O Código de Defesa do Consumidor utiliza metodologicamente a qualidade dos contratantes para estabelecer quem é o destinatário final nas relações contratuais de consumo, porém, ele mostra ser impreciso( I ) também na doutrina e jurisprudência.
Como ensinava Aristóteles, a justiça comutativa não leva em conta a qualidade das partes e sim o equilíbrio que deve estar presente nas prestações dos contratantes.[1] Desta forma, adotando esta teoria milenar de aplicação geral, a utilizaremos como método de proteção dos contratantes no Código de Defesa do Consumidor ( II ) para que se atinja o equilíbrio entre direito e obrigações contratuais, abandonando-se o binômio fornecedor-consumidor.
I – A inadaptação do método de proteção do consumidor
Além do objeto representado por bens ou serviços ( A ) que devem estar presentes nas relações contratuais de consumo, o legislador organiza a proteção contratual criando duas categorias diversas de contratantes: o fornecedor ( B ) e o consumidor ( C ). A qualidade das partes se apresenta como um fator determinante para caracterização das relações de consumo. Se não existe uma das partes, não existe relação de consumo.
A ) O objeto da relação de consumo
A noção de relação contratual de consumo envolve grande de bens ( a ) e serviços ( b ).
Bens
O parágrafo primeiro do Código de Defesa do Consumidor fala em produto como objeto das relações de consumo, porém, preferimos utilizar o termo bens tendo em vista que estes têm uma amplitude maior que aquele.
Os produtos podem ser qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial ( §1º, do art. 1º do CDC ).
Os bens podem ser objeto de consumo quando forem adquiridos pelo destinatário final e não pelo destinatário intermediário.
Serviços
O Código de Defesa do Consumidor, segundo estabelece o art. 3º, §2º, se aplica também aos serviços, considerando serviço “ qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista “.
Os serviços podem ser de natureza material, como os serviços de dedetização e/ou intelectual, cuidados médicos quando fornecidos aos destinatários finais.
Não são incluídos como serviços os prestados pelo próprio Estado e remunerados a título de tributos “ tributos “ em geral, ou “ taxas “ e “ contribuições de melhoria”, tendo em vista sua natureza tributária. Os serviços públicos onde não existe uma remuneração específica estão excluídos do regime jurídico das relações de consumo[2], assim ocorre com o serviço de saúde, educação, fornecimento de água e esgoto[3], iluminação pública,[4] por exemplos. Estes serviços são conhecidos por próprios ou Uti universi, sem possibilidade de identificação dos destinatários.
Os serviços impróprios ou Uti singuli podem ser prestados por órgãos da administração pública indireta ou, modernamente, por delegação, como dispõe sobre a concessão e permissão dos serviços públicos. Esses serviços são remunerados por tarifa ou preço público e estão sujeitos ao Código de Defesa do Consumidor[5]. Neste caso podemos citar como exemplos: o fornecimento de água, energia elétrica e transporte.
Também, a multa diária não deve ser considerada um serviço, tendo em vista sua natureza processual, no sentido de obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer algo. Não se aplica o CDC aos serviços realizados pelo perito judicial, não sendo possível a exigência de orçamento prévio.[6]
É discutível se o Código de Defesa do Consumidor se aplica as relações locatícias, sobretudo de imóveis, onde neste caso, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça se mostra contrário, porém, parece difícil sustentar este posicionamento quando ampliamos a noção de serviços a locação de veículos.
A análise da prestação de serviços deve ser feita de forma real e não formal, assim, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que não basta o consumidor ser rotulado de sócio e formalmente anexado a uma Sociedade Anônima para que seja afastado o vínculo de consumo, quando evidenciada a administração de recursos de terceiros.[7]
B) O fornecedor
O artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor define o fornecedor como “ toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços “.
A qualidade de fornecedor é muito importante para que haja um maior equilíbrio nas relações de consumo, pois, aumentando-se o número de fornecedores ( 1 ) teremos uma aplicação maior da justiça comutativa, já que esta não é baseada na qualidade das partes. A definição de fornecedor passa pelo estudo no que seja uma atividade profissional ( 2 ).
