Resumo: O ordenamento jurídico brasileiro tem como paradigma o projeto de democracia idealizado pela Constituição Federal de 1988 a qual consagrou um conjunto de normas e garantias fundamentais que tornem efetivos e exequíveis os direitos da pessoa humana. Para tanto os valores estampados na Carta devem refletir os anseios da participação popular no processo de fortalecimento da democracia. Justamente por isso consubstanciou-se no sistema brasileiro o princípio da legalidade tendo em vista que a lei é considerada a manifestação legítima da vontade do povo por meio de seus parlamentares. No contexto político-jurídico brasileiro a eficácia da legalidade refere-se ao aspecto social da norma de forma que se a sociedade cumprir o mandamento legal sua legitimidade seria confirmada. Contudo no paradigma do Estado Democrático de Direito nem sempre a legalidade reflete a legitimidade do direito. É nesse sentido que se faz necessária uma análise a respeito de como a doutrina moderna vem considerando a construção da legitimidade sob a óptica dos princípios democráticos. Para melhor compreensão do assunto imprescindível levar-se em conta a concepção do princípio da legalidade a questão da ideologia e das técnicas científicas que justificam a legitimidade do poder bem como a consequência desses aspetos na esfera processual.
Sumário: 1. Introdução. 2. O princípio da legalidade. 3. Ideologia e pensamento técnico-científico. 4. A legitimidade das decisões judiciais. 5. Conclusão
1. INTRODUÇÃO
O ordenamento jurídico brasileiro tem como paradigma o projeto de democracia idealizado pela Constituição Federal de 1988, a qual consagrou um conjunto de normas e garantias fundamentais que tornem efetivos e exequíveis os direitos da pessoa humana. Para tanto, os valores estampados na Carta devem refletir os anseios da participação popular no processo de fortalecimento da democracia. Justamente por isso, consubstanciou-se no sistema brasileiro o princípio da legalidade, tendo em vista que a lei é considerada a manifestação legítima da vontade do povo, por meio de seus parlamentares.
No contexto político-jurídico brasileiro, a eficácia da legalidade refere-se ao aspecto social da norma, de forma que se a sociedade cumprir o mandamento legal, sua legitimidade seria confirmada. Contudo, no paradigma do Estado Democrático de Direito, nem sempre a legalidade reflete a legitimidade do direito. É nesse sentido, que se faz necessária uma análise a respeito de como a doutrina moderna vem considerando a construção da legitimidade sob a óptica dos princípios democráticos. Para melhor compreensão do assunto, imprescindível levar-se em conta a concepção do princípio da legalidade, a questão da ideologia e das técnicas científicas que justificam a legitimidade do poder, bem como a consequência desses aspetos na esfera processual.
2. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
O fato de uma norma ser legal e respeitada não significa necessariamente ser ela legítima. Deve-se, na verdade, verificar se da discussão da sociedade que se extraíram os valores para a sua positivação. Isso porque a construção da legitimidade deve-se dar a partir dos princípios democráticos, de forma que apenas será legítimo o ordenamento jurídico que provenha da vontade popular.
A título de exemplo, pode-se mencionar o princípio da legalidade no direito tributário, positivado no artigo 150, I, da Constituição Federal de 1988. Sua finalidade é garantir o consentimento do povo no que se refere a interferência do Estado em seu patrimônio. Assim, esse princípio serve para limitar o poder de tributar do Estado e assegurar a participação dos destinatários da cobrança tributária no processo de criação do tributo.
Nesse sentido, destacam-se as palavras de Hugo de Brito Machado:
“Sendo a lei a manifestação legítima da vontade do povo, por meio de seus representantes nos parlamentos, entende-se que o ser instituído em lei significa ser o tributo consentido. O povo consente que o Estado invada seu patrimônio para dele retirar os meios indispensáveis à satisfação das necessidades coletivas” (MACHADO, apud MURTA, 2012, p. 148).
No entanto, atualmente, percebe-se que, não obstante um tributo seja criado por uma lei que fora promulgada em conformidade com o devido processo legal, a vontade da população vem se afastando do conteúdo da lei, uma vez que o Poder Legislativo, muitas vezes, não representa a vontade do povo, e sim a de autoridades. Esse mesmo fato ocorre com a criação de várias leis, as quais aparentam um aspecto legítimo, já que obedeceram ao trâmite legislativo, mas que na verdade não têm nenhum respaldo na vontade da sociedade.
