Resumo: Conhecer o conceito histórico de contrato é fundamental para entendê-lo contemporaneamente. As mudanças pela qual passou reflete de grande maneira no que é hoje. Indaga-se se o conceito jurídico de contrato que temos reflete as diretrizes do Estado Democrático de Direito e caso não reflita, como deverá a doutrina caminhar para construí-lo.
Palavras chave: Contrato, Dogma da Vontade, Estado Democrático de Direito.
Sumário: 1. Introdução; 2. O contrato no direito romano; 3. O contrato do direito medieval; 4. As origens do conceito jurídico contemporâneo de contrato: o contrato no direito moderno; 5. Em busca de um modelo democrático de contrato; 6. Conclusão; 7. Referências.
1 Introdução
O conceito jurídico de contrato está, para Roppo (2009), intrinsecamente ligado ao conceito social-econômico que lhe é dado – como instrumento que operacionaliza a circulação de riquezas, ou seja, contrato é sinônimo de operação econômica, mas com uma acepção mais ampla.
Conforme Roppo (2009) a construção teórica acerca do conceito jurídico de contrato se deu da análise dos aspectos da operação econômica que se queria tutelar. Assim, pode-se dizer que o conceito jurídico de contrato é o que dá formalidade a operação econômica, apesar de que, esse – o conceito jurídico de contrato – não se limita à operação econômica.
A operação econômica que dá substrato ao conceito jurídico de contrato é a circulação de riquezas vista de modo objetivo. Deste modo, toda a transferência de riquezas, mesmo aquela que não aufere lucro ou que não tenha interesse patrimonial, é considerada como operação econômica.
O conceito jurídico de contrato é histórico, para tanto, faz-se necessário perquirir como o contrato foi visto ou utilizado nos diferentes momentos históricos. Como início, adotar-se-á o Direito Romano que exerceu grande influência aos países que se basearam no sistema de leis romano-germânico, ao qual, o Brasil faz parte. Após, será analisado o conceito de contrato no contexto da idade média, do Estado Liberal, do Estado Social e, por fim, do Estado Democrático de Direito. Isso tudo, com o intuito de perceber se o conceito que temos de contrato reflete com os ditames do Estado Democrático de Direito.
2. O contrato no Direito Romano
O contrato no Direito Romano Clássico (NAVES, 2007) era dotado de rigor formalista. Ele não era visto como meio regulador para qualquer operação econômica. Para cada operação havia uma fórmula que deveria ser seguida para que essa operação tivesse a proteção estatal. O mero acordo de vontades não era suficiente para criar as obrigações.
Nesse período, também, haviam alguns contratos – denominados pacta – que, mesmo destituídos de fórmula, eram aceitos, contudo não tutelados. Ou seja, nesses contratos o credor não poderia exigir a prestação em juízo, mas caso recebesse a prestação poderia retê-la.
“[…] podemos perceber a utilização de três vocábulos para designar fenômenos semelhantes: convenção, contrato e pacto. A convenção era gênero e as espécies eram o contrato e o pacto. Contratos eram convenções normatizadas e por isso protegidas pela via da actio. Três eram as espécies contratuais: a) litteris, que exigia inscrição no livro do credor (denominado de codex); b) re, que se fazia pela tradição efetiva da coisa; e c) verbis, que se celebrava pela troca de expressões orais, como em um ritual religioso. Esses contratos tinham proteção judicial prevista pelo ius civile, podendo reclamar via actio sua execução. […] o pacto era um acordo não previsto em lei. Não exigia forma especial, nem era protegido pela actio” (NAVES, 2007, p. 231 e 232)
Deste modo diz-se que no Direito Romano se tinha uma grande categoria: a convenção. Ela se dividia em contratos – dotado de rigor formalista e protegido via actio – e o pacto – sem rigor formalista e sem proteção pela actio. Ainda, os contratos se dividiam-se em litteris, re e verbis dada a peculiaridade da fórmula de cada um.
O rigor formalista desse período pode ser atribuído a pouca utilização da escrita e pela alta carga religiosa da sociedade, já que, o contrato só seria protegido pelos deuses se observasse a forma prescrita.