1 – Uma diversidade de fornecedores
Através desta definição percebe-se que o conceito de fornecedor ultrapassa aquele de empresário ( i ) e dos operadores privados ( ii ).
Além do status de empresário
O fornecedor pode ser uma pessoa física ou jurídica, não importando seu porte. A qualidade de fornecedor não se esgota na qualidade de empresário. A qualidade de empresário desaparece em proveito daquela mais ampla que é do fornecedor. O empresário é absorvido pela qualidade de fornecedor. Da mesma forma o é o banqueiro, o profissional liberal, o segurador, o importador, o exportador,…
Além do status de operadores privados
O conceito de fornecedor do artigo 3º do CDC é amplo, pois abrange a pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, os “ entes despersonalizados “, como por exemplos, a Itaipu Binacional, a massa falida ou o espólio de um empresário, em nome individual, cuja sucessão é representada pelo inventariante[8].
Não são considerados fornecedores de serviços as associações desportivas ou condomínios.
2 – A atividade profissional
A organização de uma atividade habitual
Para que a atividade seja considerada profissional, o fornecedor a deve exercer de forma habitual, ou seja, não ocasional, podendo ser empresarial ou civil.
A finalidade lucrativa
A atividade é considerada profissional quando ela busca uma remuneração em contrapartida da prestação fornecida. A gratuidade de atividade se contrapõe ao caráter especulativo da atividade. A gratuidade se contrapõe a noção de justiça comutativa.
O fim do lucro deve ser entendido de forma ampla, não somente direta como indireta[9]. Assim, ainda que não cobrem entrada, os Shopping Centers visam lucros ao oferecer serviços as pessoas que lá se encontram, mesmo que não adquiram nenhum produto.[10] Da mesma forma, os supermercados visam lucro ao oferecem gratuitamente estacionamento aos compradores e potenciais compradores.
A qualidade de profissional vem ao encontro com a finalidade comutativa que deve imperar no Código de Defesa do Consumidor.
Se a qualidade de fornecedor não é difícil se ser definida, o mesmo não ocorre com o conceito de consumidor.
C) O consumidor
O artigo 2º, caput, do Código de Defesa do Consumidor estabelece que o consumidor “ é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatária final “.
Partindo desta definição, verifica-se que não existe um método preciso na legislação, na doutrina e nem na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça de proteção do consumidor, os entendimentos são variados e dependem da observação de cada caso.
Como se observa, existe uma preocupação em se proteger um dos contratantes ( o consumidor destinatário final ), porém, não somente o consumidor destinatário final é protegido pelo Código de Defesa do Consumidor. Assim, de forma fictícia, pessoas determinadas ou não, sem terem sido contratantes ou destinatárias finais dos objetos das relações de consumo, serão protegidas por equiparação ( art. 2º, § único, art. 17 e art. 29 ).
Para tentar resolver o problema de quem é o destinatário final no Código de Defesa do Consumidor, duas tendências se apresentam: a subjetiva ou finalista ( a ) e a maximalista ( b ).
1) Teoria finalista[11]
i) A doutrina
A teoria finalista é restritiva, ela parte de um conceito econômico de consumidor e entende que não basta ser o adquirente ou utente destinatário final fático do bem ou serviços, deve ser também o seu destinatário final econômico, isto é, a utilização deve romper a atividade econômica para o atendimento de necessidade privada, pessoal, não podendo ser reutilizado, o bem ou serviço, no processo produtivo, ainda que de forma indireta.
