A falácia da maioridade penal e o sistema penitenciário brasileiro

1. A maioridade

A atual onda de violência no Brasil, nomeadamente nos grandes centros urbanos e especificamente em São Paulo e Rio de Janeiro, reacendeu a discussão legal acerca da antecipação da maioridade penal, com ardorosos defensores de ambos os lados, uns sustentando a necessidade de recrudescimento da lei a fim de, com o maior rigor, desestimular o potencial infrator, e outros, imbuídos na defesa dos direitos humanos e destacando as deficiências de nosso sistema carcerário, rejeitando qualquer tipo de diminuição da idade penal.

Interessante notar que o Brasil tem buscado modelos legais no exterior desde os primórdios. Cabe recordar que a própria Constituição de 1891 foi largamente inspirada na dos EUA, de onde retiramos inclusive o nome “Estados Unidos do Brazil”, assim mesmo, com “z”. Estranhamente, não é o que ocorre agora. Em alguns países desenvolvidos, a legislação penal possui dispositivos criminais diferenciados para jovens na faixa etária acima da maioridade penal e até determinada idade (conforme o caso, até 18 anos, até 21 anos, até 25 anos etc.). Em Portugal, por exemplo, há um regime penal diferenciado para a faixa etária dos 16 anos (maioridade penal) até os 21 anos. Na França, há tribunais criminais especiais para menores entre 13 anos (maioridade penal) e 18 anos. Na Inglaterra, os jovens podem ser julgados como adultos, por Tribunais especiais, dependendo da gravidade do crime cometido. Ficam em estabelecimentos especiais até os 18 anos e cumprem o restante da eventual pena nas prisões regulares.

Os maiores detratores da diminuição costumam citar as agruras dos presos nas penitenciárias sempre lotadas e a falta de perspectiva de reintegração social do preso. É claro que são argumentos válidos, mas a falácia aqui contida é que a discussão não envolve a justeza ou não de nosso sistema prisional, e sim da capacidade e entendimento do menor no cometimento de delitos, este sim o fator essencial para a correta punibilidade. O que a idade penal visa estabelecer é justamente o limite entre o jovem relativamente capaz e o adulto. Na atual sociedade não podemos afirmar que jovens entre 16 e 18 anos não possuem o discernimento para a prática de delitos por vezes com meios cruéis e requintes de planejamento. Pensar de outra forma é admitir que a política brasileira de fato depende de beócios que podem eleger presidentes, deputados e senadores, mas não podem sequer dirigir automóveis, mais uma vez impedidos pela irresponsabilidade penal.

No caminho da evolução social, o jovem que pode escolher os destinos deste país também deve ser chamado à responsabilidade na esfera criminal. É de conhecimento comum que muitos dos jovens criminosos têm plena consciência de sua “imunidade” e a utilizam exatamente para se furtar dos feitos da lei, inclusive auxiliando os maiores no cometimento de crimes e mesmo assumindo a autoria dos mesmos, a fim de inocentar seus companheiros.

O sistema britânico pode ser considerado o mais avançado, e espelhar-se em seu exemplo não alteraria substancialmente o nosso, exceto pela continuidade da pena. Assim, o menor continuaria gozando de proteção especial até a maioridade, onde seria transferido para a prisão comum para cumprir o resto da pena. Cônscios de que haveria esta continuidade, este seria indubitavelmente um fator importante de dissuasão. Não há que discutir o acerto nesta transferência aos 18 anos, uma vez que hoje em dia, caso alguém cometa um crime no dia de sua maioridade responderá pelo sistema comum.

Assim, ao se adotar tal sistema, não se alteraria a maioridade, preservando o menor de ingressar à partida nas prisões comuns, mas os crimes de maior gravidade estenderiam seus efeitos para além da maioridade.

2. A pena de morte e o RDD

O segundo ponto é a ineficácia das prisões brasileiras em reeducar o detento, a fim de prepará-lo para uma reinserção social adequada. O próprio conceito de prisão já nasceu de forma errônea. Até há pouco tempo a prisão nada mais era que a antecâmara da pena de morte e, quando muito, uma sentença de morte lenta, mas certa, nas masmorras.

