Resumo: O presente trabalho busca analisar sistematicamente a evolução da teoria constitucional, verificando a partir de uma abordagem histórico-política as transformações advindas dos grandes eventos globais que marcaram a humanidade e determinaram os rumos do constitucionalismo, trazendo à uma linguagem simples e acessivel um tema complexo e de suma importância que serve de fundamento para todos os ramos do direito, sobretudo a partir da percepção contemporânea da Constituição como núcleo central e supremo do sistema jurídico, tendo por objetivo, com isso, possibilitar uma melhor compreensão do neoconstitucionalismo e das grandiosas transformações sofridas pela ciência constitucional ao longo dos anos, inclusive visualizando perspectivas para o constitucionalismo no futuro.
Palavras-chave: constitucionalismo; neoconstitucionalismo; neopositivismo; jurisdição constitucional; transconstitucionalismo.
Sumário: 1. Introdução – 2. A Evolução da Teoria Constitucional – 2.1. Constitucionalismo Antigo – 2.2. Constitucionalismo Liberal – 2.3. Constitucionalismo Social – 3. Constitucionalismo Contemporâneo ou Neoconstitucionalismo – 3.1. Surgimento dos Direitos Difusos ou Metaindividuais – 3.2. Desenvolvimento do Estado Democrático de Direito – 3.3. Concepção Filosófica Neopositivista do Direito – 3.4. Reconhecimento da Eficácia Normativa dos Princípios – 3.5. Supremacia e Centralidade da Constituição – 3.6. Ampliação da Hermenêutica Constitucional – 3.7. Jurisdição Constitucional e Ativismo Judiciário – 4. Perspectivas para o Constitucionalismo do Futuro – 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O estudo do direito constitucional se inicia com o fenômeno do constitucionalismo, que nada mais é do que a análise da evolução histórica das Constituições, isto é, a forma como se deu os avanços na ciência jurídica constitucional ao longo dos tempos. Desde os primórdios da humanidade surgiu a necessidade do homem estruturar as relações sociais, estabelecendo o Estado como forma de modular a convivência humana. O Estado, então, vem a ser a criação humana idealizada para dar governo, direção à sociedade, como imperativo para que os homens possam conviver harmonicamente. Assim, contrapondo-se às anarquias (ausência de governo), o homem criou o Estado como meio de organização social, uma forma de possibilitar a coexistência humana e estruturar as relações sociais que daí derivam. É a partir daí que nasce o Direito, intrínseco ao surgimento do Estado, nasce o Direito. E, obviamente, junto com o surgimento do Direito, inicia-se os primórdios da história das Constituições. O constitucionalismo, podemos dizer, surge exatamente com o início do aparelhamento estatal.
É bem verdade que as Constituições bem organizadas e escritas só nasceram muito tempo depois. Todavia, considerando Constituição com o significado de norma de conduta de um Estado, regras de direitos e deveres que se formam no tempo e estruturam a convivência em uma dada sociedade politicamente organizada, percebemos, dentro desse enfoque, que embora a sistematização constitucional possa ser melhor visualizada somente em tempos recentes, a rigor, todo Estado tem uma norma de organização (constituição), ainda que não escrita. Ou seja, é pressuposto do Estado a existência de uma certa organização político-social, ainda que ínfima, caso contrário não teremos Estado. Nesse sentido, apesar das divergências acadêmicas, reconhecemos que é do surgimento da concepção do Estado que decorre, junto com este, o avanço das Constituições, mesmo que ainda de forma incipiente em seu nascedouro. É, pois, sobre a evolução do constitucionalismo que nos propomos a tecer comentários neste trabalho, inclusive aventurando-se a traçar perspectivas para o constitucionalismo do futuro, ante as transformações que a teoria constitucional vem sofrendo nos últimos tempos.
2. A EVOLUÇÃO DA TEORIA CONSTITUCIONAL
Se antes de existir o Estado tínhamos uma sociedade em desordem, anárquica, com ausência de governo central, daí decorre que o surgimento do Estado trouxe consigo uma idéia muito forte de concentração de poder, justamente para conter o caos social. Passamos, então, de um extremo (ausência de governo) para o outro (centralização de poder), dando origem aos chamados regimes absolutistas, com todo o poder concentrado nas mãos do imperador. Fala-se, então, das autocracias, isto é, poder por si próprio, sendo o regime político no qual há um único detentor do poder, o imperador autocrata (“o Estado sou eu”). O governante tinha um controle absoluto em todos os níveis de governo, atuava sem consentimento dos governados. A titularidade do poder não estava no povo (soberania popular), mas reinava nas mãos imperosas e centralizadoras do imperador soberano.
Portanto, o Estado já nasce dessa forma, com o poder concentrado, essa é a sua origem. Muito tempo se passou até surgirem as democracias, advindas em tempos recentes, constituindo-se em regimes políticos onde a origem do poder e o controle do seu exercício se encontra no povo. E ainda mais tempo se passou até se garantirem os direitos sociais e difusos. Esse tempo, em que as normas de conduta (Constituição) do Estado evoluíram de um regime concentrado de poder até as democracias plurais dos dias de hoje, corresponde exatamente à evolução da teoria constitucional. Por isso, como premissa inicial, vemos que a história do constitucionalismo está marcada desde sempre por ser uma contraposição ao absolutismo, à centralização do poder.
Partindo da ideia de que todo Estado deva possuir uma Constituição, vislumbra-se que o núcleo central dos textos constitucionais é a existência de regras de limitação ao poder autoritário e de prevalência dos direitos fundamentais, como forma de distanciar-se da concepção autoritária de Estado presente no regime antigo. Estudar o constitucionalismo é, de um modo geral, estudar a evolução das garantias que, ao longo dos tempos, foram conquistadas e assegurados ao homem, do ponto de vista individual e coletivo, de forma a evitar os abusos da minoria que detinha o poder em dada época histórica. A concepção do constitucionalismo, vale dizer, a história constitucional de luta contra o poder absoluto do Estado, está associada a essa ideia central. Em cima dessas bases se assenta o avanço histórico-político das Constituições, como forma de conter o poder estatal.
Não há consenso acadêmico entre as fases históricas da evolução do constitucionalismo. Alguns doutrinadores iniciam a teoria constitucional a partir dos acontecimentos impulsionados pelas revoluções liberais francesa e americana. Parece-nos mais elucidativo, contudo, a esquematização que associa a evolução da teoria constitucional aos grandes eventos históricos globais que marcaram a humanidade e determinaram os rumos da ciência jurídica. Nesse sentido, para fins didáticos, adotamos as seguintes fases históricas do constitucionalismo, que vemos a seguir:
2.1. Constitucionalismo Antigo:
A rigor, o avanço da teoria constitucional, verdadeiro combate para a garantia das liberdades individuais e sociais, acentuou-se sobretudo nas revoluções liberais no final do século XVIII. Contudo, antes disso, no chamado constitucionalismo antigo, as sociedades já apontavam para um controle do poder estatal, mesmo que de modo ainda incipiente. Nesse sentido, podemos considerar o Constitucionalismo Antigo como a fase que se situa desde os primórdios da sociedade, com o surgimento do Estado, e vai até o final do séc. XVIII, com as chamadas revoluções liberais. A essa época, ainda não havia Constituição escrita, o Direito era baseado nas relações consuetudinárias, não tínhamos em nenhuma parte do globo uma consolidação de leis de maneira concisa. Estamos na fase, então, do jus naturalismo, a doutrina do chamado direito natural. Os adeptos do jus naturalismo defendiam que todos os indivíduos possuíam direitos inatos, naturais, simplesmente pelo fato de terrem nascido. Nessa concepção, esses direitos inatos, decorrentes da própria natureza humana, independeriam de lei que os reconhecessem, prescindindo de qualquer instrumento de positivação para que tivessem aplicabilidade.
