Resumo: Este trabalho parte da evolução pela qual vem passando o ordenamento jurídico brasileiro no que se refere à crescente valorização dos precedentes dos tribunais no processo de aplicação do Direito e busca mostrar que as objeções à sua adoção são injustificadas, seja pelo ponto de vista histórico, seja pela concepção do Direito como atividade argumentativa.
Palavras-chave: Precedentes Judiciais; Evolução histórica; Segurança Jurídica; Argumentação Jurídica.
Sumário: Introdução. I. Breve evolução no sistema de precedentes brasileiro. II. Considerações sobre o sistema jurídico brasileiro. III. Dos falsos óbices à utilização dos precedentes no Direito Brasileiro. IV. Razões para a adoção do sistema de precedentes: o controle da função jurisdicional, como garantia da igualdade e da segurança jurídica. Conclusão. Referências.
Introdução
Apesar de algumas vozes contrárias, a utilização dos precedentes judiciais no Brasil tem crescido a cada dia, não se podendo mais ignorar tal realidade. E quer parecer que esse fenômeno decorre não apenas das alterações promovidas na legislação, mas, sobretudo, em função do papel desempenhado pelas Cortes Superiores. De notórios desconhecidos, passaram os Tribunais a ocupar o centro das discussões públicas, pelos mais variados motivos.
Apesar do truísmo dessa afirmação, o tema ainda enfrenta algumas resistências que se baseiam, quase sempre, em alegações que tentam relacionar uma incompatibilidade desse papel da jurisprudência com o fato de o Brasil ser ligado à tradição jurídica romano-germânica (ou civil law), na qual a fonte primordial do Direito é a lei, ao contrário dos países de common law (anglo-saxã), nos quais é o Poder Judiciário o órgão competente pelo desenvolvimento do Direito.
Tem-se, no entanto, que tal afirmação é por demais simplista, pois ignora uma série de fatores que indicam, em primeiro lugar, que o abismo existente entre uma e outra família jurídica não é tão grande assim, e em segundo lugar, que as dificuldades na tarefa interpretativa impõem sejam adotados mecanismos para evitar a reprodução de decisões antagônicas e, mais importante, decisionismos e arbitrariedades.
O presente trabalho tem por objetivo indicar a importância dos precedentes judiciais na construção do Direito, mostrando rapidamente a evolução da legislação nesse sentido, bem como indicar que há mais razões para a sua adoção do que para a sua rejeição.
I. Breve evolução no sistema de precedentes brasileiro
Sempre que se fala nessa matéria, o tópico imediatamente associado é a introdução dos enunciados da súmula de jurisprudência vinculante pela EC nº 45/2004,e regulamentada pela Lei Federal nº 11.147/2006. Todavia, esse é apenas o mais recente passo na longa evolução pela qual vem passando o Direito Brasileiro.
Com efeito, desde a década de 1.990[1] há exemplos na legislação infraconstitucional em que se determina o não cabimento de recursos quando houver jurisprudência pacificada em sentido contrário nos tribunais. Assim, por exemplo, a Lei nº 8.038/90, que versa sobre o julgamento de processos perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, dispõe em seu art. 38 que “O Relator, no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justiça, decidirá o pedido ou o recurso que haja perdido seu objeto, bem como negará seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível, ou, improcedente ou ainda, que contrariar, nas questões predominantemente de direito, Súmula do respectivo Tribunal”.
A Lei nº 9.139/95 alterou a redação do art. 557, do Código de Processo Civil – CPC, passando a permitir, no julgamento de recursos, que o relator negasse seguimento quando, dentre outras hipóteses, a pretensão fosse contrária à súmula do respectivo tribunal ou de tribunal superior. Em 1.998 observou-se nova alteração na redação do referido dispositivo por meio da Lei nº 9.756 que, basicamente, (i) permitiu que o relator negasse seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior (art. 557, caput) e (ii) previu a possibilidade de julgamento monocrático do mérito do recurso quando a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior (art. 557, § 1º).
No mesmo sentido, a Lei nº 9.756/98 (i) incluiu o parágrafo único ao art. 120, CPC, prevendo que no julgamento de conflitos de competência poderá o relator decidi-lo de plano quando houver jurisprudência dominante do tribunal sobre a questão suscitada; (ii) estabeleceu que os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário ou ao órgão especial a arguição de inconstitucionalidade, quando já houvesse pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão (art. 481, § único); (iii) deu nova redação ao parágrafo 3º do art. 544, do CPC, permitindo ao relator de agravo de instrumento contra decisão que negue seguimento a recurso especial ou extraordinário, “se o acórdão recorrido estiver em confronto com a súmula ou jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, conhecer do agravo para dar provimento ao próprio recurso especial; poderá ainda, se o instrumento contiver os elementos necessários ao julgamento do mérito, determinar sua conversão, observando-se, daí em diante, o procedimento relativo ao recurso especial”.
Avançando um pouco mais, a Lei nº 10.352, de 26 de dezembro de 2.001, alterou a redação do art. 475, dispensando do reexame necessário a sentença que estiver fundada em jurisprudência plenária do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do Tribunal Superior competente (art. 475, § 3º).