No Direito Romano Pós-clássico NAVES (2007) foi conferida a alguns pactos mais utilizados a proteção via actio. São contratos como a compra e venda, locação, mandato e sociedade. Essa categoria de contratos passou a ser denominada contratus solo consensu, já que não requeriam formalidade bastando a declaração de vontade das partes. Os demais contratos que não estavam previstos nas categorias de Litteris, Verbis, Re e Solo Consensu, não eram considerados contratos, já que não produziriam uma obrigação civil, apenas uma obrigação natural.
Observe que no Direito Romano o contrato era instrumento para criar obrigações e não para modificá-las ou extingui-las. Para essas operações utilizava-se dos pactos, pacta adiecta.
A pacta adiecta gerava obrigação civil, mas a sua oposição não se dava pela actio e sim pela exceptio. Caso o credor exercesse o contrato pela actio desconsiderando o pactuado na pacta adiecta o devedor poderia opor a essa actio pela exceptio.
3 O contrato no Direito Medieval
O Direito Medieval (ROPPO, 2009) sofreu forte influência do Direito Canônico, Romano e Germânico costumeiro e assim apresentava parte do formalismo do Direito Romano. Com o crescimento da economia mercantil esse formalismo contratual passou a ser um entrave para as contratações, que pretendiam cada vez mais rápidas. Tornou-se, assim, comum, no instrumento contratual, constar que as fórmulas foram cumpridas, mesmo que, na prática, não fossem realizadas. Além disso, era comum, ao se celebrar um contrato, fazer um juramento com motivos religiosos para dar força àquele contrato.
Outro aspecto importante, por influência do Direito Canônico que tinham a mentira como pecado, considerava-se o descumprimento contratual tal qual a mentira, sendo, portanto, também condenado. Acreditava-se que se a obrigação fosse assumida de forma livre e consciente, não haveria motivos para se descumprir o contrato.
4 As origens do conceito jurídico contemporâneo de contrato: o contrato no direito moderno
O contrato, tal qual o entendemos hoje, é fruto do jusnaturalismo e do nascimento do capitalismo. Nos períodos anteriores o indivíduo era determinado pelo grupo em que estava inserido e pela função que exercia dentro deste grupo, com o nascimento do capitalismo, o indivíduo passa a ser determinado por sua vontade autônoma, sendo, o contrato o meio mais utilizado para fazer valer essa vontade.
No século XIX, dada a expansão do capitalismo, o contrato e o direito dos contratos[1] passou a exercer um papel ideológico[2] na sociedade (ROPPO, 2009). Era necessário que não houvesse impedimentos para a circulação de riquezas, assim a dogmática contratual da época desenvolveu algumas teorias para fundamentar a ideologia perquirida.
As idéias desenvolvidas no intuito de que a vontade exercesse um papel ideológico naquela sociedade, se somaram àquelas desenvolvidas pela própria teoria do direito. Fiuza cita quatro dogmas assentados nesse período:
“1º) oposição entre o indivíduo e o Estado, que era um mal necessário, devendo ser reduzido;
2º) princípio moral da autonomia da vontade: a vontade é o elemento essencial na organização do Estado, na assunção de obrigações etc.;
3º) princípio da liberdade econômica;
4º) concepção formalista de liberdade e igualdade, ou seja, a preocupação era a de que a liberdade e a igualdade estivessem, genericamente, garantidas em lei. Não importava muito garantir que elas se efetivassem na prática.” (FIUZA, 2007, p. 260)
No contexto do direito contratual, a principal idéia traçada nesse período era a da liberdade de contratar. O sujeito era livre para escolher contratar ou não contratar, escolher o seu parceiro contratual, além de estabelecer o conteúdo desse contrato. Não era dado ao Estado impor as parte um determinado tipo de contrato ou a contratar com determinado parceiro contratual. O Estado se limitava a fazer valer as vontades livrementes estabelecidas. Assim, a intervenção estatal só ocorreria em caso de descumprimento contratual para fazer valer aquela vontade estabelecida no contrato, ou caso um contrato que se perfizesse por uma vontade viciada (vícios do consentimento) caso em que o Estado interviria por não haver vontade livremente estabelecida. Outro fator importante é que nesse período não havia proteção a alguma parte que tivesse inferioridade econômico-social, deste modo acreditava-se que o mercado se auto-regulava, ao Estado caberia apenas assegurar que a vontade fosse estabelecida de forma livre. Ainda, dado o primado da igualdade jurídica que rompeu com os privilégios do absolutismo, passou-se que todo indivíduo era igual perante a lei, somando-se a isso nasceu a idéia de que as vontades estabelecidas, mesmo que uma das partes tivesse inferioridade econômico-social, seria livre em razão dessa igualdade perante a lei. Não se admitia que a parte economicamente mais forte pudesse impor a sua vontade em detrimento da do economicamente mais fraco, já que a igualdade jurídica estava estabelecida.
