Resumo: Aborda-se no presente estudo a temática relativa aos impedimentos no âmbito dos processos administrativos, tendo em vista a atuação prévia de agentes públicos em procedimentos para os quais, em nova esfera de competência, detém o poder decisório, examinando-se a interpretação do Capítulo VII da Lei do Processo Administrativo Federal.
Palavras-chave: Processo administrativo. Lei do Processo Administrativo Federal. Impedimento. Interpretação. Alteração. Esfera de competência. Agente público. Art. 18 da Lei nº 9.784/1999. Rol taxativo. Impossibilidade de aplicação analógica do art. 134, III, do Código de Processo Civil.
Sumário: I – Introdução. II – As duas correntes existentes sobre a aplicação analógica do art. 134, III, do Código de Processo Civil, aos processos administrativos. III – A exegese do art. 18 da Lei de Processo Administrativo Federal. IV – Conclusão.
I. INTRODUÇÃO.
Trata-se de estudo acerca da aplicação do art. 134, III, do Código de Processo Civil (“CPC”)[1], aos processos administrativos, no sentido de se verificar se um mesmo agente público, que já tenha atuado em determinado feito, estaria impedido de se manifestar ou decidir o mesmo processo, já em outra esfera de competência.
II. AS DUAS CORRENTES EXISTENTES SOBRE A APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 134, III, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, AOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS.
A questão jurídica a ser enfrentada diz respeito à sistemática normativa dos impedimentos previstos para o servidor ou autoridade administrativa atuarem em processos administrativos, sobretudo no que concerne à aplicação por analogia do impedimento contido no art. 134, III, do CPC[2].
Para isso, impõe-se verificar, inicialmente, o que traçou a Lei de Processo Administrativo (“LPA”) – Lei nº 9.784/1999, acerca das hipóteses expressas de impedimento. Confira-se:
“Art. 18. É impedido de atuar em processo administrativo o servidor ou autoridade que:
I – tenha interesse direto ou indireto na matéria;
II – tenha participado ou venha a participar como perito, testemunha ou representante, ou se tais situações ocorrem quanto ao cônjuge, companheiro ou parente e afins até o terceiro grau;
III – esteja litigando judicial ou administrativamente com o interessado ou respectivo cônjuge ou companheiro.”
Nota-se, com esse rol, que o legislador objetivou eliminar qualquer situação capaz de facilitar que interesses diversos do público possam nortear a atuação do agente público. Pretendeu-se, pois, com isso, coibir o desvio de poder, assim entendido como “a modalidade de abuso em que o agente busca alcançar fim diverso daquele que a lei lhe permitiu…”[3]
Depreende-se, entretanto, da leitura do dispositivo acima transcrito, que não fora incluído, nesse rol, hipótese equivalente àquela contida no art. 134, III, do CPC, de modo a abranger, dentre os casos de impedimento, a atuação de administrador em processos administrativos anteriormente decididos por ele mesmo, em instâncias inferiores.
Em torno da possibilidade legal de aplicação, por analogia, daquele dispositivo à LPA, bem como da definição de se tratar, o art. 18 dessa Lei, de enumeração meramente exemplificativa, está a controvérsia a ser analisada.
A partir do estudo do tema, verificou-se a existência de duas correntes distintas: a primeira, que reconhece a incidência do art. 134, III, desse Código, nos processos regidos pela LPA, com fundamento na compreensão de que se trata de rol puramente exemplificativo; a segunda, que entende ser o art. 18 da LPA um rol exaustivo para os casos de impedimentos a serem analisados no âmbito dos processos administrativos, refutando, portanto, a aplicação analógica do CPC ao caso.
Sobre cada uma delas, passa-se a expor.
(a) 1a Corrente: Da aplicação analógica do art. 134, III, do CPC, como hipótese de impedimento de atuação dos agentes públicos em processos administrativos subordinados à LPA.
A corrente doutrinária ora comentada se fundamenta em interpretação segundo a qual é necessário conferir maior eficácia ao princípio da imparcialidade, esculpido no art. 37 da Constituição da República como um dos pilares da Administração Pública.