O problema dessa doutrina é que, se um indivíduo tem direitos naturais, e outro indivíduo igualmente também tem direitos naturais, e se ambos estão em alguma situação de conflito, como resolvê-lo? Logicamente, prevaleceria sempre o mais forte, aquele que detinha mais poder. Ou seja, a subjetividade do jus naturalismo acabava sendo utilizada para privilegiar a nobreza e oprimir o povo. Na verdade, a doutrina jus naturalista é bastante simpática – e veremos que atualmente há, no fundo, uma remodelação do jus naturalismo, ponderada pelas ideias do neopositivismo -, ocorre que, com o tempo e na sua aplicabilidade prática, foi-se observando um desvirtuamento no instituto. E, assim, permanecia o regime absolutista de centralização de poder. A soberania era do imperador e não do povo. Aliás, antigamente, até mesmo os juízes europeus eram recrutados entre integrantes das porções mais nobres da sociedade, na aristocracia, no alto clero. Evidentemente, os conflitos eram resolvidos privilegiando os direitos dos mais poderosos em detrimento aos mais fragilizados. Como não havia lei positivando os direitos, mas estes se inseriam no campo subjetivo da naturalidade inata ao indivíduo, é óbvio que o julgamento de conflitos sociais traria consigo grande parcela de subjetividade. Não é difícil se imaginar que essa subjetividade sempre seria utilizada de forma discriminatória para favorecer os poderes dominantes da sociedade.
Por outro lado, como naquela época imperava a centralização de poder nas mãos do Estado, daí resulta que os direitos e liberdades individuais da classe pobre não tinham representatividade. A essa época, podíamos observar o predomínio dos meios de constrangimento para assegurar o respeito aos padrões de conduta da comunidade, sob o poder centralizador do seu líder. Foi dentro desse contexto, então, que vieram as revoluções liberais francesa e americana em defesa das garantias e liberdades individuais, como forma de limitar a atuação estatal, iniciando o chamado Constitucionalismo Liberal, visto adiante. Por isso que, para muitos, o constitucionalismo, a rigor, inicia-se somente nessa fase seguinte. Todavia, ainda no período do Constitucionalismo Antigo percebemos avanços na garantia de liberdades individuais e no combate à centralização do poder.
A primeira experiência do constitucionalismo antigo foi a do Estado Hebreu, onde já havia uma limitação do poder. Era o chamado Estado teocrático, com limitações de governo por dogmas religiosos. Segundo Karl Loewenstein, esse teria sido o marco histórico do constitucionalismo. Em seguida, destacam-se as experiências grega e romana. Na Grécia e em Roma tivemos a primeira ideia de liberdade e “democracia constitucional”, que é a participação popular nas decisões políticas. Mais adiante, percebemos a experiência inglesa, onde se deu a concretização do Estado de Direito. Esta experiência foi intitulada de “Rule of Law”, o chamado “governo das leis” em substituição ao “governo dos homens”. Desde aquela época já surgiram vários pactos e documentos de grande valor constitucional, como a Magna Charta, de 1215, o Petition of Rights, de 1628, o Habeas Corpus Act, de 1679, o Bill of Rights, de 1689, e o Act of Settlement, de 1701. A experiência do “Rules of Law” (governo das leis) e todos estes primeiros documentos ingleses podem ser considerados como sendo os embriões das Constituições modernas. Já deram início ao chamado Estado de Direito (governo das leis). Embora o Direito baseando-se apenas em Constituições consuetudinárias (os costumes eram a principal fonte do direito) e prevalecendo o conjunto de valores morais advindos do jus naturalismo, é nesta época, ainda preambular, que o constitucionalismo aponta inicialmente como um início de movimento de conquista das liberdades individuais. De toda sorte, era apenas um princípio.
2.2. Constitucionalismo Liberal:
Para muitos, o constitucionalismo se inicia, de fato, a partir desse momento. Essa segunda fase, a que chamamos de constitucionalismo liberal, tem início no final do séc. XVIII com as revoluções liberais (Francesa e Americana), que resultaram na queda das grandes monarquias, provenientes da união da burguesia com o chamado Terceiro Estado (povo), em busca de direitos libertários. O contexto histórico, como vimos, era o absolutismo, daí porque os direitos individuais, também chamados de liberdades públicas, tornaram-se o núcleo das revoluções liberais. Foi aqui, a partir dessas revoluções, que ocorreu o surgimento das primeiras constituições escritas. O que se buscava com essas revoluções era a liberdade dos cidadãos em relação ao autoritarismo do Estado. Foi a partir daí que houve a necessidade de prever quais eram os direitos de cada indivíduo, evitando a atividade arbitrária do Estado. Essa instrumentalização dos direitos individuais veio por meio das primeiras Constituições escritas. Sob a influência do iluminismo liberalista, sentiu-se a necessidade de garantir taxativamente as liberdades individuais, fazendo-o por meio de leis.
Eis, então, o grande marco do constitucionalismo liberal: o surgimento de Constituições escritas. Se antes só existia “commom law” (sistema consuetudinário, fonte principal nos costumes e jurisprudência), agora passa-se a existir também “civil law” (sistema formal com a fonte princial nas leis escritas). Nesse período, vale ressaltar, deu-se inicío os primórdios do positivismo, pela influência de Augusto Comte, mas na esfera jurídica essa doutrina só vai ser desenvolvida no século seguinte com Hans Kelsen, fase do constitucionalismo social. Quer dizer, o jus naturalismo ainda permenceu dominando a ciência jurídica durante a fase do constitucionalismo liberal, porque o positivismo jurídico (Hans Kelsen) se desenvolve e atinge seu ápice apenas no início do séc. XX. Obviamente, as transformações não ocorrem rapidamente, naquela época a doutrina jus naturalista ainda prevalecia, mas uma grande mudança já começava a ocorrer. Os direitos, embora considerados inatos e imutáveis, passaram a ter previsão em lei, justamente para conter o poder do Estato. Assim, forçoso notar que o jus naturalismo não deixou de prevalecer pelo simples fato do surgimento das leis, ao contrário, tornaram-se conciliáveis durante todo o constitucionalismo liberal. Primeiro, porque nessa fase não havia ainda a nítida separação entre direito e moral. Segundo, porque inicialmente nem se recohecia a eficácia normativa das Constituições, eram mais documentos de cunho político.
Contudo, não é difícil visualizar que a partir das revoluções liberais o jus naturalismo foi abrindo espaço à posterior doutrina da positivação dos direitos. Embora nesse período a doutrina jus naturalista fosse dominante, já constatamos uma grande transformação, pois aquilo que estava baseado apenas em princípios e valores em Constituições consuetudinárias (“common law”), agora passa a ganhar corpo de lei, com o surgimento das Constituições escritas (“civil law”), decorrente da necessidade de proteção aos diretos e liberdades individuais, como reação ao regime absolutista, buscando-se a isonomia formal entre os indivíduos por meio da lei. Daí concluímos que é dentro do constitucionalismo liberal que surge a primeira sistematização coerente do Estado de Direito, através das Constituições escritas. É bem verdade que antes, ainda no constitucionalismo antigo, já havia um princípio de Estado de Direito com a experiência inglesa do “Rule of Law” (governo das leis), mas apenas agora, no constitucionalismo clássico, surgem as Constituições escritas, dando início efetivamente a um Estado de Direito sistematizado. Impõe-se, dessa forma, uma atuação negativa do Estado (não fazer), limitando o seu poder. Justamente por isso essas primeiras Constituições são chamadas Constituições negativas, porque impunham uma abstenção estatal, governos limitados, respeito aos direitos e liberdades individuais.
Por influência do liberalismo iluminista, assim, criava-se a concepção do Estado mínimo como proteção às garantias individuais. O principal valor aqui, portanto, era a liberdade. É nessa época que surgem os chamados direitos de primeira dimensão (liberdades públicas). A atuação do Estado deveria limitar-se à defesa da ordem e segurança pública, de onde nasce o princípio da legalidade adminitrativa como subordinação à lei (os particulares podem fazer tudo o que a lei não veda, mas a Administração só pode fazer o que a lei permite). O Estado de Direito, nessa fase, é sinônimo de Estado Liberal. A característica marcante é o abstencionismo estatal, a garantia das liberdades públicas. Com isso, asseguram-se os direitos de primeira dimensão, que se referem aos direitos civis e políticos, como reivindicação das revoluções liberais. O Estado liberal, então ganha contornos bem definidos, seja no plano político (poder limitado pelo Direito), seja no plano econômico (Estado mínimo, não intervenção estatal). A instrumentalização desse Estado de Direito (Estado liberal) deu-se, então, a partir das primeiras Constituições escritas (constituições negativas), limitando a atuação estatal (abstencionismo), através das liberdades e direitos individuais (direitos de primeira geração). As duas experiências que impulsionaram todas essas mudanças foram as chamadas revoluções liberais Francesa e Americana. Mas grandes diferenças tivemos entre ambas. O constitucionalismo contemporâneo, aliás, vai ser exatamente o resultado da junção dessas duas experiências.