Por essa noção de vontade e para dar segurança ao tráfego econômico, perfaz-se a idéia de que o contrato, emanado de uma vontade livre, faz lei entre as partes – pacta sunt servanda. Aquele que por sua vontade celebrou contrato deve executá-lo, já que ninguém o impeliu a contratar, pois, repita-se é fruto de sua própria vontade. Ripert (2000) chega a afirmar que o contrato é lei entre as partes, mas uma lei com força maior que todas as outras leis, já que, depois de formado com regularidade, nem mesmo as outras normas podem atingi-lo.
A idéia de justiça contratual substancial era rechaçada. O contrato era fruto da vontade das partes que eram iguais e estabeleciam por essa mesma vontade o conteúdo desse contrato. Veja Roppo:
“Neste sistema, fundado na mais ampla liberdade de contratar, não havia lugar para a questão da intrínseca igualdade, da justiça substancial das operações económicas (sic) de vez em quando realizadas sob a forma contractual (sic). Considerava-se e afirmava-se, de facto (sic), que a justiça da relação era automaticamente assegurada pelo facto (sic) de o conteúdo deste corresponder à vontade livre dos contraentes (sic), que, espontânea e conscientemente, o determinavam em conformidade com os seus interesses, e, sobretudo o determinavam num plano de recíproca igualdade jurídica (dado que as revoluções burguesas, e as sociedades liberais nascidas destas, tinham abolido os privilégios e as discriminações legais que caracterizavam os ordenamentos em muitos aspectos semifeudais do <<antigo regime>>, afirmando a paridade de todos os cidadãos perante a lei): justamente nesta igualdade de posições jurídico-formais entre os contraentes (sic) consistia a garantia de que as trocas, não viciadas na origem pela presença de disparidades nos poderes, nas prerrogativas, nas capacidades legais atribuídas a cada um deles, respeitavam plenamente os cânones da justiça comutativa. Liberdade de contratar e igualdade formal das partes eram portanto os pilares – sobre os quais se formava a asserção peremptória, segundo a qual dizer <<contractual>> (sic) equivale a dizer <<justo>> (<<qui dit contractuel dit juste>>).” (ROPPO, 2009, p. 35)
Essa idéia dava sustentáculo ao próprio capitalismo, para o contrato ser justo bastava que as partes o estabelecessem por suas vontades, que eram formalmente livres. Com isso se quer dizer que ordenamento jurídico da época, garantia que todos fossem iguais perante a lei, não havendo a distinção em classes juridicamente privilegiadas, como havia no antigo regime.
A dogmática do direito nesse período, garantindo a igualdade formal, constrói a noção de um conjunto de normas, sistematicamente organizadas que regrasse toda a vida de um indivíduo em suas relações privadas, de modo, completo e coeso. Surgem as grandes codificações, dentre elas, as que serviram de modelo para boa parte das demais codificações: o Código de Napoleão (1804 – Code Civil) e o Código Alemão (1900 – Bürgerliches Gesetzbuch – BGB).
No Código de Napoleão o contrato não tinha regramento em um livro próprio, era tratado no livro destinado a propriedade. Ou seja, o contrato era um dos instrumentos para se adquirir a propriedade, estava subordinado a essa. Isso porque, naquela sociedade a propriedade era o que movimentava a economia, tal como, na sociedade de consumo, na qual, é o contrato que a movimenta. Ainda, na construção ideológica daquele período histórico, conforme Roppo (2009), a liberdade só era possível com a propriedade, assim como para a propriedade era essencial a liberdade – liberdade de usá-la, dispô-la como bem o aprouver, sendo o contrato o meio hábil para isso.
A segunda grande codificação de destaque foi o Código Civil Alemão – BGB- que foi promulgado quase cem anos depois do Código de Napoleão. Isso se deu pelo fato da unificação tardia da Alemanha. O contrato nesse diploma teve tratamento diverso do estabelecido no Código de Napoleão, sendo tratado no capítulo referente ao negócio jurídico, categoria geral da qual o contrato é espécie.
