A hierarquia dos tratados internacionais de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro sob a ótica do neoconstitucionalismo

Resumo: Existem na doutrina quatro teses referentes ao nível hierárquico atribuído aos tratados internacionais de direitos humanos quando adentram ao ordenamento jurídico brasileiro: a) supraconstitucional; b)constitucional; c) supralegal; e d) lei ordinária. Este estudo tem o objetivo de identificar qual desses quatro níveis hierárquicos atribuídos aos tratados internacionais de direitos humanos mais se coaduna com a visão do neoconstitucionalismo. Para tal estudo foi utilizada a pesquisa bibliográfica, com dados coletados em livros, artigos científicos, leis e jurisprudências. Ao analisarmos o processo histórico de formação dos direitos humanos constatamos que o mesmo se encontra na fase de reconstrução após Segunda Guerra Mundial, por isso necessitam ser universalizados e internacionalizados sob pena de haver o retrocesso no campo do reconhecimento dos direitos humanos. Para o êxito dessa fase de reconstrução, necessário se faz a internalização dos direitos humanos constante dos tratados internacionais de direitos humanos e atribuir-lhes uma hierarquia dentro do ordenamento jurídico que lhes garanta a proteção contra as arbitrariedades. Portanto, chegamos a conclusão de que no ordenamento jurídico o nível hierárquico que melhor protege os direitos humanos é a de norma constitucional, tendo em vista a teoria neoconstitucionalista que defende a supremacia da Constituição e a irradiação de seus princípios por todo o ordenamento jurídico.


Palavras-Chave: Direitos Humanos, Tratados Internacionais, Neoconstitucionalismo, Interpretação Constitucional, Processo de Internalização.


Sumário: Introdução; 1 O que são direitos humanos, 1.1 Definição e fundamentação dos direitos humanos, 1.2 Distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais, 1.3 História da construção dos direitos humanos; 2. Neoconstitucionalismo, 2.1 A Sobreinterpretação da Constituição; 3. A hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos, 3.1 Processo de formação dos tratados internacionais, 3.2 A hierarquia dos tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro; Conclusão; Referências bibliográficas.


INTRODUÇÃO


Atualmente os direitos que garantem ao homem segurança contra as arbitrariedades do Estado e prestações do mesmo, obrigações negativas e positivas do ente soberano, são positivados em massa nos ordenamentos jurídicos dos países como reconhecimento da dignidade da pessoa humana (REALE, 2003).


Esse fenômeno faz parte do processo histórico de construção dos direitos humanos, o qual passa pela fase de universalização e internacionalização, estimulado pelo medo de que após a Segunda Guerra Mundial os horrores cometidos contra a humanidade retornassem (LOPES, 2005).


Para que esse processo obtenha maior eficácia não basta apenas à celebração de tratados internacionais de direitos humanos. Necessário é internalizar tais direitos e revesti-los de proteção contra arbitrariedades do legislador contra os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana (HERKENHOFF, 1994).


Nesse sentido, se faz necessária uma investigação acerca de qual nível hierárquico assumido pelos tratados internacionais de direitos humanos, quando internalizados em nosso ordenamento jurídico, melhor contribua para o processo de construção dos direitos humanos e proteção contra o retrocesso.

1. O QUE SÃO OS DIREITOS HUMANOS

1.1 Definição e fundamentação dos direitos humanos

Direitos do Homem ou humanos são aqueles inerentes à condição de ser humano, fundamentais para a manutenção dessa qualidade. Segundo Herkenhoff:

direitos humanos ou direitos do homem são, modernamente, entendidos aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir […].


[…] os Direitos Humanos constituem uma utopia.


[…] é força que alimenta a luta, é idéia, é História. Constrói-se através de muitas vozes, pelo esforço de milhares ou milhões de homens e mulheres de boa vontade” (1994, p. 30-31).


Para Sarlet os direitos humanos,


“[…] guardariam relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional , e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional” (1998, p. 31).