Com relação à experiência Francesa, tratou-se de uma sangrenta revolução que durou 10 anos, iniciando-se em 1789 com a convocação dos Estados Gerais e a Queda da Bastilha, encerrando-se em 1799 com o golpe de estado de Napoleão Bonaparte. Estava em causa a ruptura do regime absolutista e os privilégios do clero e da nobreza. O movimento tinha como ideário a democracia, a abolição da servidão e dos direitos feudais, proclamando o princípios universais da "Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Diante desse contexto, surgiu, então, a Constituição Francesa de 1791, inspirada na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que lhe serviu de preâmbulo. Daí vieram, então, os direitos de primeira geração, as chamadas liberdades públicas. Era uma Constituição extremamente prolixa e sem rigidez, porque na Europa a Constituição era um documento de cunho político (carta de intenções), e não jurídico (vinculante). Na verdade, a supremacia constitucional só veio surgir com a experiência constitucional americana. Na Europa, a supremacia não era da Constituição, mas sim do Parlamento. Essa é a diferença substancial os dois movimentos. Na França, temos o Parlamento acima da Constituição. Nos Estados Unidos, temos a Constituição acima do Parlamento. Por consequência, na experiência francesa temos um judiciário fraco e na experiência americana temos um judiciário forte.
De fato, a revolução francesa foi marcada por uma desconfiança com a atuação dos magistrados da época, justamente porque proferiam juízos discriminatórios a partir da subjetividade do jus naturalismo. O parlamento, ao contrário, era considerado a “casa do povo”, o “amigo dos direitos”, e nesse momento ficou ainda mais forte, porque os direitos de cada indivíduo passaram a ser previstos de forma prolixa em lei, evitando a atividade arbitrária dos juízes com a instrumentalização taxativa dos direitos na Constituição. O raciocínio que havia na Europa é que o Legislativo nunca violaria direitos. Isso explica, inclusive, os disparates que veremos mais adiante, pelo cumprimento cego da lei, imposto por Hitler na Escola Nazista. Naquele momento inicial do constitucionalismo liberal europeu percebeu-se, inclusive, um nível de extremismo e rigidez altamente elevados, passando-se a defender que ao juiz nem caberia interpretação, a atividade judicial deveria ser mecânica, seja pela ideia de que o parlamento nuncia violaria direitos e a lei encerrava a perfeição, seja porque o judiciário, antes formado pelo clero e nobreza, já era alvo de profunda desconfiança pelos revolucionários liberais europeus. Era o que se observava do Código Civil francês, conhecido Código Napoleônico, de 1804, considerada uma obra humana perfeita, imunes a quaisquer falhas, cabendo o cumprimento cego pelo juiz. Assim, a atividade do magistrado era resumida na expressão de Montesquieu: o juiz era “a boca da lei”, só fazia aplicar a lei de forma mecânica. A isso nós conhecemos por Escola da Exegese.
Além da garantia das liberdades públicas e da taxatividade dos direitos com o surgimento das Constituições escritas (constituições negativas e direitos de primeira geração), iniciando-se a teoria do poder constituinte (soberania popular, todo poder emana do povo), temos também, como outra marca da experiência liberal francesa, o surgimento da teoria da Separação dos Poderes encampada pelo iluminita Montesquieu, desenvolvida na obra “O Espírito das Leis”. Com a separação de poderes, criava-se o sistema de freios e contrapesos que auto-limitava o poder estatal. A idéia da separação de poderes, antes de formar a estrutura da organização estatal, suge para limitar o poder do Estado. Dessa forma, a separação de poderes, ao estabelecer um sistema de freios e contrapesos para auto-limitar a atuação estatal, serve de instrumento para garantir o princípio do governo limitado e, consequentemente, assegurar os direitos dos indivíduos. A partir do sistema de “checks and balances” (freios e contrapesos), um poder limita e equilibra a atuação do outro. Assim, temos como avanços decorrentes do constitucionalismo liberal europeu: o surgimento das constituições escritas, os direitos de primeira dimensão e a teoria da separação dos poderes,
Já no que se refere à experiência revolucionária Americana, apesar de não ter ficado tão conhecida como a Revolução Francesa, tem a mesma ou maior importância que esta. Foi lá onde surgiu a primeira constituição escrita de que se tem notícia: a “Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia”, o famoso Virginia Bill of Rights, de 1776. Logo depois dela, em 1787, a Constituição Americana surgiu e até hoje está em vigor, anterior à própria Constituição Francesa de 1791. Além disso, foi na Constituição americana onde primeiro foi colocado em prática o princípio da separação dos poderes, que embora teorizado na França, primeiramente foi estabelecido nos Estados Unidos. Diferentemente da Constituição francesa, que era um documento político e desprovido de rigidez constitucional, a Constituição americana, ao contrário, ficou reconhecida como documento de valor jurídico e dotado de supremacia constitucional (é daí que surge as bases para o desenvolvimento do instituto do controle de constitucionalidade). Por outro lado, na experiência americana percebemos um fortalecimento do judiciário, a quem caberia a guarda da supremacia constitucional, ao contrário da experiência européia, onde o Parlamento era privilegiado em detrimento do judiciário. Isso ocorreu até mesmo porque, enquanto na França os revolucionários sofriam com as discriminações subjetivas dos juízes retirados da nobreza, nos Estados Unidos, ao revés, a violação dos direitos vinha do parlamento britânico, que colonizava os norte-americanos. Por isso é que no constitucionalismo francês o Parlamento ganha relevo, já no constitucionalismo americano o Judiciário é fortalecido.
Logo, ao contrário do movimento europeu, em que havia desconfiança do judiciário e aumentava-se o poder do Parlamento, no modelo americano o inverso ocorre, havendo desconfiança com o parlamento e aumentando-se o poder do Judiciário. Quer dizer, o judiciário naquela época era o mais fraco dos poderes, tendo sido fortalecido na experiência americana. Daí porque foi ao judiciário a quem ficou incumbida a missão de exercer o controle de constitucionalidade e garantir a supremacia constitucional. Por isso, inclusive, que a Constituição americana nem contemplou direitos individuais, preferindo deixar a garantia destes ao judiciário do que ao parlamento. Enquanto a primeira Constituição francesa (1791) foi exageradametne prolixa, contendo os direitos e liberdades individuais como ideal político, a Constituição americana (1787) foi extremamente concisa. Preferiram inicialmente deixar somente ao judiciário a missão da efetivação dos direitos e garantias individuais, ao invés de transferí-los ao legislador, tendo sido acrescentados à Constituição americana de 1787 somente em momento posterior, via emendas. Se, de um lado, o avanço na garantia das liberdades individuais foi fruto inicial da experiência francesa, de outro lado, na experiência americana tivemos a garantia jurisdicional, além da supremacia constitucional e o início do controle de constitucionalidade.
2.3. Constitucionalismo Social:
Com o fim da I Guerra Mundial inicia-se uma nova fase do constitucionalismo, o chamado constitucionalismo social, que durou no período entre guerras, findando com o término da II Guerra Mundial, em meados do séc. XX. Esse fenômeno ocorreu porque, após a 1ª Guerra Mundial, tivemos um resultado devastador para o mundo, ficando algumas sociedades, inclusive nações européias, em grande ruína e com multidões de desvalidos, pessoas sem condições básicas de sobrevivência. Tudo isso acabou levando a necessidade de garantir nas Constituições a proteção dos chamados direitos sociais. Diante do contexto catastrófico surgido após a I Guerra Mundial, o Estado não podia ficar inerte. Não bastava mais o Estado apenas se abster e respeitar as liberdades individuais, era preciso assegurar direitos mínimos sociais. Nesse momento, novos movimentos revolucionários surgiram ao redor do mundo, inclusive com o comunismo passando a ganhar força. Começou-se a perceber um esgotamento da idéia liberal, que protegia apenas os direitos de liberdade, mas não os sociais. A mantença do Estado Liberal estava levando a desigualdades sociais gritantes. Urgia a intervenção estatal. De nada valeria a liberdade sem a igualdade material. E se esta não estava sendo atingida pelo Estado liberal (Estado abstencionista), caberia ao Estado social agir (Estado prestacional).