O consumidor aqui é o não profissional e somente ele merece a proteção do Código de Defesa do Consumidor.[12]
Para a teoria finalista, a qualidade das partes é observada como um critério determinante para se direcionar a proteção do consumidor.
ii) A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
O conceito de consumidor se restringe, em princípio, as pessoas físicas ou jurídicas, não profissionais, que não visam lucro em suas atividades e que contratam com profissionais.[13]
A linha de precedentes adotada pelas Quarta e Sexta Turmas do Superior Tribunal de Justiça vão ao encontro da teoria subjetiva, restringindo a exegese do art. 2º do CDC ao destinatário final fático e também econômico do bem ou serviço.[14]
O Superior Tribunal de Justiça decide, por maioria de votos, através da Segunda Seção, que não é considerado destinatário final quem utiliza equipamento de serviço de crédito prestado por empresa administradora de cartão de crédito, pois este serviço tem o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade negocial, sendo considerada uma atividade de consumo intermediária[15], o mesmo ocorrendo com o consumidor intermediário que adquire produto ou usufrui serviço com o fim de direta ou indiretamente, dinamizar ou instrumentalizar seu próprio negócio lucrativo.[16] Desta forma, fica demonstrado que o consumidor deve adquirir ou utilizar produtos ou serviços fora de sua atividade profissional[17], independentemente dele visar ou não o lucro.[18]
No mesmo julgamento realizado pela Segunda Seção, que reconheceu o domínio da teoria subjetiva[19], o STJ flexibiliza este entendimento metodológico, ao reconhecer que em situações especiais, deve ser abrandado[20] o critério subjetivo do conceito de consumidor, para admitir a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas relações entre fornecedores e consumidores-empresários[21] em que fique evidenciada a relação de consumo, isto é, a relação formada entre fornecedor e consumidor vulnerável técnica, jurídica ou economicamente, de forma presumidamente ou não.
O consumidor não sendo vulnerável econômica, jurídica ou tecnicamente não será protegido.[22]
Para resumir, a pessoa jurídica aqui pode ser consumidora, desde que destinatária final fática e econômica e que ainda preencha os seguintes requisitos[23]:
não detenha a pessoa jurídica intuito de lucro, isto é, não exerça atividade econômica, o que ocorre com as fundações, associações, entidades religiosas, sindicatos, partidos políticos; ou
caso tenha a pessoa jurídica adquirente ou utente intuito de lucro, duas circunstâncias, cumuladamente, devem estar presentes: ( a ) o produto ou serviço adquirido ou utilizado não possua qualquer conexão direta ou indireta, com a atividade econômica desenvolvida, e ( b ) esteja demonstrada a sua vulnerabilidade ou hipossuficiência ( fática, jurídica ou técnica ) perante o fornecedor.
2) Teoria maximalista ou objetiva[24]
a) A doutrina
A teoria maximalista pressupõe um conceito jurídico-objetivo de consumidor e dá uma interpretação ampla ao termo “ destinatário final”, podendo ser pessoa física ou jurídica, que se apresente como destinatário final fático do bem ou serviço, encerrando objetivamente a cadeia produtiva em que inseridos o fornecimento do bem ou a prestação de serviços, ou seja, o destinatário final do produto é aquele que o retira do mercado e o utiliza, o consume, encerrando objetivamente a cadeia produtiva em que inseridos o fornecimento do bem ou a prestação de serviços, como por exemplo, a compra de um ônibus somente para transporte dos funcionários. O que interessa é o ato de consumo final e não sua finalidade. Não deve haver finalidade de revenda.
Para esta teoria, não importa perquirir a finalidade do ato de consumo, sendo irrelevante se a pessoa objetiva a satisfação de necessidades pessoais ou profissionais, se visa ou não o lucro ao adquirir ou utilizar produto ou serviço. Ainda, não interessa analisar sua vulnerabilidade técnica ( ausência de conhecimentos específicos quanto aos caracteres do bem ou serviço consumido ), jurídica ( falta de conhecimentos jurídicos, contábeis ou econômicos ) ou socioeconômico ( posição contratual inferior ) em virtude da magnitude econômica da parte adversa ou do caráter essencial do produto ou serviço por ela oferecido.
