INTRODUÇÃO[1]:
O primeiro ponto a ser levado em consideração neste breve estudo é estabelecer a conceituação do que são princípios, bem como inseri-los dentro do ordenamento jurídico vigente e, paralelamente, os diferenciar das regras.
Noção de Princípio
O conceito de princípio é nada mais do a tradução do conceito grego Arkhé, que significa “começo” e “fator essencial que alimenta desde dentro”[2]
Princípio como norma jurídica
Princípios são “exigências de optimização abertas a várias concordâncias, ponderações, compromissos e conflitos”[3] “são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionamentos fáticos e jurídicos”, enquanto as regras são “normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não cumprida”, constituem exigências de aplicação.[4]
Enquanto a regra á aplicada e esgota seus efeitos, o princípio é otimizado ou concretizado (aplicado ou densificado da melhor forma possível, segundo as circunstâncias) e nunca exaure seus efeitos, pode sempre ser otimizado novamente. O princípio não está somente na origem, mas também na continuidade.
Princípio constitucional
Os princípios constitucionais são normas de natureza estruturante de toda a ordem jurídica que legitimam o próprio sistema, pois consagram valores culturalmente fundantes da própria sociedade. Assim, os princípios constitucionais estruturam juridicamente todo o regime jurídico-constitucional e o faz legitimamente porque se funda no valor conatural ao homem da liberdade política hoje positivado em diversos matizes.
Princípio Constitucional Democrático
A concepção teórica de Estado de direito cumpre a missão de limitar o poder político para estabelecer o império do direito, o “governo das leis e não dos homens”, o que pode aparentar mero atrelar-se à “liberdade dos modernos” assente no distanciamento e na restrição do poder, na defesa contra o mesmo.
Por sua vez, a concepção teórica de Estado democrático busca um poder, uma ordem de domínio legitimada pelo povo na sua titularidade e no seu exercício, organizada e exercida em uma dinâmica que não se desvincula do povo (na formulação de Lincoln: governo do povo, pelo povo, para o povo), o que pode aparentar mero atrelar-se à “liberdade dos antigos”, amiga da convivência com o poder.
Ocorre, no entanto, que o princípio constitucional democrático renova estas concepções, ao estabelecer para a democracia uma dimensão substancial (legitimidade) e duas procedimentais (legitimação). A legitimidade está atrelada à prossecução concreta e participativa de determinados fins e valores positivados (Estado de direito democrático – renovação sensivelmente diversa da fórmula “para o povo”). A legitimação está vinculada a escolha dos governantes (teoria da democracia representativa) e a formas procedimentais de exercício do poder que permitem atuar em sua concretização e renovar o controle popular (teoria da democracia participativa).
A dimensão positivada pela Constituição da legitimidade demonstra que o atual Estado de direito limita o exercício não democrático do poder, assim como a democracia, em sua dimensão substancial, deslegitima o poder exercido contra os valores positivados pelo direito, contra o direito.
Estas facetas da democracia demonstram que esta constitui princípio jurídico informador, “impulso dirigente”[5] do Estado e da sociedade, fundamento radical e funcional de qualquer organização do poder. Desdobra-se em diversas normas principiológicas: soberania popular, renovação dos titulares de cargos públicos, sufrágio universal, liberdade de propaganda, igualdade de oportunidades nas campanhas eleitorais, separação e interdependências dos órgãos de soberania, necessidade de realização de concurso público para o provimento de cargos públicos, entre outros.
Princípios Infraconstitucionais:
Podemos verificar que a supremacia dos princípios previstos na Constituição é inquestionável e a análise de qualquer outro princípio infraconstitucional, ou seja, aqueles que são decorrentes da sistemática da hierarquia das normas instituída por Kelsen, em sua célebre obra, deve ser feita conforme a Constituição. Assim, a interpretação dos princípios e normas infraconstitucionais deve ser feita atrelada aos princípios constitucionais, sejam explícitos ou implícitos.
Nesse diapasão, devemos também considerar, no nosso caso em especial, que a Lei nº 9.784, de 1999, regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal e, no seu artigo 69 dispõe, expressamente, que “os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente, os preceitos desta Lei” (grifei), o que nos leva a uma conclusão inicial de que esta Lei deve ser encarada como um sinalizador de condutas, um roteiro básico a ser seguido na elaboração do processo administrativo, sem fugir, evidentemente, da sua linha mestra que tem suporte nos seus princípios fundantes.
ANÁLISE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS EXPLÍCITOS DO ART 37 CAPUT
Princípio da Legalidade
O primeiro tópico a ser considerado neste ponto diz respeito ao Princípio do Estado Democrático de Direito, previsto no artigo 1º da Constituição e indispensável ao entendimento e apresentação dos demais princípios regentes do Direito Administrativo brasileiro.
A Constituição Federal no artigo 1º dispõe que o Estado brasileiro, como Estado Democrático de Direito, tem como fundamentos, dentre outros, a soberania e a dignidade da pessoa humana. Nesse diapasão, devemos manter especial atenção neste binômio – soberania e dignidade – de modo que, inadvertidamente, consideremos os princípios fundantes da caserna afastados desses, que além de fundamentais, representam a essência do Estado de Direito. Dessa forma, a apresentação dos princípios que se fará a seguir, obedecerá, efetivamente, a sua vinculação à Constituição e, por conseqüência, ao princípio da legalidade, inafastável do Estado de Direito Democrático, como verdadeiro princípio-dever da Administração Pública, previsto no caput do artigo 37 da Constituição Federal.
