Resumo: O presente artigo versa sobre a possibilidade jurídica da adoção conjunta por casais homoafetivos no que atine o registro civil de nascimento. Com efeito, as discriminações verificadas em relação à constituição da família homoparental fundam-se estritamente na orientação sexual dos adotantes, todavia, tais bases não podem prosperar por consagrar uma discriminação juridicamente intolerável, o que é vetado constitucionalmente. Neste contexto, o presente artigo busca evidenciar que a entidade homoparental também deve ser vista como uma das formatações familiares dignas de tutela. Ainda, demonstrar-se-á que no ordenamento jurídico vigente, nenhuma exigência formal obsta que no assento de nascimento de uma pessoa conste dois pais ou duas mães. Para tanto, com o intuito de embasar o presente estudo, realizou-se uma pesquisa bibliográfica e jurisprudencial criteriosa acerca do assunto em tela.
Palavras-chave: Entidade familiar. Homoafetividade. Adoção. Homoparentalidade. Registro civil de nascimento.
Sumário: Introdução. 1. Da homoparentalidade como entidade familiar 2. Da possibilidade jurídica da adoção por casais homoafetivos no que tange o registro civil de nascimento. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução
O retrato da família sofreu e vem sofrendo profundas transformações no último século em todo o Ocidente. Referidas mudanças tem suas raízes históricas na Revolução Industrial e na Revolução Francesa. E é a partir da Revolução Industrial, com o declínio do patriarcalismo, da redivisão sexual do trabalho e da revolução feminista, que novos paradigmas passam a nortear a família, produzindo, com isso, bruscas alterações na estrutura societária e familiar.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 outorgou proteção à família e não mais ao casamento. Assim, a família deixa para trás seu antigo modelo singular e passa ao pluralismo das formas de entidades familiares. Nessa linha, Veloso (1999 apud DIAS, 2003) enfatiza que “num único dispositivo, o constituinte espancou séculos de hipocrisia e preconceito”.
Dessa maneira, o presente artigo tem como fito a análise de um tema ainda permeado de preconceito: a possibilidade jurídica da constituição da família homoparental no que atine o registro civil de nascimento. Pois embora seja notório que a “ciência jurídica seja retardatária em relação aos fatos e lerda em sua construção”, segundo enfatiza José Carlos Teixeira Giorgis (2001, p.116), evidente que ela não pode deixar de regrar fatos sociais dignos de tutela.
1. Da homoparentalidade como entidade familiar
Embora a homossexualidade faça parte da história da humanidade, a legislação pátria ainda não assegurou os efeitos jurídicos às uniões homoafetivas e é forte o entendimento na doutrina que essas não constituem entidades familiares constitucionalmente protegidas, afirmando que nessas uniões há mera sociedade de fato e nenhuma comunhão de afeto.
Contudo, é no âmbito do judiciário que as uniões homossexuais passam a ser reconhecidas. Dias (2009, p. 187) enfatiza que “não se pode deixar de reconhecer que há relacionamentos que, mesmo sem diversidade de sexos, atendem a tais requisitos. Têm vínculo afetivo, devem ser consideradas entidades familiares”.
Dessa forma, não pode a justiça negar a condição de família às uniões homoafetivas, pois segundo denota Rios (2001 apud DIAS, 2003), “ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a um ser humano, em função da orientação sexual, significa dispensar tratamento indigno ao ser humano”.
Nessa banda, embora a lei não regule às uniões homossexuais, não pode o judiciário fechar os olhos frente a uma realidade social, pois se torna inadmissível, haja vista acarretar violação a direitos constitucionalmente assegurados a todo cidadão, independentemente da sua orientação sexual. Outrossim, conforme elucida Pena Jr. (2008, p.36) “as uniões homoafetivas são uma realidade, não podendo a sociedade silenciar esse fato e aceitar que, ainda, exista privação da liberdade individual”.
Com efeito, como o legislador não regulamentou os efeitos jurídicos das uniões homoafetivas, assim como já o fez com a união estável, tem o judiciário nacional entendido que as regras dessas devem ser aplicadas àquelas, por analogia, já que preenchem os requisitos jurídicos e fáticos desse instituto.
Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal, em decisão inédita, recentemente, por unanimidade de votos, reconheceu as uniões homoafetivas como uma das possibilidades de construção familiar, concedendo, desse modo, a essas uniões afetivas status de entidade familiar constitucionalmente protegida, assegurando, assim, aos parceiros homossexuais os mesmos direitos e deveres dos companheiros das uniões estáveis.
Reconhecendo as uniões homafetivas como entidades familiares constitucionalmente protegidas, equiparando à união homoafetiva à união estável para todos os efeitos legais, passa, portanto, o judiciário nacional e parte da doutrina a vislumbrar um novo arranjo familiar, a homoparentalidade, “pois qualquer impedimento legal que se vislumbrasse, já não cabe mais dentro do ordenamento brasileiro hodierno”, nas palavras de Marianna Chaves (2011), uma vez que a permissão jurídica da constituição desse tipo familiar é assegurar igual dignidade para todas as entidades familiares, sem discriminação pela orientação sexual dos seus integrantes, pois assegurar tratamento igualitário a todos respeitando às diferenças é prover a dignidade da pessoa humana e consequentemente à justiça.
2. Da possibilidade jurídica da adoção por casais homoafetivos no que tange o registro civil de nascimento
A Lei de Registros Públicos, Lei 6.015 de 1973, dispõe acerca dos registros públicos lato sensu, e dentre esses regula o registro civil de nascimento e da legitimidade da adoção.
Preceitua o art. 95 do referido dispositivo legal, in litteris:
“Art. 95 – Serão registradas no registro de nascimentos as sentenças de legitimação adotiva, consignando-se nele os nomes dos pais adotivos como pais legítimos e os dos ascendentes dos mesmos se já falecidos, ou sendo vivos, se houverem, em qualquer tempo, manifestada por escrito sua adesão ao ato”.
Nessa linha, o ECA em seu art. 47, traz, in verbis:
“O vínculo de adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil, mediante mandado do qual não se fornecerá certidão.
§ 1º A inscrição consignará o nome dos adotantes como pais, bem como o nome dos seus ascendentes.”
Deste modo, no ordenamento jurídico vigente, nenhuma exigência formal obsta que no assento de nascimento de uma pessoa constem dois pais ou duas mães. Todavia, em sentido oposto é o entendimento de alguns doutrinadores, afirmando que a Lei dos Registros Públicos veta a possibilidade do registro de dois pais ou duas mães no mesmo assento, conforme elucida Carvalho. O autor ressalta, porém, que:
“O primeiro e mais utilizado argumento, referente à impossibilidade de realização do registro porque a lei de registros públicos veda, data máxima vênia, é o mais simplório possível. Isso porque, como admitir que uma norma de 1973, quando vigente outra ordem jurídica constitucional, onde não se falava em princípio do melhor interesse da criança, paternidade socioafetiva e nem mesmo famílias constituídas sem a existência de casamento, venham a impor uma solução a essa situação. Nesse caso, o correto é procedermos a uma interpretação constitucional desta lei, para que, assim agindo, e aplicando o princípio do melhor interesse da criança, admitamos como possível a realização do ato, se este for benéfico para a criança”. (CARVALHO, 2008)
Destarte, conforme enfatiza Diniz (2008) não há qualquer discriminação com relação à sexualidade biológica dos adotantes na legislação pertinente e, sendo adotada por par homoafetivo masculino ou feminino, a criança ou o adolescente terá seu registro civil elaborado de acordo com os requisitos habituais, já que não há qualquer vedação na lei que impeça de constarem como pais ou mães duas pessoas do mesmo sexo.
Na mesma linha, Dias elucida que
“a resistência não se justifica nem por razões registrais. A determinação legal de que, no assento de nascimento, sejam os adotantes inscritos como pais, ocorrendo simples substituição da filiação biológica, não pode servir de justificativa para se sustentar a impossibilidade de adoção por duas pessoas do mesmo sexo. Não há nenhum empecilho de que constem como pais no registro de nascimento dois homens ou duas mulheres. Ainda que se presuma que a lei não tenha cogitado tal possibilidade, a adoção por um par homossexual é cabível”. (DIAS, 2002)
Nesse sentido, entendeu o magistrado gaúcho Marco Danúbio Franco ao deferir em primeiro grau a adoção dos irmãos ao casal homoafetivo feminino na Comarca de Bagé-RS. Buscando evitar constrangimentos, determinou o juiz, em sentença, que no assento de nascimento dos irmãos conste que são filhos de fulana e beltrana, sem declinar a condição de pai e mãe.