Para a teoria maximalista o ato de consumo pelo destinatário final fático é um critério determinante para a caracterização do consumidor.
b) A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
A Primeira e a Terceira Turmas do Superior Tribunal de Justiça, adotam os pressupostos da teoria objetiva ou maximalista, considerando-se o consumidor o destinatário final fático do bem ou serviço, ainda que venha a utilizá-lo no exercício profissional ou de empresa.[25]
O direito contratual das relações de consumo ( teoria objetiva ) está mais ligado a noção objetiva de ato de consumo[26] do que a noção subjetiva de consumidor, assumindo assim uma função preponderante econômica.
O importante aqui é a retirada do bem de mercado ( ato objetivo ) sem se importar com o sujeito que adquire o bem, profissional ou não ( elemento subjetivo ).[27]
O Código de Defesa do Consumidor se mostra mais preocupado com a relação jurídica existente entre tomador e o fornecedor do crédito sobre o qual se litiga, que é de consumo[28], do que com a natureza da pessoa contratante ou a destinação dos bens adquiridos[29].
O direito contratual das relações de consumo (teoria objetiva) está mais ligado a noção objetiva de ato de consumo final.[30]
O importante aqui é a retirada final do bem de mercado (ato objetivo) sem se importar com o sujeito que adquire o bem, profissional ou não (elemento subjetivo)[31].
Conclusão da primeira parte
A qualidade do consumidor como destinatário final de produtos e serviços é analisada sob o ponto de vista econômico, ou seja, leva-se em conta o sujeito como último estágio do processo produtivo.
Ao utilizar este critério o conceito de consumidor se revela impreciso tanto na legislação como na doutrina e jurisprudência, parecendo um erro de construção metodológica[32], demonstrando ser inapto para se atingir o objetivo de proteção de contratantes de uma mesma categoria.
II – O abandono do critério legal baseado no binônimo fornecedor-consumidor[33]
Face a incerteza metodológica de parâmetros para a proteção do consumidor como destinatário final, propomos que seja levado em conta a economia contratual dos contratos comutativos para corrigir o desequilíbrio contratual manifesto entre as prestações dos contratantes, ou seja, entre seus direitos e obrigações[34] e que sejam incluídos de forma ampla os bens e serviços privados e públicos ( Uti singuli e Uti universi ).
O contratante deve receber uma proteção compensatória em virtude do desequilíbrio contratual manifesto e não baseado na sua qualidade extrínseca[35].
A proteção do contratante deve tomar como causa a desvantagem manifesta para haver uma harmonização dos interesses de seus participantes ( art. 4º, III, do CDC ) e não a qualidade dos contratantes tidos como fornecedor e consumidor. Neste sentido a legislação consumerista sobre cláusulas abusivas pode se revelar como o fruto de uma insuficiente reflexão sobre as possibilidades oferecidas pelo direito comum em matéria de correção dos desequilíbrios contratuais.[36]
Se o direito contratual comporta disposições gerais permitindo de conferir a mesma proteção aos contratantes, então a erradicação do método baseado na qualidade dos contratantes, torna-se possível. Assim, estaremos caindo nas fontes de direito e a questão então é de saber se a aplicação judicial do direito comum dos contratos seria desejável para colocar fim ao atual método de proteção do consumidor.
Para que exista um equilíbrio contratual de prestações nos contratos comutativos o método proposto é que o julgador intervenha nas relações de consumo ( A ) para corrigir os desequilíbrios manifestos ( B ).
A – A busca do equilíbrio contratual através da intervenção judicial
As teorias finalista e maximalista analisam o consumidor como a causa de proteção enquanto entendemos que a causa da proteção deve ser o equilíbrio contratual, cujo efeito é a proteção da parte em desequilíbrio.
A evolução do direito contratual se mostra preocupada com o equilíbrio contratual e a intervenção do juiz se faz presente. “ Se desenha uma nova forma de considerar o contrato, como uma união de interesses equilibrados,(…) sob a égide de um juiz que sabe ser, quando necessário, juiz da equidade ( …)”.[37]
Desta forma, sem cair na arbitrariedade, o juiz deve intervir no processo para corrigir os desequilíbrios manifestos ( a ), sem portanto, deixar de observar o princípio da força obrigatória dos contratos ( b ), fazendo com que haja uma conciliação entre estes dois pontos.