A Lei nº 9.784, de 1999, parece ter ampliado o espectro de aplicação desse princípio constitucional, fazendo referência, no seu artigo 2º, parágrafo único, inciso I, à atuação administrativa segundo os critérios da lei e do Direito. Ademais, parece-nos que a grande inovação trazida pela Lei do Processo Administrativo está no seu primeiro artigo, ao disciplinar que a intenção legislativa foi no sentido de estabelecer normas básicas “visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração”.
A disposição apresentada acima nos faz concluir que a obediência à lei e ao Direito é de relevante importância, de modo que obriga a Administração, além de observar a lei, a identificar possíveis lacunas legais e supri-las, aplicando a analogia, o costume e a prática administrativa aos casos concretos.
Assim, depreendemos que o princípio da legalidade significa que a atividade pública se desenvolve vinculada à lei, nos limites dela e para a consecução dos fins nela previstos. Aperceba-se que ao se referir à lei, devemos encará-la no sentido amplo, compreendendo tanto a lei stricto sensu como também os atos normativos e a própria Constituição.
Não se pode conceber a atividade da Administração Pública desvinculada da observância da lei, uma vez que há a necessidade de se ter segurança jurídica nas relações entre os administrados e da própria Administração em relação a eles[6].
Princípio da Impessoalidade
O princípio da impessoalidade referido na Constituição de 1988 (art. 37, caput ), nada mais é que o clássico principio da finalidade, o qual impõe ao administrador público que só pratique o ato para o seu fim legal. E o fim legal é unicamente aquele que a norma de direito indica expressa ou virtualmente como objetivo do ato, de forma impessoal.
Esse princípio também deve ser entendido para excluir a promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos sobre suas realizações administrativas.
E a finalidade terá sempre um objetivo certo e inafastável de qualquer ato administrativo: o interesse público. Todo ato que se apartar desse objetivo sujeitar-se-á à invalidação por desvio de finalidade, que a Lei de Ação Popular conceituou como o “fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência” do agente (Lei 4.717/65, art. 2º., parágrafo único, e).
Desde que o princípio da finalidade exige que o ato seja praticado sempre com finalidade pública, o administrador fica impedido de buscar outro objetivo ou de praticá-lo no interesse próprio ou de terceiros. Pode, entretanto, o interesse público coincidir com o de particulares, como ocorre normalmente nos atos administrativos negociais e nos contratos públicos, casos em que é lícito conjugar a pretensão do particular com o interesse coletivo.
O que o princípio da finalidade veda é a prática de ato administrativo sem interesse público ou conveniência para a Administração, visando unicamente satisfazer interesses privados, por favoritismo ou perseguição dos agentes governamentais, sob a forma de desvio de finalidade. Esse desvio de conduta dos agentes públicos constitui uma das mais insidiosas modalidades de abuso de poder.
Princípio da Moralidade Administrativa
A presença de um forte conteúdo ético no regime jurídico-administrativo verifica-se, de imediato, ao se apreciar a finalidade da Administração Pública, que reside no bem estar da coletividade administrada e na manutenção da disciplina e da hierarquia.
Nesse sentido, podemos considerar que há uma moral própria comum à Administração Pública, determinando a conduta e desempenho da função administrativa a qual convencionou-se chamar de moral administrativa.[7]
Ao contrário da moral comum, onde se pressupõe a liberdade do indivíduo em fixar os seus próprios fins, a moral administrativa orienta-se pelo resultado, sendo irrelevante a intenção de produzi-lo, determinando que o desempenho da função administrativa deve atingir a sua finalidade institucional.[8]
Com o texto do caput do artigo 37 da CF e do artigo 2º, da Lei nº 9.784, de 1999, afastou-se na doutrina e na jurisprudência administrativa qualquer dúvida quanto ao caráter normativo, e não apenas meramente informativo, do princípio da moralidade. Dessa forma, todos os atos estatais (administrativos, legislativos e jurisdicionais) encontram-se submetidos ao princípio constitucional fundamental da moralidade pública, o que significa dizer que na apuração de fatos nos processos administrativos também deve ser perseguida a moralidade de todos os atos procedimentais, de modo que sua conclusão esteja vinculada à finalidade que lhe foi abstratamente atribuída pelo ordenamento jurídico. Constitui “regra de civilidade essencial à sobrevivência das instituições democráticas“[9]
O princípio da moralidade não se confunde com o princípio da legalidade. A legalidade cuida da adequação da atividade administrativa ao ordenamento jurídico posto, que concede ao administrador os pontos de partida do processo de concretização da função administrativa. Na moralidade, busca-se delimitar a atividade administrativa segundo a moral administrativa, essa moral institucionalizada que procura dar sentido e coerência ética à ação da Administração Pública.
Ensina-nos MOREIRA NETO[10] que o princípio da moralidade não depende que lei defina o que seja moral já que, como diz o jurista, a “precisão que se exige da legalidade não tem cabimento quando se trata de moralidade, pois, de outra forma, se estaria subsumindo um ao outro princípio, tornando ocioso falar-se em moral administrativa“. Neste ponto, a norma estatutária castrense apresenta um rol bastante amplo da conduta a ser observada pelos militares, de modo que deixa pouca margem a discricionariedade das atitudes dos administrados militares[11]. E não podia ser de outra forma.