Dessa forma, diante da impossibilidade do constitucionalismo liberal atender as demandas sociais que abalavam o século XX, surgiu o constitucionalismo social e, junto com este, os direitos e garantias fundamentais de segunda dimensão: os chamados direitos sociais ou coletivos. A grande marca desse novo período, entao, é que a atuação estatal limitada e a interferência mínima na esfera privada acabou sendo abrandada pela necessidade do Estado regular, também, os direitos sociais. Com o passar do tempo, os direitos amparados nas Constituições foram ampliados para além dos direitos e liberdades individuais. Nesse contexto de transformação do Estado de Direito (do liberal para o social), temos duas Constituições que se destacaram: a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição Alemã de Weimar de 1919, ambas consagraram direitos coletivos e deram início ao Estado Social. Isso não significa que anteriormente não haviam direitos sociais, a própria Constituição Francesa de 1791, por exemplo, ainda que por influência da revolução liberal, já continha naquela época alguns direitos sociais previstos em seu texto. Contudo, isso não era uma tradição dentro do constitucionalismo, mas foi a partir dessas duas Constituições (Constituição Mexicana de 1917 e Constituição de Weimar de 1919) que passam a ser consagrados de forma mais sistemática os direitos sociais. Antes disso, embora até pudessem existir direitos sociais de forma remota em documentos esparsos, não há como se falar em Estado Social.
Por outro lado, considerando que agora a lei previa direitos individuais e sociais (império da lei), a partir do séc. XX já se consolida a visão positivista do direito, capitaneada por Hans Kelsen (substituindo a visão jusnaturalista). Se no constitucionalismo liberal ainda percebíamos que o jus naturalismo era a doutrina dominante, agora no constitucionalismo social percebemos que o positivismo jurídico atinge o seu apogeu. O Direito, então, passa a ser aquilo que é posto pelo Estado por meio da lei, e não os valores morais. A característica marcante do positivismo jurídico é a inexistência de uma relação necessária entre direito e moral. Se no jus naturalismo tínhamos subjetivismo (valores morais), agora no positivismo jurídico temos objetividade (lei), pela total separação entre ambos. Com a superação do jus naturalismo, valor moral ou de qualquer outra espécie que não estivesse taxativamente previsto em lei não seria conferido ao indivíduo. No positivismo jurídico até se admite que a moral é inlfuente, mas somente no momento da concepção das normas, e não no momento da sua interpretação e aplicação. A moral, nesse sentido, seria irrelevante depois de feita a lei.
A validade de uma norma, pois, não decorreria de uma bondade intrínseca no seu conteúdo, mas da obediência que ela presta a uma norma superior, dentro do plano normativo do ordenamento (pirâmide kelsiana), na exata medida em que há o respeito no plano formal àquela que lhe for hierarquicamente superior. É o que se chama de compatibilidade vertical. Ou seja, estamos agora sempre no campo da legalidade estrita, não mais na moral. Nesse sentido, a doutrina de que os direitos são inatos estaria abafada, porque só seriam direitos os que fossem trazidos estritamente pela lei, ainda qua contrariasse a moral, porque agora moral e direito não se confundem, o que importa é tão somente o que está na lei. Portanto, de um lado, se houvesse um direito fundamental que não estivesse em lei, este não teria proteção, e de outro lado, se houvesse um direito imoral ou anti-ético que estivesse previsto em lei, este seria amparado. O que importa, pois, é só a lei, como fonte e fundamento de validade do direito. É aqui, aliás, que se constrói a Teoria Pura do Direito, onde Kelsen estabelece a pirâmide normativa e a teoria da norma hipotética fundamental, reconhecendo valor jurídico à Constituição, decorrência do positivismo jurídico.
Vale ressaltar que nesse período do constitucionalismo social, embora haja total separação entre moral e direito, a hermenêutica jurídica consegue evoluir, passando a ser uma atividade intelectual e sofisticada. Vimos que na expreriência da revolução francesa a interpretação judicial inicialmente era mecânica, fundamentada na Escola da Exegese (“juiz a boca da lei”). Isso não ocorre na experiência americana, mas foi marcante no liberalismo europeu. Só que na segunda metade do séc. XIX, no final do constitucionalismo liberal, precedendo um pouco o constitucionalismo social, Savigny desenvolve os famosos elementos de interpretação. Começa-se a ter uma liberdade maior para a interpretação judicial. Nessa fase, a Escola da Exegese vai ficando para trás e entra em ação os cânones interpretativos de Savigny (gramatical, lógico, sistemático, histórico e teleológico). Portanto, temos na segunda geração dos direitos fundamentais já uma sofisticação da interpretação, a partir dos elementos interpretativos vindos de Savigny, em superação à Escola da Exegese.
Com o constitucionalismo social e o apogeu do positivismo jurídico, estava resolvido o problema do subjetivismo no jus naturalismo pela objetividade da lei, bem como garantidos os direitos de primeira e segunda dimensão, sempre com previsão legal. Ocorre que um outro grandre problema surge a partir desse contexto tão pragmático do positivismo, onde só importava juridicamente a moral que estivesse incorporada como lei. Nessa visão, um Estado com leis imorais ou anti-éticas não deixa de ser um legítimo Estado de Direito, justamente pela separação entre moral e direito. Ou seja, o Estado Nazista Alemão, por exemplo, era igualmente um Estado de Direito, a despeito de seu conteúdo anti-ético, porque a moral não mais importava para fins jurídicos, somente a lei era levada em conta. E foi exatamente esse o evento que originou a II Guerra Mundial: o cumprimento cego das leis nazistas. Com isto, chega mais um evento devastador global, populações dizimadas pelos nazistas alemães, cumpridores das leis de Hitler no Estado Nazista. Aqui, encerra-se o constitucionalismo social, com duração no período entre guerras, tendo por características marcantes o surgimento dos direitos fundamentais de segunda dimensão (direitos sociais) e do Estado social (Constituições prestacionais, direitos positivos), e o apogeu do positivismo jurídico (doutrina de Hans Kelsen), com a ampliação dos cânones interpretativos de Savigny (hermenêutica jurídica).
3. CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO OU NEOCONSTITUCIONALISMO
Todo esse contexto histórico-constitucional confere-nos o embasamento necessário para, agora, adentrarmos no tema principal deste trabalho, que se refere propriamente ao fenômeno conhecido na doutrna como neoconstitucionalismo, ou constitucionalismo contemporâneo, fase atual em que nos encontramos. De fato, nas últimas décadas, a teoria constitucional passou por um processo de reelaboração extenso e profundo, que neste momento nos propomos a discorrer.
Em decorrência dos eventos maléficos advindos da obediência cega à lei como decorrência da doutrina nazista, evento propulsor da lavagem de sangue ocorrida na II Guerra Mundial, o positivismo jurídico evidentemente sofreu forte abalo, pois se o direito estaria limitado à lei, totalmente separado dos valores morais, não haveria como controlar o conteúdo da lei. Ou seja, a vontade do legislador poderia, inclusive, assumir caráter de ódio, discriminação e selvageria, como ocorreu no nazismo, tendo sido uma demonstração de onde a civilização pode chegar caso submetida tão somente ao jugo da lei. Por outro lado, o mundo percebeu, após duas grandes guerras mundias, que era preciso a garantia de direitos não apenas individuais (liberdade) e sociais (igualdade), mas também direitos difusos (fraternidade), como o direito à paz, a proteção ao meio ambiente, dentre tantos outros.