A criação da categoria geral do negócio jurídico abarcaria qualquer relação entre sujeitos destinada a produzir efeitos jurídicos, assim, não só os contratos seriam negócios jurídicos, mas também, as relações não patrimoniais. Conforme Roppo (2009) essa categoria mais abstrata e geral do contrato afirmou com mais vigor o mito da vontade inviolável e da igualdade das pessoas perante a lei. Ou seja, com a criação dessa figura – negócio jurídico – a proibição da intervenção estatal na liberdade e vontade individual, não se daria somente nos contratos ou na propriedade, mas em qualquer negócio jurídico, ou seja, nas relações estabelecidas pelas vontades livres destinadas a produzirem efeitos jurídicos.
5. Em busca de um modelo democrático de contrato
O contrato, desde a revolução industrial que se inicia no século XVIII, passa a sofrer inúmeras mudanças, conforme o que já foi dito acima. Esse fato histórico que contribuiu para a alteração da teoria contratual até então existente e que no século XX modificar-se-á novamente baseando-se nas próprias idéias desenvolvidas na modernidade.
No fim do séc. XIX com o desenvolvimento da sociedade industrial iniciou-se um novo modelo de sociedade que se comumente denomina-se de sociedade de consumo.
As indústrias diminuíram em quantidade, mas aumentaram em seu tamanho. O modo de produção também modificou, passando a ser organizado em categorias, nas quais, cada operário seria detento de apenas uma parte da produção. Esse modelo estabelecido culminou com o aumento da produção e barateamento do produto final.
Por essa modificação da sociedade o modo de contratar se modificou. De um contrato pessoalizado, no qual, era possível se discutir as cláusulas contratuais, se passou a um modelo de contrato impessoalizado, massificado e objetivizado. O capitalismo avançou e o ato de contratar passou a ser cada vez mais rápido. Por essa velocidade nas contratações foi estabelecido um novo tipo contratual, qual seja, o contrato por adesão, no qual as cláusulas contratuais já estão previamente estabelecidas, bastando a um das partes aderir ou não a esse contrato, ou seja, não se discute o conteúdo dessas cláusulas contratuais.
O resultado dessa modificação é que o contrato passou a ser um instrumento de poder e de opressão. O Estado passa a ter que intervir nos contratos para que a própria lógica do capitalismo não fosse frustrada.
“O direito civil – assim como os outros ramos do chamado direito privado, o direito comercial e o direito do trabalho – assiste a uma profunda intervenção por parte do Estado. Procurou-se com êxito evitar que a exasperação da ideologia individualista continuasse a acirrar as desigualdades, com a formação de novos bolsões de miseráveis – cenário assaz distante do que imaginaria a ideologia liberal no século anterior, ou seja, a riqueza das nações a partir da riqueza da burguesia-, tornando inviável até mesmo o regime de mercado, essencial ao capitalismo. Estamos falando, como todos sabem, da consolidação do Estado Social.” (TEPEDINO, 2003, p. 117)
O que se quer dizer é que aquele que é economicamente mais forte, depende que o economicamente mais fraco compre o produto disponibilizado pelo primeiro. Se o segundo passa a não ter condições o sistema pára. Por isto, já que o contrato virou uma forma de opressão dos economicamente mais fracos, o Estado precisou dirigir tais contratos no intuito de que a lógica do capitalismo não fosse frustrada.
Ressalta-se que a dogmática contratual que passou a justificar a intervenção estatal nos contratos desenvolveu-se de modo a resgatar as construções teóricas estabelecida no período histórico anterior, ou seja, do dogma da vontade. Quer dizer que as teorias estabelecidas que justificam a intervenção estatal nos contratos, o faz de modo a resguardar o dogma da vontade, ou seja, questionava-se como intervir nos contratos sem que a autonomia da vontade não fosse violada ou que permanecesse resguardada. Contudo, a mudança ocorrida nas contratações, como dito acima, muda a perspectiva do direito contratual. Não se que apenas garantir a vontade das partes, mas dada a velocidade das contratações e a conseqüente impessoalidade, é mister, garantir a segurança e estabilidade das contratações. Assim, ao se ter um conflito entre a vontade interna – psicológica – e a vontade declarada – aquela que é exteriorizada -, prevalece a vontade objetivamente declarada, de modo a dar segurança as contratações realizadas. Passa-se da teoria da vontade para a teoria da declaração.