Já na concepção de Lopes:


“Caminho mais adequado parece-nos ser a compreensão das normas de direitos humanos como aquelas necessárias à garantia da vivência digna, do desenvolvimento e da continuidade existencial dos seres humanos e da humanidade […] Vemos, assim, os direitos humanos como os básicos, necessários e de interesse comum de todos os seres do globo e que representam os fins legitimadores não só do Estado, mas de toda organização humana: a busca da coexistência entre os homens, da liberdade possível dos indivíduos, do desenvolvimento pessoal e coletivo, do respeito à dignidade de cada um, da perpetuação da espécie e dos valores humanos”. (2005).


Contribui também para a definição o conceito de direitos humanos de Piovesan (2007), para a qual tais direitos não são dados, retirados de algo estático através da atividade de observação, tendo em vista que são construídos a partir do imaginário humano, em constante processo de construção e reconstrução, afirmando com isso a historicidade desses direitos Acrescenta ainda a seguinte lição:


“Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos são fruto de um espaço simbólico de luta e ação social, na busca por dignidade humana, o que compõe um construído axiológico emancipatório” (PIOVESAN, 2007, p. 110).


Percebe-se nesses três conceitos algumas das características dos direitos humanos, como a universalidade, indivisibilidade, fundamentalidade, supranacionalidade e historicidade. São universais na medida em que são direitos inerentes a natureza de todo ser humano, indivisíveis por não poderem ser reduzidos ou desvinculados do homem, fundamental na medida em que necessários para a sobrevivência da espécie humana, supranacional por não guardar relação a determinada ordem constitucional e históricos porque frutos da luta constante dos povos pela dignidade humana.


A identificação de um direito como sendo inerente e fundamental à condição humana é um processo muito vago e subjetivo, pois a concepção do que seja direitos humanos é muito ligada com os valores morais, a cultura e tradição de cada povo. Nesse sentido, a dignidade da pessoa humana para uma população de um determinado país do ocidente pode ser diferente para uma população de um país no oriente (HERKENHOFF, 1994).


Porém, conforme Lopes (2005) por mais que os direitos humanos tenham um terreno fértil para a definição de sua significação, deve-se eleger um padrão mínimo aceitável mundialmente para que guardem as suas características da universalidade e da indivisibilidade.


Cabe salientaros que o processo de identificação de direitos humanos necessários aos homens, deve ser algo em constante execução, ou seja, um processo sem fim que acompanha o desenvolver da humanidade, pois a cada nova exigência que surge com as etapas do desenvolvimento humano há um novo direito humano a ser reconhecido e identificado como inerente à condição atual do homem (HERKENHOFF, 1994). Compartilha desse entendimento Silva:


“O reconhecimento dos direitos fundamentais do homem, em enunciados explícitos nas declarações de direitos, é coisa recente, e está longe de se esgotarem suas possibilidades, já que cada passo na etapa da evolução da Humanidade importa na conquista de novos direitos” (2005, p. 149).


Herkenhoff mesmo reconhecendo que o processo de proclamação dos direitos humanos sofre o perigo de um desgaste e descrença da opinião pública por não serem efetivamente concretizados, acredita que a fase de proclamação de direitos não está encerrada e, nesse sentido, afirma:


“A história é o movimento dialético, a ampliação de direitos não se esgota. Novos direitos estão sendo reclamados, minorias tomam consciência de sua dignidade” (1994, p. 63).


1.2 Distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais


Na doutrina constitucional há uma confusão terminológica nos que diz respeito aos termos “direitos humanos” e “direitos fundamentais”, que por muitos são tratados como sinônimos. O termo direitos humanos é mais utilizado pelos doutrinadores do direito internacional e direitos fundamentais pelos doutrinadores do direito constitucional (SARLET, 1998).


Canotilho faz a seguinte distinção:


“Segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu carácter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta” (apud LOPES, 2005)


Contribui também para a solução desse imbróglio terminológico Sarlet:


“[…] cumpre traçar uma distinção, ainda que de cunho predominantemente didático, entre as expressões direitos do homem (no sentido de direitos naturais não, ou ainda não positivados), direitos humanos (positivados na esfera do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado)” (1998, p. 32)


Portanto, concluímos que quando nos referirmos aos direitos humanos estaremos tratando de direitos inerentes à natureza humana reconhecidos em documentos internacionais, tais como os tratados internacionais mais comumente utilizados para esse objetivo. Por outra banda, quando tratarmos de direitos fundamentais estaremos nos referindo aos direitos humanos reconhecidos e positivados nas Constituições de cada Estado como uma atitude estatal de proteção desses direitos (SARLET, 1998).