Em suma, a sociedade precisava melhor se estruturar, seja porque era necessário resguardar o mundo com direitos difusos para a sociedade mundial (fraternidade), seja porque não caberia mais o cumprimento cego da lei (os estragos de uma segunda guerra comprovaram essa verdade). Do primeiro, resulta no surgimento da terceira dimensão dos direitos e garantias fundamentais. Do segundo, resulta a necessária transformação que o positivismo jurídico precisava passar. É dentro desse contexto de pós II Guerra Mundial, então, que se abre uma nova fase constitucional, com a transição do constitucionalismo social para o chamado neoconstitucionaismo, fase que se inicia em meados do séc. XX, e na qual nos encontramos atualmente. Em síntese, podemos identificar como as contribuições principais desse novo período constitucional:
3.1. Surgimento dos Direitos Difusos ou Metaindividuais:
É no chamado constitucionalismo contemporâneo ou neoconstitucionalismo que surgem os direitos fundamentais de terceira dimensão, que são direitos ligados à solidariedade entre as nações. Tratam-se dos direitos difusos, que escapam do plano individual e pertenem à toda coletividade (metaindividuais), como o direito à cultura, meio ambiente, patrimônio histórico, autodeterminação dos povos, direito à paz, dentre outros. Aliado a isso, passou-se a observar ao redor do mundo, sobretudo nos tempos mais atuais, o fenômeno da “rematerialização das Constituições”, no sentido das cartas constitucionais consagrarem um extenso rol de direitos fundamentais. As Constituições atuais são analíticas, dispondo taxativamente do rol dos direitos e garantias fundamentais conquistados ao longo dos anos, atingindo um nível de formalização bastante satisfatório.
De toda sorte, de nada adianta estar previsto na Constituição se não é garantido na realidade. A formalização dos direitos evoluiu muito, mas a preocupação atual não é propriamente formal (inserir mais direitos no corpo da Constituição), mais que isso, o que importa é fazer com que esses direitos positivados sejam efetivados. Os direitos fundamentais, então, têm duas acepções: formal e material. A dimensão formal é a positivação dos direitos fundamentais, algo já conquistado, inclusive como se percebe desse fenômeno da rematerialização das Constituições. A dimensão material, por sua vez, refere-se à efetividade desses direitos, isto é, pressupõe que esses direitos deixem de ter apenas eficácia (formal) e passem a ter efetividade (material), sejam cumpridos na prática, efetivamente usufruídos por todos. Nesse plano, temos a dimensão material dos direitos fundamentais. É esta a maior preocupação do constitucionalismo contemporâneo.
Por outro lado, existe também a dimensão objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais. A dimensão subjetiva dos direitos fundamentais relaciona-se ao fato de que os direitos fundamentais são direitos (vida, liberdade, devido processo legal, etc) como quaisquer outros. Quanto a isso, nada de novo. Mas os direitos fundamentais possuem também uma dimensão objetiva, que se relaciona ao fato de que são efetivamente normas. Isto é, além de direitos, os direitos fundamentais são normas. Isso implica na necessidade das leis infraconstitucionais estarem em conformidade com as normas de direitos fundamentais. Uma lei não pode ofender uma norma de direito fundamental. Isso hoje parece óbvio, mas a força normativa constitucional (supremacia material) só veio surgir no constitucionalismo contemporâneo. Essa é a supremacia material da Constituição, não só no aspecto formal e subjetivo como tínhamos até o constitucionalismo social, mas agora também na sua dimensão material e objetiva, como temos a partir do neoconstitucionalismo.
Ademais, se antes os direitos fundamentais eram percebidos apenas na perspectiva entre Estado e indivíduo (daí falar-se de eficácia vertical dos direitos fundamentais), seja nos direitos de primeira dimensão que exigem uma abstenção estatal (Estado liberal), seja nos direitos de segunda dimensão) que exigem uma prestação estatal (Estado social), agora amplia-se essa perspectiva no constitucionalismo contemporâneo. Isto é, juntamente com o surgimento dos direitos de terceira dimensão, a aplicação dos direitos fundamentais passa a ter uma perspectiva não somente vertical (Estado e indivíduo), mas também horizontal (entre os indivíduos). É a chamada teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que se irradia nas relações privadas entre indivídous. Com o passar do tempo, foi se constatando que a opressão poderia vir não só do Estado, mas também de outros particulares. Foi exatamente aí que surgiram os direitos fundamentais de terceira geração, relacionados à fraternidade. E hoje, a teoria da eficácia horizontal aplica-se a todas as dimensões de direitos fundamentais, como contribuição do neoconstitucionalismo.
3.2. Desenvolvimento do Estado Democrático de Direito:
Além dos direitos de fraternidade, surge nesse período o chamado Estado Democrático de Direito. Na verdade, o Estado Democrático de Direito tenta superar as deficiências do Estado liberal e do Estado Social, sintetizando as conquistas dos modelos anteriores. Ou seja, o Estado Democrático de Direito não é totalmente diferente do Estado liberal e do Estado social, mas é uma aglutinação, tentando reunir as características desses dois modelos anteriores, superando aquilo que esles tem de problema e aprofundando nas conquistas que eles trouxeram. Daí porque, o Estado Democrático de Direito, embora seja um terceiro modelo de Estado de Direito, vai se situar em equilíbrio aos modelos anteriores, contendo certas características do Estado liberal e do Estado social, porém trazendo inovações, dentre elas destacando-se duas grandes contribuições: a universalização do sufrágio e a ampliação dos mecanismos políticos de participação popular.
Embora já se tivesse limitado o poder do Estado e garantido a soberania popular, resguardando-se os direitos individuais (Estado liberal) e assegurando o bem-estar social (Estado social), com o advento do positivsmo jurídico houve uma separação entre lei e moral e, como as leis eram feitas pelo parlamento (representantes do povo), acabava que a vontade da maioria prevalecia. Então, seria uma soberania anti-democrática, o poder não estava, a rigor, nas mãos de todo o povo, porque a vontade da maioria, instrumentalizada na lei, prevalecia sempre em detrimento de porções minoritárias. E foi exatamente essa a origem da barbárie que ocorreu com o nazismo, doutrina que estabelecia discriminações a ponto de conceber alguns seres humanos superiores intocáveis em detrimento de outros considerados inferiores (judeus, ciganos, negros, homossexuais, etc), como se fossem raças de segundo escalão desprotegidos pelo direito, o que acabou resultando no brutal extermínio de algumas classes minoritárias. Era preciso, portanto, assegurar a democracia também no seu aspecto material com o respeito aos direitos das minorias (Estado Democrático de Direito). Surge, então, uma nova preocupação mundial cuja idéia nuclear é a dignidade da pessoa humana, valor central e fundamental nas Constituições sob a visão pós-positivista.
A comunidade jurídica percebeu, sobretudo após o derramamento de sangue ocorrido na II Guerra Mundial, que muitos problemas da humanidade não eram apenas a falta de solidariedade (daí surgem os direitos de terceira dimensão), mas também a falta de tolerância ao desamparar o direito das minorias (daí surge a preocupação com a garantia da democracia material). A dignidade da pessoa humana, então, passa a ser o centro e o núcleo, em torno do qual gravitam os direitos fundamentais. Não há hierarquia entre seres humanos, todos possuem a mesma dignidade, inclusive as minorias, valor absoluto que não comporta gradações. Exatamente desse conceito vem o crescimento da democracia, o respeito a todos, o pluralismo, os direitos das minorias, a participação popular nas decisões políticas, tudo como forma de garantir a voz das porções minoritárias e assegurar a soberania popular também no seu aspecto democrático, o que passou a ser objeto de proteção constitucional no chamado Estado Democrático de Direito.
