Resumo: Ressalta-se que a preocupação do Constituinte com a função social da propriedade também pode ser observada nos arts. 182 e 186 da Constituição da República ao prescrever que a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo promover o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade bem como os critérios para o cumprimento da função social da propriedade rural.
A Constituição da República de 1988, em dois momentos distintos, nos arts. 5º, inciso XXIII, e 170, inciso III, logo após garantir o direito de propriedade (incisos XXII e II dos arts. 5º e 170, respectivamente), prescreveu a necessidade de se observar a sua função social.[1]
Ressalta-se que a preocupação do Constituinte com a função social da propriedade também pode ser observada nos arts. 182 e 186 da Constituição da República, ao prescrever que a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo promover o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, bem como os critérios para o cumprimento da função social da propriedade rural.[2]
Frise-se novamente, como já exposto no capítulo anterior, quando a nossa Carta Maior se refere à função social da propriedade, ao prescrevê-la no capítulo constitucional “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, bem como ao elevá-la como princípio da ordem econômica, na realidade, está exigindo que qualquer bem de valor econômico, independentemente de sua natureza jurídica, exerça, em sua plenitude, função social.
Apenas para corroborar o nosso posicionamento, colacionamos as lições do professor da Universidade Federal das Alagoas Paulo Luiz Netto Lôbo. Ressalta-se, entretanto, que, apesar de o citado professor referir-se ao instituto dos contratos, é patente a sua interpretação mais extensiva acerca dos princípios da propriedade privada e da função social da propriedade privada, previstos no art. 170 da Constituição da República:
“A função exclusivamente individual do contrato é incompatível com o Estado social, caracterizado, sob o ponto de vista do direito, como já vimos, pela tutela explícita da ordem econômica e social na Constituição. O art. 170 da Constituição brasileira estabelece que toda a atividade econômica – e o contrato é o instrumento dela – está submetida à primazia da justiça social. Não basta a justiça comutativa que o liberalismo jurídico entendia como exclusivamente aplicável ao contrato. Enquanto houver ordem econômica e social haverá Estado social; enquanto houver Estado social haverá função social do contrato”.[3]
Ressalta-se que ambos os preceitos constitucionais, a saber, o art. 5º, incisos XXII e XXIII, e o art. 170, incisos II e III, devem ser analisados e estudados em conjunto, sempre em conformidade com a unidade do texto constitucional, sem nos olvidar, entretanto, que enquanto o art. 5º trata da propriedade considerada em seu aspecto estático, o art. 170 cuida da propriedade em seu aspecto dinâmico, em regime empresarial, em que se inserem, por exemplo, as questões relacionadas ao know-how.[4]
Verifica-se que a idéia de observância da função social dos bens patrimoniais alterou profundamente os conceitos de propriedade, posse e, até mesmo, no caso do know-how, das quase-propriedades, entre outros institutos. Além de ser expresso que “a propriedade atenderá a sua função social”, nunca podemos olvidar que a função social dos bens de valor patrimonial é um dos princípios informadores da ordem econômica, que “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.
Dessa forma, nenhum bem de valor econômico pode ser usufruído ao bel-prazer dos seus proprietários ou detentores, o que se aplica ao caso do know-how. Assim, a utilização dos bens de valor patrimonial, necessariamente, deve ultrapassar os meros desejos individuais e alcançar os anseios sociais, em prol da comunidade e, como consequência lógica, de toda a nação.
Nesse sentido, citamos as lições de um dos maiores juristas deste País, Caio Mário da Silva Pereira, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, em um dos seus livros atualizados pelo professor Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho:
“Admitida a sobrevivência da propriedade privada como essencial à caracterização do regime capitalista, garante a ordem pública a cada um a utilização de seus bens, nos misteres normais a que se destinam. Mas, em qualquer circunstância, sobrepõe-se o social ao individual. O bem-estar de todos sobreleva às conveniências particulares. E, para realizá-lo, arma-se o legislador de poderes amplos e afirmativos. A Constituição de 1988, neste sentido, como argutamente salientado por Gustavo Tepedino, ao submeter os interesses patrimoniais aos princípios fundamentais do ordenamento (arts. 1º, 3º e 5º), ditou uma disciplina que se dirige precipuamente à compatibilidade da situação jurídica de propriedade com situações não-proprietárias, derivando de tal compatibilidade o preciso conteúdo da propriedade”.[5]
Nesse mesmo sentido, encontramos a doutrina estrangeira, ora representada pelo professor lusitano Luis S. Cabral de Moncada:
“Do exposto se conclui que a nossa Constituição trata a propriedade privada muito mais como instituto económico que como direito subjectivo acentuando preferencialmente a sua estrutura de princípio geral de organização económica a par de outros, em vez de sua estrutura defensiva de direito subjectivo liberal ‘contra o Estado’. Esta preferência acaba por determinar o tratamento constitucional da propriedade privada, ao sabor do programa econômico e social da Constituição, diminuindo o âmbito dos poderes e faculdades que tradicionalmente lhe estão associados.