O ato administrativo que viola o princípio da moralidade, independentemente de sua plena compatibilidade com os aspectos de legalidade, padece de invalidade, devendo ser retirado do regime jurídico-administrativo. Quando imoral, o ato administrativo atenta contra a juridicidade que deve estar onipresente na conduta da Administração Pública, quebrando e distorcendo os fundamentos e diretrizes constitucionais, desprezando o dever de probidade imposto pela Constituição de 1988 ao agente público, e, por conseguinte, afastando a ação administrativa concreta da ética institucionalizada do regime jurídico que visa a Administração Pública concretizar.
A observância aos aspectos de legalidade não torna o ato administrativo imune à apreciação jurisdicional, embora tenha sido exarado e concretizado no exercício de poder discricionário. A juridicidade dos atos administrativos abrange os aspectos éticos que nortearam o administrador em sua escolha, devendo ser invalidado o ato que constituir uma tentativa de distorcer a moral administrativa, para a satisfação de valores morais não institucionalizados e incompatíveis com o sistema moral eleito pelo ordenamento jurídico. “Sob o prisma da moralidade, a satisfação dos requisitos de legalidade do ato não é suficiente. Será necessário ir adiante, na análise da ação administrativa, para investigar se o conjunto dos seus elementos realmente sustenta o interesse público ou apenas dá falsa impressão de que o faz“.[12]
Constata-se o vício de moralidade quando o ato administrativo tem como lastro motivo inexistente, insuficiente, inadequado ou incompatível com o seu objeto, ou seja, quando os pressupostos fáticos e jurídicos que foram apreciados para sua expedição não guardam relação de pertinência com a relação jurídico-administrativa criada, modificada ou declarada pela Administração no exercício de sua função típica[13]. Nesse caso, carece o ato administrativo de seu pressuposto lógico, a causa, essencial para o seu ingresso no ordenamento jurídico.
Ao invalidar um ato administrativo imoral, o Poder Judiciário está exercendo o seu papel constitucional de controlar a juridicidade dos atos do Poder Executivo, quando invadem de modo injustificado a esfera de direitos e garantias do administrado. Do contrário, o princípio da moralidade perde sua eficácia jurídica e atrofia o seu papel político-ideológico, provocando a imunidade judicial do ato discricionário quando imoral.
Assim, podemos, por fim, determinar que o princípio da moralidade tem como conteúdo uma exigência de conduta ética por parte da Administração Pública, nas suas mais diversas formas de expressão[14], além de que “não faz sentido atentar-se contra as instituições e valores fundamentais, em holocausto a concepções pessoais de moral, mas é perfeitamente possível zelar pela moralidade administrativa, por meio da correta utilização dos instrumentos para isso existentes na ordem jurídica, entre os quais merece posição de destaque exatamente o processo administrativo, pela extrema amplitude de investigação que nele se permite, chegando mesmo ao mérito do ato ou da decisão, ao questionamento de sua oportunidade e conveniência”.[15]
Princípio da Publicidade
Trata o princípio da publicidade da satisfação de uma exigência da cidadania: transparência e clareza no desempenho da atividade administrativa. Mediante a publicidade dos atos administrativos, assegura-se ao administrado a possibilidade de fiscalizar e controlar a conduta e desempenho da administração pública, além de constituir elemento indispensável para sua juridicidade[16], estabelecendo ainda, o dever do agente público de motivar todo e qualquer ato proveniente do exercício da função administrativa. É um princípio consagrado na Constituição Federal, em seu artigo 37 caput e na Lei nº 9.784, de 1999, no artigo 2º, parágrafo único, inciso X.
Para CELSO ANTONIO[17], consagra-se neste princípio o dever administrativo de manter plena transparência em seus comportamentos. Não pode haver em um Estado Democrático de Direito, no qual o poder reside no povo (artigo 1º, parágrafo único, da CF), ocultamento aos administrados dos assuntos que a todos interessam, e muito menos em relação aos sujeitos individualmente afetados por alguma medida.
Alguns dados, afirma o autor, no entanto, em se tratando de Forças Armadas, podem ser objeto de sigilo, conforme é expresso o artigo 5º, inciso XXXIII da CF, ou seja, “quando imprescindível à segurança da Sociedade e do Estado”.
Princípio da Eficiência
MEIRELLES[18] referiu sobre a eficiência como um dos deveres da administração. Definiu-a como “o que se impõe a todo agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros.”
O autor ainda acrescenta que o dever de eficiência corresponde ao ‘dever de boa administração’ adotado na doutrina italiana.
Para DI PIETRO[19] o princípio apresenta dois aspectos, podendo tanto ser considerado em relação à forma de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atuações e atribuições, para lograr os resultados melhores, como também em relação ao modo racional de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, idem quanto ao intuito de alcance de resultados na prestação do serviço público.
Ela acrescenta que a eficiência é princípio que se soma aos demais princípios impostos à Administração, não podendo sobrepor-se a nenhum deles, especialmente ao da legalidade, sob pena de sérios riscos à segurança jurídica e ao próprio Estado de Direito.
De fato, almeja-se que os serviços públicos sejam realizados com adequação às necessidades da sociedade que contribui, de forma efetiva e incondicional, para a arrecadação das receitas públicas.