Para além das hipóteses expressamente descritas na legislação, a referida vertente doutrinária entende existir outras situações geradoras de proibição objetiva da atuação de agentes públicos em processos administrativos. Com esse propósito, sustentam ser possível a aplicação analógica, no âmbito da Administração Pública, de hipóteses de impedimento projetadas para outros subsistemas jurídicos, a exemplo dos casos de proibição do exercício da função jurisdicional previstas no Código de Processo Civil (CPC) e no Código de Processo Penal (CPP), ambos atinentes à função típica do Poder Judiciário. Uma situação que ilustra tal emprego de analogia é a interpretação consoante a qual também os agentes públicos estão impedidos de atuarem em processos administrativos nos quais já tenham decidido em instâncias inferiores, em evidente paralelo com as vedações aplicáveis aos juízes no exercício de suas funções em processos contenciosos ou voluntários, nos termos do art. 134, III, do CPC.
Na seara do Poder Judiciário, último refúgio de que se pode socorrer o cidadão frente a ameaças de lesão a direito seu, a proibição contida no art. 134, III, do CPC, é justificada pela presunção de que, uma vez estabelecido um juízo de valor acerca de determinado caso concreto, o julgador originário tenderia sempre a manter a sua decisão, caso chamado a decidir novamente o mesmo processo. Trata-se, portanto, de uma extrema cautela adotada pelo legislador para o processo judicial, cuja decisão final produzirá a coisa julgada, que restará imutável entre as partes, e inatacável pelo Poder Legislativo, em virtude de expressa garantia constitucional (art. 5º, XXIV, da Constituição da República).
A despeito de não ser recorrente o exame minucioso do tema no campo do Direito Administrativo, a corrente doutrinária da aplicação analógica de hipóteses de impedimento encontra amparo na lição de Egon Bockmann Moreira:
“As previsões relativas ao impedimento e à suspeição não podem ser tidas por exaustivas. A Lei nº 9.784/1999 enumera exemplificativamente casos-limite e torna viável a aplicação subsidiária especialmente do Código de Processo Civil. As regras processuais devem ser compreendidas à luz da máxima efetividade dos princípios constitucionais da imparcialidade e da impessoalidade (moralidade administrativa).
Por exemplo, se o agente administrativo antecipa publicamente o resultado do processo (antes de sua instalação ou durante seu desenvolvimento), nítida é a suspeição para a condução da causa e para o julgamento final”.[4] (grifou-se)
Também Sergio Ferraz e Adilson Abreu Dallari aderem à linha doutrinária ora resenhada. Confira-se:
“Na dicção da Lei 9.784/1999, está impedido de atuar no processo administrativo o agente público que: (…)
O elenco supra nos parece acanhado, todavia. E como se trata, na matéria, de implementação de princípio constitucional expresso (CF, art. 37, caput: princípio da impessoalidade), franqueada está ao intérprete e ao julgador a integração supletiva do comando legal em questão. Dessa forma, por se identificar in casu a mesma razão de ser, temos também por impedido no processo administrativo, para funcionar como agente decisório, o servidor:
(a) que conheceu do processo em primeiro grau (“conhecer”, aqui, significa “participar”, “fiscalizar”, “dirigir”, “supervisionar o trâmite processual”; ou ter competência para qualquer dessas atividades, ainda quando não as tenha de fato exercido);
(b) quando no processo figurar, como parte ou advogado, seu cônjuge, parente consangüíneo ou afim (CPC, art. 134, IV e V);
(c) quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica parte no processo (CPC, art. 134, VI).[5]”
Importa observar, por outro lado, que inexiste qualquer disposição a respeito da aplicação analógica do CPC para a condução dos processos administrativos na Administração Pública Federal como um todo, embora o mesmo não se passe nos processos instaurados no âmbito do CADE, por força do art. 115 da Lei nº 12.529, de 2011.
Nada obstante a plausibilidade da corrente doutrinária ora comentada, como será demonstrado adiante, não é essa a vertente doutrinária que se escora nos mais sólidos fundamentos, e tampouco é aquela que encontra guarida nas reiteradas decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
(b) 2a Corrente: Do caráter taxativo das hipóteses de impedimento previstas no art. 18 da LPA e do cunho exemplificativo das situações de suspeição antevistas no mesmo diploma legal.