3.3. Concepção Filosófica Neopositivista do Direito:
As atrocidades ocorridas na II Guerra Mundial foram permitidas porque, como dito, com o advento do positivsmo jurídico houve uma separação estanque entre lei e moral. Se tivemos leis que conseguiram impor idéias nazistas atentatórias à dignidade humana, é porque antes temos como raiz do problema o enaltecimento do positivismo jurídico, a tal ponto de entender que o Direito é apenas aquilo que é posto pelo Estado por meio da lei, separado dos valores morais. Quer dizer, para sair de um extremo, que era o subjetivismo advindo do jus naturalismo e as discriminações decorrentes da ausência de leis, passou-se para o outro extremo, que foi a absoluta valorização do texto literal em detrimento dos valores. Exatamente por isso é que, na transição para o neoconstitucionalismo, tivemos como característica central um movimento de reformulação do antigo positivismo estrito, preso à lei de forma estanque, para adentrarmos no chamado neopositivismo, que defende a inclusão de valores e princípios na ordem jurídica.
Nesse momento, aliás, foi inevitável ponderar-se novamente as idéias do jusnaturalismo. Porém, essa revalidação provisória traria novamente todas as limitações dessa doutrina, como a indeterminação, o subjetivismo, as interpretações diversas, de modo que a efervescência jusnaturalista causada pelo transtorno dos resultados da última guerra não durou muito tempo, foi ensaio que não se manteve. O jusnaturalismo efetivamente não oferecia respostas seguras ao desafio que se fazia ao positivismo jurídico. Era necessário, portanto, remodular este último sem voltar, contudo, às origens do jusnaturalismo. A solução foi encontrada nos princípios constitucionais, dando início ao pós-positivismo, ou neopositivismo.
De acordo com o anterior positivismo jurídico estrito, a ciência do direito deveria ter uma função meramente descritiva (princípio da neutralidade). O papel da ciência do direito não seria dizer como o direito deve ser, mas simplesmente dispor como o direito é. Já o pós-positivismo, chamado neopositivismo, tem uma visão bem diferente, defendendo que o direito deve ter um papel descritivo, mas, além disso, também um caráter prescritivo. Não há como ser neutro e deixar de fora os valores. Os valores fazem parte do direto. Quando se fala em direito não se pode dizer apenas aquilo que é (descritivo), mas há que se colocar também mecanismos e propostas para que o direito seja melhor (prescritivo). É inconcebível que os valores humanos não entrem no direito, os argumentos morais devem ser absorvidos. Portanto, se no positivismo há uma visão neutra, na concepção neopositivista, por sua vez, há uma visão valorativa, havendo uma intercessão com a presença da moral no direito, não podendo este se distanciar dos valores éticos-morais na sua produção.
3.4. Reconhecimento da Eficácia Normativa dos Princípios:
Se, por um lado, o jusnaturalismo efetivamente não oferecia respostas seguras ao desafio que se fazia ao mundo contemporâneo pós guerras, mas, por outro lado, se o positivismo jurídico estrito se mostrou incapaz de regular o direito, era necessário, então, haver uma remodulação deste sem voltar àquele. A solução foi encontrada nos princípios constitucionais, a partir do neopositivismo. Como decorrência da abordagem pós-positivista, inaugura-se um fenômeno marcante nessa nova fase do neoconstitucionalismo: a inclusão dos princípios como norma jurídica. Os princípios constitucionais surgiram especialmente para tentar dar uma noção de direito positivo a valores ético-morais imprescindíveis e que poderiam oferecer anteparos a leis ou textos constitucionais eventualmente discriminatórios e ofensivos à vida humana. Encontrou-se, então, um meio termo, estabelecendo-se princípios constitucionais que trazem determinados valores morais imprescindíceis ao direito positivo. Hoje, coloca-se a norma como um gênero, tendo as regras e os princípios como suas espécies. Os princípios, então, perfazem o direito positivo, reconhecendo o seu valor de norma jurídica, mesmo não expressos, independente de positivação. Aliás, os princípios implícitos gozam de mesma estatura constitucional que os princípios explícitos.
Limita-se, pois, a atuação do Legislativo, não somente no aspecto meramente formal (preocupação positivista), mas também sob o prisma material (preocupação pós-positivista). Quer dizer, os direitos fundamentais e os princípios constitucionais, explícitos e implícitos, limitam o legislador. Não basta mais apenas o desejo do legislador, como antes, que poderia ser espúrio e conter excessos nefastos, mesmo que trouxesse valores totalmente dissociados da moral e repugnados pela sociedade. Com o neopositivismo e a inclusão dos princípios na ordem jurídica, valores éticos e morais ligados à dignidade da pessoa humana passam a integrar o campo do positivismo. Assim, o neopositivismo busca o equilíbrio, uma superação da dicotomia entre direito natural e direito positivo através de uma reaproximação entre direito e moral, por meio dos princípios. Em um extremo estava o jusnaturalismo, para o outro extremo foi o positivismo jurídico (juspositivismo), agora o neopositivismo (pós-positivismo) busca o ponto de equilíbrio. Nesse contexto, se antes fazia-se uma diferenciação entre normas (vinculantes) e princípios (meras recomendações), no pós-positivismo esta diferenciação é abandonada.
Assim, no paradigma neopositivista, temos: (i) norma-regra; (ii) norma-princípio. Isso significa que uma regra constitucional expressa tem igual hierarquia normativa que um princípio constitucional, inclusive implícito. E mais, embora de mesma hierarquia, atualmente reconhece-se que a afronta a um princípio viola o ordenamento jurídico de forma mais gravosa do que a violação a uma norma-regra, porque o princípio se aplica a um conjunto indefinido de situações jurídicas, daí porque, hoje em dia, tem-se observado um fenômeno no sentido de que, havendo conflito entre norma-regra e norma-princípio, esta última tende a prevalecer, embora tenham mesmo status constitucional. Quer dizer, os princípios constitucionais servem de fontes de observência obrigatória, sobretudo quando determinada norma lhe é contrária, preconizando a abertura da hermenêutica constitucional aos influxos da moralidade crítica. Não há dúvidas, pois, que a ciência jurídica sofreu transformações, inclusive nas fontes do direito, antes baseada só na lei, agora também reconhecendo-se a eficácia normativa dos princípios. Hoje, principio não é, como era antigamente, apenas uma técnica de colmatação normativa utilizada para preencher lacunas existentes na lei. Trata-se de uma nova sistemática normativa com o desenvolvimento da teoria dos princípios como espécie normativa, alterando a ciência jurídica no que diz respeito às fontes do Direito (Teoria das Fontes).
3.5. Supremacia e Contralidade da Constituição
A partir da redução da força da lei no seu plano formal, bem como o reconehcimento da eficácia normativa principiológica, concluímos que a lei tornou-se submissa e necessariamente obediente ao texto constitucional e seus princípios. Não há mais o império da lei, mas agora o que existe é o fenômeno da supremacia e centralidade da Constituição. Não é mais a lei que está no topo do ordenamento jurídico, mas a Constituição. Trata-se da substituição do legicentrismo positivista (império da lei) pela supremacia constitucional. Toda e qualquer lei, no plano formal e material, lhe deve obediência. Da centralidade da Constituição decorre a sua supremacia material, que inicialmente era uma contribuição apenas do constitucionalismo americano, mas agora chega também na Europa e em todo o globo, não só do ponto de vista formal, mas também e, principalmente, sob o prisma material. Com o neoconstitucionalismo, fixa-se, assim, a supremacia da Constituição em todo o mundo, objetivandoo assegurar-lhe maior eficácia.
Antes, a supremacia constitucional, por um lado, era restrita à experiência americana (na Europra tratava-se de documento essencialmente político), e por outro lado, decorria basicamente do seu aspecto formal (compatibilidade vertical da pirâmide kelsiana). A Constituição era uma lei no sentido jurídico de Kelsen, e lei suprema, mas que vinculava muito mais no plano formal. O Estado que vigorava até então era o Estado da lei (império da lei), e não o Estado constitucional (centralidade da Constituição). A Constituição era lei, e lei suprema, mas essa supremacia não decorria propriamente do conteúdo das normas constitucionais, e sim porque era uma lei no plano formal acima das demais. O controle era realizado no plano formal da legalidade estrita, e não quanto à obediência das leis ao conteúdo das normas constitucionais. É no neoconstitucionalismo que a Constituição vai consolidar sua eficácia normativa material, com os valores e princípios encartados nas normas constitucionais vinculando o conteúdo da elaboração das demais leis do ordenamento jurídico. Os princípios e normas constitucionais agora se sobrepõem ao restante do ordenamento, que lhe devem obediência não só formal, mas também material.