Muito se tem discutido sobre a qualidade das obras e serviços executados pelo poder público. A eficiência, pelo senso comum, deveria ser sempre fator determinante para atuação da máquina administrativa, mas a prática tem revelado inquinada dissonância.
Eficiência aproxima-se da idéia de economicidade. Visa-se a atingir os objetivos, traduzidos por boa prestação de serviços, do modo mais simples, mais rápido, e mais econômico, elevando a relação custo/benefício do trabalho público.
O administrador deve sempre procurar a solução que melhor atenda ao interesse público do qual é curador. Mesmo sem estar explícito anteriormente, o princípio da eficiência estava presente na ordem político-jurídica, por ser conseqüência lógica do Estado de Direito organizado.
MORAES[20] define o princípio da eficiência como aquele que “impõe à Administração Pública direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia, e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar desperdícios e garantir-se uma maior rentabilidade social.”
Com proficiência, acrescenta que urge a interligação do princípio com os da razoabilidade e da moralidade, pois o administrador deve se utilizar de critérios razoáveis na realização de sua atividade discricionária.
OUTROS PRINCÍPIOS APLICÁVEIS À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Em que pese à não previsão expressa dentro do rol mencionado no caput do art. 37 da Constituição, outros princípios, sejam explícitos sejam implícitos, também se aplicam à Administração Pública. Dentre eles pode-se destacar os seguintes:
Princípio do Devido Processo Legal
Decorrente do princípio da legalidade depreende-se o princípio do devido processo legal ou “due process of law”, um dos direitos fundamentais de maior relevância para o direito administrativo ocidental e que sustenta, assim, a sistemática que deve ser obedecida no desenvolvimento de todas as fases de qualquer processo administrativo, conforme dispõem os inciso LIV e LV do artigo 5º da CF e o artigo 2º da Lei nº 9.784, de 1999.
A obediência ao devido processo legal, no seu aspecto procedimental, é uma expressão do princípio da legalidade na medida em que impõe que tudo deva seguir o processo previsto na lei, o que nos leva a concluir que a sua não observância caracteriza a ausência de justiça.
No que pertine ao processo administrativo, os princípios da legalidade e do devido processo legal desdobram-se em diversas garantias para os administrados, no nosso caso, aos militares: em primeiro lugar, é vedado à Administração Pública criar infrações ou sanções; em segundo lugar, impõe que a lei contenha um mínimo de densidade normativa, que permita aos indivíduos saberem com segurança qual a conduta proibida e a respectiva sanção; por fim, exige que a lei criadora do ilícito e da sanção seja anterior ao fato (irretroatividade).
Princípio da Irretroatividade ou Segurança Jurídica
A irretroatividade é outro corolário do princípio da legalidade na esfera punitiva do Estado. Não basta que se garanta aos administrados que apenas a lei poderá criar figuras ilícitas e as respectivas sanções, ou ainda que os ilícitos serão descritos de modo claro e preciso. Tais garantias nada significariam se fosse possível ao legislador editar diplomas legais que atingissem situações já consumadas, tornando ilícitos comportamentos que não o eram no momento em que foram praticados.
O princípio da irretroatividade das leis está previsto no artigo 5º, incisos XXXIX e XL da CF. Quanto à sua aplicabilidade ao direito administrativo punitivo não há qualquer dúvida, face o que já foi demonstrado anteriormente.
Ressalte-se, mais uma vez, que a irretroatividade das leis decorre do Estado de Direito, no qual a segurança jurídica é caracterizada pela previsibilidade da atuação da Administração Pública diante dos administrados.
Admite-se, porém, a retroatividade da lei que suprima o ilícito e a respectiva sanção, ou ao menos diminua a gravidade desta última. Não poderia ser diferente: se a irretroatividade busca garantir a liberdade dos administrados, nada mais lógico que permitir que a mesma liberdade seja privilegiada com lei nova que extinga a figura delituosa ou atribua-lhe sanção menos grave.
Ressalte-se que a superveniência de uma norma mais benévola significa uma tomada de posição da sociedade. A sociedade deixa de encarar aquele tipo de comportamento com a mesma linha de reserva antes adotada e que pudera anteriormente ser acolhida em razões de circunstâncias momentâneas que não mais acontecem.
Ademais, a penalidade deve ser um fator de insatisfação, de inquietação e descontentamento. Ela engendra, realmente, um caos social conflituoso. Se a lei nova vem a ser mais benévola, ela deve ser aplicada. Condutas devem ser examinadas á luz do momento em que foram praticadas, de modo a aferir o início das acusações, das aferições, das apreciações. Mas a decisão administrativa deve, necessariamente, seguir a linha da aplicação mais benévola da norma. Isso faz com que defendamos as duas faces desse fenômeno: a norma superveniente mais benévola deve ser trazida à aplicação nos processos administrativos como também pensamos que nos casos em que a norma superveniente é mais rigorosa, se aplique a norma da época em que foi cometida a irregularidade.
A tomada de posição mais rigorosa certamente decorreu de imperativo do momento, mas esse imperativo não enquadrava a conduta do administrado naquele instante da prática da infração.