Antes de adentrar no ponto específico do cunho taxativo das hipóteses de impedimento previstas no art. 18 da LPA, mostra-se oportuno lançar luz sobre uma questão prejudicial ao deslinde do caso posto a exame: o conceito de jurisdição.
No início do século XX, o doutrinador italiano Giuseppe Chiovenda desenvolveu sua teoria de jurisdição, que inspirou profundamente o direito processual brasileiro. Para Chiovenda, a jurisdição consiste na atuação da lei mediante a substituição da atividade alheia pela atividade de órgãos públicos.[6]
Seguindo a esteira do jurista italiano, Grinover, Cintra e Dinamarco sustentam que:
“Exercendo a jurisdição, o Estado substitui, com uma atividade sua, as atividades daqueles que estão envolvidos no conflito trazido à apreciação. Não cumpre a nenhuma das partes interessadas dizer definitivamente se a razão está com ela própria ou com a outra; nem pode, senão excepcionalmente, quem tem uma pretensão, invadir a esfera jurídica alheia para satisfazer-se. A única atividade admitida pela lei quando surge o conflito é, como vimos, a do Estado que substitui a das partes.”[7]
Justamente por exercer a atividade de substituição das vontades imiscuídas no conflito sob apreciação (vontades necessariamente parciais, uma vez que sustentadas pelas correspondentes partes processuais), é que o Estado, no desempenho de sua função jurisdicional, deve perseguir a absoluta imparcialidade. A essa conclusão chegou Chiovenda, ao afirmar que a função jurisdicional apenas pode ser devidamente exercida se confiada a órgãos autônomos e independentes, capazes de aplicar a lei ao caso concreto segundo sua própria convicção e sem quaisquer interferências externas.[8]
Da mesma forma, Reis Friede explica que o “caráter de imparcialidade – qualidade de imparcial (in + parcial) Adj. ´que julga desapaixonadamente; reto, justo´; vd. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira in ´Novo Dicionário da Língua Portuguesa´2a ed. Ed. Nova Fronteira 1986, p. 920 – do julgador (pessoa física do Juiz), assim como a de seus auxiliares (…), desponta como condição sine qua non para o legítimo exercício da atividade jurisdicional, considerando-se que o Estado-Juiz coloca-se entre as partes em litígio e, sobretudo, acima delas, objetivando a solução final do conflito de interesses originário, – sem, em nenhum momento, propender para qualquer das cousas -, visando, em última instância, não só a realização do direito objetivo material (…), mas fundamentalmente a preservação da ordem jurídica – e, em sua extensão, a necessária credibilidade – e, por conseqüência, a imposição da segurança das relações sócio-político-econômicas, como bem assim, a própria paz social”.[9]
Visto que o exercício da função jurisdicional, por suas características peculiares, exige a imposição de rigorosos critérios na busca pela absoluta imparcialidade, cumpre investigar a distinção entre jurisdição e atividade administrativa, com especial enfoque no ordenamento jurídico brasileiro.
Para Chiovenda, a atividade administrativa corresponde ao poder conferido pela lei à Administração, em nome do bem público, capaz de ser exercido prontamente, independentemente, portanto, da participação do Poder Judiciário. O jurista italiano, contudo, adverte que o conhecimento, processamento e julgamento das impugnações dos cidadãos ao exercício da atividade administrativa varia conforme seja estruturada a função jurisdicional do Estado em questão. Grosso modo, dentre os diversos sistemas de organização jurisdicional possíveis, Chiovenda distingue o sistema de jurisdição única – atribuição da competência jurisdicional a apenas um órgão ordinário – do sistema pelo qual à própria Administração Pública compete conhecer, julgar e processar, em última instância, as contendas envolvendo a Administração e cidadãos.[10]
O Brasil tem, tradicionalmente, adotado o sistema de jurisdição única, pelo qual sequer a lei pode excluir do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, da Constituição da República). O Poder Judiciário é, portanto, o único Poder a quem o ordenamento jurídico brasileiro atribuiu o exercício da atividade jurisdicional, tendo sido regulado constitucionalmente de forma diferenciada em relação ao demais Poderes.