O contrato, portanto, modifica-se, e sofre interferências do Estado, que, após duas guerras mundiais, passa a ter que interferir na economia, dirigindo os contratos. O que se tem é que o liberalismo gerou grande opressão das camadas sociais mais populares, que, em um dado momento passou a reivindicar outros direitos, que não só a igualdade perante a lei. Como dito antes, para que o próprio sistema pudesse se desenvolver, o Estado passou a ter que intervir nos contratos. Assim como o Estado passa de Liberal para Social em meados do século XX o contrato passa de liberal para social.
Em tentativa de maior precisão conceitual, o contrato não passa de um modelo liberal para um social. A dogmática contratual, até hoje, de certa forma, é relutante em aceitar as modificações ocorridas na teoria contratual, dizendo que o contrato é ainda o mesmo do modelo liberal, ou seja, aquele modelo de contrato em que se tem o dogma da vontade. Por isso, a afirmação de boa parte dos estudiosos do direito contratual no sentido de que o seu conteúdo pouco modificou, permanecendo o que foi teorizado no século dezenove. Outra parte da dogmática do direito contratual, afirma que o direito contratual está em crise ou que, hoje, temos a morte do contrato, já que é impossível estabelecer outro modelo contratual do que o liberal.
“Face a estas objectivas (sic) e radicais transformações, existem, em geral, dois modos de análise, dois processos intelectuais mais frequentemente (sic) empregues no contexto de ideologias jurídicas de índole conservadora, que, indubitavelemente, precludem – consciente ou inconscientemente – a possibilidade de captar o seu sentido e a sua dimensão real. Simplificando, o primeiro consiste em negar que aquelas modificações se tenham verificado ou tenham sido profundas; por outras palavras, em fingir que o contrato e do direito dos contratos são, hoje, substancialmente idênticos ao que eram no século dezanove (sic): um tipo de análise que é causa e, ao mesmo tempo, efeito de uma certa incorreção das teorias e dos conceitos jurídicos, por sua vez coincidente com o tendencial tradicionalismo dos juristas, com a sua relutância e a sua lentidão na tomada de consciência do que é novo. O segundo processo- aparentemente oposto, mas na realidade radicado numa mesma atitude de misoneísmo e de <<laudatio temporis acti>>- consiste, ao invés, em lamentar que a teoria e a praxe moderna do direito contratual assinalem uma inversão completa das concepções e dos valores dominantes no passado: hoje – lamentam-se – a vontade dos contratantes já não conta, e uma vez que essa vontade se identifica com a essência do contrato, retiram conclusões, em termos de crise, de declínio, ou até de <morte>> do próprio conceito de contrato, de extinção da liberdade de contratar e do papel da autonomia privada; e muito frequentemente (sic) o fenômeno, assim delineado, encontra-se articulado – segundo relações de causa e efeito – com um mais geral processo de <<decadência do indivíduo>>, de progressiva erosão da sua liberdade e da sua autonomia, por força das exigências sociais, das razões da coletividade.” (ROPPO, 2009, p. 295 e 296)
O que se quer dizer, portanto, é que a dogmática do direito contratual é relutante em aceitas as modificações ocorridas nos contratos. Assim, Roppo (2009) afirma que no intuito de manter o dogma da vontade alguns afirmam que o contrato pouco modificou, ainda sendo a vontade a sua fonte primária. E outros, saudosistas dessa doutrina – do dogma da vontade intangível – afirmam não ser possível um contrato sem vontade e que as mudanças havidas no direito contratual a limita de tal maneira que a vontade deixa de existir. Nesse ponto de vista o que se tem é a morte ou o declínio do contrato. Aceitar a evolução do contrato, ou seja, que ele passe a um novo modelo é romper com o dogma da vontade intangível, mas isso não quer dizer, necessariamente, a morte ou o declínio do contrato, mas sim a morte ou o declínio do contrato naquela perspectiva passada, na qual, a vontade das partes era intangível. No âmbito dos contratos pelo visto acima, ainda, se discute a transição de um modelo liberal para um modelo social de contrato, pouco se trás do que poderia ser um modelo democrático de contrato.