Princípio da Discricionariedade
Inicialmente devemos ter em mente que o princípio da discricionariedade administrativa até a época do Estado de Direito liberal consistia no reconhecimento à Administração da possibilidade de fazer tudo o que a lei não proibia. Com o Estado de Direito social, a Administração passou a estar vinculada à lei, de tal sorte que hoje reina a premissa de que à Administração só é dado fazer aquilo que a lei permite. Conforme se pode verificar, a mudança de paradigma na Administração demandou bastante tempo o que nos leva a afirmar ser totalmente impensável admitir o retorno aos dias atuais à possibilidade de atuação administrativa desvinculadas da lei, o que poderia significar arbitrariedade[21].
Podemos entender, no entanto, ser impossível desconhecer-se uma zona de decisão administrativa que não ingresse em avaliação necessariamente dotada de certa liberdade, ou ainda, na zona do “preenchimento dos conceitos objetivo-normativos ‘carecidos de um preenchimento valorativo’”, ou seja, naquilo que no Dicionário Arnaud está referido como “à discrição nos sentidos judiciário e administrativo (de Smith)” [22], poder que “não é, normalmente, sujeito à revisão por uma jurisdição “superior” [23]·.
No magistério de BOBBIO, encontramos o que ele identifica como “os dois institutos típicos” pelos quais se operou, ao longo dos séculos, “a constitucionalização dos remédios contra o abuso do poder”, a saber, a separação dos poderes e a subordinação de todo poder estatal ao direito (o chamado “constitucionalismo”). Referindo-se a este segundo, leciona BOBBIO que “O segundo processo foi o que deu lugar à figura ¾ verdadeiramente dominante em todas as teorias políticas do século passado ¾ do Estado de direito, ou seja, do Estado no qual todo poder é exercido no âmbito de regras jurídicas que delimitam sua competência (…)”. E, neste passo, acrescenta: “que delimitam sua competência e orientam (ainda que freqüentemente com certa margem de discricionariedade) suas decisões.”[24] Ou seja, equivale isto a concluir que também BOBBIO tem como normais e regulares, no seio do Estado de Direito, a ocorrência de discricionariedade no âmbito das normas jurídicas na tomada de decisão pelo exercício do poder.
As definições dos teóricos não deixam margem a dúvidas quanto aos contornos da noção da discricionariedade, sobretudo sua função integrativa. “No sentido amplo, a discricionariedade é a possibilidade jurídica, criada por uma norma originária, para o exercício de uma definição integrativa do interesse público específico nela previsto, por uma nova norma ou ato concreto derivados” enquanto que “o sentido restrito, todavia, o Direito Administrativo toma o vocábulo para expressar apenas a possibilidade jurídica outorgada pelo legislador ao administrador para integrar a definição do interesse público específico previsto numa norma legal”[25].
MOREIRA NETO invocando CAIO TÁCITO e MORTATI esclarece: “Para nós, o tema da discricionariedade, descendendo, como o fazemos, de considerações de Direito Político, abarca, indistintamente, toda uma seqüência: poder discricionário enquanto modo de atuar do poder estatal; atividade discricionária, enquanto função estatal, expressão dinâmica desse poder; e ato discricionário, resultado qualificado do exercício dessa função”. [26]
A discricionariedade é, pois, uma técnica ordinária, uma solução normal prevista na lei (no próprio Estado de Direito, segundo BOBBIO), com função de “preenchimento dos conceitos objetivo-normativos ‘carecidos de um preenchimento valorativo’”, segundo ARNAUD, e que importa em que, “no domínio da administração ou no da jurisdição, a convicção pessoal (particularmente, a valoração) de quem quer que seja chamado a decidir, é elemento decisivo para determinar qual das várias alternativas que se oferecem como possíveis dentro de certo ‘espaço de jogo’ será havida como sendo a melhor e a ‘justa’”, segundo ENGISH.
Assim, a discricionariedade deve ser entendida como uma limitação imposta pela lei, ou seja, diante do caso concreto, a Administração poderá optar em adotar uma das opções previstas na lei à resolução daquele caso..
Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade
O princípio da razoabilidade (denominação oriunda do direito norte-americano), ou da proibição do excesso, conforme preferem os alemães, ou da proporcionalidade – expressão mais comum, especialmente no Brasil, entre os constitucionalistas[27], é comum a todos os ramos do direito, considerado o ideal de justiça buscado pela Ciência do Direito como um todo. É parte do pressuposto de que o homem, mesmo quando autorizado a agir arbitrariamente, deve fazê-lo de modo razoável, ou seja, conforme a razão, princípio tal que se dirige não somente ao legislador, como também aos administradores, juízes e – como não poderia deixar de ser – a todo cidadão.
Ressalta Gilmar Ferreira MENDES, ao escrever o prefácio da monografia de Suzana BARROS[28], que, com apoio no princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, de acordo com a doutrina constitucional mais moderna, “em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o ‘princípio da proporcionalidade’“. Por isso que se converteu o princípio da reserva legal no princípio da reserva legal proporcional, havendo necessidade, para obtenção dos objetivos perseguidos, além da legitimidade dos meios utilizados, da legitimidade dos fins desejados pelo legislador, e da adequação desses meios.