Sobre esse tema, e fazendo menção a Konrad Hesse, Gilmar Mendes anota que “não é o fato de o Judiciário aplicar o Direito que o distingue, uma vez que se cuida de afazer que, de forma mais ou menos intensa, é levado a efeito pelos demais órgãos estatais, especialmente pelos da Administração”. Em seguida arremata que “o que caracteriza a atividade jurisdicional é a prolação de decisão autônoma, de forma autorizada, e por isso, vinculante, em casos de direito contestados ou lesados”.[11]
Nessa toada, o mesmo jurista complementa que a especial regulação constitucional das garantias dos magistrados, em particular, do Poder Judiciário, em geral, representa condições indispensáveis para que esse Poder exerça, de forma efetiva, o último controle da atividade estatal, seja da Administração (Poder Executivo) ou do Poder Legislativo, de modo a livrar o Juiz e o Judiciário das interferências nocivas dos demais Poderes.[12]
É justamente desse peculiar regramento constitucional sobre o Poder Judiciário que decorre interpretação consoante a qual a atividade administrativa não está submetida aos mesmos níveis de rigor a que está sujeita a função jurisdicional. Sobre o grau de imparcialidade a que deve respeito a Administração Pública, Chiovenda, recepcionado pela doutrina de Reis Friede[13], afirmou que “há incompatibilidade psicológica ainda maior entre a tarefa do administrador e a jurisdicional, porque o administrador pode ser dominado pela consideração do interesse do Estado”[14]. Para o doutrinador italiano, “a atividade do juiz é sempre uma atividade imparcial, enquanto que a atividade administrativa é sempre inspirada pela consideração unilateral do interesse público”[15]. Nessa medida, “predomina na administração o juízo sobre atividade própria, e no juiz o juízo sobre atividade alheia”[16].
Existe na atividade administrativa, portanto, uma característica de intrínseca parcialidade, sempre em prol do interesse público – cuja concretização compete à Administração –, que é essencialmente incompatível com patamar de imparcialidade que o Poder Judiciário está obrigado a alcançar. Essa também é a opinião de Marcato:
“Nessa medida, a distinção entre as atividades jurisdicional e administrativa repousa no caráter parcial ou imparcial do órgão que exerce uma e outra: se apenas uma parte, aquela titular do interesse em conflito com o interesse da administração, está diante do órgão estatal (o qual, por sua vez, pertence à administração cujo interesse conflita com o do particular), tudo se resolve no campo do recurso hierárquico – e administrativo, portanto -, visto que uma parte se dirige à outra, embora o faça perante órgão hierarquicamente superior àquele que praticou o ato cujo reexame é pretendido; se, ao reverso, diante do órgão estatal encontram-se duas partes, e ele se apresenta como uma individualidade independente daquela da administração pública – a qual, no entanto, se posiciona diante dele também como parte -, estar-se-á no campo do próprio e verdadeiro juízo, caracterizado pelo fato de que, nele, uma parte (contra a outra) dirige-se ao juiz a fim de que faça atuar, em relação a ela, o direito objetivo.”[17]
De igual modo, Carvalho Filho aponta:
“O que é necessário, isto sim, é distinguir alguns pontos fundamentais que marcam cada tipo de processo. O processo judicial encerra o exercício de função jurisdicional e sempre há conflito de interesses, ao passo que o processo administrativo implica o desempenho de atividade administrativa, nem sempre se verificando qualquer tipo de conflito. No processo judicial, a relação é trilateral, porque além do Estado-juiz, a quem as partes solicitam a tutela jurisdicional, nela figuram também a parte autora e a parte ré. No processo administrativo, a relação é bilateral, porque, quando há conflito, de um lado está o particular e de outro o Estado, a este incumbido decidir a questão; o Estado é parte e juiz. Por fim, o processo judicial vai culminar numa decisão que pode se tornar imutável e definitiva, ao passo que no processo administrativo as decisões ainda poderão ser hostilizadas no Poder Judiciário.”[18]
Como já se percebe, diferentemente da corrente doutrinária defensora do emprego de analogia, é forçoso evidenciar que a ora resenhada vertente de pensamento jurídico possui um alicerce teórico comparativamente mais profundo, capaz de emprestar maior firmeza à construção jurídica erguida neste estudo.