A intervenção judicial como método de correção do desequilíbrio entre os contratantes
A justiça corretiva não pode ser vista com um fim em si, mas somente como um meio de correção das convenções ( muito ) desequilibradas.[38]
A tendência no direito moderno é a de que o juiz tome decisões motivadas[39] com força de lei, sendo que tais decisões passam a ser fontes derivadas e auxiliares do direito. Uma reforma do direito contratual não pode passar despercebida por esta questão, porém, isto não significa dizer que o poder do judiciário exclua uma metodologia própria para se buscar o equilíbrio contratual, a qual deve receber o aval do legislador.[40]
No Código de Defesa do Consumidor, o consumidor recebe uma proteção promocional decorrente da legislação, enquanto que aqui, o contratante em desvantagem manifesta recebe uma proteção frente ao desequilíbrio contratual visto pelo juiz, pois a lei por si só se revela incapaz deste controle, como ocorre com o controle das cláusulas abusivas.[41]
O juiz deve intervir quando estiver presente o desequilíbrio das prestações, assim, quando a cláusula de eleição de foro, oriunda de contrato de adesão dificultar o acesso a justiça, ocorrerá a intervenção judicial para reconhecer sua nulidade, porém, o simples fato do contratante alegar que é “ uma empresa menor do que a ré não é suficiente, por si só, para afastar o foro eleito “, ou seja, o juiz não intervém porque não fica comprovado o abuso.[42] Para corrigir o desequilíbrio contratual, o juiz deve observar a eventual onerosidade excessiva do contrato e não a hipossuficiência do contratante.[43]
O julgador não deve esquecer de tomar como base a legislação dentro do que for razoável para a solução da lide, sob pena de se ferir o princípio da força obrigatória dos contratos.
O respeito ao princípio da força obrigatória dos contratos através da aplicação da teoria da razoabilidade
A situação de manifesto desequilíbrio entre os contratantes faz com que ocorra a intervenção estatal pela via legislativa, para atuar no campo contratual, flexibilizando as tão decantadas autonomia da vontade e obrigatoriedade do contrato, pela presença da ordem pública.[44]
Na busca deste equilíbrio, o juiz tem o poder de refazer os contratos imperfeitos.[45] À manifestação do consentimento e à sua força vinculante é agregado o objetivo do equilíbrio das partes, através da ordem pública e da boa-fé. Assim, numa relação entre um advogado e seu cliente quando não ficar estipulado o valor dos honorários advocatícios e existir uma prestação efetiva de serviços, cabe ao julgador arbitrar o valor dos honorários ou quando este valor se revelar excessivo buscar o equilíbrio analisando as prestações dos contratantes reduzindo-o.
A autonomia da vontade dos contratantes será ultrapassada quando reconhecida, à vista de provas, nas instâncias ordinárias, a abusividade [46], como visto no exemplo acima, tanto pela ausência de preço como pelo excesso.
O respeito à força obrigatória dos contratos deve se dar conforme o que for razoável[47], observando-se a expectativa dos contratantes com relação as prestações recíprocas. Ocorrerá uma interferência judicial compensatória para que se atinja o razoável.
É possível se verificar que o atual método de proteção do consumidor pode ser revisto através de uma cooperação entre o que estabelece a lei e o poder do juiz.
Para que o juiz atinja a proteção compensatória, ele deverá utilizar instrumentos jurídicos adequados, relativizando a autonomia da vontade em prol da justiça contratual[48], pois, o contrato só poderá ser útil ao princípio da sociabilidade dos contratos se proporcionar equilibrados benefícios para ambas partes contratantes.[49]
B ) A correção do desequilíbrio por meio de instrumentos jurídicos legais
a) Mecanismos de correção do desequilíbrio contratual
Ao se abandonar o critério legal de proteção baseado na qualidade das partes, baseando-se na intervenção do juiz[50] para se atingir o equilíbrio entre os contratantes, este, sem se desviar de noções legais estritamente definidas, aplicará às regras de provas como instrumento na busca deste equilíbrio contratual ( 1 ) bem como outros standards ( 2 ).[51]
1) O recurso as regras de prova
Nas relações de consumo existe uma regra de prova na qual se presume que o consumidor é a parte vulnerável[52], a parte fraca e assim ele tem o direito “ a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímel a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência ( art. 6º, VIII, CDC )”.