Hoje, os contratos são objetivados, massificados, standartizados, despersonalizados, em contraponto àquele modelo de contrato pessoalizado. Novas figuras contratuais surgem: contratos por adesão, contratos necessários, todos fenômenos, em que a teoria da autonomia da vontade, ponto neufrágico, da teoria contratual liberal, sofre grandes modificações. Outro fenômeno, o desenvolvimento dos meios de comunicação, em especial, da publicidade, interfere na ideologia da vontade livre. A publicidade hoje determina, em muito, a vontade e a necessidade de cada indivíduo em contratar, ou ter ou não ter algo.
Pelo modelo Social de Estado, como se introduziu, anteriormente, os contratos passaram a serem dirigidos pelo Estado. Surgem direitos novos, como os dos consumidores, no qual, os contratos passam a serem amplamente regulados pelo Estado. Assim, novos preceitos passam a permear a dogmática contratual, com a justiça contratual, a função social dos contratos e a boa-fé objetiva, todos como limites para a autonomia da vontade.
Para Cláudia Lima Marques (2006) no modelo social de contratos se preocupa mais com os efeitos oriundos deste do que com o momento da manifestação de vontade (acordo de vontades). Em contraponto, no modelo liberal de contrato se procura mais com o momento da manifestação da vontade do que com seus efeitos. Assim, no modelo social de contrato, a liberdade das partes de regularem os efeitos dos contratos é limitada pela a própria lei, em função de um interesse social.
“[…] mas o espaço reservado para que os particulares auto-regulem suas relações será reduzido por normas imperativas, como as do próprio Código de defesa do consumidor. É uma nova concepção de contrato no Estado social, em que a vontade perde a condição de elemento nuclear, surgindo em seu lugar elemento estranho às partes, mas básico para a sociedade como um todo: o interesse social.” (MARQUES, 2006, p. 211)
Deste modo, portanto, se no modelo liberal de contrato o ponto central da teoria era a vontade, no modelo social passa a ser o interesse social.
O direito civil, como um todo, sofre um processo de publicização de suas normas que eram eminentemente privadas. A efetivação de políticas públicas atinge, sobretudo, o direito contratual, fonte antes, intocável da autonomia da vontade.
Contudo, em um modelo democrático de contrato, a autonomia privada não pode ser tolhida em função de um interesse social, tão pouco, pode ser exercida sem levar em conta o interesse social. Em um possível modelo democrático de contrato as partes devem ter autonomia para decidirem o seu destino, mas sempre, respeitando a confiança legítima da contra-parte e respeitando o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim,
“[…] o contrato deve ser percebido como ato jurídico lícito, de repercussão pessoal e socioeconômica, que cria, modifica ou extingue relações dinâmicas de caráter patrimonial, formado pelo encontro de comportamentos típicos socialmente reconhecíveis, levados por duas ou mais pessoas, que, em regime de cooperação, visam atender suas necessidades e seus desejos, orientados pela preocupação fundamental de promoção da dignidade humana.” (FIUZA, RIBEIRO, ALMEIDA, 2009, p. 331 e 332)
Conforme Roppo (2009), portanto, observa-se que o contrato, ou qualquer instituto jurídico, possui conceito que muda ao longo do tempo. Assim, a cada momento ele se revelará em conformidade com a vivencia de uma certa sociedade em determinado espaço de tempo, não havendo um só modelo ou o modelo correto de contrato. Veja:
“[…] Sabemos que qualquer instituto jurídico, longe de ser governado por leis absolutas, está sujeito a um princípio de relatividade histórica: postular uma << essência>> do contrato (e encontrá-la, em concreto, no exercício incondicionadamente livre da vontade individual e dos impulsos subjectivos (sic) das partes) significa destacar, de modo arbitrário, uma fase historicamente condicionada e circunscrita da evolução do instituto contratual (admitindo- o que é duvidoso- que também aquela fase tenha correspondido perfeitamente à pureza do modelo). Mas isto é ideologia: a verdade é que não existe uma <<essência>> histórica do contrato; existe sim o contrato, na variedade das suas formas históricas e das suas concretas transformações.” (ROPPO, 2009, p. 347 3 348)
Deste modo, em processo de síntese, o modelo democrático de contrato deve estar em conformidade com o período histórico que se vive. Ainda, nesse processo de síntese não se pode admitir que a vontade seja intangível ou mesmo que a essência do contrato seja o interesse social. O que se pode afirmar até o momento é que o contrato, expressão da liberdade individual, não pode ser tolhida ou dirigida em razão do interesse coletivo, nem mesmo que pode ser exercida ao arbítrio do interesse social. Ambos, privados e Estado devem proteger e promover a dignidade humana. Deste modo, o contrato, no Estado democrático de direito, deve ser efetivado tendo em vista essa prerrogativa de proteção e promoção da dignidade humana.