A mesma possibilidade foi estendida aos juízos de primeiro grau no que se refere ao exame da admissibilidade do recurso de apelação, hipótese na qual lhe poderá negar seguimento quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal (art. 518, § 1º, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 11.276/2006). A Lei nº 11.277, de 2006, em maior extensão, permitiu ao juízo de primeiro grau o julgamento liminar de mérito da demanda quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, dispensando-se, inclusive, a citação da parte contrária (art. 285-A).
Por fim, cabe afirmar que as alterações promovidas no julgamento do recurso especial e do recurso extraordinário são demonstrações da consolidação dessa tendência. A EC nº 45/2004 introduziu ao texto da Constituição Federal o parágrafo 3º do art. 102, de acordo com o qual o recorrente, no recurso extraordinário, deverá demonstrar a repercussão geral das questões discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. Através da Lei nº 11.418/2006, o CPC passou a prever que (i) haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal; (ii) negada a existência de repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, nos termos do Regimento Interno do STF; (iii) o relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado; (iv) havendo multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral, caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao STF, sobrestados os demais até o pronunciamento definitivo da Corte; (v) nega a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos; (vi) julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se; (vii) mantida a decisão e admitido o recurso, poderão STF, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à decisão firmada (art. 543-A e 543-B)[2].
No que se refere ao julgamento de recursos especiais repetitivos, a Lei nº 11.672/2008 foi mais incisiva quanto à necessidade de observância da decisão tomada pelo Superior Tribunal de Justiça, na medida em que prevê que, publicado o acórdão do STJ, os recursos especiais sobrestados na origem (i) terão seguimento negado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do STJ ou (ii) serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do STJ.
Parece inegável, pois, a importância dos precedentes no Direito Brasileiro atual, tendo em vista as diversas previsões legais que permitem e, em alguns casos, impõem a sua observância.
II. Considerações sobre o sistema jurídico brasileiro
O Brasil é um país plural na sua formação sob todos os aspectos, circunstância revelada, inclusive, como não podia ser diferente, nas suas instituições jurídicas, devendo-se destacar, para a finalidade aqui proposta, a influência norte-americana sobre a Constituição Brasileira de 1.891.
Consoante noticia Inocêncio Mártires Coelho, esgotado por causas diversas o regime monárquico, sobreveio a República – menos por crença nas suas virtudes e mais por descrença nas instituições monárquicas – e, com ela, a instauração de uma nova ordem constitucional, cujo ponto de partida foi o Decreto n. 1, de 15-11-1889, da lavra de Rui Barbosa, que proclamou, provisoriamente, como forma de governo da nação brasileira a República federativa e estabeleceu as normas pelas quais se deviam reger os Estados Federais[3]. Fruto dessa influência alienígena, que o clássico João Barbalho reputou séria e proveitosa, mas que outros consideraram equivocada, porque não se fez acompanhar de uma necessária e cautelosa redução sociológica, acabamos adotando o modelo norte-americano – não por acaso passamos a nos chamar República dos Estados Unidos do Brasil –, em que pesem as profundas diferenças nos processos de construção das duas soluções federativas: “lá o centripetismo, os Estados separados, buscando a união, integrando-se; aqui o centrifugismo, as províncias fundidas, diferenciando-se, de qualquer sorte se separando[4].
Uma das características mais marcantes dessa influência, o controle difuso de constitucionalidade foi instituído já na chamada Constituição Provisória, através do Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1.890, cujo art. 3º dispunha que “na guarda e applicação da Constituição e das leis nacionaes a magistratura federal só intervirá em especie e por provocação da parte”. De maneira ainda mais clara, o art. 9º ao tratar da organização e da competência do Supremo Tribunal Federal trazia os seguintes dispositivos:
“Art. 9º Compete ao Tribunal:
Paragrapho único. Haverá tambem recurso para o Supremo Tribunal Federal das sentenças definitivas proferidas pelos tribunaes e juízes dos Estados:
a) quando a decisão houver sido contraria á validade de um tratado ou convenção, á applicabilidade de uma lei do Congresso Federal, finalmente, á legitimidade do exercício de qualquer autoridade que obrado em nome da União – qualquer que seja a alçada;
b) quando a validade de uma lei ou acto de qualquer Estado seja posta em questão como contrario á Constituição, aos tratados e ás leis federaes e a decisão tenha sido em favor da validade da lei ou acto;”
Essa previsão foi incorporada ao texto da Constituição de 1.891, que reconheceu a competência do Supremo Tribunal Federal para rever as sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, quando se questionasse a validade ou a aplicação de tratados e leis federais e a decisão do Tribunal fosse contra ela, ou quando se contestasse a validade de leis ou de atos de governos locais, em face da Constituição ou das leis federais, e a decisão do Tribunal considerasse válidos esses atos ou leis impugnadas[5].
