procuraram definir os direitos fundamentais, importa assinalar que, numa perspectiva atual reconhecem-se os direitos fundamentais como tendo uma dupla dimensão: subjetiva e objetiva. Em sua significação objetiva “os direitos fundamentais representam as bases do consenso sobre os valores de uma sociedade democrática, ou seja, sua função é a de sistematizar o conteúdo axiológico objetivo do ordenamento democrático escolhido pelos cidadãos (SAMPAIO, 2006, p. 34). Já em sua dimensão subjetiva, os direitos fundamentais “têm a função de tutelar a liberdade, a autonomia e a segurança dos cidadãos, não só em suas relações com o Estado, mas em relação aos demais membros da sociedade” (SAMPAIO, 2006, P. 35).


3 – O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA


Ressalta Canotilho (1989, p. 200) os princípios jurídicos constitucionais podem ser classificados em: a)princípios jurídicos fundamentais, assim entendidos os princípios historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica geral e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional; b) princípios políticos constitucionalmente conformadores, entendidos como tais os princípios constitucionais que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte; c) princípios constitucionais impositivos, entendidos assim os princípios constitucionais nos quais subsumem-se todos os princípios que no âmbito da constituição dirigente impõem aos órgãos do Estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a execução de tarefas; d) princípios-garantia, nos quais incluídos outros princípios que visam instituir directa e imediatamente uma garantia dos cidadãos.


Os princípios constitucionais, em especial o da dignidade da pessoa humana são  considerados normas jurídicas, sendo dotados  de coercitividade e de imperatividade ,submetendo todo o conjunto normativo inferior às suas disposições expressas e aos desígnios dos valores consagrados em seu bojo.


A relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais pode ser apontada em cinco aspectos, bem deduzidos por Boldrini (2003, p.2).  Num primeiro aspecto , segundo o autor, a dignidade da pessoa humana pode ser vista como unidade de valor de uma ordem constitucional e, principalmente, como unidade de valor para os direitos fundamentais.  Num segundo aspecto, como elemento de habilitação de um sistema positivo dos direitos fundamentais, a proteção e a promoção da dignidade do homem sustenta e afere legitimidade a um Estado e a uma sociedade que tenham a pessoa humana como fim e como fundamento máximos.  Numa terceira acepção, a relação entre direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana seria uma relação de “praxis” no interior teórico da ordem constitucional. Num quarto, tem-se a perspectiva da dignidade da pessoa humana como parâmetro na dedução de direitos fundamentais implícitos, seguindo a concepção de que a própria dignidade consistiria um direito fundamental na medida em que se manifestasse stricto sensu. Por fim, tem-se a perspectiva da dignidade da pessoa humana como limite e função do Estado e da sociedade, na dupla vertente de que tanto um quanto outro devem respeitar e promover a dignidade.


O que importa ressaltar das acepções vislumbradas é que o princípio da dignidade da pessoa humana pode ser visto tanto como fundamento quanto paradigma e  fim dos direitos fundamentais.


4-TEORIAS SOBRE A VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES A DIREITOS FUNDAMENTAIS


Conforme visto, atualmente existe certa tendência da doutrina em aceitar a eficácia privada dos direitos fundamentais, o que, entretanto, não excluem as concepções que negam a eficácia frente terceiros.   Contudo, em termos gerais, pode-se dizer que a grande discussão atual é em que medida ou intensidade se dá essa vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, ou, conforme ressalta Alexy (2002, p. 511) as questões a serem equacionadas são o “como” e o “em que medida” se dá a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas.


Dessa forma, para analisar tal questão, mister apontar-se as teorias ou concepções sobre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, o que se procede mediante a análise de cinco teorias principais que :1) negam a eficácia perante terceiros; 2)atribuem eficácia mediata; 3) atribuem eficácia imediata; 4) formulam imputação ao Estado; 5) teoria integradora.


Como menciona Juan Maria Bilbao Ubillos (2003, p.299), as concepções que negam a eficácia frente a terceiros têm a convicção de que tal eficácia “pode ser uma espécie de cavalo de tróia que destrua o sistema construído sobre a base da autonomia privada”.  Com efeito, são cada vez menos autores que negam a relevância dos direitos fundamentais na esfera do direito privado, mas ainda há aqueles que consideram desnecessária ou perigosa tal aplicação.