Também contribui a afirmação de Pedro C. Villalon (apud SARLET, 1998, p. 33), para o qual os direitos fundamentais são aqueles que se originam e acabam com as Constituições.


Entretanto, reconhecer essa distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais não significa descartar a estreita relação entre ambos, tendo em vista que a maioria das Constituições posteriores à segunda guerra mundial utilizou como fonte de inspiração tanto os documentos internacionais de direitos humanos, como por exemplo, a Declaração Universal de 1948, como os documentos regionais que positivaram tais direitos, ou seja, tanto os direito humanos como os fundamentais serviram de base para a construção e promulgação de Constituições que respeitam e protegem os direitos inerentes à condição humana (SARLET, 1998, p. 33).


Nesse sentido afirma Sarlet (1998) que esse processo de aproximação e harmonização entre o conteúdo das declarações internacionais e dos textos constitucionais fez surgir o direito constitucional internacional e uma nova terminologia, “direitos humanos fundamentais”, que por mais que não finalize essa distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais, ao menos indica que,


“[…] relativamente aos direitos humanos de matriz internacional, que também estes dizem com o reconhecimento e proteção de certos valores e reivindicações essenciais a todos os seres humanos, destacando, neste sentido, a fundamentalidade em sentido material” (1998, p. 33)


Sarlet (1998, p. 34) acrescenta ainda mais uma distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais quanto ao grau de eficácia alcançada por cada um deles. Para este autor os direitos fundamentais alcançam maior efetividade, ao menos em regra, tendo em vista a existência de instâncias dotada do poder de garantir a efetiva aplicação desses direitos.


No caso dos direitos humanos a eficácia em um determinado Estado depende, em regra, de recepção do ordenamento jurídico interno e do status jurídico atribuído a esses direitos (SARLET, 1998, p. 34). E nesse sentido, para garantir essa eficácia foi deflagrado o processo de internacionalização e universalização dos direitos humanos, processo que culminou com a criação de uma sistemática normativa internacional de proteção de tais direitos, tendo esse movimento como precedentes históricos o Direito humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho (PIOVESAN, 2007), assunto que exploraremos mais adiante.


Nesse sentido importante contribuição de Bobbio para o qual,


“[…] o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protêge-los […]


Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados” (1992, p. 25)


Portanto, é importante atualmente manter o processo de reconhecimento dos direitos humanos conforme vão surgindo novas necessidades com o desenvolvimento da humanidade, porém, por outro lado, há que se prezar pelo processo de internacionalização e universalização de tais direitos para garantir a sua eficácia.


1.3 História da construção dos direitos humanos


Conforme já salientamos neste trabalho como sendo característica dos direitos humanos, a formação de tais direitos se espalha pela história e ainda não teve um fim, pois estão em constante construção conforme a humanidade vai evoluindo.


A história dos direitos humanos, conforme Louis Henkinl (apud, AVANÇOS, 2006), pode ser divida entre antes e depois da Segunda Grande Guerra Mundial.


Seus pressupostos, conforme lições de Komparato (apud LOPES, 2005), remontam à antiguidade, juntamente com as leis não-escritas visualizadas pelos filósofos gregos e com o ius gentium anotado pelos jurisconsultos romanos.


Nesse mesmo sentido, Herkenhoff (1994) afirma que sendo os direitos humanos quaisquer direitos atribuídos a seres humanos, então podem ser reconhecidos desde a antiguidade, como por exemplo,


“no Código de Hamurábi (Babilônia, século XVIII antes de Cristo), no pensamento de Amenófis IV (Egito, século XIV a. C.), na filosofia de Mêncio (China, século IV a. C.), na República de Platão (Grécia, século IV a. C.), no Direito Romano e em inúmeras civilizações  e culturas ancestrais” (HERKENHOFF, 1994, p. 51).