Outro legado do direito norte-americano nessa fase foi a adoção do sistema de jurisdição una ou única, no qual, ao contrário do que ocorre em grande parte da Europa Continental, o Poder Judiciário é competente para conhecer de qualquer conflito envolvendo a Administração Pública. Ensina Celso Antônio Bandeira de Mello[6] que a evolução histórica responsável por este encaminhamento que afastou o Poder Judiciário do exame dos atos administrativos e que culminou com a instituição de uma “Jurisdição Administrativa”, criadora do Direito Administrativo, advém de que, após a Revolução Francesa, desenvolveu-se naquele país uma singular concepção da tripartição do exercício do Poder, segundo a qual haveria uma violação dela se o Judiciário controlasse atos provenientes do Executivo. Em verdade, essa teorização foi simplesmente uma forma eufêmica de traduzir a prevenção que os revolucionários tinham com o Poder Judiciário (então denominado “Parlamento”), o qual, além de um arraigado conservantismo, de fato invadia competências administrativas e arvorava-se em administrador. Havendo o receio de que persistisse agindo de tal modo e perturbasse os rumos da Revolução, já em 1790 – ou seja, um ano depois da Revolução –, com a lei de 16-24 de agosto, foi estabelecido que: “As funções judiciárias são distintas e permanecerão sempre separadas das funções administrativas; os juízes não poderão, sob pena de crime funcional perturbar seja de que maneira for as operações dos corpos administrativos, nem citar perante si os administradores em razão de suas funções[7]”.
Cabe registrar, ainda, que foi nessa fase da história, em face da preocupação na implantação dos ideais revolucionários e da desconfiança dos membros do Poder Judiciário, que se estabeleceu o dogma de que seria vedado a eles realizar a interpretação da lei. Consoante noticia Elival da Silva Ramos, na França, logo após a entrada em vigor do Código Civil napoleônico, em 1804, consolidou-se o modelo dogmático do positivismo, pondo fim ao dualismo de ordenamentos (direito natural x direito positivo) e afirmando a preponderância das fontes estatais sobre as demais (costumes, jurisprudência, doutrina, etc.). A implantação dos ideais da Revolução Francesa não se compadecia com uma concepção estática e tradicionalista do sistema jurídico, em que o legislador estatal, a todo momento, via a sua atividade regulatória confrontada com os parâmetros normativos imprecisos, porém eternos e dotados de primazia, do direito natural. No entanto, a supremacia da lei não se fundava apenas na necessidade de superar as instituições do Ancien Régime, mas, também, em duas qualidades que então se atribuíam ao ato legislativo: a) a legitimidade política, por constituir emanação direta do Parlamento, em que se encarnava o princípio da soberania popular, finalmente vitorioso em face do princípio monárquico que se lhe contrapunha; b) a legitimidade ética, na medida em que a lei nada mais era do que a expressão da vontade geral e esta, fruto da razão, era sempre reta e tendia sempre para a utilidade pública[8].
O esquema de organização dos Poderes estatais, conhecido como teoria da separação dos Poderes, de feições nitidamente legicêntricas, refletia o predomínio político do Poder Legislativo, exatamente porque a lei que dele provém é a pauta a que se devem ajustar quer o Executivo, quer o Judiciário. Ao Poder Judiciário se conferiu a tarefa da aplicação da lei aos casos concretos, cuidando-se para que tal mister fosse exercido do modo mais neutro possível em relação às opções políticas do legislador, que deveriam ser cega e mecanicamente implementadas pelos magistrados[9]. Recusava-se ao Poder Judiciário a possibilidade de contribuir para a criação do direito, devendo os magistrados, devidamente informados pela exegese científica, se ater à estrita concretização da vontade do legislador, exercendo, pois, tanto quanto a doutrina, atividade de natureza cognoscitiva ou declaratória. Por sinal, o artigo 3º, do Capítulo V, do Título II, da Constituição francesa de 3 de setembro de 1791 proibia, expressamente, os tribunais de se imiscuir no exercício da função legislativa, vedação essa sancionada penalmente, nos termos do artigo 127, § 1º, do Código Penal de 1810. Sem contar que a Lei n. 16, de 24 de agosto de 1790, recepcionada por aquela Carta, tornara “defeso ao magistrado decidir quando a aplicação da lei suscitasse interpretação duvidosa, cabendo-lhe aguardar a interpretação legislativa”, tendo sido criada a Corte de Cassação, originariamente, um órgão auxiliar do Parlamento, para evitar que os órgãos judiciário, no exercício de suas funções, invadissem a esfera do poder legislativo, subtraindo-se à estreita e textual observância das leis[10].
Retornando-se ao ponto objeto de explanação, o Brasil, além de adotar o modelo de jurisdição constitucional difusa, desde a promulgação da Constituição de 1.891, implantou, na mesma oportunidade, o sistema de jurisdição única[11], sendo que, na exposição de motivos que serviu de fundamento para o Decreto nº 848, de 11-10-1890, sobre a organização da Justiça Federal, diz o Ministro da Justiça que “é a vontade absoluta das Assembléias Legislativas que se extingue, nas sociedades modernas, como se hão extinguido as doutrinas do arbítrio soberano do Poder Executivo. Aí está posta a profunda diversidade de índole que existe entre o Poder Judiciário, tal como se achava instituído no regime decaído e aquele que agora se inaugura”[12]. É interessante observar que nessa fase, talvez em decorrência da parca legislação sobre a matéria, o desenvolvimento dos institutos do direito administrativo deveu-se à sua consagração jurisprudencial, sob o influxo da doutrina predominantemente francesa. Pode-se afirmar que o direito administrativo brasileiro sofreu, nessa fase, influência do direito norte-americano, no que diz respeito ao sistema de unidade de jurisdição, à jurisprudência como fonte do direito, à submissão da Administração Pública ao controle jurisdicional. Mas, no que diz respeito às teorias e aos princípios, ficou evidente que a influência predominante foi a do direito francês criado pela jurisdição administrativa, que, aos poucos, pela decisão de casos concretos, foi derrogando o direito privado antes aplicado à Administração e criando regime jurídico próprio que acabou por dar autonomia ao direito administrativo[13].