Nesse ponto, percebe-se uma influência direta do positivismo jurídico, como se nota nas palavras de Luhmann, in verbis:
“A lei de uma sociedade se torna positiva, quando se reconhece a legitimidade da pura legalidade, isto é, quando a lei é respeitada porque feita por decisão responsável de acordo com regras definidas pois, enquanto questão central da coexistência humana, a arbitrariedade torna-se uma instituição Todavia, o princípio da legalidade vem sido muito questionado em sua aplicação prática” (LUHMANN, apud BRAY, 2006, p.67).
Segundo o professor Antônio Carlos Diniz Murta, o princípio da legalidade tornou-se uma verdadeira moeda de troca entres os Poderes Legislativo e Executivo, uma vez que, muitas vezes, este manipula os parlamentares, seja oferecendo cargos, nepotismo, fisiologismo, ou até mesmo a figura do mensalão, para que eles votem em projetos que atendam aos interesses dos governantes (MURTA, 2012, p. 161, 164).
A interferência de interesses políticos na legalidade faz com que as autoridades ajam como verdadeiros atores políticos, já que visam satisfazer interesses próprios, reduzindo o debate a um processo de “auto-esclarecimento” coletivo (OLIVEIRA, P. 104).
Contudo, a vertente democrática prisma pela legitimidade por meio de um processo de formação da opinião e da vontade, o qual se presume racional (HABERMAS, apud BRAY, 2006, p. 70).
Assim sendo, não se pode atribuir legitimidade a uma lei sob o fundamento que a própria sociedade que elegeu os seus representantes no parlamento. Pelo contrário. Se assim se afirmasse, seria possível concluir que os governantes podem fazer o que bem entender em relação ao surgimento de novos encargos tributários (MURTA. 2012, p. 157).
“Quando se trata de princípio da legalidade, mormente nas aulas dadas na graduação de Direito, costuma-se “encher a boca” de entusiasmo para se afirmar que a própria sociedade civil delibera, através de suas representantes, atuando no mecanismo da democracia indireta como a brasileira, a carga tributária desejável e , portanto, não havia qualquer injustiça, arbítrio ou mesmo abuso nas relações travadas entre a Administração tributária e a sociedade civil. […]
Se a tributação não satisfaz o eleitorado brasileiro, por que os seus eleitos representantes perante os respectivos poderes legislativos continuam fazendo valer, pura e simplesmente, a vontade não do povo que o elegeu e sim do Chefe do executivo que lhe poderá conceder benéficos dos mais transparentes aos mais escuros?” (MURTA, 2012, p. 160-161).
Como consequência, a sociedade fica desprotegida contra a criação de novos tributos, o que compromete a legitimidade das normas e o acesso à democracia participativa.
3. IDEOLOGIA E PENSAMENTO TÉCNICO-CIENTÍFICO
Outro aspecto relevante refere-se a questão da ideologia embasada no agir técnico-científico, o qual tem como função justificar o poder daqueles que adotam condutas arbitrárias e legitimar as relações de dominação. Ao se analisar o ordenamento jurídico brasileiro, percebe-se uma recorrente transposição de métodos técnicos objetivos (originários das ciências naturais) para o campo do direito. Tal fato fundamenta-se na necessidade de se trazer à esfera jurídica uma metodologia formal e dogmática que preze por uma racionalidade abstrata e objetiva.
Entretanto, a ciência do direito pressupõe uma interpretação das normas e uma análise pormenorizada de cada caso concreto. E, o uso de técnicas pragmáticas obstam a reflexão do direito e a participação da população no fenômeno jurídico, reduzindo o direito a uma mera teorização científica.
Para alguns doutrinadores, essa tendência acaba por transformar questões políticas em problemas técnicos, esquecendo-se que antes da eficiência e rapidez, deve-se zelar pelos direitos da pessoa humana, como, por exemplo, o direito de ter acesso às questões políticas que envolvam a soberania popular. Nesse sentido, muito bem explica o professor Luís Carlos B. Gambogi:
“Vê-se que a lógica do poder tecnocrático, ao tempo em que se apresenta como sucessora da racionalidade burocrática, típica do modelo weberiano, age contra a democracia porque se esforça para obstruir os canais que permitem a integração dos cidadãos à vida polítcia e garantem a participação social na definição das políticas públicas do Estado” (GAMBOGI; SANTOS, 2012, p. 26).
Com efeito, cria-se um abismo entre a vontade democrática e o poder, tendo em vista que este se sente autolegitimado pela racionalidade técnica.