O reconhecimento do conteúdo normativo da Constituição teve como marco, em 1959, a obra do jurista alemão Konrad Hesse intitulada “A força normativa da Constituição”, destacando-se a evolução do caráter jurídico (e não mais político) da Constituição. Quer dizer, embora o sentido jurídico formal de lei tenha sido conferido à Constituição por Kelsen no modelo americano, a eficácia normativa material da Constituição, vinculando o conteúdo das leis e a compatibilidade destas à Constituição no plano material, se consolidou no constitucionalismo contemporâneo, sobretudo por influência alemã, grande escola doutrinária dessa nova fase constitucional, talvez porque o foco do problema que desembocou toda essa revolução jurídica do neoconstitucionalismo foi o nazismo alemão, sendo natural o movimento jurídico reacionário. Hoje, não se concebe a Constituição de outra forma senão como um documento jurídico, na forma e na essência, o que lhe coloca no centro do Direito e como norma suprema, todas as demais leis do ordenamento devem obediência aos seus princípios e normas. Isso explica a ampliação das técnicas de controle de constitucionalidade, inclusive possibilitando-se atualmente o controle concentrado, sempre que uma lei atinge violar materialmente a Constituição. Temos, pois, a centralidade e supremacia da Constituição.
3.6. Ampliação da Hermeneutica Constitucional
Considerando a nova abordagem constitucional, dotada de centralidade com reconhecida supremacia material, fazia-se necessário uma interpretação de todo o complexo normativo à luz da Lei Fundamental, justamente porque é nela onde passaram a se encontrar princípios valorativos fundamentais que se irradiam para todo o sistema normativo. Até pouco tempo, as Constituições eram interpretadas pelos mesmos métodos desenvolvidos por Savigny para interpretar o direito privado (gramatical, lógico, histórico, sistemático, teleológico). Não haviam métodos específicos de interpretação da Constituição como hoje temos, sobretudo por meio dos princípios interpretativos instrumentais. Observa-se, pois, mais uma característica do neoconstitucionalismo, provocando alteração na ciência jurídica, referindo-se à ampliação das técnicas de hermenêutica constitucional. Assim como temos uma nova Teoria das Fontes, temos também uma nova hermenêutica jurídica (Teoria da Interpretação), sobretudo baseada nos princípios constitucionais.
Relembre-se que, no início, os juízes deveriam proceder à interpretação literal e mecânica da lei (Escola da Exegese) na fase inicial do constitucionalismo liberal europeu. Posteriormente, na transição para o constitucionalismo social, fase de apogeu do positivismo jurídico, tivemos a abertura para a hermenêutica jurídica com a contribuição dos cânones interpretativos (Savigny), porém, ainda limitados à visão míope do positivismo estrito que fazia uma distinção estanque entre moral e direito. Agora, no neoconstitucionalismo, a partir da concepção neopositivista do direito, a atividade interpretativa não estava mais absolutamente presa aos limites formalistas da lei, mas também passou a decorrer da inclusão de valores éticos-morais. Nesse sentido, era necessário conferir certa parcela de maior liberdade hermenêutica aos juízes na aplicação das normas jurídicas e, principalmente, no exercício do controle de constitucionalidade pelo tribunal constitucional. Nesse contexto, destacou-se a Corte Constitucional Alemã, que teve Robert Alexy como grande expoente, e Dworkin nos EUA. Foi a partir daí que veio o instituto do controle de constitucionalidade sem redução de texto, a técnica de interpretação conforme à Constituição, dentre outros.
Assim sendo, a atividade de interpretação constitucional, inclusive como pressuposto do exercício efetivo do controle de constitucionalidade, acaba por adentrar em todas as esferas do direito, como forma mais protetiva de resguardar os direitos fundamentais. Os princípios constitucionais irradiam-se sobre os diferentes ramos de direito e sobre as mais variadas relações jurídicas, atingindo também a órbita privada. Aliás, fala-se hoje, inclusive, no fenômeno da “constitucionalização do direito”, que á a consagração de normas de outros ramos do direito na própria Constituição. Isto é, toda interpretação jurídica é uma interpretação primeiramente constitucional. Pela constitucionalização do direito decorre que a interpretação das normas de outros ramos do direito deve ser feita à luz da Constituição. Logo, para se interpretar uma lei, o primeiro passo é verificar sua compatibilidade constitucional (filtragem constitucional). Daí decorre também a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Todo esse contexto passa necessariamente por sofisticadas técnicas de hermenêutica, ampliadas no neoconstitucionalismo.
3.7. Jurisdição Constitucional e Ativismo Judiciário:
Com todas as transformações ocorridas nas últimas décadas, passando a Constituição a ser central e suprema no ordenamento jurídico, a atividade do judiciário acabou ficando altamente fortalecida, eis que a ele cabe a função de guardião constitucional. Verificamos uma verdadeira jurisdição constitucional por decorrência das inovações advindas do neoconstitucionalismo. O neoconstitucionalismo, portanto, insere-se nesse contexto, instrumentalizado no exercício da jurisdição constitucional e guarda da Lei Fundamental pelo Judiciário, daí resultando o que hoje se tem como ativismo judiciário da corte constitucional. Deposita-se menor confiança nas instâncias executiva e legislativa de poder, conferindo-se maior confiança na instância judiciária, sobretudo no tribunal constitucional. Nos dias atuais, aliás, já se fala na eficácia normativa da jurisprudência. Ou seja, à jurisprudência também é reconhecida a eficácia normativa, havendo profunda alteração na teoria das normas e das fontes do Direito, passando a ser, assim como as normas-regra e as normas-princípios, também uma fonte principal do direito. O ato final produzido por meio de decisão judicial após um processo jurisdicional é, portanto, atualmente, considerado norma jurídica.
A força normativa da jurisprudência pode ser especialmente observada no que se refere ao poder maior conferido à Corte Suprema, seja para proferir entendimentos que vinculam o restante do judiciário, como por exemplo os institutos da súmula vinculante, o controle de constitucionalidade com decisões erga omnes, dentre outros, seja ainda com julgamentos que inovam diretamente a ordem jurídica, como por exemplo a atuação como legislador negativo na interpretação conforme a Constituição e, até mesmo, como legislador positivo em determinados casos de configurada omissão legislativa, tudo isso como forma de garantir a supremacia da Constituição, em nítido ativismo judiciário exercendo a chamada jurisdição constitucional.
Se antes, na época do positivismo jurídico, o principal protagonista dentre os três poderes era o legislador, hoje, no neoconstitucionalismo, a tendência é que o maior deles seja o judiciário, doutrina que vem sendo fortemente recepcionada pelo direito brasileiro. É bem verdade que persistem discussões constitucionais advindas da aplicação desse modelo neoconstitucional, a principal delas seria o clássico debate do direito constitucional de como se equacionar a idéia de que um tribunal constitucional, órgão do Judiciário, não eleito pelo povo, destituído de mandato legitimatório popular, possa se sobrepor a poderes eleitos pelo povo, como o são Executivo e Legislativo. O neoconstitucionalismo, pois, acaba deixando a corte constitucional em condição de primazia em relação aos demais poderes, na proteção da Constituição. Contudo, abstraídas as discussões acadêmicas, a evolução atual do direito caminha no sentido do ativismo judiciário.
É que o equilíbrio na separação de Poderes não é estático. Em uma situação perfeita, quem deveria implementar os direitos sociais seria o Legislativo e o Executivo, porque foram eleitos, gozam de representatividade popular. O problema é que a democracia não pode ser vista tão somente na sua dimensão formal. Mas a democracia em seu aspecto substancial abrange, além da possibilidade formal de participação na escolha dos representantes, também a fruição de direitos, inclusive pelas minorias (democracia material, ou democracia constitucional). Daí decorre a preocupação com a efetividade dos direitos fundamentais. Não há como escolher representantes de forma verdadeiramente livre se não há direitos essenciais para tanto (educação, saúde, cidadania, pluralismo, etc.), seria uma democracia viciada (isso explica a venda de votos em períodos de eleição). A democracia, então, exige a garantia da participação popular (plano formal) e dos direitos fundamentais (plano material).