Não há prova cabal que trancafiar o ser humano por determinado período de tempo sirva de alguma forma para melhorá-lo e desestimulá-lo a deliquir novamente. Pelo contrário, no Brasil, a superlotação, a mistura entre presos perigosos e primários contribui sobremaneira para reduzir, senão eliminar, qualquer chance de recuperação, funcionando na verdade como verdadeiras “escolas do crime”. Atualmente, as facções criminosas organizam suas ações de dentro dos presídios, impondo suas ordens na sociedade com notável eficiência e coordenação, o que ilustra inegavelmente a falência do atual modelo prisional brasileiro.

Muitos apresentam como solução radical para redução da criminalidade a instauração da pena de morte, outra falácia, pelas razões que elencamos a seguir.

Primeiro, o Brasil, como membro da ONU e país democrático, é signatário de diversos tratados internacionais que determinam que um Estado que venha a abolir tal pena não poderá mais reinstituí-la. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em Dezembro de 1948 reconhece o direito de cada pessoa à vida, afirmando ainda que ninguém deverá ser sujeitado a tortura ou a tratamento ou castigo cruel, desumano e degradante. O Segundo Protocolo Facultativo para o Tratado Internacional de Direitos Civis e Políticos, que tem como objetivo a abolição da pena de morte e que foi adotado pela Assembléia Geral da ONU em 1989, defende a total abolição da pena de morte, permitindo mantê-la em tempo de guerra, desde que no momento da ratificação do protocolo se faça uma reserva nesse sentido.

O Sexto Protocolo da Convenção Européia sobre Direitos Humanos, adotado pelo Conselho da Europa em 1982, prevê a abolição da pena de morte em tempo de paz. O Protocolo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos para a Abolição da Pena de Morte, adotado pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos em 1990, pretende a total abolição da pena de morte. A pena de morte foi excluída dos castigos que o Tribunal Criminal Internacional estará autorizado a impor, mesmo tendo ele jurisdição em casos de crimes extremamente graves, como crimes contra a humanidade, incluindo genocídio e violação das leis de conflito armado. Foi também excluída pelo Conselho de segurança da ONU ao estabelecer o Tribunal Criminal Internacional para a Antiga Iugoslávia (1993) e o Tribunal Criminal Internacional para o Ruanda (1994).

Em segundo lugar, países que adotam a pena de morte mas que observam princípios democráticos como contraditório e a ampla defesa (caso dos EUA) transformam potenciais execuções em verdadeiros espetáculos de mídia, com recursos e mais recursos, que quase sempre redundam em comutação da pena, conferindo inclusive certa notoriedade para um criminoso que deveria ser rejeitado pela sociedade. Segundo a Anistia Internacional, em 1990, os processos de indiciados executados nos Estados Unidos duraram em média 7 anos e 11 meses. Por fim, e não menos importante, é que uma pena de morte mal aplicada não pode ser reparada. Um estudo da Universidade de Stanford demonstrou que 350 das condenações à morte, ao longo deste século, referiam-se a casos em que mais tarde se provou serem os condenados inocentes. Destes 350 inocentes, 25 foram executados. Dessa forma, o número reduzido de execuções e seu caráter excepcional não geram o esperado desestímulo à delinqüência, como esperado. Em comparando-se os números dos crimes de Estados americanos que aplicam a pena de morte com os demais, não há diferença significativa.

Nos EUA, a taxa de homicídios por 100.000 habitantes, em 1995, foi, pelo menos, quatro vezes maior do que aquela registrada em países da Europa Ocidental que não empregam esta punição. Embora os Estados Unidos estejam entre um número muito pequeno de países que condenam à morte jovens menores de 18 anos, relatório de seu Departamento de Justiça informou que , entre 1985 e 1991, o número de jovens presos, com 13 e 14 anos, acusados de homicídio, cresceu 140%. Entre jovens de 15 anos, o crescimento foi de 217%. Entre 1952 e 1967 a Califórnia executou, em média, seis infratores por ano e sua taxa de homicídios cresceu, no período, 10%. Entre 1967 e 1991 não houve execuções na Califórnia e a taxa de homicídios cresceu 4.8%.