Nesses termos, delimitado o conceito de jurisdição e demonstrado o pressuposto de que a atividade jurisdicional brasileira é exercida apenas pelo Poder Judiciário, essencialmente distinta da atividade administrativa, passa-se a ingressar, agora diretamente, na questão da interpretação das hipóteses de impedimento aplicáveis à Administração Pública, segundo a doutrina que as entende taxativas, na forma da LPA.
Para essa vertente interpretativa, o dado característico do impedimento é o de que os fatos impeditivos, idôneos a retirar a capacidade subjetiva do administrador, são de natureza objetiva. As hipóteses de impedimento, pois, referem-se a situações previamente imaginadas pelo legislador como geradoras de presunção absoluta de parcialidade do agente público. Assim sendo, deve existir lei anterior que as preveja, em rol taxativo. Dessa opinião compartilha Carvalho Filho[19]:
“Registre-se que as situações que constituem os impedimentos não acarretariam, em tese, a incapacidade do administrador, como sucede também com o juiz, que, em certas ocasiões, poderia ter imparcialidade para julgar. Não obstante, a lei prefere não correr o risco e enumera expressamente os casos que, pela só ocorrência, rendem ensejo ao impedimento do agente.
Tais casos estão arrolados no art. 18 da lei.”
Seguindo tais passos, no âmbito dos processos administrativos não se poderia estender os casos de impedimento para além daqueles já elencados no art. 18 da LPA – ou em eventuais limitações fixadas pela própria Administração, por meio de regimentos internos de seus órgãos ou entes públicos –, assim como, em se tratando de processos judiciais, regidos pelo CPC, somente se aplicaria o correspondente art. 134.
III – A EXEGESE DO ART. 18 DA LEI DE PROCESSO ADMINISTRATIVO FEDERAL.
Igualmente, a exegese pura da norma regente dos impedimentos na esfera administrativa conduz ao raciocino de que a hipótese versada no art. 134, III, do CPC não é incidente no âmbito dos processos administrativos. A uma, porque se trata a LPA de norma posterior ao CPC e específica em relação a ele, logo, o rol do art. 18 da Lei seria efetivamente exaustivo. A duas, porque, em se considerando esses dois fatores, concluir-se-ia que, ao legislador infraconstitucional, no momento de elaboração da LPA, lhe foi franqueado incluir, entre seus dispositivos, o teor do art. 134, III, do CPC, e sua opção foi por não fazê-lo, o que impediria uma interpretação ampliativa nesse momento.
Essa é a compreensão da matéria exposta por Iuri Mattos de Carvalho, consoante se extrai do trecho abaixo reproduzido:
“”(…) Dentre as características das competências, Celso Antônio Bandeira de Mello lembra que seu exercício é obrigatório por parte do agente e que são irrenunciáveis. Dessas características advém que o não exercício da competência por parte do agente é uma exceção, que deve ser prevista em lei. Este entendimento é confirmado pela redação da Lei nº 9.784/99 quando afirma que:
Art. 11. A competência é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avocação, legalmente admitidos.
E mais, afirma no inc. II do parágrafo único do art. 2º, da referida lei, que é critério do processo administrativo o “atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei”.
Portanto, não se justificam o uso de analogias, e o elenco que indica as causas de impedimento e suspeição deve ser considerado taxativo. Assim entendemos porque o elenco trata de exceções ao exercício normal de competência, que, em regra, é obrigatório e irrenunciável. Além disso, o ato ainda não foi realizado e poderia ser produzido sem prejuízo das exigências de impessoalidade”[20]. (grifou-se)
Para tanto, mister examinar o alcance do princípio da impessoalidade, aplicável à Administração Pública, por força do art. 37, caput, da Constituição Federal[21], que reflete a própria aplicação do princípio da isonomia, na medida em que se espera que todos sejam tratados igualmente perante a lei e, por evidente, perante a Administração[22].