Veja-se, pois, que o direito brasileiro, ainda que vinculado à tradição romanística, possui elementos próprios da tradição do common law e que não podem ser ignorados. Todavia, não se adotou, historicamente, a doutrina do stare decisis, que atribui força vinculante aos precedentes judiciais. Somente nos últimos tempos, como se pretendeu destacar ao início, tem-se buscado emprestar força aos pronunciamentos dos tribunais brasileiros, com muitas críticas da doutrina em geral.
“O sistema brasileiro tem uma característica muito peculiar, que não deixa de ser curiosa: temos um direito constitucional de inspiração estadunidense (daí a consagração de uma série de garantias processuais, inclusive, expressamente, do devido processo legal) e um direito infraconstitucional (principalmente o direito privado) inspirado na família romano-germânica (França, Alemanha e Itália, basicamente). Há controle de constitucionalidade difuso (inspirado no judicial review estadunidense) e concentrado (modelo austríaco). Há inúmeras codificações legislativas (civil law) e, ao mesmo tempo, constrói-se um sistema de valorização dos precedentes judiciais extramente complexo (súmula vinculante, súmula impeditiva, julgamento modelo para causas repetitivas etc.; …), de óbvia inspiração no common law. Embora tenhamos um direito privado estruturado de acordo como o modelo de direito romano, de cunho individualista, temos um microssistema de tutela de direitos coletivos dos mais avançados e complexos do mundo; como se sabe, a tutela coletiva de direitos é uma marca da tradição jurídica do common law (…).
Os problemas jurídicos repetem-se nos mais diversos recantos do mundo. O ser humano é muito parecido, seja ele japonês, norte-americano, índio, judeu, ateu, brasileiro. A solução desses problemas variará, obviamente, conforme os modelos teóricos e os aspectos culturais de cada país. Assim, por exemplo, os problemas relacionados à boa-fé processual são resolvidos nos Estados Unidos pela cláusula do devido processo legal; na Alemanha, pela expansão do § 242 do BGB (Código Civil alemão) aos “domínios não-civis”, e assim sucessivamente.
Muitas vezes a discussão doutrinária é puramente terminológica. A questão da ilicitude do comportamento contraditório, por exemplo, foi, na Alemanha, resolvida pelo desenvolvimento da proibição do venire contra factum proprium; na Espanha e na Argentina, pela doctrina de lós actos próprios; e nos países do common law, pelo estoppel. (…) Trata-se da mesma solução, com nomes e pressupostos teóricos diversos.
A observação é muito importante.
O Direito brasileiro, como seu povo, é miscigenado. E isso não é necessariamente ruim. Não há preconceitos jurídicos no Brasil: busca-se inspiração nos mais variados modelos estrangeiros, indistintamente. (…)
Enfim, para bem compreender o Direito processual civil brasileiro contemporâneo não se pode ignorar essa circunstância: é preciso romper com o “dogma da ascendência genética”, não comprovado empiricamente, segundo o qual o Direito brasileiro se filia a essa ou àquela tradição jurídica”[14].
Parece estranho, portanto, atribuir-se ao Poder Judiciário em geral o controle de constitucionalidade das leis e o controle da Administração Pública (Federal, Estadual, Distrital e Municipal) e esperar que apenas a lei ou a doutrina possam ser capazes de garantir coerência ao ordenamento, notadamente, a partir da evolução na compreensão no fenômeno de produção do Direito, para o qual foram decisivas algumas conquistas da Hermenêutica, consoante se demonstrará rapidamente no próximo tópico.
III. Dos falsos óbices à utilização dos precedentes no Direito Brasileiro
No tópico anterior viu-se que o principal argumento contrário à adoção do sistema de precedentes no direito pátrio assim como da doutrina do stare decisis reside no fato de se considerá-lo incompatível com a tradição romano-germânica e, também, porque haveria violação ao livre convencimento dos órgãos jurisdicionais[15]. Todavia, procurou-se, rapidamente, demonstrar que o ordenamento brasileiro possui alguns elementos de conexão com o common law (controle difuso de constitucionalidade, controle jurisdicional da Administração Pública, princípio do devido processo legal, etc.) desde a promulgação da primeira Carta Republicana, de modo que, referida incompatibilidade, não encontra corroboração no objeto de análise.
Ainda que houvesse, no Brasil, a adoção exclusiva de um dos referidos modelos, também parece problemática a afirmação de que o sistema de precedentes e a doutrina do stare decisis sejam compatíveis apenas com os sistemas de common law. Luiz Guilherme Marinoni[16], em obra especialmente dedicada ao tema, afirma que:
“Ademais, não há que se confundir common law com stare decisis. Ora, o common law, compreendido como os costumes gerais que determinavam o comportamento dos Englishmen, existiu, por vários séculos, sem stare decisis e rule of precedent.