CANOTILHO[29] identifica o princípio na Constituição portuguesa, denominando-o princípio da proibição do excesso. Considera esse princípio como “um subprincípio densificador do Estado de direito democrático“, de sorte que tem significado no campo específico das normas restritivas dos direitos fundamentais para que qualquer limitação efetuada pela lei ou com apoio na lei seja “adequada (apropriada), necessária (exigível) e proporcional (com justa medida)”. Vislumbra o mestre lusitano o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, igual a princípio da justa medida, daí entendendo-se que a lei restritiva não basta ser necessária e adequada, mas também isenta de “cargas coactivas de direitos, liberdades e garantias desmedidas, desajustadas, excessivas ou desproporcionadas em relação aos resultados obtidos“[30], e o da proporcionalidade em sentido amplo, ou princípio material da proibição do excesso, o qual constitui “um limite constitucional à liberdade de conformação do legislador“, impondo evidente vinculação ao exercício da discricionariedade do legislador.
O jurista português Jorge MIRANDA também faz alusão à razoabilidade, para coibir a disfunção representada pela “contradição interna da lei ou da inadequação do seu conteúdo com o seu fim“, tendo o cuidado, porém, de alertar para os riscos da aplicação do princípio da proporcionalidade como garantia constitucional, que, segundo ele, deve ser informado por uma razoabilidade proclamada pela ratio Constitutionis[31].
O Direito Administrativo brasileiro abraça os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, no sentido de que a Administração, mesmo exercendo a discricionariedade, não poderá fazê-lo com desatenção a critérios racionalmente aceitáveis, harmônicos com o senso normal, equilibrado e respeitoso das pessoas, com vistas a atingir a finalidade desejada. A sua adoção no Brasil foi finalmente pacificada no artigo 2º da Lei nº 9.784, de 1999.
Especificamente no que tange ao processo disciplinar militar, deve-se ter em mente que a imposição de eventual punição ao militar deve ser feita observando-se, necessariamente, a natureza da infração e o quantum de sua gravidade, sopesando esses dois extremos, de modo que a decisão da autoridade esteja proporcional à falta cometida e que seja razoável a imposição de eventual sanção, evitando, assim, que ocorra uma inadequação entre os meios e os fins, contrariando, por derradeiro, o previsto no inciso Vi do artigo 2º da Lei nº 9.784, de 1999.
Princípio da Motivação
Ao lado do princípio da legalidade e seus desdobramentos já apontados, o princípio da motivação surge como mais um instrumento de garantia da Administração e dos administrados quanto ao atendimento do interesse público, revestindo-se, ainda, de certo modo, em uma forma de publicidade da vontade da Administração estampada nos seus atos.
Podemos dizer que o princípio da motivação, ou melhor, o princípio da obrigatoriedade da motivação dos atos administrativos está estritamente ligado ao princípio da legalidade. Relembra-se que a atividade administrativa é instrumento da aplicação da lei e realização dos interesses públicos, vedando, por conseqüência, atuação à margem ou contra a lei.
A supremacia do interesse público sobre o particular e, no nosso caso, a manutenção dos princípios da hierarquia e da disciplina, não pode ser assegurada colocando de lado os princípios básicos do Estado de Direito.
Segundo CELSO ANTONIO[32], o princípio da motivação encontra embasamento constitucional no artigo 1º, inciso II e parágrafo único da Constituição Federal, respeitantes à valoração da cidadania e à soberania popular. No entanto, cita, ainda, pertinentemente, o autor mencionado, fundamentos decorrentes destes; como, por exemplo, o artigo 5º, XXXIII, XXXIV, “b”, e LXXII, atinentes ao direito de informação sobre dados e registros administrativos, que reforçam a idéia de dever de publicidade para propiciamento de controle da gestão pública. No mais, relaciona o caput do artigo 37 da CF, relativo ao dever administrativo de publicidade, e o artigo 93, IX e X, por aplicação analógica dos seus termos[33].
Não bastasse a Constituição ter vinculado implicitamente[34] a atividade administrativa à motivação de seus atos administrativos, a Lei nº 9.784, de 1999, foi expressa, ao tratar desse princípio no artigo 2º, caput.
Além da previsão do caput do artigo 2º da Lei nº 9.784, de 1999, o mesmo diploma legal faz menção a esse princípio no artigo 50, caput, o qual prescreve que “os atos administrativos deverão ser motivados com indicação dos fatos e fundamentos jurídicos” arrolando, nos oito incisos que se seguem, certas classes de atos administrativos que, por sua natureza especial, reclamam fundamentação, dentre eles os que “imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções” (inciso II). Além disso, o artigo 50 apresenta três parágrafos que ressaltam que a motivação deve ser explícita, clara e congruente.
E o que é realmente a motivação?
Não se deve confundir motivo com motivação do ato. A motivação é a exposição dos motivos dos atos administrativos na qual são enunciados os fundamentos normativos que os justificam, ou seja, é a demonstração de que os pressupostos de fato realmente existiram. Para que a Administração possa impor uma sanção, uma punição, deve evidenciar a ocorrência da infração, sua autoria e suas circunstâncias. A motivação, como bem nos ensina CRETELA JÚNIOR[35] , “é a justificativa do pronunciamento tomado” e arremata “em direito, o ato motivado é aquele cuja parte dispositiva ou resolutiva é precedida de exposição de razões ou fundamentos que justificam a decisão, quanto aos efeitos jurídicos”. Já o motivo, é a situação de fato por meio da qual é deflagrada a manifestação da vontade da Administração.
O exame da correspondência entre o motivo e motivação, em caso concreto, é circunstância da mais alta relevância, uma vez que permitirá ao intérprete identificar se o agente público agiu nos estritos limites de competência que lhe foram legalmente atribuídos, situação que deixa incólume seu provimento, ou quando ultrapassa dessa delimitação de atribuições, padecendo o ato de invalidade, nos diversos graus referidos pela doutrina administrativista.