A diminuição do conteúdo da propriedade privada a que se alude visa colocá-la ao serviço da satisfação de um conjunto diversificado de necessidades sociais e econômicas de acordo com o seu programa constitucional, só compatíveis com a diminuição do seu conteúdo subjectivo de oposição à intervenção dos Poderes Públicos. Entende-se por tal fenômeno a função social da propriedade privada ou seja, o surto no horizonte das preocupações jurídicas dos ‘direitos’ do todo social a expensas da propriedade privada. A função social da propriedade privada sintetiza uma parte apreciável do seu tratamento constitucional.” [6]
Ressalta-se que o texto constitucional, ao prescrever como princípio da ordem econômica a função social dos bens econômicos, pode nos fazer crer, equivocadamente, diga-se de passagem, que a funcionalização social dos referidos bens é apenas uma intenção do constituinte.
Nesse sentido, ressaltam-se as lições do professor Raul Machado Horta:
“No enunciado constitucional, há princípios-valores: soberania nacional, propriedade privada, livre concorrência. Há princípios que se confundem com intenções: reduções das desigualdades regionais, busca do pleno emprego; tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte; função social da propriedade. Há princípios de ação política: defesa do consumidor, defesa do meio ambiente”.[7]
Entretanto, o eminente professor constitucionalista José Afonso da Silva, ao tratar da efetivação da função social, leciona:
“A norma que contém o princípio da função social da propriedade incide imediatamente, é de aplicabilidade imediata, como o são todos os princípios constitucionais. A própria jurisprudência já o reconhece. Realmente, afirma-se a tese de que aquela norma ‘tem plena eficácia, porque interfere com a estrutura e o conceito da propriedade, valendo como regra que fundamenta um novo regime jurídico desta, transformando-a numa instituição de Direito Público, especialmente, ainda que nem a doutrina nem a jurisprudência tenham percebido o seu alcance, nem lhe dado aplicação adequada como se nada tivesse mudado”.[8]
Cremos que assiste razão ao professor José Afonso da Silva. O princípio constitucional da função social, por si só, é suficiente para justificar eventuais limitações às prerrogativas de proprietário. Ademais, observa-se que a função social é o alicerce para democratizar o acesso à propriedade.
Assim, várias obrigações impostas aos particulares e ou agentes econômicos (mesmo que estatais) –por exemplo, a obrigação de recuperar o solo degradado pelas mineradoras, a utilização de filtros poluentes pelas indústrias ou, ainda, a desapropriação de terras não aproveitadas economicamente – têm por objetivo limitar as prerrogativas do proprietário, observando o interesse social, sem prejudicar o exercício da atividade econômica. Há, ainda, obrigações de fazer, e não apenas limitações, impostas aos particulares e ou agentes econômicos, como as previstas no art. 182 da Constituição da República de 1988, a saber: que a propriedade urbana cumpra sua função social, atendendo às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
Não obstante, não podemos esquecer que a nossa Carta Maior optou por um regime capitalista, o que acarreta, portanto, todas as conseqüências naturais a este modelo econômico. Assim, observamos que o tratamento concedido ao know-how, obrigatoriamente, além de buscar a sua função social, deve também garantir lucros aos seus detentores, orientando-se sempre em favor de mútuos benefícios.
Tal objetivo é necessário, uma vez que o avanço tecnológico observado nos dias atuais e a reconhecida e crescente importância econômica da informação fazem com que haja um recrudescimento nas políticas governamentais de pesquisa e desenvolvimento.
Portanto, empresas, cientistas, técnicos e profissionais liberais apenas investirão em pesquisa e desenvolvimento, buscando novos tipos de know-how, se lhes forem garantidas a percepção de lucros e vantagens outras de cunho patrimonial com as suas pesquisas.
Não podemos nos esquecer de que tais investimentos em pesquisa e desenvolvimento são necessários, principalmente em países em desenvolvimento, como o nosso, para diminuir o desemprego, incrementar a produção industrial, aumentar o produto interno bruto, enfim, fortalecer a economia nacional.
Assim, observa-se que as políticas governamentais têm de se pautar sempre pela busca do equilíbrio entre os interesses públicos e privados, ou seja, entre os detentores dos mais variados tipos de know-how e a sociedade, objetivando sempre o bem comum.
Ressalta-se que a busca a que se refere o parágrafo anterior é denominada, pelos estudiosos de propriedade intelectual, de “barganha social”. Entretanto, tendo em vista que as causas e os fundamentos são semelhantes, é patente a sua aplicação para o know-how. Assim, observam-se os ensinamentos de Débora Andrade Capp acerca da “barganha social”:
“A barganha social nada mais é, na realidade, que um balanço entre interesses públicos e privados. No contexto da propriedade imaterial, alguns objetivos formam a estrutura dessa barganha, tais como o encorajamento à atividade inventiva, prêmios aos inventores e indução à publicidade (disclosure) e à aplicação industrial da invenção.”[9]
Vê-se a importância de os mais variados preceitos constitucionais, sobretudo no tocante à função social dos bens de valor patrimonial, serem analisados e estudados em sua integralidade, buscando sempre a unidade do texto constitucional.
Mestre em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da UFMG, Ex-Subprocurador-Geral Federal Substituto, Ex-Chefe de Gabinete da Procuradoria-Geral Federal, Ex-Membro do Conselho Consultivo da Escola da AGU, Ex-Coordenador-Geral de Administração das Procuradorias da PFE/INSS, Ex-Chefe da Divisão de Planejamento e Gestão da Procuradoria-Geral Federal, Ex-Chefe do Serviço de Matéria Administrativa da Procuradoria-Regional do INSS da 1a Região
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