Entretanto, trinta e cinco é o número de Estados norte-americanos a adotam: o Alabama, Colorado, Georgia, Kentuck, Missouri, New Hampshire, Carolina do Norte, Pensilvânia, Texas, Arizona, Connecticut, Idaho, Lousiana, Montana, New Jersey, Ohio, South Carolina, Utah, Arkansas, Delaware, Illinois, Maryland, Nebraska, Novo México, Oklahoma, Dakota do Sul, Virgínia, Califórnia, Florida, Indiana, Mississipi, Nevada, Oregon, Tennessee e Wyoming.  Bem inferior é o número de Estados que não adotam a pena de morte, dezesseis ao todo, que são: Alaska, Kansas, Michigan, Dakota do Norte, Vermont, Wisconsin, Hawai, Maine, Minessota, Porto Rico, West Virgínia, Iowa, Massachussets, New York, Rhode Island e Washington.

Além dos EUA, quase todos os países do Oriente Médio e Ásia, bem como Chile, Guatemala e Belize na América do Sul, e Romênia e Polônia na Europa, entre outros, prevêem a pena de morte em suas legislações. Outrossim, países que aplicam com certa eficiência a pena capital não são democráticos, e não observam as garantias legais e processuais mínimas, como a China, Iraque, Irã e a Arábia Saudita. Ao todo, 96 países ao redor do mundo aplicando a pena de morte. Em nenhum deles consta que a criminalidade esteja diminuindo drasticamente.

Por sua vez, também foram criados presídios de segurança máxima, destinados a detentos de alta periculosidade, onde direitos do preso como visitas íntimas, acesso a áreas abertas e comunicação com o exterior são severamente restringidos, têm sido acusados de inconstitucionais, porquanto seus métodos de isolamento seriam demasiado cruéis, no chamado regime disciplinar diferenciado.

3. Modificação do sistema

Pelo que foi visto acima, não é tarefa fácil ao jurista encontrar saídas viáveis e racionais para a criminalidade que grassa nosso país. Não podemos escusar os criminosos na miséria experimentada por parte deles ou pelo desmazelo com que a Justiça atua nos crimes políticos e de colarinho branco, pois isso seria desvalorizar a população de baixa renda que se recusa a recorrer ao crime como meio de vida. A miséria não é razão para o banditismo, mesmo porque na maioria dos crimes de rua, e mesmo no tráfico de drogas, o que se observa são jovens buscando o seu lugar em uma sociedade de consumo utilizando uma via rápida e perversa.

Desta feita, o principal fator de redução da criminalidade é o DESESTÍMULO da prática dos delitos, que passa pela melhoria do aparato policial e judicial para a prevenção, persecução e punição dos infratores. Ao se considerar a superlotação das prisões por todo o país, o criminoso comum tem sido capturado pela nossa polícia, com certa eficiência, mas padece por vezes de longos períodos de encarceramento sem julgamento, exatamente pela lentidão da Justiça.

O grande problema, pouco abordado pelos estudiosos do direito, consiste em avaliar que tipo de atividade pratica o prisioneiro dentro dos presídios, e em que isso pode contribuir para sua reeducação. É sabido que o trabalho intramuros é opcional, no qual o preso pode remir tempo de sua pena, e ainda obter alguma remuneração, mas a adesão ao trabalho facultativo é relativamente baixa, e normalmente entre presidiários de pouca periculosidade. Assim, os presos envolvidos de fato com crimes graves, facções organizadas e outros desfrutam de longo tempo de ócio, que tem sido utilizado no planejamento e execução de toda sorte de ações criminosas fora dos estabelecimentos. Além disso, oneram os cofres públicos com o custo de sua manutenção, para a qual em nada contribuem. O Censo Penitenciário de 1995 apresentava um custo mensal médio do preso no Brasil de R$ 415,69, em valores da época.