Nessa banda, afirma Enézio de Deus (2010) que o novo modelo de certidão de nascimento, que passou a vigorar em 1°de janeiro de 2010 por força do Decreto nº 6.828 de 27 de abril de 2009, não impede a formalização dessas entidades familiares, já que o referido modelo de certidão traz um campo denominado “filiação”, no qual deve constar o nome do pai, da mãe ou dos pais conjuntamente (pai e mãe ou pais/mães), possibilitando, com isso, o livre preenchimento do referido campo, permite, portanto, a construção de quaisquer formas de entidades familiares desde que “preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostentabilidade”, segundo ensina Lôbo (2008).
Nessa esteira interpretativa, alguns magistrados passaram a conceder a adoção a casais homoafetivos. Pois segundo a então Desembargadora Maria Berenice Dias, em acórdão que confirmou a decisão prolatada pelo magistrado de Bagé-RS “a justiça tem por finalidade julgar os fatos da vida”, não podendo, assim, negar juridicidade a essas famílias fundada unicamente no preconceito, “já que é chegada a hora de acabar com hipocrisia e atender o manto constitucional de assegurar proteção integral à criança e o adolescente”.
Nesse sentido se manifestou, recentemente, o judiciário do Estado de Belo Horizonte ao confirmar em segunda instância, por unanimidade de votos, a adoção de um menor a um casal homoafetivo feminino. Os desembargadores utilizaram para fundamentar a decisão a Lei de Registros Públicos, salientando que a mencionada lei não veta o registro de dois pais ou duas mães na mesma certidão de nascimento. A adoção havia sido deferida em primeiro grau sob o argumento que referido instituto jurídico é medida excepcional e que somente pode ser deferida se for para atender o melhor interesse da criança/adolescente conforme estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990.
Decisão da mesma linha deferiu a magistrada da Comarca de Pelotas no Estado do Gaúcho, ao conceder a adoção de um menino a um casal homoafetivo masculino que postulou a sua filiação. Ao deferir a adoção a juíza Nilda Stanieski enfatizou que a orientação sexual dos adotantes “não deve ser vista como empecilho à adoção”.
Em última análise, nas palavras de Enézio de Deus (2010) “a existência de um registro de nascimento, no qual constem os nomes de dois homens ou de duas mulheres pode se opor aos costumes, mas não ao ordenamento positivo pátrio”. Assim, não pode o direito fechar os olhos frente aos direitos das famílias homoparentais, pois torna-se inadmissível, por consagrar uma discriminação juridicamente intolerável, o que é vetado constitucionalmente, pois a adoção não pode estar condicionada a orientação sexual dos futuros adotantes, já que afeto e amor não tem como pressuposto diversidade de sexos.
Conclusão
As famílias homoparentais devem ser, portanto, vistas como uma das possibilidades de construção familiar atual, já que no ordenamento jurídico vigente, nenhuma exigência formal obsta que no assento de nascimento de uma pessoa constem dois pais ou duas mães.
No entanto, ainda é forte o entendimento contrário à homoparentalidade, fundado tão-somente na orientação sexual dos adotantes, refletindo preconceito infundado e concepções morais estigmatizantes. Entretanto, a justiça não pode fechar os olhos frente às famílias homoparentais, pois tais entidades, assim como as demais, devem ser vistas como “uma das maneiras possíveis de viver em sociedade, trocando cuidados, afetos e compartilhando o cotidiano”, nas palavras de Zambrano (2007, p. 151).
Ao finalizar este artigo, pretende-se ter colaborado para que as famílias homoparentais possam ser vista como uma entidade familiar digna de tutela, já que ao preencherem os requisitos de afetividade, estabilidade, e ostentabilidade, como salienta Lôbo (2009, p. 61) em nada se diferenciam das demais entidades familiares constitucionalmente protegidas.
Referências Bibliográficas
Advogada, graduada pela Universidade Federal do Rio Grande-FURG, especializanda em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera-UNIDERP/LFG. Professora substituta da Faculdade de Direito (FAdir) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG-RS)
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