Porém na antiguidade não era conhecida o mecanismo da limitação do poder estatal pela lei, umas das formas de garantir o respeito aos direitos humanos:


“Não obstante tenha sido Atenas o berço de relevante pensamento político, não se imaginava então a possibilidade de um estatuto de direitos oponíveis ao próprio Estado” (HERKENHOFF, 1994, p. 51).


Na antiguidade o respeito e implementação de garantias legais aos direitos humanos estavam a mercê da caridade, virtude e sabedoria dos governantes (HERKENHOFF, 1994).


Por causa desse fato histórico, muitos autores tentam estabelecer como princípio da história dos direitos humanos a implementação da técnica e opor freios ao poder estatal através da leis. No entanto alguns autores defendem tese divergente:


A simples técnica de estabelecer, em constituições e leis, a limitação do poder, embora importante, não assegura, por si só o respeito aos Direitos Humanos. Assistimos em épocas passadas e estamos assistindo, nos dias de hoje, ao desrespeito dos Direitos Humanos em países onde eles são legal e constitucionalmente garantidos. Mesmo em países de longa estabilidade política e tradição jurídica, os Direitos Humanos são, em diversas situações concretas, rasgados e vilipendiados […]


Na nossa perspectiva de análise, cremos que avançarão as sociedades políticas que adotarem o sistema de freio do poder pela lei. Entretanto, a despeito desse posicionamento, creio que não cabe menosprezar culturas que não conheceram (ou não conhecem) a técnica da limitação do poder pela lei, mas possuíram (ou possuem) outros instrumentos e parâmetros valiosos na defesa e proteção da pessoa humana” (HERKENHOFF, 1994, p. 52).


Conforme Herkenhoff (1998) a idéia de limitar o poder pela lei, ou seja, a técnica de oposição de freios aos poder, teve sua origem no século XIII. O primeiro registro de implementação dessa técnica remonta a ano de 1215, quando os bispos e barões impuseram ao rei João Sem Terra a Magna Carta. Esse também é o marco do constitucionalismo, que tem como uma de suas características a função de resguardar os governados contra a arbitrariedade estatal e, que “desencadeou conquistas liberais que vieram aproveitar a generalidade das pessoas” (HERKENHOFF, 1994, p. 56).


O habeas-corpus é um grande exemplo dessa técnica, por isso podemos considerar que a Inglaterra tem “um lugar proeminente na história do Direito” (HERKENHOFF, 1994, p. 56).


Contudo, esses documentos ingleses de origem feudal, não eram cartas de liberdade do homem comum. Assemelhavam-se a contratos nos quais os reis como suseranos se comprometiam a respeitar os direitos de seus vassalos (HERKENHOFF, 1994). Ou seja, por mais que contribuíram para a formação histórica dos direitos humanos, não eram esses documentos essencialmente declaração de direitos humanos:


“Em consonância com a estrutura social feudal, o patrimônio jurídico de cada um era determinado pelo estamento, ordem ou estado a que pertencesse[…] Em tais declarações não se cogitava de seu eventual sentido universal: os destinatários das franquias, mesmo aquelas mais gerais, eram homens livres, comerciantes e vilões ingleses” (HERKENHOFF, 1994, p. 56).


O sentido universal dos direitos humanos só foi alcançar guarida na fundamentação jusnaturalista às proclamações inglesas de direitos, nas declarações de direitos da Revolução Francesa e na Norte-Americana. Entretanto,


“Os ‘direitos do homem e do cidadão’, proclamados nessa fase histórica, quer na América, quer na Europa, tinham, entretanto, um conteúdo bastante individualista, consagrando a chamada democracia burguesa” (HERKENHOFF, 1994, p. 57).


Nesse momento da história dos direitos humanos a realização de tais direitos cabia à sociedade e não ao estado, tendo em vista que não havia ainda se configurado o Estado Social de Direito.


O Estado Social de Direito é uma configuração política do século XX, o qual traz ao seio das declarações de direitos a dimensão social do constitucionalismo, ou seja, a obrigação positiva do Estado de atuar em prol da promoção do bem-estar econômico e social dos indivíduos. Nessa configuração política não basta a obrigação do Estado de se abster nos direitos civis e políticos (HERKENHOFF, 1994).