6. Conclusão
Tentou-se compreender a evolução histórica e conceitual do direito contratual e traçar a tendência de sua aplicação no Estado Democrático de Direito, o que se denominou de “a busca pelo modelo democrático de contrato”.
Observou-se que a origem do atual modelo contratual adveio da construção teórica do jusracionalismo e do nascimento do capitalismo. A cada momento histórico o contrato passa a ter as suas características que correspondem a esse mesmo período.
No Estado Liberal compreendeu-se que o contrato é fruto da vontade das partes e, portanto, da liberdade individual dessas. Nesse período histórico, ao se tentar romper com as amarras do absolutismo, os dogmas da liberdade individual e da igualdade perante a lei foram o substrato para isso.
A propriedade, antes dominada pelo Estado, passa a ser um bem individual tutelado por este. Ela, a propriedade, era decorrência da garantia da liberdade individual e da igualdade perante a lei.
O contrato era o meio necessário para se assegurar a aquisição da propriedade, não devendo o Estado intervir no mesmo. Desta forma, caberia a este unicamente garantir que as vontades formadoras do contrato nascessem livres e que o contrato fosse cumprido a qualquer custo, já que esse era lei entre os que o consentiram.
Mas a sociedade desenvolveu e o capitalismo tomou grandes proporções. O mundo sofreu crises, tal como, as grandes guerras. No direito contratual o dogma da vontade intangível teve de ser mitigado para que a própria lógica do sistema não fosse frustrada.
Os contratos passam a ser uma forma de opressão para os economicamente mais fracos. As classes sociais mais baixas começam a reivindicar outros direitos, não se contentando, apenas, com a igualdade perante a lei. Neste momento, o paradigma estatal muda novamente, passa-se para o Estado Social. Nele o Estado passa a dirigir os contratos para que esses mantenham o equilíbrio. Passa-se a admitir a revisão de um contrato que passasse a ser desequilibrado. O que se tentou demonstrar é que o contrato no Estado Liberal era protegido dos vícios do consentimento, no Estado Social, além desses, o Estado passa a proteger os contratos que se tornassem desequilibrados até o seu cumprimento.
No Estado Social, ainda, surgem os microssistemas que tentam proteger os mais vulneráveis. No âmbito dos contratos, surge o microssitema do Consumidor que visa proteger o economicamente, tecnicamente e juridicamente mais fraco em suas contratações.
No Brasil, com a Constituição Federal de 1988, ficaram assentadas as bases para o Estado Democrático de Direito. Contudo, conforme se tentou demonstrar, no âmbito do direito contratual, estamos presos as amarras do Estado Social. Um novo modelo de contrato, o modelo democrático de contrato, deve ser buscado. Assim, nesse novo paradigma deve haver mútua conformação entre os princípios contratuais. Ou seja, em linhas gerais, tentou-se demonstrar que no Estado Liberal, pelo dogma da vontade, a autonomia privada se sobrepunha aos demais princípios contratuais; no Estado Social o interesse coletivo se sobrepunha ao interesse individual, isso, nos contratos, quer significar que a função social dos contratos sobrepunha à autonomia privada. Contudo, no Estado Democrático de Direito, em um processo de síntese, deve haver a mútua conformação entre todos os princípios contratuais, não podendo ser afirmado, a priori, que um sobrepõe ao outro.
Doutoranda em Direito Privado pela PUC Minas. Professora de Direito Civil e Empresarial da FACHI-FUNCESI. Coordenadora de TCC da FACHI-FUNCESI. Membro do Colegiado da FACHI-FUNCESI. Membro do NDE da FACHI-FUNCESI. Professora de Direito Civil da Nova Faculdade.
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