Tem-se então um paradoxo, onde o cidadão honesto e cumpridor de seus deveres encontra-se em situação de insegurança, e o Estado falha em cumprir seu mais básico dever, em assegurar a integridade física de seus cidadãos, ao passo que o criminoso, que dilapida o patrimônio alheio, público e privado, é sustentado indiretamente pelos tributos de suas vítimas.

Há que se estabelecer o trabalho obrigatório em qualquer estabelecimento prisional, seja para menores ou maiores, graduado de acordo com a gravidade da pena (pena maior = trabalho mais pesado e/ou por mais tempo). Se homem escorreito se vê obrigado a trabalhar, diuturnamente, para garantir o seu sustento, nada mais justo e certo que aquele que atenta contra a ordem social reparar seus atos com o trabalho, restaurando estradas, fachadas de prédios públicos dilapidados, limpando vias públicas, e poupando aos cofres do Estados preciosas quantias que poderão ser utilizadas em outras áreas mais carentes, como saúde e educação. O labor desestimularia o comportamento violento, o uso de drogas e a ação criminosa organizada. Não só, mas a certeza de trabalho forçado durante o cumprimento da pena tida como certo traria um sério fator de desestímulo ao infrator, porque como é sabido, o criminoso comum é normalmente movido pela idéia de que o crime é o caminho mais fácil para obter aquilo que deseja, principalmente em se tratando de bens materiais.

Conclusão

O trabalho obrigatório traria uma tríplice vantagem ao Estado e cidadãos de bem; o desestímulo efetivo do cometimento do crime pela certeza da pena de trabalho; a reparação do dano social pelo trabalho e a ocupação do tempo de ócio improdutivo; a desoneração dos cofres públicos na manutenção do preso.

É necessário que se interprete o art. 5º, XLVII, “c” de nossa Constituição de forma a excluir a proibição ao trabalho não voluntário do preso. A bem da verdade, o que a Carta Maior busca coibir foi exatamente o trabalho com fins humilhantes ou vexatórios, impostos em países de regime ditatorial e não a recuperação pelo labor como aqui se expõe, medida salutar de reinserção social, onde todo preso seria obrigado a desempenhar várias funções ao longo da pena, a critério da autoridade responsável pela execução da sentença. Não só, mas a remissão dos dias trabalhados, a correta remuneração pelos serviços prestados, a duração máxima da jornada de trabalho estariam garantidas na letra da lei, assim como o é para todos os brasileiros. Cabe lembrar que tal dispositivo constitucional pode ser harmonizado com o disposto no inciso imediatamente anterior do mesmo artigo, XLVI, “d”, onde a expressão “prestação social alternativa” poderia mesmo enquadrar-se como atividade laborativa, desde que nos moldes legais específicos.

Não se trataria então, de ceifar a vida de um criminoso, ou encarcerá-lo perpetuamente, mas utilizar sua força de forma produtiva, construtiva, a fim de prepará-lo para a liberdade e aumentar as chances de recuperação, ao mesmo tempo em que desestimula os profissionais do crime a prosseguir em atividades que os levarão, fatalmente, a um trabalho honesto efetuado dentro das prisões. É necessária a elaboração de lei ordinária que se amolde aos ditames constitucionais, especificando os procedimentos que seriam adotados e as espécies de trabalho que seriam efetuadas, coordenando as autoridades do executivo municipal e estadual com as do sistema carcerário e mesmo do judiciário, que aplicariam as medidas previstas no respectivo diploma, de acordo com o grau do delito.

Entender que o trabalho obrigatório dentro dos presídios seria aviltante é desrespeitar a todos os brasileiros que despertam diariamente para uma vida de pesada labuta, e assim o fazem para sobreviver, independentemente de sua vontade, independentemente de eventuais ofensas e maus tratos que experimentam. O criminoso que deseja a recuperação deve fazer também a sua parte.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

André Luís Ferreira

 

Advogado, mestre em Ciências Jurídico Internacionais pela Universidade de Lisboa e professor de Direito Internacional Publico e Privado na UniverCidade, UCAM, UNISUAM e UNIFESO.

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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