“Verifica-se que a compreensão tecnologizante do Direito leva à sua desidratação, à perda de sua substancia política e moral, à desvitalização do fenômeno jurídico. Nessa perspectiva, o Direito passa a ser entendido como mera técnica de administração dos conflitos, que privilegia a efetividade a operalidade em detrimento da legalidade e da legitimidade.Como as soluções técnicas, as pessoas passam a ser meros dados, meras peças de uma maquinaria de índole pragmática e técnica […]
O resultado dessa opção é seu distanciamento da sociedade e a conversão do próprio poder numa máquina antidemocrática, programada para fazer com que os seres humanos se sejuitem a uma racionalidade abstrata, que maltrata o mundo real e concreto das pessoas, e que faz, da lei, um instrumento contaminado apto a infeccionar os conflitos sociais, ao invés de curá-los” (GAMBOGI; SANTOS, 2012, p. 38).
Tal fato interfere na legitimidade do direito, já que o conceito de justiça fica limitado ao campo teórico, afastando-se da realidade social e do perfil democrático.
4. A LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS
Por fim, insta salientar que o problema da legitimidade do direito também repercute na esfera processual. O ordenamento jurídico brasileiro consagrou o exercício da tutela jurisdicional como a atividade do juiz no desenvolvimento do poder do Estado para dizer o direito. Assim para se assegurar a efetividade e celeridade na prestação jurisdicional, optou-se por incorporar ao sistema técnicas procedimentais a disposição do juízo.
Ocorre que a utilização desses métodos provoca questionamentos acerca da legitimidade dos provimentos jurisdicionais.
Recente doutrina entende que essa concepção liminar a atuação da jurisdição apenas ao Poder Judiciário, excluindo, pois, a participação popular do fenômeno jurídico.
Nesse contexto, o professor André Cordeiro Leal expende suas lições:
“[…] o judiciário brasileiro é mesmo chamado a ocupar o lugar de tutor (daí a tutela jurisdicional) de uma sociedade interditanda, ou de prestador de serviços judicantes a consumidores cidadãos (prestação jurisdicional) – o que reduz o cidadão à condição de mero destinatário normativo, exatamente em razão de sua suposta e irretorquível incapacidade de decidir sobre a sua própria vida e de resolver amigavelmete eventuais desavenças (posição de infantilização)” (LEAL, 2012, p. 104).
Tal fato inibe a concretização da verdadeira democracia, uma vez que a particiapação das partes no trâmite processual constitui a fonte para a legitimação do provimento final.
Logo, não se pode ver como legitima uma decisão que reduza as partes a meros destinatários de um provimento de cuja construção eles não participaram, uma vez que a legitimidade das decisões reclama uma “articulação entre o direito processual e a democracia constitucional processualizada” (LEAL, 2012, p. 100).
Ressalta-se que o projeto de lei do novo Código de Processo Civil (projeto de lei n. 8.046/2010) mantém a utilização dessas técnicas – chamado por André Cordeiro Leal de “inconstitucional ancianidade” (LEAL, 2012, p. 107), o que também gera discussões doutrinárias quanto a legitimidade do direito. Veja-se:
“As reformas dos modelos procedimentais brasileiros, das quais o anteprojeto do CPC é mera síntese ou sintoma, indicam mesmo o esforço dogmático para que o judiciário assuma a condição de dono da linguagem normativa e seu único e especial intérprete, pouco importando, portanto, o que teria cidadão a dizer sobre o ordenamento jurídico. […]
Pelo que se vê do novo CPC brasileiro, e que já se via no CPC brasileiro em vigor e em suas sucessivas reformas, a posição sacerdotal do Estado-juiz é determinante para a interpretação e aplicação normativas. Criam-se súmulas vinculantes e repercussões gerais a obstar, sem que qualquer fundamento teórico constitucional se apresente, o acesso ao debate sobre a própria constitucionalidade” (LEAL, 2012, p. 105-106).
5. CONCLUSÃO
Desse modo, percebe-se que a questão da eficácia da legitimidade deve ser analisada em conjunto com a legitimidade do direito.
No Estado Democrático de Direito, a legitimação apenas será auferida quando ocorrer a devida desvinculação da concepção meramente positivista, a qual defende a legitimidade pela legalidade, e da concepção ideológica, visto que esta recorre a uma metodologia técnica que obsta a comunição, a integração e o diálogo.
Na democracia o direito deve ser visto como meio de integração social, de modo que a sociedade exerça diretamente um controle sob a vontade da lei, afastando-se a vontade de autoridades ou de pequenos grupos dominantes.
A concretização de um sistema democrático participativo construído por meio dos princípios democráticos, portanto, constitui o modo de ser garantir a legitimidade do direito, afastando-se argumentos meramente positivistas e ideológicos.
Advogada e Assessora Jurídica na Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais. Doutoranda em Humanidades pela UNIGRANRIO. Mestre em Estudos Culturais pela FUMEC e especialista em Direito Público e em Gestão Pública
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