O mesmo Iuri Mattos de Carvalho traça ainda duas acepções distintas para a compreensão do princípio da impessoalidade. Em um primeiro sentido, estaria relacionado à proibição de que a atuação do agente público estivesse ligada a interesses pessoais e não pautada pela finalidade pública. Em um segundo, ao fato de que a atividade administrativa deve ser imputada ao ente público cuja vontade foi manifestada pelo agente que o produziu e não a ele próprio[23], na exata incidência da teoria do órgão, inspirada por Otto Gierke[24], segundo reproduzida pelo mencionado autor.[25]
Nesse sentido, o mero fato de ter o agente público tomado conhecimento de uma situação jurídica que resultou em determinado processo administrativo sobre o qual já tenha se manifestado decisivamente não afetaria, em um primeiro momento, a proteção ao administrado conferida pelo princípio da impessoalidade, caso esse mesmo agente voltasse a decidir sobre o mesmo processo. Por evidente que essa proposição somente se sustentaria a partir da intelecção apresentada acima quanto ao conteúdo do princípio, sobretudo no que diz respeito a não ocorrência de quaisquer dos elementos que fazem supor o desvio de finalidade.
Vale lembrar que as hipóteses normativas do art. 18 da LPA buscam refletir exatamente situações nas quais a presunção de parcialidade é objetiva, podendo todos os incisos ser resumidos no inciso I, que impede o servidor de atuar em processo administrativo no qual tenha interesse direto ou indireto na matéria.
Quanto à necessidade de que as hipóteses de impedimento de juízes, entendimento também aplicável àquelas previstas para os agentes públicos, estejam previstas expressamente em lei para serem invocadas, se manifestou o Supremo Tribunal Federal, senão veja-se:
“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSUAL CIVIL. IMPEDIMENTO. HIPÓTESES TAXATIVAS. PRESUNÇÃO ABSOLUTA. ART. 134, I A VI, DO CPC. INOCORRÊNCIA. SUSPEIÇÃO. PRESUNÇÃO RELATIVA. PRECLUSÃO. POSSIBILIDADE. ART. 138, § 1º, DO CPC. ADMINISTRATIVO. TÍTULOS DA DÍVIDA AGRÁRIA – TDA. RESGATE. PARCELA REMANESCENTE. MANDADO DE SEGURANÇA. INADEQUAÇÃO DA VIA. SÚMULA 269. 1. As causas de impedimento do magistrado estão enumeradas taxativamente nos incisos I a VI do art. 134 do CPC. Enquadrando-se o julgador em qualquer dessas hipóteses, há presunção absoluta de parcialidade, que pode ser argüida em qualquer grau de jurisdição. 2. Nas hipóteses de suspeição há presunção relativa de parcialidade, sujeita à preclusão. Se o interessado deixa de argüi-la na primeira oportunidade em que lhe couber falar nos autos [art. 138, § 1º do CPC], convalida-se o vício, tendo-se por imparcial o magistrado. 3. O mandado de segurança não constitui instrumento hábil a pleitear parcelas remanescentes de Títulos da Dívida Agrária já resgatados, vez que não substitui a ação de cobrança [Súmula 269]. 4. Agravo regimental a que se nega provimento”. (grifou-se) STF – RMS-AgR 24613/DF – DISTRITO FEDERAL AG.REG.NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Relator(a): Min. EROS GRAU Julgamento: 22/06/2005 Órgão Julgador: Primeira Turma
O Ministro Rezek, no julgamento do Hábeas Corpus no 64.574/MG (1987), já asseverava, de maneira lacônica, porém enfática, o entendimento do STF sobre a matéria:
“(…) O rol de impedimentos do estatuto adjetivo diz dos casos em que se excepciona a jurisdição de quem nela regularmente investido. De tal modo, as regras que dispõem sobre impedimento têm caráter inflexível, não admitindo extensões, sobretudo por recurso à analogia. (…)”
Seguindo essa mesma linha, o Ministro Celso de Melo, em sede da Ação Originária no 993QO/DF, outra vez deixou evidente o posicionamento do STF pela taxatividade das hipóteses de impedimento (2003):
“Cumpre enfatizar, neste ponto, que o interesse, direto ou indireto, a que alude o art. 102, I, “n” da Constituição corresponde à existência concreta de situações caracterizadoras de impedimento (CPC, art. 134; CPP art. 252) ou de suspeição (CPC art. 135; CPP art. 254), hipóteses que são sempre taxativas (inocorrentes porém, no caso sob análise), bastando, para demonstrar tal asserção, o exame do próprio conteúdo normativo das regras processuais em questão, que definem, em “numerus clausus” as hipóteses de inabilitação processual dos magistrados.”