As principais contribuições para essa dimensão social foram a Revolução Mexicana (pioneira na proclamação em 1917 de direitos dos trabalhadores e na reforma agrária), a Revolução Russa (declaração de direitos do povo e dos explorados em 1918) e a Constituição de Weimar (em 1917 insere no texto constitucional o princípio da democracia social) (HERKENHOFF, 1994).


Ainda no que concerne ao momento histórico antes da Segunda Guerra Mundial, cabe aqui identificar os precedentes históricos do processo de internacionalização dos direitos humanos, quais sejam, o Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho (PIOVESAN, 2007).


Nesse momento, segundo Bobbio (1992), os direitos humanos se concretizam como direitos positivos universais. É quando os direitos humanos já fundamentados precisam ser protegidos.


Para que os direitos humanos se internacionalizassem os conceitos de soberania estatal e status do indivíduo deveriam ser rediscutidos. Conforme Piovesan:


“[…] foi necessário redefinir o âmbito e o alcance do tradicional conceito de soberania estatal, a fim de permitir o advento dos direitos humanos como questão de legítimo interesse internacional. Foi ainda necessário redefinir o status do indivíduo no cenário internacional, para que se tornasse verdadeiro sujeito de Direito Internacional. […] essas noções contemporâneas encontram seu precedente histórico no desenvolvimento do Direito Humanitário, da Liga das Nações e da Organização Internacional do Trabalho” (2007, p. 111).


O Direito Humanitário é aquele que se aplica em tempos de Guerra com a finalidade de impor barreiras à soberania estatal para resguardar os direitos fundamentais da população civil e dos militares postos fora de combate. Nesse sentido, “[…] foi a primeira expressão de que, no plano internacional, há limites à liberdade e à autonomia dos Estados, ainda que na hipótese de conflito armado” (PIOVESAN, 2007, p. 112)


Com a mesma finalidade do Direito Humanitário de relativizar a soberania estatal, nasce no pós Primeira Guerra Mundial na tentativa de promover a cooperação, paz e segurança internacional. Por isso que, em 1920 em uma Convenção da Liga das Nações foram estabelecidas “sanções econômicas e militares a serem impostas pela comunidade internacional contra os Estados que violassem suas obrigações” (PIOVENSAN, 2007, p. 113).


Nessa mesma esteira de intenções em prol da internacionalização dos direitos humanos, surge no pós Primeira Guerra Mundial a Organização Internacional do Trabalho, a qual tinha como finalidade específica promover padrões internacionais de condições de trabalho e bem-estar.


Na visão de Piovesan, esses três precedentes históricos registram,


“[…] o fim de uma época em que o Direito Internacional era, salvo raras exceções, confinado a regular relações entre Estados, no âmbito estritamente governamental. […]


Tais institutos rompem, assim, com o conceito tradicional que situava o Direito Internacional apenas como a lei da comunidade internacional dos Estados e que sustentava ser o Estado o único sujeito de Direito Internacional. Rompem ainda com a noção de soberania nacional absoluta, na medida em que admitem intervenções no plano nacional, em prol da proteção dos direitos humanos.


Prenuncia-se o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, restrito ao domínio reservado do Estado, decorrência de sua soberania, autonomia e liberdade. Aos poucos emerge a idéia de que o indivíduo é não apenas objeto, mas também sujeito de Direito Internacional. A partir dessa perspectiva, começa a se consolidar a capacidade processual internacional dos indivíduos, bem como a concepção de que os direitos humanos não mais se limitam à exclusiva jurisdição doméstica, mas constituem matéria de legítimo interesse internacional” (2007, p. 114-117).


Agora, tratando do momento pós Segunda Guerra Mundial estaremos diante da fase de “verdadeira consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos” (PIOVESAN, 2007, p. 117). Conforme Thomas Buergenthal:


“O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte dessas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse” (apud, PIOVESAN, p. 117).


No século XX marcado por duas grandes guerras mundiais, principalmente na “Era Hitler” o ser humano se tornou descartável e por conseqüência seus direitos.