O que nos parece importante ressaltar é que o dever de motivar não constitui um mero constrangimento moral do administrador ou uma liberdade a que ele doce e condescendentemente acede em observar. A motivação do ato administrativo é uma imposição que decorre do próprio sistema jurídico, e, em especial, do sistema constitucional.
FIGUEIREDO sintetiza de forma exemplar o que se pretendeu apresentar: “a motivação é a ‘pedra de toque’ para o controle da discricionariedade”.[36]
A essa afirmação podemos acrescentar que a importância da motivação estende-se a qualquer ato administrativo, não apenas àqueles emitidos no uso de uma competência discricionária, embora reconheçamos serem esses os casos em que os problemas pela falta de motivação sejam mais dissimulados.
A ilustre professora vai direto ao ponto fundamental do tema: “como se poderia fazer o controle de decisões desmotivadas?”[37] Realmente, ao desconhecer os fundamentos invocados pela Administração para justificar seus atos, o administrado acaba ficando à mercê do Estado, sem ter como impugnar um provimento eventualmente a seus direitos.
Em um sistema constitucional que acolhe o princípio republicano e o princípio do Estado de Direito Democrático como vetores cardeais da atuação estatal, o controle dos atos administrativos é uma imposição lógica. E parece ser mesmo indispensável a motivação para o controle da Administração e responsabilização de seus agentes, de um lado (talvez este seja o motivo de resistência das autoridades militares em apresentar a motivação de seus atos), e para conhecimento do povo, titular do poder, dos atos que em seu nome estejam sendo praticados.
Vale ainda ressaltar que, sem motivação, será quase impossível identificar o respeito do administrador ao ordenamento jurídico, especificamente dos princípios constitucionais que regem a Administração pública, como os princípios da legalidade, finalidade, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, dentre outros. Como conseqüência óbvia, mesmo que o administrado postule em juízo a invalidação do ato administrativo, o magistrado não terá como aferir a observância ou a violação de tais princípios.
Resta apontar que, uma vez praticado o ato administrativo sem a correspondente motivação, prévia ou contemporânea à sua edição[38], o ato será, de forma irremediável, inválido.
Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa
Os princípios do contraditório e da ampla defesa são fundamentais ao processo administrativo, os quais têm sua força e origens lançadas no próprio texto constitucional[39], diferentemente do que previa a revogada Constituição da República de 1969, que suscitava dúvida na redação do artigo 153, § 15[40]. Mais do que uma formal e aparente observância à lei, é imperativo que o administrador do Estado Democrático de Direito aja de acordo com um conjunto de regras de conduta que, num dado sistema jurídico, são tidos como os modelos comportamentais que a sociedade deseja e espera.[41]
O servidor é considerado litigante ou acusado quando se encontra em situação de controvérsia com a Administração que lhe imputa uma falta ou uma conduta ilícita. FERRAZ nesse sentido professa que “(…) ao se cuidar de processo administrativo, a palavra litigante assume feição diferenciada, apontando não só os que já tenham dissidências instauradas, mas também aqueles que possam a vir a tê-las; ou ainda mais, os que busquem instrumentalizar seus direitos de petição e de representação; e, além deles, os que estejam no desempenho de seu direito público subjetivo (constitucional) de fiscalizar o exercício administrativo (co-participação administrativa)”.[42]
A doutrina procura estabelecer um conceito para os princípios ora em exame. De um modo geral os doutrinadores fazem uma diferenciação entre os dois institutos, que concordamos, haja vista que não são idênticos e representam oportunidades distintas, embora possam ser concomitantes, de manifestação de defesa.[43]
Podemos considerar o contraditório como a oportunidade que tem o cidadão, in casu o militar, de apresentar sua versão dos fatos que lhe são apresentados pela Administração[44] e a ampla defesa como o direito a ter acesso e esclarecimentos sobre a imputação e os respectivos fatos geradores (direito de informação); possibilidade de ter vista aos autos, requerer provas, arrolar testemunhas, dentre outras (direito de manifestação); e ter suas razões examinadas e apreciadas pela Administração (direito de ter suas razões consideradas).[45]
Para que se possam efetivar os conceitos apresentados acima é necessário que a Administração tome determinadas providências a fim de fazer cumprir, efetivamente, um direito do administrado[46], ou seja, aquele assegurado no inciso LV do artigo 5º da CF. Para dar ensejo a primeira oportunidade de defesa do servidor, a Administração tem o poder-dever de chamá-lo ao processo, de forma que ele tenha conhecimento dos fatos e acusações que lhe são imputadas, conforme determina a lição de CAETANO.[47] Em momento algum a Administração perde sua supremacia ao efetivar o contraditório; pelo contrário, observa a obrigação de comunicar ao administrado a contingência de um ato administrativo que pode afetar a respectiva esfera de direitos individuais.[48]
É no momento em que o administrado é levado à audiência[49], após regular citação, que ele passa a ter conhecimento efetivo dos fatos e circunstâncias em apuração, surgindo aí sua primeira oportunidade de defender-se.
Não bastasse a previsão constante da Constituição Federal no que se refere ao contraditório e a ampla defesa, a Lei nº 9.784, de 1999, nesse sentido foi bastante enfática em diversas passagens. Não se pode descurar, no entanto, que o artigo 69 da Lei é enfático no sentido de que “os processos administrativos específicos (aí se incluindo os processos disciplinares, em especial o militar) continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei”.