Em consonância com o STF, também o Superior Tribunal de Justiça já sedimentou jurisprudência favorável à taxatividade das hipóteses de impedimento, tanto para os processos judiciais como para os administrativos. É o que se depreende dos julgados abaixo colacionados:
“ADMINISTRATIVO. NOTÁRIO. PERDA DA DELEGAÇÃO. PROCESSO DISCIPLINAR. NULIDADE. PREJUÍZO. INOCORRÊNCIA. IMPEDIMENTO DE MAGISTRADOS. INEXISTÊNCIA. 1. "O Superior Tribunal de Justiça adotou posicionamento no sentido de que a regra de impedimento prevista no art. 134, III, do CPC, somente se aplica nos casos em que o magistrado tenha participado em outro grau de jurisdição em um mesmo processo judicial, e não quando a sua participação anterior tenha ocorrido na esfera administrativa." (RMS 18.099/PR, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 12.06.2006, p. 500). 2. A declaração da nulidade dos atos processuais depende da demonstração da existência de prejuízo à parte interessada, conforme dispõem os arts. 249, §1º, do CPC e 563 do CPP. 3. Não configuração de cerceamento de defesa, pois existentes nos autos certidões atestando a intimação do advogado do impetrante para os atos do processo administrativo. 4. Recurso ordinário a que se nega provimento.” (ROMS 200401265452, TEORI ALBINO ZAVASCKI, STJ – PRIMEIRA TURMA, 12/04/2007)
“ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DEMISSÃO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. NULIDADES. NÃO OCORRÊNCIA.
1.No exame de recurso especial, não se conhece de matéria que não foi objeto de apreciação pelo Tribunal de origem, inexistente, assim, o necessário prequestionamento.
2. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que a portaria inaugural do procedimento administrativo prescinde da descrição detalhada de fatos, da acusação imputada e da menção aos dispositivos legais considerados violados.
3. Assentando-se o acórdão recorrido em mais de um fundamento, suficiente, por si só, para manter a decisão, inviável o conhecimento do recurso se a parte deixar de infirmar um deles.(Súmula nº 283/STF)
4. A ultrapassagem do prazo para a conclusão do processo administrativo disciplinar não caracteriza nulidade capaz de invalidar o procedimento, principalmente porque não demonstrado o prejuízo. Precedentes.
5. "O art. 168 da Lei nº 8.112/1990 exige motivação para a aplicação da penalidade disciplinar a servidor público. Se a autoridade julgadora acolhe o relatório da comissão processante, devidamente fundamentado, encontra-se preenchida a exigência legal" (MS nº 10.470/DF).
6. Não configura o impedimento previsto no artigo 18 da Lei nº 9.784/1999 quando a atuação de quem se tem por impedido decorre do estrito cumprimento de um dever legal e não evidencia qualquer interesse direto ou indireto no deslinde da matéria.
7. Recurso especial a que se nega provimento”. (grifou-se) (REsp 585.156/RN, Rel. Ministro PAULO GALLOTTI, SEXTA TURMA, julgado em 02/10/2008, DJe 24/11/2008)
Do voto do Ministro Napoleão Maia, ao relatar o Mandado de Segurança no 13.986/DF (2010), extrai-se ilustrativa explanação sobre o caráter taxativo das hipóteses de impedimento em processo administrativo:
“10.Com efeito, as normas de competência não podem ser fundadas em suposições, devendo sua previsão, mormente quando restritiva, constar em termos precisos e rigorosos, sob pena de gerar manipulações através de critérios que não sejam estritamente formais, gerando incertezas e inseguranças. Desta feita, caso a mens legis do dispositivo fosse impedir a convocação dos mesmos Servidores para integrar a nova Comissão, tal restrição teria de estar expressamente consignada no dispositivo legal, inclusive por não haver justificativa para tamanho formalismo.