A teoria da eficácia mediata, ou eficácia indireta, foi inicialmente formulada por Günther Düring e recebeu apoio decisivo ao ser adotada pelo Tribunal Constitucional Alemão no famoso caso Luth.  Os postulados dessa teoria foram assim resumidos por Wilson Steinmetz (2004, p. 136-137): 1) as normas de direitos fundamentais produzem efeitos nas relações entre particulares por meio das normas e dos parâmetros dogmáticos, interpretativos e aplicativos, próprios do direito privado; 2) a eficácia de direitos fundamentais nas relações entre particulares está condicionada à mediação concretizadora do legislador de direito privado, em primeiro planto, e do juiz e Tribunal, em segundo plano; 3) ao legislador cabe o desenvolvimento concretizante dos direitos fundamentais por meio da criação de regulações normativas específicas que delimitem o conteúdo, as condições de exercício e o alcance desses direitos nas relações entre particulares; 4) ao juiz e aos tribunais, ante o caso concreto e na anuência de desenvolvimento legislativo específico, compete dar eficácia às normas de direitos fundamentais por meio da interpretação e aplicação dos textos de normas imperativas de direito privado, sobretudo daqueles textos que contêm clausulas gerais[2].


Fixados tais pontos principais, verifica-se que para a teoria da eficácia mediata, os direitos fundamentais não incidem nas relações entre particulares como direitos subjetivos constitucionais, mas como normas objetivas de princípio ou como sistema de valores ou ordem objetiva de valores.  Dessa maneira, possuem uma eficácia “modulada” legislativamente ou segundo parâmetros dogmáticos interpretativos e aplicativos específicos do direito privado.


A teoria da eficácia imediata ou direta, por seu turno, foi inicialmente formulada por Hans Carl Nipperdey e adotada pela primeira vez, segundo Wilson Steinmetz (2004, p. 164) pela Câmara Primeira do Tribunal Federal do Trabalho na Alemanha em 1964.   Tal teoria tem reduzida influência na Alemanha, contudo vem se desenvolvendo na Itália, Portugal e sobretudo Espanha.


Da mesma forma que a teoria da eficácia mediata, essa teoria também atribui aos direitos fundamentais uma dupla dimensão, objetiva e subjetiva, e uma eficácia operante em todo ordenamento jurídico.  A diferença básica está no fato de a teoria da eficácia imediata propor a aplicação direta de normas de direitos fundamentais nas relações entre particulares.


Wilson Steinmetz (2004, p. 168) resumiu as premissas básicas desta teorias: 1) as normas de direitos fundamentais conferem ao particular uma posição jurídica oponível não só ao Estado, mas também aos demais particulares; 2) os direitos fundamentais são e atuam como direitos subjetivos constitucionais, independentemente de serem públicos ou privados; 3) como direitos subjetivos constitucionais, a não ser que a constituição estabeleça de forma diversa, operam eficácia independentemente da existência de regulações legislativas específicas ou do recurso interpretativo-aplicativo das cláusulas gerais do direito privado.


A teoria da imputação ao Estado, desenvolvida por Jürgen Schwabe, aponta que tanto os problemas que a teoria dos direitos à proteção pretende resolver como o problema da vinculação aos particulares a direitos fundamentais são explicados e resolvidos no marco teórico dos direitos fundamentais como direitos de defesa ante o Estado (STEINMETZ,2004, p. 175).  Segundo Schwabe, toda lesão de direito fundamental entre particulares deve ser imputada ao Estado, porque a lesão, em última análise, resulta de uma permissão ou não proibição estatal.


A teoria integradora, por seu plano, propõe um modelo em três níveis que integra as três teorias básicas: teoria da eficácia mediata, teoria da eficácia imediata e teoria da imputação.    Foi desenvolvida por Alexy e possui três níveis: 1) o dos deveres do Estado; 2) o dos direitos ante o Estado e 3) o das relações jurídicas entre particulares (ALEXY, 2002, P. 516).