Como escreve Simpson, qualquer identificação entre o sistema do common law e a doutrina dos precedentes, qualquer tentativa de explicar a natureza do common law em termos de stare decisis, certamente será insatisfatória, uma vez que a elaboração de regras e princípios regulando o uso dos precedentes e a determinação e aceitação da sua autoridade são relativamente recentes, para não se falar da noção dos precedentes vinculantes (binding precedents), que é mais recente ainda. Além de o common law ter nascido séculos antes de alguém se preocupar com tais questões, ele funcionou muito bem como sistema de direito sem os fundamentos e os conceitos próprios dos precedentes, como, por exemplo, o conceito de ratio decidendi.”
Não bastasse tal constatação, deve-se ter em mente que a doutrina que se debruçou sobre a matéria descreve que as fronteiras que separavam essas duas grandes famílias jurídicas ocidentes têm se tornado menos visíveis. Com efeito, enquanto as normas legais ganham cada vez mais importância no regime do common law, por sua vez os precedentes judiciais desempenham papel sempre mais relevante no Direito de tradição romanística[17]. Realmente, considerando-se, por exemplo, que nos Estados Unidos as respectivas unidades federadas dispõem de muito mais autonomia do que se verifica no Brasil, é provável que um estado típico dos Estados Unidos tenha tanta legislação quanto um país europeu ou latino-americano, a qual obviamente dever ser aplicada e interpretada pelos juízes[18].
Ainda que se negasse qualquer identidade entre essas famílias jurídicas, seja no que se refere à sua aproximação antes mencionada ou pela inexistência de qualquer elemento no direito brasileiro próprio do direito anglo-americano, não é possível, mais, negar a contribuição do Poder Judiciário na criação e desenvolvimento do Direito que, sendo um fenômeno cultural humano, depende dele – o homem – para existir. O mestre baiano, J.J. Calmon de Passos, em artigo publicado[19] pouco antes de sua morte, mas com a lucidez e o espírito crítico que o acompanharam até o fim dos dias, vaticinou em artigo publicado a respeito da Súmula Vinculante, a incoerência de se instituir um sistema recursal com Tribunais Superiores encarregados, precipuamente, de uniformizar a interpretação da lei, e negar aos seus julgados, qualquer efeito vinculante em relação aos demais órgãos jurisdicionais.
“11. Se for correto quanto vem de ser afirmado, será também exato dizer-se que o fixado em termos genéricos, frise-se, em termos genéricos, pelos tribunais superiores obriga aos tribunais e juízes inferiores, tanto quanto a lei. Falar-se em decisão de tribunal superior sem força vinculante é incidir-se em contradição manifesta. Seriam eles meros tribunais de apelação de apelação, cansativa via crucis imposta aos litigantes para nada, salvo o interesse particular do envolvido no caso concreto, muito nobre, porém muito pouco para justificar o investimento público que representam os tribunais superiores. (…)
13. Coisa bem diversa ocorre, a meu ver, quando se trata de decisão tomada pelo tribunal superior em sua plenitude e com vistas à fixação de um entendimento que balize seus próprios julgamentos. O tribunal, ao fixar diretrizes para seus julgamentos, necessariamente os coloca, também, para os julgados de instâncias inferiores. Aqui, a força vinculante dessa decisão é essencial e indescartável, sob pena de retirar-se dos tribunais superiores precisamente a função que os justifica. Pouco importa o nome de que ela se revista – súmula, súmula vinculante, jurisprudência predominante, uniformização de jurisprudência ou o que o for, – obriga. Um pouco à semelhança da função legislativa, põe-se, com ela, uma norma de caráter geral, abstrata, só que de natureza interpretativa. Nem se sobrepõe à lei, nem restringe o poder de interpretar e de definir os fatos, atribuído aos magistrados inferiores, em cada caso concreto, apenas firma um entendimento da norma, enquanto regra abstrata, que obriga a todos, em favor da segurança jurídica que o ordenamento deve e precisa proporcionar aos que convivem no grupo social, como o fazem as normas de caráter geral positivadas pela função legislativa. (…)
Talvez só porque, infelizmente, no Brasil do pós 1988, se adquiriu a urticária do “autonomismo”, e todo o mundo é comandante e ninguém é soldado, todo o mundo é malho e ninguém é bigorna, todo o mundo tem direito e ninguém tem dever, talvez por isso se tenha tornado tema passional o problema da súmula vinculante. E isso eu percebi muito cedo, quando, falando para juízes federais sobre a irrecusabilidade da força vinculante de algumas decisões de tribunais superiores, um deles, jovem, inteligente, vibrante, me interpelou: “Professor Calmon, onde ficam minha liberdade de consciência e meu sentido de justiça”? Respondi-lhe, na oportunidade, o que consigno a seguir. Esta mesma pergunta não seria formulável, validamente, pelos que, vencidos, sofrem os efeitos da decisão que lhes repugna o senso moral e lhes mutila a liberdade? Por que os juízes podem nos torturar em nome da justiça a que se dizem obrigados, subjetivamente, e estariam livres de ser torturados por um sistema jurídico capaz de oferecer alguma segurança objetiva aos jurisdicionados?”[20]
Por fim, passando do plano meramente teórico, tem-se, no relato de Evaristo Aragão Santos[21], um caso curioso de integração dos dois sistemas. De acordo com o autor, o território onde hoje se localiza o Estado norte-americano da Louisiana teve acentuada influência das culturas francesas e espanhola no período das grandes colonizações, antes de vir a ser adquirido pelos Estados Unidos da América em 1803. Essa influência cultural da Europa continental também se refletiu na estrutura legal daquela região. Mesmo tornando-se parte do território norte americano, essa preocupação com o respeito das peculiaridades regionais no desenho da estrutura legal, permitiu que a tradição do civil law, materializada no direito codificado, fosse mantida no âmbito do direito privado, enquanto que a organização judiciária (court system) e o direito público (public law) ficaram baseados na tradição norte-americana do common law[22].