A facilitação da produção de provas, inclusive com a inversão de seu ônus, serve para mostrar a dificuldade presumida que o consumidor tem em produzi-la. Assim, o juiz tem o poder-dever[53] de buscar o equilíbrio na relação contratual onde a produção apresenta ser difícil ao consumidor.
Existe a facilitação e mesmo a inversão, porém, se não ficar demonstrada a existência do desequilíbrio contratual efetivo, não haverá proteção do contratante.[54] Desta forma, a presunção simples de que o consumidor é a parte fraca nas relações de consumo não resolve o problema do desequilíbrio contratual, pois, a causa está no desequilíbrio contratual e não na qualidade dos contratantes.
O desequilíbrio contratual deve ser demonstrado pelo contratante para que exista a proteção do equilíbrio contratual[55]. Na busca do equilíbrio das prestações, é praxe a utilização de ações revisionais protegidas pelo art. 6º, V, do CDC, visando a corrigir os abusos praticados na relação contratual ( art. 51, §1º, do CDC ).[56]
O excesso na prestação de um dos contratantes deve ser demonstrado nas instâncias ordinárias. Assim, num período sem inflação, não se pode admitir uma cobrança mensal de juros remuneratórios superiores a 41% ao mês, “ sob pena de permitir-se anormal enriquecimento de um dos partícipes da relação negocial, em detrimento do outro “[…] quando a remuneração vai além do dobro do que resultaria da incidência da correção monetária e mais o percentual de juros padrão, está-se diante de tratamento iníquo em relação a um dos obrigados, qual seja o devedor. “[57].
Por outro lado, não haverá proteção do contratante se não houver a demonstração de nenhum excesso. Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que ainda que aplicável o Código de Defesa do Consumidor aos contratos regidos pelo SFH, o contratante não obteve êxito em demonstrar que as cláusulas contratuais sejam abusivas, o que afasta a nulidade do contrato por afronta às relações básicas de consumo.[58]
Os exemplos acima servem para demonstrar que a qualidade do binômio fornecedor-consumidor pode ser abandonada para se resolver o problema do desequilíbrio contratual, substituindo-se uma regra de prova por uma regra de fundo, a qual responde melhor a realização da justiça comutativa.[59]
O abandono da qualidade dos contratantes será ainda favorecido pela a aplicação de standards desencadeando a ressurreição do direito comum dos contratos.[60]
2) A utilização de standards para proteção do contratante
A utilização de standards, ou seja, de normas que não são imediatamente operacionais[61], constituindo-se uma noção-quadro, uma noção com conteúdo variável[62], aberta a complementação e sujeita a variação no tempo, possibilita ao juiz[63] a apreciação in concreto de situações[64] que neles se enquadram para buscar o equilíbrio contratual.
A boa-fé e a eleição de uma obrigação essencial[65] constituem-se bons exemplos de standards, assim como o abuso de poder econômico e o dolo quando ficar demonstrado o desequilíbrio significativo de prestações e o abuso por parte de um dos contratantes. A boa-fé ( art. 4º, caput, III e art. 51, IV, do CDC ) é o principal standards a ser utilizado para o equilíbrio das prestações contratuais. Seu antônimo é o abuso a iniqüidade. Onde não houver abuso, não existe iniqüidade.[66]
As cláusulas abusivas obedecem esta finalidade porque elas trazem um desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações dos contratantes. Assim, a abusividade e a onerosidade excessiva devem ser analisadas de forma objetiva e corrigidas, pois, a preocupação do legislador de buscar o equilíbrio ideal entre fornecedor e consumidor nos contratos de consumo[67] não pode se limitar somente a qualidade destes contratantes, mas sim a qualquer contratante.