A teoria da eficácia mediata, para Alexy, situa-se no nível dos deveres do Estado.  Os direitos ante o Estado situam-se no segundo nível, seguindo-se a teoria de Schwabe.  O particular, em conflito com outro particular, tem o direito fundamental a que o judiciário leve em consideração os princípios fundamentais que apóiam a sua posição.  Já no terceiro nível, situa-se a eficácia imediata de direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares.  Contudo, nos três casos, resulta uma eficácia imediata dos direitos fundamentais, uma vez que Alexy define a eficácia imediata como sendo que “por razões fundamentais, na relação cidadão/cidadão existem determinados direitos e não direitos, liberdades e não liberdades, competências e não competências que, sem essas razões, não existiriam”(ALEXY, p. 521).


5 – A VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO DIREITO BRASILEIRO: A NECESSIDADE DE FIXAÇÃO DE PARÂMETROS


Apontadas as teorias relativas à aplicabilidade das normas fixadoras de direitos fundamentais nas relações privadas, destaque-se a tendência jurisprudencial dos Tribunais brasileiros em aplicar diretamente os direitos fundamentais.   Tal tendência foi reforçada pela decisão do STF, nos autos do Recurso Extraordinário 201.819/RJ, julgado em outubro de 2005, através do voto divergente do Ministro Gilmar Mendes que decidiu pela aplicação dos direitos fundamentais concernentes ao contraditório, ao devido processo legal e à ampla defesa ao processo de exclusão de sócio de entidade[3].


Conquanto a aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas venha ganhando espaço no cenário jurídico nacional, o que importa deixar patente são os critérios para a referida aplicabilidade.  Com efeito, conforme ressalta Ingo Sarlet (2006, p. 400), “o modo pelo qual se opera a aplicação dos direitos fundamentais às relações jurídicas entre os particulares não é uniforme, reclamando soluções diferenciadas”.


Neste aspecto, convém ressaltar que no julgamento do RE 201.819, Acórdão já mencionado no início desse item, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes foi enfático ao afirmar a necessidade de verificação das peculiaridades da cada caso concreto, tanto assim que conclui a decisão afirmando que “estando convencido, portanto, de que as particularidades do caso concreto legitimam a aplicabilidade dos direitos fundamentais referidos (…), peço vênia para divergir, parcialmente, da tese apresentada pela eminente relatora”.


Tal aplicação diferenciada justifica-se porque em realidade quando se pugna pela aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas está-se diante de um conflito de direitos fundamentais.  Por um lado, o princípio da autonomia privada.  Por outro, o princípio fundamental que se requer a aplicação.  A solução, então, seria a mesma dos diversos casos de conflitos entre direitos fundamentais: a ponderação em cada caso concreto[4]


Nesse contexto, muito importante é a fixação de parâmetros ou “standards” para o estabelecimento de pautas para os casos de colisão, com o objetivo de se garantir a segurança jurídica[5], já que, consoante menciona Daniel Sarmento (2006, p. 271) a fundamentação jurídica das decisões judiciais tem sido deficientes nesse ponto.


Um dos fatores fundamentais ressaltado por Daniel Sarmento (2006, p. 272) como elemento para a ponderação é a “ existência e o grau de desigualdade fática entre os envolvidos”.  Dessa forma, quanto mais intensa for a desigualdade, mais intensa será a proteção do direito fundamental em jogo.   Consoante ressalta o autor , o princípio da igualdade material “não apenas permite, mas antes impõe, na ordem jurídica brasileira, a proteção das partes mais débeis nas relações privadas” (SARMENTO, 2006, p. 274).


Outro fator destacado por Daniel Sarmento é a autonomia do ator privado, mesmo na hipótese de uma relação jurídica manifestamente assimétrica. É que a autonomia privada constitui um valor essencial nos Estados Democráticos e também exprime “uma importante dimensão da idéia de dignidade da pessoa humana” (SARMENTO, 2006, p. 278).  Contudo, nem todas as manifestações da autonomia privada dispõem da mesma proteção constitucional com a mesma intensidade.  Nesse sentido, vale frisar a lição de Daniel Sarmento (2006, p. 278), no sentido de que  na nossa ordem constitucional, a tutela da autonomia privada, no que se refere ao que chamamos de questões existenciais é muito mais intensa do que a conferida às decisões de caráter econômico-patrimonial, podendo a ordem jurídica  transigir muito mais com as restrições à liberdade contratual do que com aquelas impostas a outras liberdades mais fundamentais, ligadas às opções e projetos de vida de cada pessoa humana.