É nesse ponto onde entra o ativismo do judiciário e a jurisdição constitucional. A vontade das maiorias é expressa através do Legislativo e do Executivo, que através dos representantes eleitos fazem valer a premissa majoritária. Ao revés, a fruição de direitos pelas minorias será efetivado principalmente pelo Judiciário, exatamente por não ser eleito pelo povo, exercendo o papel contra-majoritário, sem vinculação à vontade da maioria. Obviamente, os direitos de todos, maioria e minoria, no plano teórico, deveriam ser resguardados por todos os Poderes Públicos (Executivo, Legislativo, Judiciário) e inclusive pela própria sociedade (eficácia horizontal), mas na prática, se houver incapacidade ou omissão dos poderes representativos (Executivo e Legislativo) de pautarem a sua atuação pela axiologia constitucional, deve o Judiciário, como representante das minorias, poder contramajoritário, não eleito pelo povo, exercer o papel de garantidor dos direitos e darantias fundamentais, como guardião constitucional. Quer dizer, a inércia ou incompetência do legislador e do administrador muitas vezes obrigam uma atuação do judiciário, caso contrário é ele próprio quem vai estar descumprindo a Constituição.
O Supremo Tribunal Federal já fixou entendimento no sentido da possibilidade de se recorrer diretamente ao judiciário para exigir uma prestação fundada num direito social. O Estado não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos sociais sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer de modo inaceitável a integridade da própria ordem constitucional. O Legislativo e o Executivo são os atores para o estabelecimento das políticas prioritárias, mas quando estes se omitem ou retardam o cumprimento de um direito, aí se torna necessária a intervenção judicial. É função institucional do Poder Judiciário determinar a implantação de políticas públicas quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Logo, o déficit democrático, a falta de credibilidade nas instâncias democráticas, faz com que o judiciário tenha que intervir. Daí se falar, hoje, na chamada “judicialização das relações políticas e sociais”, característica marcante do neoconstitucionalismo. Em que pese as críticas, o próprio sistema jurídico impõe ao judiciário, antes um dever do que um poder, para efetivar a guarda da Constituição, suprema e central, de onde decorre, por vezes, seu ativismo.
4. PERSPECTIVAS PARA O CONSTITUCIONALISMO DO FUTURO
Diante de todo esse quadro de evolução constitucional, alguns doutrinadores aventuram-se a traçar perspectivas para o futuro do constitucionalismo. Para alguns, já se apresenta como um passo seguinte o fenômeno chamado de transconstitucionalismo, que se refere ao estudo combinado da jurisdição nacional com a jurisdição internacional. Esse estudo combinado do direito interno com o direito transnacional, sugere ser a evolução do neoconstitucionalismo, que fará surgir o que a doutrina já tem antecipado como transconstitucionalismo. De fato, tamanho tem sido a evolução do direito internacional que a sociedade global passou a ganhar instituições parecidas com as existentes no plano doméstico, a se observar pelos inúmeros tribunais internacionais, como a corte internacional de justiça, corte permanente de justiça internacional, corte interamericana de direitos humanos, corte européia de direitos humanos, tribunais de integração econômica, além dos vários tribunais internacionais penais (TPI's). Além disso, percebemos a existência de relevantes organizações mundiais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Esse fenômeno da globalização tem mudado o enfoque das relações internacionais. Se antes eram características marcantes da sociedade internacional ser paritária e descentralizada (sem hierarquia e poder central), hoje percebemos que tais características estão em franca mutação, cada vez mais surgindo organizações centralizando o poder e tribunais hierarquizando interpretações.
De outro mote, com o passar do tempo tem se observado que não importa mais a interpretação nacional que um Estado dá a um tratado, mas sim a interpretação que o tribunal internacional respectivo o confere. Há uma nítida hierarquia se estabelecendo no plano internacional. A soberania de cada Estado permanece, mas a regulação no plano externo ganha força. É o que ocorre, por exemplo, com o conselho de segurança da ONU funcionando como uma espécie de Estado administrador, ou ainda, a corte internacional de justiça que pode fazer revisões judiciais do conselho de segurança. O mercosul possui também atualmente um tribunal permanente de revisão judicial. Em outros termos, podemos dizer que a soberania no plano material tem sido mitigada pela nova ordem internacional. Isso é exatamente o que se chama de constitucionalização do direito internacional, uma expressão doutrinária que retrata um fenômeno através do qual o direito internacional interfere na organização do direito interno, justamente por decorrência da cosmopolitanização do direito. Direito cosmopolita significa a transcendência da divisão geopolítica dos Estados soberanos.
Outra faceta desse fenômeno é a própria internalização do direito internacional, fenômeno pelo qual a Constituição absorve internamente atos realizados externamente. Ou seja, é a forma como o Estado soberano absorve regras internacionais, dialogando com as normas internacionais. No direito brasileiro, os tratados incorporados já são considerados normas supralegais, com força superior à lei. Hoje, no Brasil a Suprema Corte já entende que o tratado internacional de direitos humanos tem força supralegal, daí porque muitos já estão falando no chamado controle de convencionalidade (supra-legalidade). Nesse compasso, além do controle de constitucionalidade, teriamos também o controle de convencionalidade, como chamado pela doutrina moderna. Sem falar nos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos aprovados na forma de emenda, hipótese em que até mesmo são recepcionados com força e estatura de norma constitucional.
Não se trata de quebra da soberania dos Estados, mas transpor as fronteiras geográficas e políticas, buscando uma harmonização jurídica a nível global. Em todo caso, permanece a soberania dos Estados, apenas agora eles se vinculam mais fortemente aos organismos globais, justamente por essa visão da necessidade de um direito globalizado que preserve a vida e dignidade humana. Essa é uma tendência na qual parece caminhar o direito contemporâneo, sobretudo quando se percebe a importância crescente dos acordos, tratados e convenções internacionais, daí porque parece ser natural uma busca pela combinação da jurisdição nacional com a internacional, o que já tem se chamado de transconstitucionalismo. Ademais, tudo indica que as Constituições do futuro irão buscar um equilíbrio entre as concepções dominantes do constitucionalismo liberal e social, abstraindo-se os excessos praticados pelo constitucionalismo contemporâneo com a supremacia e a centralidade das Constituições em todo o mundo. Nem o excesso de Constituição e nem a falta dela; nem a fraqueza do Judiciário e nem o seu excesso; nem a ausência de normatividade dos princípios e nem a sua aplicação solitária. Dentro desse panorama, percebendo toda a evolução histórico-constitucional ao longo dos tempo, bem como os rumos que toma a nova sociedade global, parece um caminho inseparável às Constituições a sua harmonização com a solidariedade entre os povos, a busca da democracia material, a participação ativa do povo na vida política, a integração das nações através da quebra das fronteiras, a constituição como elemento de integração universal e a universalização no que se refere aos direitos humanos.
5. CONCLUSÃO
Por todo o exposto, buscamos no presente trabalho analisar, de forma simples e concisa, a evolução da teoria constitucional a partir de uma abordagem histórico-política, observando sobretudo as transformações advindas dos eventos globais que marcaram a humanidade e determinaram os rumos do constitucionalismo. Buscou-se trazer à comunidade jurídica uma breve síntese acerca de um tema tão importante nos dias atuais e que impacta todos os demais ramos do direito, principalmente quando se percebe a ciência jurídica dentro de uma percepção contemporânea da Constituição como núcleo central e supremo do sistema jurídico. A ciência do Direito evoluiu a passos largos nas últimas décadas pela influência do fenômeno do neoconstitucionalismo, que acabou repercutindo na chamada constitucionalização do direito, provocando sérias alterações nas fontes jurídicas e nos métodos de sua interpretação. Ao final, percebemos um caminho que tende ao equilíbrio entre os avanços alcançados, conjugando-se a jurisdição interna à necessidade de harmonização global do direito, na efetiva tutela dos direitos e garantias individuais e coletivas.
Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da União.
Pós-Graduado em Direito Público
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