Tendo em vista essa expressa ressalva legal, deve-se ter em mente que o processo administrativo disciplinar, mesmo civil, tem regulamentação própria e dispensa, até, processo formal, admitindo-se mera sindicância, para a aplicação da pena de suspensão de até 30 dias[50].
Fazendo-se analogia com o que ocorre no processo administrativo militar, em que a eventual punição pode ser aplicada no decorrer da audiência com a autoridade competente, podemos depreender que aqui, também, há uma mitigação do formalismo processual, permitindo-se, por conseqüência, que a apuração dos fatos seja feita de forma célere e objetiva, sem, contudo, caracterizar arbitrariedade ou abuso de poder. Os regulamentos disciplinares comungam dessa sistemática.[51]
No caput do artigo 2º da mencionada lei verificamos expressa referência aos princípios da ampla defesa e do contraditório, de tal sorte que no inciso X deste artigo apareça a “garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos que possam resultar sanções e nas situações de litígio”.
Especificamente do tema audiência, a lei também não silenciou: essa prerrogativa do administrado está implícita em diversos dispositivos que regulam a fase instrutória do processo administrativo. O artigo 41 da lei in comento determina a intimação dos interessados para se manifestarem sobre a prova ou diligência determinada pela autoridade competente; e o artigo 44 do mesmo diploma legal, ao estabelecer que encerrada a instrução, tem o interessado o direito de se manifestar no prazo máximo de dez dias, caso outro prazo não tiver sido fixado em lei.[52]
A defesa prévia foi outro ponto destacado na Lei comentada, ao prever, expressamente no artigo 38 caput a possibilidade do acusado, “na fase instrutória e antes da tomada da decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perícias, bem como aduzir alegações referentes à matéria objeto do processo” e no § 1º deste artigo vincula o relatório e a decisão à consideração das razões invocadas pelo acusado.
Quanto à produção de provas, em diversos pontos a Lei nº 9.784, de 1999, assegura ao acusado tal oportunidade. São as hipóteses previstas, por exemplo, nos artigos 29 e §§; 37; 41; e 44.
A Lei nº 9.784, de 1999, assegura, também, o direito do administrado de se fazer assistir de profissional habilitado para a defesa de seus interesses junto à Administração, conforme prevê o artigo 3º, inciso IV. Conforme já demonstrado anteriormente, em se tratando da possibilidade de aplicação de sanção, melhor seria que em todos os processos disciplinares o acusado tivesse a assessoria e orientação, pelo menos prévia, de um profissional da área jurídica, a fim de que os seus direitos assegurados em preceitos constitucionais fossem observados, cabendo até, a nomeação de defensor dativo se ausente[53]. Relembre-se, por oportuno que nem sempre isso é possível, em razão de circunstâncias excepcionais que envolvem a atividade militar.
Ainda em relação ao contraditório e a ampla defesa, é fundamental acabar com a idéia da verdade sabida ou coisa que lhe valha. Isso não tem sentido a partir do momento em que a Constituição deu ao processo administrativo as garantias da ampla defesa e do contraditório. O que devemos perseguir é a busca da verdade real, ainda que redundante a expressão, mas aquela verdade efetiva, o que realmente ocorreu no caso em exame, não interessando a verdade sabida ou a verdade processual, ou a verdade que foi possível colher na controvérsia.
Há para a Administração a obrigação de apurar a efetiva verdade e ela não se compadece com os mecanismos tradicionais da verdade sabida e outros. Dessa forma, não há hipótese de qualquer tipo de processo administrativo que escape ao escopo dos princípios constitucionais. Conseqüentemente não é possível admitir que pela simples dicção da autoridade ou do agente ou pela simples impossibilidade da autoridade e do agente de fazerem a prova daquilo que está sendo trazido à aferição se chegue a conclusão que tem fé dominante a palavra do administrador e conseqüentemente saber que a “verdade” é aquela e que contra ela se possa aplicar uma sanção administrativa ou instaurar um processo administrativo punitivo complexo.
Por derradeiro, podemos concluir, então, que a busca da verdade efetiva é uma garantia ao exercício do contraditório e da ampla defesa.
CONCLUSÃO
À luz do que foi resumidamente apresentado, se pode verificar que a mera observância da lei stricto sensu por parte da Administração Pública não é suficiente para se garantir a manutenção do Estado de Direito, ainda mais em se tratando de um Estado Democrático.
Os princípios no âmbito do direito público e mais especificamente no contexto da Administração Pública têm ganhado mais importância a cada dia, decorrente da jurisprudência dos tribunais superiores, bem como pelo posicionamento da doutrina em colocá-los, como ocorre no direito alienígena, como verdadeira norma jurídica de natureza objetiva.
Mestre em Direito da Administração Pública; Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais; Pós Graduado em Estratégia e Relações Internacionais; Especialista em Globalização e Brasil Contemporâneo – ESG; Professor dos Cursos de Pós Graduação e Graduação da UNESA; Instrutor do Curso de Formação de Juízes Militares – MB; Assessor Jurídico Militar no RJ; Autor do Livro Processo Administrativo Militar à luz da Constituição Federal e da Lei nº 9784/1999, editado pela Lumen Juris
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