Não obstante passados mais de duzentos anos, a Louisiana manteve esse desenho de sua estrutura legal, sendo um exemplo de sincretismo entre as duas tradições jurídicas. É dizer, tem no direito legislado a fonte primeira na qual se busca o Direito em vigor, mas, também, sem descurar de um acentuado respeito ao precedente judicial. Assim como na melhor tradição do civil law, a fonte primeira na qual se busca o Direito na Louisiana, especialmente para questões privadas, é a norma legislada. Há um Código Civil dividido em quatro livros[23], bem como Códigos de processo civil e processo criminal. Também há as Constituições Federal e Estadual, além de outras normas legisladas tanto de âmbito federal quanto (e principalmente) estadual. O Código Civil, afinado com a tradição da Europa continental, fixa como fontes do direito apenas o texto da lei e o costume, não se reconhecendo a jurisprudência como fonte do direito[24]. Isso, porém, não é empecilho para que se reconheça a importância e se renda inequívoco respeito às decisões judiciais, tanto da Corte de Apelação quanto e especialmente da Suprema Corte Estadual (Louisiana Supreme Court)[25].
IV. Razões para a adoção do sistema de precedentes: o controle da função jurisdicional, como garantia da igualdade e da segurança jurídica
Antes de iniciar a apresentação das principais razões apontadas pela doutrina para a necessidade de observância das decisões dos tribunais superiores, crê-se deva ser esclarecido um ponto. Como dito anteriormente, tem-se como produto da Revolução Francesa a ideia de que seria possível estabelecer uma clareza e seguranças jurídicas absolutas através de normas rigorosamente elaboradas, e especialmente garantir uma univocidade a todas as decisões judiciais e a todos os atos administrativos. Esse tempo foi o do Iluminismo[26].
Não é preciso fazer-se um detalhado relato da evolução da Hermenêutica Jurídica para chegar-se à conclusão do equívoco dessa concepção, fruto de um momento histórico muito específico e que o tempo se encarregou de mostrar que não passou de um ideal revolucionário utópico. Perceba-se, no entanto, que num Estado de Direito, do qual decorre o Princípio da Segurança Jurídica, as leis devem ser, tanto quanto possíveis, gerais, abstratas, não se dispensando, portanto, a busca por clareza conceitual. É dizer, ainda que se saiba que a segurança não é alcançada apenas por meio da função legislativa, não se pode, simplesmente, abandoná-la, eis que se trata, no dizer de Calmon de Passos[27], da primeira redução da complexidade do agir humano que, se antes possuía um leque enorme de opções, passa, a partir de então – da edição da lei – a ter menos opções para a sua atuação.
“A convivência social põe para o indivíduo, ou para os indivíduos, em cada situação concreta em que se situem, um complexo de alternativas de comportamento. Figuremos um exemplo. Deseja-se solução para o problema do aproveitamento das terras que sejam da propriedade de particulares. Não há, para esse problema, uma solução única, inelutável, impositiva. Inúmeras podem ser pensadas. Reduzir essa indeterminação, de modo a se emprestar previsibilidade e possibilitar exigibilidade de certo compromisso individual com segurança de sua efetividade, reclama seja definida, no universo de possibilidades de ser que a situação em foco admite, uma que se revista do caráter de dever ser institucionalmente em condições de obrigar e ordenar concretamente o comportamento social. Essa primeira opção é de natureza política e deve ser formalizada pelos órgãos legitimados para o exercício dessa função, precipuamente legislativa. Mas esse dever ser enunciado genericamente, porque linguagem, discurso, jamais será de implicar uma única e necessária interpretação, eliminando toda e qualquer possibilidade de alternativas subsequentes, por conseguinte, incapaz de conduzir, sempre, em toda e qualquer situação concreto de conflito, a um só tipo de decisão. Impõe-se, destarte, a necessidade de uma segunda redução de complexidade, colocada, agora, a cargo dos agentes públicos e dos sujeitos privados destinatários da norma. Caso disso decorra algum conflito, ou algum conflito se mostre potencialmente possível, a tarefa é transferida para os órgãos da função jurisdicional, que formularão o entendimento redutor, com impositividade, no caso concreto. Essa segunda redução de complexidade, quando transferida ao julgador, não pode ser nem arbitrária nem discricionária, visto como se negaria, aqui, o princípio que informou a primeira redução de complexidade, que se tornaria inócua e nenhuma. Por outro lado, se essa atividade se dá num sistema democrático, tanto aqui, quanto ali, se faz essencial a adequação ao devido processo legal respectivo. Por via de consequência, e conclusão necessária, se inexistir no sistema instrumentos mediante os quais se empreste, no máximo possível, segurança e coerência nessa segunda redução de complexidade, portanto previsibilidade, negar-se-á (ou se anulará) quanto antes afirmado, disfuncionalizando-se o sistema como um todo. Essa exigência fala em favor da força vinculante de certas decisões dos tribunais superiores, nas condições que serão adiante estudadas.