Conforme ressalta Daniel Sarmento, no campo das relações econômicas, a essencialidade do bem é um critério importante na aferição da intensidade conferida à proteção à autonomia privada.  Desse modo, “quanto mais o bem envolvido na relação jurídica em discussão for considerado essencial para a vida humana, maior será a proteção do direito fundamental em jogo e menor a tutela da autonomia privada” (SARMENTO, 2006, p. 278).


Outro ponto é que a lesão do direito fundamental pode decorrer não apenas de um ato unilateral de outro agente privado, mas também de algum negócio bilateral, cuja validade dependa do consentimento formal do próprio afetado.  Essa questão liga-se à controvérsia sobre a validade da renúncia ao exercício de direitos fundamentais, existindo, nesse caso, dois limites a serem respeitados, os quais foram bem expostos pelo autor: a vontade do titular do direito  deve ser autenticamente livre e a renúncia do exercício não pode importar em lesão ao princípio da dignidade da pessoa humana, nem ao núcleo essencial dos direitos fundamentais do indivíduo. (SARMENTO, 2006, p. 282).


Apontados alguns critérios para a ponderação de interesses no âmbito da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, passa-se à análise da aplicação dos direitos fundamentais em algumas hipóteses na esfera trabalhista.


6 A APLICAÇÃO DIRETA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO


Conforme se deixou explícito nesse trabalho, a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais de forma direta vem sendo reconhecida pela doutrina e jurisprudência pátria, principalmente na esfera trabalhista.


Com efeito, os critérios apontados no item anterior conduzem à clara aplicação dos direitos fundamentais, em especial o da dignidade da pessoa humana, pois quanto mais o bem envolvido na relação jurídica em discussão for considerado essencial para a vida humana, maior será a proteção do direito fundamental em jogo e menor a tutela da autonomia privada. 


Nesse aspecto, pode-se citar, por exemplo, a hipótese de desconto no salário do empregado em razão de culpa, previsto no art. 462 da CLT. Neste caso, o salário do empregado, de caráter alimentar, essencial à sua sobrevivência digna, há que receber a necessária proteção, somente sendo atingido após a observância de um procedimento interno em que se assegurem as garantias básicas do contraditório e da ampla defesa. Ainda, no que se refere à expressa previsão do art. 462 da CLT, no sentido da necessidade de pactuação prévia com o empregado, ressalte-se que a vontade do titular do direito deve ser autenticamente livre, o que não é a hipótese geral na relação de emprego.


Tal aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana conduz à necessidade de estabelecimento de um prévio processo interno para apuração de responsabilidade do empregado pelo dano causado ao empregador, como pressuposto essencial à legalidade do desconto em seu salário.


A mesma idéia da necessidade de procedimento interno para a apuração da responsabilidade do empregado pode ser utilizado para as hipóteses de aplicação das justas causas previstas no art. 482 da CLT, pois, se a despedida sem justa causa resulta no não pagamento da multa rescisória do FGTS, do aviso prévio, férias e 13º salários proporcionais nem do seguro desemprego, então tão graves conseqüências para a vida e a dignidade do trabalhador devem ser precedidas de procedimento para apuração de responsabilidades do empregado.


De igual forma, nos casos de assédio moral ou revista íntima, tendo neste aspecto, a Jurisprudência trabalhista diversas vezes se manifestado no sentido de assegurar ao empregado o respeito ao direito fundamental de intimidade e dignidade da pessoa humana[6].


Muitas são, portanto, as hipóteses de aplicação direta dos direitos fundamentais na relação de trabalho, em especial do princípio da dignidade da pessoa humana, cabendo ao operador do direito cada vez mais tentar buscar na constituição, e não apenas na CLT, os subsídios para a adequada aplicação do Direito do Trabalho.