O desequilíbrio não precisa necessariamente ser efetivo para que se busque o equilíbrio, basta a ameaça do desequilíbrio contratual para que ocorra a correção.[68]
O consumidor não é protegido somente pela sua qualidade. Para que ele receba a proteção diante de uma cláusula abusiva ele deverá mostrar que existe excesso na sua prestação. Desta forma, é abandonado o critério legal de proteção do consumidor frente a ausência de desequilíbrio contratual[69], pois o julgador aqui demonstra estar preocupado não com a qualidade dos contratantes, mas sim com a aplicação da justiça comutativa.
Ao ser eleito o foro para discussão de um contrato de adesão, independente da relação ser ou não de consumo, esta cláusula deve prevalecer se não houver demonstração de onerosidade excessiva para o contratante, nem prova de dificuldade de acesso ao judiciário ou restrição a sua defesa em juízo, pois, a simples contratação por adesão não é elemento suficiente para determinar a vulnerabilidade do contratante que adere.[70]
O abuso ocorre quando ficar demonstrado o desequilíbrio contratual porque o comprador está na dependência de um produto; pela natureza adesiva do contrato imposto; pelo monopólio da produção do bem ou sua qualidade insuperável; pela extremada necessidade do bem ou serviço; pelas exigências da modernidade atinentes à atividade, por exemplo, de trabalhar com o sistema de pagamento de cartão de crédito, etc.[71]
Como a boa-fé deve estar presente na fase pré-contratual até a fase pós-contratual, é permitido que seja demonstrado o abuso de prestações e o enriquecimento ilícito mesmo após o término do contrato.
A utilização dos standards nas relações de consumo faz despertar o direito comum. Assim, a aplicação e não criação de standards pelo julgador, se mostra como instrumento capaz de substituir o atual método legislativo que se baseia na qualidade dos contratantes, por um método de proteção compensatória fundamentado no equilíbrio contratual dos contratantes.
A luta contra as cláusulas abusivas nas relações de consumo se mostra como um método discriminatório ao se permitir a proteção somente de uma categoria de pessoas, os consumidores. Para acabar com esta discriminação, propomos que seja eliminado o binômio fundamentado na qualidade dos contratantes ( fornecedor e consumidor ) pelo fundado no equilíbrio contratual, abandonando-se a qualidade dos contratantes.
A aplicação do conceito de cláusula abusiva deve levar em conta o desequilíbrio manifesto entre os contratantes[72], ou seja, sem a existência do desequilíbrio, não existe motivo para se anular uma cláusula, pois não existe abuso[73]. Na análise de uma cláusula, para ver se ela é abusiva ou não, justamente estamos aplicando um standard, o antônimo da boa-fé, o abuso nas relações contratuais. O Código de Defesa do Consumidor, comporta um standard. Porque não ir mais longe e aplicá-lo a outros contratantes? O juiz não poderá utilizar um standard do direito comum dos contratos?[74]
J. Calais-Aloy estima que o direito do consumo coloca ao serviço da boa-fé contratual os meios de restaurar o equilíbrio contratual que até agora o direito comum ignorava.[75] A propensão da boa-fé como base do controle judicial do caráter abusivo de uma cláusula, independe da qualidade das partes.[76] O abuso, por sua vez, deve permitir o controle do desequilíbrio contratual, independente da qualidade dos contratantes.
A boa-fé se manifesta também através da obrigação de informação[77] ( art. 6º, III, do CDC ), pois assim o consentimento pode ser protegido e se protegendo o consentimento está se protegendo o patrimônio. A informação persiste não só na fase pré-contratual, ela vai até a fase pós-contratual ( art. 10, §1º, do CDC ).[78] O primeiro caminho para se obter a justiça contratual está indicado no art. 47 do CDC, ao estabelecer que as cláusulas contratuais serão interpretadas de forma favorável ao consumidor.[79]
O consumidor é protegido de forma preventiva por meio do direito de informação, pois, a falta de informação é fonte de desequilíbrio.[80] O Código de Defesa do Consumidor assegura como direito básico do consumidor, o direito a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços ( art. 6º, III, do CDC ).