Assim entendendo, sempre me senti algo perplexo com a celeuma criada em torno do problema da súmula vinculante, contenda que me pareceu muito mais fruto de má comunicação, deficiente informação ou envolvimento emocional dos interessados que de algo inerente ao problema[28].
No estágio alcançado pela Teoria da Interpretação, restam completamente superadas, quer a postura do positivismo jurídico do século XIX, que via no interpretar um mero ato de conhecimento de um dado pronto e acabado, quer a postura teorética de Kelsen, que reconhecia ser a criatividade inerente ao processo de exegese-aplicação, porém a dissociava dos elementos cognitivos nele necessariamente existentes, de modo a restringir o interesse da Dogmática apenas a esse segundo aspecto. O que hoje se constata é que o magistrado, longe de meramente declarar ou reproduzir um direito preexistente, contribui para a sua configuração, entretanto, não de forma livre ou inteiramente desvinculada e sim a partir do texto a aplicar, cujo teor normativo resulta, precisamente, da atividade de concretização. Um dos pilares em que se assenta a Hermenêutica Jurídica na atualidade é, efetivamente, a distinção entre o texto normativo (o dispositivo ou enunciado) e o seu conteúdo (a norma, preceito ou disposição), sendo aquele o objeto da interpretação e este o seu resultado. A interpretação-aplicação é, desse modo, percebida como uma atividade simultaneamente cognoscitiva e criativa, consistindo no ‘conhecimento ativo de um objeto que o próprio sujeito cognoscente contribui para produzir[29].
Tal constatação parte da ideia de que o Direito depende precipuamente de processos de argumentação e justificação, não se limitando a sua interpretação a um mero exercício de identificação de um objeto, mas implicando, necessariamente, a reconstrução de sentido dos textos interpretados. O alentado estudo sobre a Segurança Jurídica produzido por Humberto Ávila[30] é significativo dessa nova concepção. Com efeito, se ela – a Segurança Jurídica – era definida, tradicionalmente, como a possibilidade de os cidadãos preverem as consequências dos seus comportamentos, o que implicava, implicitamente, na crença do Direito como algo pronto, estático e independente da atuação do intérprete, a partir do momento em que se verifica que o Direito é inelutavelmente dependente do seu processo de aplicação, deve-se procurar abarcar, na sua conceituação, tal aspecto. Trata-se, na definição do próprio Humberto Ávila, de “uma concepção juspositivista argumentativa (por isso, pós-positivista), pois, de um lado, defende a segurança jurídica como dever decorrente do Direito posto, de outro, sustenta que a sua realização depende da reconstrução de sentidos normativos por meio de estruturas argumentativas e hermenêuticas, não advindo da mera descrição imparcial de significados externos ao sujeito cognoscente”.[31]
O exercício da função jurisdicional submete-se a uma série de mecanismos de controle e legitimação, de que são exemplos, o respeito ao devido processo legal (art. 5º, LIV, CF) e seus corolários, contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV), a publicidade dos atos jurisdicionais (art. 5º, LX), a vedação à instituição de juízo ou tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII e LIII), o dever de fundamentar as decisões (art. 93, IX), as regras pertinentes aos impedimentos e à suspeição do magistrado (artigos 134 e 135, CPC) que tentam, de alguma maneira, assegurar a imparcialidade dos juízes.
No entanto, toda essa construção teórica sucumbe se admitir-se, como algo natural e ineliminável do sistema, a possibilidade de que casos semelhantes recebam tratamento díspar. A independência dos juízes não pode ser entendida como o direito de tratar de modo diferente pessoas que se encontram numa mesma situação. O dever de fundamentação não pode ser entendido como um requisito meramente formal no exercício da atividade de julgar, devendo o magistrado declinar, em sua decisão, os motivos existentes para seguir ou não seguir determinado entendimento jurisprudencial consagrado nos tribunais. Da mesma maneira, não basta a mera referência vaga e imprecisa a ementas de julgados anteriores, devendo o magistrado mostrar que a descrição dos fatos subjacentes à causa permite concluir pela incidência, ou não, de determinado precedente judicial.
De acordo com Marinoni[32], a justificação de determinada interpretação ou solução de questão jurídica, caso não precise levar em conta o que já foi decidido, nada significa em termos de garantia de imparcialidade. Ora, se um juiz, Câmara ou Turma podem decidir casos iguais de forma diferente ou atribuir significados diferentes a uma mesma norma, é evidente que não há como garantir a imparcialidade. Na verdade, ao permitir decisões díspares a casos iguais, o sistema estimula o arbítrio e a parcialidade. Se o juiz pode atribuir significados distintos à mesma norma, o juiz parcial está livre para decidir como lhe convier, bastando justificar as suas opções arbitrárias. Porém, quando está sujeito ao seu passado, isto é, ao que já decidiu, o juiz não pode, ainda que deseje, ser parcial ou arbitrário. Veja-se, ainda, a contribuição dessa concepção em termos de responsabilidade dos tribunais na formação dos precedentes. Com efeito, a partir da necessidade de se guiar futuramente pela mesma decisão, o juiz ou tribunal deverá refletir sobre a repercussão do caso futuramente, é dizer, deverá verificar a possibilidade de que aquela decisão poderá ser aplicada a outros casos que lhes sejam submetidos a julgamento[33].