CONCLUSÃO


Após os estudos empreendidos nos itens que compõem o presente trabalho, é possível destacar os seguintes pontos principais.


Atualmente existe certa tendência da doutrina em aceitar a eficácia privada dos direitos fundamentais, o que, entretanto, não excluem as concepções que negam a eficácia frente terceiros, de forma que destacam-se cinco teorias principais sobre o tema que :1) negam a eficácia perante terceiros; 2)atribuem eficácia mediata; 3) atribuem eficácia imediata; 4) formulam imputação ao Estado; 5) teoria integradora.


Em que pese a existência de diversas teorias relativas à aplicabilidade das normas fixadoras de direitos fundamentais nas relações privadas, importa destacar uma tendência jurisprudencial dos Tribunais brasileiros em aplicar diretamente os direitos fundamentais.  


Conquanto a aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas venha ganhando espaço no cenário jurídico nacional, necessário que sejam fixados os critérios para a referida aplicabilidade.  Isso porque, em realidade quando se pugna pela aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas está-se diante de um conflito de direitos fundamentais.  Por um lado, o princípio da autonomia privada.  Por outro, o princípio fundamental que se requer a aplicação.  A solução, então, seria a mesma dos diversos casos de conflitos entre direitos fundamentais: a ponderação em cada caso concreto.


Fixados tais pontos, frise-se a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais nas relações de trabalho , em especial do princípio da dignidade da pessoa humana, a qual deve ser protegida de forma contundente na relação de trabalho.


 


Referências

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes.  Dogmática de direitos fundamentais e direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.) Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.339-357.

MEIRELES, Edilton.  Abuso do direito na relação de emprego. São Paulo: Saraiva, 2004.

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SARLET, Ingo Wolfgang.  A eficácia dos direitos fundamentais. 3a ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

SARMENTO, Daniel.  Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

SILVA, Virgílio Afonso.  A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005.

STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros Ed., 2004.

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Notas:

[1] Consoante assinala José Afonso da Silva (2005, p. 55) a expressão direitos naturais refere-se “àqueles inerentes à natureza do homem; direito inatos que cabem ao homem só pelo fato de ser homem”.   Já direitos humanos é a expressão preferida nos documentos internacionais, sendo terminologia pouco usada na doutrina, salvo para referir-se aos direitos civis ou liberdades civis.  Os direitos públicos subjetivos constituem “um conceito técnico-jurídico do Estado Liberal, preso, como a concepção direitos individuais, à concepção individualista do homem (SILVA, 2005, p. 55). Liberdades fundamentais ou liberdades públicas são expressões ligadas à concepção dos direitos públicos subjetivos e direitos individuais”.

[2] As cláusulas gerais constituem em formulações legais de caráter genérico e abstrato, com natureza de diretriz, cujos valores serão preenchidos pelo juiz na análise do caso concreto. Têm a função de dotar o Código de maior mobilidade, mitigando regras mais rígidas. Ademais, têm função de integração dos diferentes princípios e direitos adotados em nossa sociedade pluralista, consistindo na possibilidade de o juiz aplicar a lei com ampla liberdade axiológica, ponderando os interesses em conflito no caso concreto. Têm, ainda, função de instrumentalizar as normas jurídicas aos fins teleologicamente considerados pelo legislador.

[3] Interessante consultar a íntegra do Acórdão, que discorre sobre as diversas teorias, bem como aponta o estágio atual de discussão da matéria.

[4] Nesse sentido, a posição de Ingo Sarlet (2006, p. 401): (…) no âmbito da problemática da vinculação dos particulares, as hipótese de um conflito entre os direitos fundamentais e o princípio da autonomia privada pressupõe sempre uma análise tópico-sistemática, calcada nas circunstâncias específicas do caso concreto, devendo ser tratado de forma similar às hipóteses de colisão entre direitos fundamentais de diversos titulares, isto é, buscando-se uma solução norteada pela ponderação dos valores em pauta, almejando obter um equilíbrio e concordância prática, caracterizada, em última análise, pelo não-sacrifício completo de um dos direitos fundamentais, bem como pela preservação, na medida do possível, da essência de cada um.