Assegurando a qualidade do consentimento do consumidor evita-se a injustiça contratual.[81]
b) Efeitos da aplicação dos standards
A correção do desequilíbrio deve ser buscada de forma a que se atinja o mais próximo equilíbrio total, lutando contra a injustiça contratual, seja quando esta se manifeste pelo desequilíbrio excessivo do conteúdo do contrato, seja pela desproporcionalidade excessiva decorrente dos poderes dos contratantes.
O julgador deve buscar o equilíbrio contratual de forma objetiva, caso a caso[82]. Assim, frente ao reconhecimento da existência de juros abusivos, devem ser fixadas taxas de juros praticadas no mercado, declarando-se nula a cláusula contratual.[83]
A correção judicial deve ser buscada não somente para reconhecer a nulidade da cláusula contratual[84], mas também para corrigi-la sem que haja necessidade do reconhecimento de sua nulidade, quando esta última vier a trazer prejuízos aos contratantes, gerando novo desequilíbrio contratual.
O modo de correção do desequilíbrio deve trazer a nulidade como última conseqüência, ou seja, quando a sua regularização for impossível ou se o contrato não tem mais utilidade.[85] Por isso, não concordamos com a nulidade de pleno direito das cláusulas abusivas estabelecidas no art. 51 do CDC e entendemos que deve ser sempre buscado o equilíbrio contratual, evitando que a nulidade da cláusula traga um novo desequilíbrio.
Diante da onerosidade excessiva, não somente o consumidor, mas o contratante que demonstrar o desequilíbrio contratual poderá buscar[86]: a) a modificação da cláusula contratual, a fim de que se preserve o equilíbrio do contrato ( art. 6, V, CDC ); b) a revisão do contrato em virtude de fatos supervenientes não previstos pelas partes quando da conclusão do negócios ( art. 6º, V, segunda parte, CDC ); c) a nulidade da cláusula por trazer desvantagem exagerada ao consumidor ( art. 51, IV, e §1º, III, do CDC ); e ainda d) a resolução do contrato quando sua conservação configurar ônus excessivo a qualquer das partes ( art. 51, §1º, III, CDC ). Como se vê neste último exemplo, o contrato pode ser resolvido também em benefício do fornecedor.
A busca do equilíbrio nas relações contratuais comutativas está acima da qualidade das partes.
Conclusão da segunda parte
A legislação não é suficiente para equilibrar os contratos em desequilíbrio manifesto, para que exista o equilíbrio nas prestações dos contratantes, a intervenção judicial será necessária.
A intervenção não pode ocorrer de forma arbitrária, para que isso não ocorra o juiz deverá recorrer as regras de provas e standards.
Conclusão geral
O Código de Defesa do Consumidor acabou reforçando os direitos individuais dos cidadãos, contribuindo para acelerar e acentuar o processo de reforma nos ramos do direito civil, comercial e processual[87], mas utilizou uma metodologia imprecisa e discriminatória[88] fundamentada na qualidade dos contratantes.
O conceito de consumidor já não se encontra referido ao operador final do processo produtivo e é ampliado para generalidade dos cidadãos ante a necessidade de aumentar se nível de qualidade de vida[89]. Desta forma, devemos abandonar a qualidade do binômio fornecedor-consumidor para traçarmos uma nova metodologia reforçando o direito comum dos contratos[90], fundamentada no equilíbrio contratual de direito e obrigações de todos os indivíduos[91] e ser aplicada pelo julgador com sustentação em standards.
Advogado. Doctorat Droit Privé pela Université de Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Corso Singolo em Diritto Processuale Civile e Diritto Fallimentare pela Università degli Studi di Milano. Autor de mais de 150 artigos , das obras Manual da Sociedade Limitada: Prefácio da Ministra do Superior Tribunal de Justiça Fátima Nancy Andrighi ; A prevenção de Dificuldades e Recuperação de Empresas e Assédio Moral no Trabalho (E-book). É também juiz arbitral e palestrante
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