A partir dessa constatação, tem-se, de modo incontrastável, que a necessidade de serem observadas as decisões anteriores é instrumento de autovinculação do Poder Judiciário e que pode contribuir para promover o estado ideal de coisas imposto pelos princípios da igualdade e da segurança jurídica. Realmente, a lei deve valer para todos igualmente, mediante a aplicação uniforme a todos os casos que se enquadrem em seus termos. Portanto, ainda que cada caso seja um caso, incumbe ao Poder Judiciário aplicar de modo uniforme os seus próprios precedentes, estendendo para os casos futuros o mesmo tratamento dado aos passados, quando entre estes existirem as mesmas circunstâncias relevantes de fato. Isso não significa que o Poder Judiciário não possa afastar-se dos seus precedentes. Significa, tão só, que, tendo sido adotada uma linha decisória, ele só possa dela se afastar quando houver razões justificativas suficientes para tanto. Referida autovinculação aos próprios precedentes funciona como fator de calculabilidade do Direito pelo ganho em previsibilidade da atuação do Poder Judiciário. Ao restringir a atuação futura com base na atuação passada, o princípio da igualdade reduz o espectro e a variabilidade das consequências atribuíveis a atos praticados pelos cidadãos[34].
“O que se defende, aqui, é a compreensão do Direito como uma composição entre atividades semânticas e argumentativas: a atividade do operador do Direito parte de reconstruções de significados normativos por meio de regras de argumentação – contudo tem a sua aplicação dependente de postulados hermenêuticos e aplicativos. O Direito, assim, ao contrário de ser um mero objeto cuja realização independe de estruturas argumentativas, ou uma simples atividade argumentativa sem qualquer heterolimitação decorrente de significados normativos que o antecedem; é uma espécie de “objeto-atividade”, pois requer, para a sua realização, a reconstrução de significados e de estruturas argumentativas de legitimação e de fundamentação. Afinal, não há como negar o caráter argumentativo do Direito.(…)
Essa aparente contradição, no entanto, é dissipada quando se verifica que o caráter argumentativo do Direito é objeto de controle por meio dos já referidos processos de determinação, de legitimação, de argumentação e de fundamentação. E o caráter argumentativo, que permeia esses processos, depende tanto de condições de racionalidade quanto de coerência. A racionalidade é assegurada por regras racionais de argumentação, dentre as quais a necessidade de justificação e de universalização. Desse modo, nenhuma asserção pode ser feita sem que lhe seja agregado um argumento. Essa justificação, a seu turno, depende de sua capacidade de universalidade: sempre que ocorrer determinado fato, deve ser aplicada determinada consequência, assim ocorrendo para todos os casos que tiverem as mesmas características. A coerência é garantida por meio da recondução da decisão a um conjunto, internamente consistente, formal e materialmente, de princípios e regras, especialmente graças ao suporte material dado por princípios fundamentais. Isso impede tanto que se parta do zero para decidir cada novo caso, quanto que se encontre uma decisão arbitrária e ad hoc. Se a essas regras de racionalidade argumentativa e de coerência substancial forem agregadas regras a respeito da determinação, da legitimação, da argumentação e da fundamentação, o nível de controle passa a ser bastante elevado. Com essas precauções, pode-se compatibilizar o caráter argumentativo do Direito com as exigências de cognoscibilidade e de calculabilidade do Direito decorrentes do princípio da segurança jurídica.”[35]
Igualdade e Segurança Jurídica, acima referidas, são princípios que podem ser reconduzidos, facilmente, ao Sobreprincípio do Estado de Direito. É dizer, o Estado de Direito, como limitação ao arbítrio e ao poder somente se realiza efetivamente com a exigência, dentre outras, de previsibilidade, estabilidade, calculabilidade e igualdade das suas normas e do tratamento dispensado àqueles que se encontrem numa mesma situação. A ideia de submissão do Estado ao Direito traz ínsita a necessidade de que as regras jurídicas sejam previamente demarcadas e conhecidas por todos aqueles que por elas poderão ser influenciados. Para tanto, é imprescindível que haja controlabilidadade no momento de realização do Direito.
Conclusão
Ao final do quanto exposto, espera-se ter contribuído, minimamente que seja, para a reflexão que o tema requer. Não há nada no sistema jurídico brasileiro que possa servir como fundamento, histórico ou dogmático, para a rejeição da adoção do sistema de precedentes como método auxiliar e complementar na construção do ordenamento jurídico. Mais do que um mero apego ao passado, tal concepção centra-se na necessidade de coerência e legitimação no processo de aplicação do Direito e tem em vista a inelutável dimensão argumentativa da prática jurídica.
Procurador do Estado de São Paulo, Mestrando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
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