[5] É a segurança jurídica que traz estabilidade às relações sociais juridicamente tuteláveis, em face da certeza a ela inerente. A segurança jurídica inibe o arbítrio e a violência e dá amparo às relações entre as pessoas e o Estado e entre as pessoas entre si. De acordo com a concepção tradicional, a ordem é essencial tanto à vida individual quanto à vida coletiva.   Segundo Theophilo Cavalcanti Filho (1964, p. 8), essa necessidade de ordem, que traz consigo a segurança, é de tal modo profunda que tem todas as características de um fato espontâneo e natural. Assinala o autor que o objetivo primeiro do direito é a exigência de ordem e de segurança.  Aponta que da mesma maneira que o homem cria segurança, no que diz respeito ao ambiente natural, através do conhecimento científico e da técnica, estabelece, através das normas “uma certeza e segurança na sua vida de relações, de modo a permitir a vida em sociedade”.  (CAVALCANTI FILHO, 1964, P. 54). A perspectiva contemporânea da segurança Jurídica aponta, por seu turno, sua dúplice natureza.  Consoante lição de Almiro do Couto e Silva (2005, p.3), a segurança jurídica se ramifica em duas partes.  A primeira, de natureza objetiva, é aquela que tradicionalmente envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado, até mesmo quando estes se qualifiquem como atos legislativos, ou seja, se refere à proteção do direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada.  Já a perspectiva subjetiva da segurança jurídica volta-se à idéia da proteção à confiança. Couto e Silva (2005, p. 6) ressalta, ainda, que os princípios da segurança e da proteção à confiança são elementos conservadores inseridos na ordem jurídica, destinados à manutenção do status quo e a evitar que as pessoas sejam surpreendidas por modificações do direito positivo ou na conduta do Estado, o que acaba provocando tensão com as tendências modernizadoras do Estado.

[6] Nesse sentido a jurisprudência do TST: Dano Moral. Presença De Supervisor Nos Vestiários Da Empresa Para Acompanhamento Da Troca De Roupas Dos Empregados. Revista Visual.1. Equivale à revista pessoal de controle e, portanto, ofende o direito à intimidade do empregado a conduta do empregador que, excedendo os limites do poder diretivo e fiscalizador, impõe a presença de supervisor, ainda que do mesmo sexo, para acompanhar a troca de roupa dos empregados no vestiário. 2. O poder de direção patronal está sujeito a limites inderrogáveis, como o respeito à dignidade do empregado e à liberdade que lhe é reconhecida no plano constitucional. 3. Irrelevante a circunstância de a supervisão ser empreendida por pessoa do mesmo sexo, uma vez que o constrangimento persiste, ainda que em menor grau. A mera exposição, quer parcial, quer total, do corpo do empregado, caracteriza grave invasão à sua intimidade, traduzindo incursão em domínio para o qual a lei franqueia o acesso somente em raríssimos casos e com severas restrições, tal como se verifica até mesmo no âmbito do direito penal (art. 5º, XI e XII, da CF).4. Despiciendo, igualmente, o fato de inexistir contato físico entre o supervisor e os empregados, pois a simples visualização de partes do corpo humano, pela supervisora, evidencia a agressão à intimidade da Empregada. 5. Tese que se impõe à luz dos princípios consagrados na Constituição da República, sobretudo os da dignidade da pessoa, erigida como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso III), da proibição de tratamento desumano e degradante (art. 5º, inciso III) e da inviolabilidade da intimidade e da honra (art. 5º, inciso X). 6. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento para julgar procedente o pedido de indenização por dano moral. ) TST RR – 2195/1999-009-05-00, DJ – 09/07/2004, 1ª Turma)

Informações Sobre o Autor

Flávia Moreira Guimarães Pessoa

Juíza do Trabalho Substituta (TRT 20ª Região), Professora Assistente da UFS, Coordenadora e Professora da Pós-Graduação em Direito do Trabalho (TRT 20ª Região/UFS), Especialista em Direito Processual pela UFSC, Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela UGF, Doutora em Direito Público pela UFBA.


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Equipe Âmbito Jurídico

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