11.Ademais, a salvaguarda da imparcialidade constitui a razão de ser de uma série de institutos, a fim de que o processo seja conduzido e apreciado sem quaisquer pressões ou influências, sujeitando-se apenas ao ordenamento jurídico, entre os quais desponta a previsão de suspeição⁄impedimento dos membros, que foi regularmente atendido, como visto, na hipótese em questão.”
Ao final, verifica-se que, tanto em razão de valiosos argumentos doutrinários como por firmes e homogêneas decisões jurisprudenciais, as hipóteses de impedimento aplicáveis à Administração Pública não devem abranger, sob pretexto de emprego analógico, as situações desenhadas pelo legislador como proibitivas do exercício imparcial da função jurisdicional. Ao contrário, por ser essencialmente diferente, o processo no âmbito da Administração Pública é regulado por legislação específica, destinada a conferir ao processo administrativo o grau de imparcialidade necessário e adequado ao cumprimento do art. 37 da Constituição Federal, que não se deve confundir com a imparcialidade do magistrado, regulada pelas leis de processo civil e penal.
Considerando tudo isso, não se vislumbra ilegalidade no fato de um mesmo agente público atuar em processos administrativos nos quais já tenha proferido decisão, lembrando que esse entendimento não impede o administrador de reproduzir o conteúdo do art. 134, III, do CPC, em seus próprios regulamentos ou normas de organização interna, assim como fez o Conselho de Contribuintes, consoante se extrai do precedente abaixo:
“PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. PRELIMINARES. DECADÊNCIA DA IMPETRAÇÃO. LEGITIMIDADE PASSIVA DO PRESIDENTE DO ÓRGÃO COLEGIADO. DISPENSÁVEL FORMAÇÃO DE LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. JULGAMENTO. CONSELHO DE CONTRIBUINTES. PARTICIPAÇÃO DO MESMO CONSELHEIRO EM TRÊS FASES DECISÓRIAS DO FEITO. IMPEDIMENTO. PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE. ANULAÇÃO DO VOTO. 1. O termo inicial da contagem do prazo de decadência está relacionado à ciência pela impetrante do julgamento da 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais quanto ao Pedido de Reexame por ela protocolizado. 2. Afasta-se a decadência prevista no art. 18 da Lei 1.533/1951, atual art. 23 da Lei 12.016/2009, se a impetrante não foi cientificada acerca do julgamento administrativo, o que não foi refutado pela autoridade impetrada. 3. A legitimidade passiva para compor mandado de segurança impetrado contra ato de órgão colegiado é do presidente do respectivo órgão. 4. Se não há defesa de direito próprio do membro do colegiado administrativo, dispensável a formação de litisconsórcio passivo necessário. 5. Considerando a participação do mesmo conselheiro em três fases decisórias do processo administrativo, impõe-se a anulação do seu voto proferido na última instância, por afronta ao Regimento Interno da Câmara Superior e ao princípio da imparcialidade. 6. Apelação e remessa oficial, tida por interposta, a que se nega provimento.” (grifou-se) (MAS 2000.3400.0459206, Rel (a) Des. MARIA DO CARMO CARDOSO, OITAVA TURMA, julgado em 27/11/2009; DJ 04/12/2009)
IV. CONCLUSÃO.
Pelo exposto, na esteira dos valiosos argumentos doutrinários e firmes e homogêneas decisões jurisprudenciais, conclui-se que a exegese pura da norma regente dos impedimentos, na esfera administrativa conduz ao raciocino de que a hipótese versada no art. 134, III, do CPC não é incidente no âmbito dos processos administrativos.
Procuradora Federal em atuação no Departamento de Consultoria e Assessoramento da Procuradoria Federal junto à Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Pós-graduada em Direito do Estado pela Universidade Cândido Mendes
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