 Enquanto os períodos de guerra foram marcados como sendo épocas de ruptura com os direitos humanos o pós-guerra pode ser considerado como um tempo de reconstrução dos direitos humanos, como “paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea” (PIOVESAN, 2007, p. 118).


E nesse período pós-guerra diante da memória do holocausto, do genocídio e dentre outras formas de desrespeito aos direitos humanos é que surge a idéia da necessidade da criação de uma sistemática normativa de proteção internacional dos direitos humanos, com a devida responsabilização do Estado no domínio internacional quando aquele não protege tais direitos.


Nesse cenário o processo de internacionalização dos direitos humanos, “passa, assim, a ser uma importante resposta na busca da reconstrução de um novo paradigma, diante do repúdio internacional às atrocidades cometidas no holocausto” (PIOVESAN, 2007, p. 119).


E com o propósito de reconstruir um novo paradigma, no qual a soberania estatal passa a ser relativizada por meio dos limites impostos pelos direitos humanos que passam a ser preocupação internacional, surge as Nações Unidas na data de promulgação da Carta das Nações Unidas, em 24 de outubro de 1945, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.


Nas palavras de Piovesan se nota a importância desses fatos históricos:


“A criação das Nações Unidas, com suas agências especializadas, demarca o surgimento de uma nova ordem internacional, que instaura um novo modelo de conduta nas relações internacionais, com preocupações que incluem a manutenção da paz e segurança internacional, o desenvolvimento de relações amistosas entre os Estados, a adoção da cooperação internacional no plano econômico, social e cultural, a adoção de um padrão internacional de saúde, a proteção ao meio ambiente, a criação de uma nova ordem econômica internacional e a proteção internacional dos direitos humanos” (2007, p. 126).


No que diz respeito à Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em 10 de dezembro de 1948, pela aprovação unânime de 48 Estados, com 8 abstenções, além de ter consolidado a afirmação de uma ética universal, formatado uma ordem pública mundial com base no respeito à dignidade humana e estabelecido a condição de pessoa como único requisito para a titularidade de direitos, ou seja, primado pela universalização dos direitos humanos, esse importante documento introduziu a concepção contemporânea de direitos humanos como sendo indivisíveis, tendo em vista que estabeleceu uma relação de interdependência entre direitos civis e políticos com os dos direitos econômicos , sociais e culturais (PIOVESAN, 2007).


Nessa perspectiva os Estados passam a ter além da obrigação de não interferência nos direitos civis e políticos, a de atuar na promoção do bem-estar econômico e social. Por isso pertinente citar aqui a afirmação de Piovesan:


“Sem a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias formais, enquanto, sem a realização dos direitos civis e políticos, ou seja, sem a efetividade da liberdade entendida em seu mais amplo sentido, os direitos econômicos, sociais e culturais carecem de verdadeira significação . Não há mãos como cogitar da liberdade divorciada da justiça social, como também infrutífero pensar na justiça social divorciada da liberdade” (2007, p. 142).


Esses são os principais pontos da história dos direitos humanos, cabendo frisar que esse processo histórico ainda não teve e nunca terá fim, pois a cada nova exigência da humanidade corresponde a uma nova proclamação de direitos humanos a serem alcançados pelo clamor popular por “dias melhores”.


Também nesse sentido de constante construção dos direitos humanos, contribui o processo de universalização e internacionalização, através da abertura dos ordenamentos jurídicos dos Estados para a recepção ampla e irrestrita das declarações de direitos humanos que surjam da celebração acordos internacionais de vontade firmados entre os Estados. Trata-se da internalização de tais direitos (PIOVESAN, 2007).


Com essa conquista, a ampla recepção de direitos humanos pelo ordenamento jurídico dos Estados, jusnatuestaremos no caminho que tem como resultado a perfeita equivalência entre direitos humanos e direitos fundamentais, tendo em vista que os direitos reconhecidos internacionalmente serão os mesmo positivados no ordenamento jurídico dos Estados. Nesse momento estaremos diante de um “autêntico direito constitucional internacional” (SARLET, 1998, p. 131).


2. NEOCONSTITUCIONALISMO


Hodiernamente existem várias teorias constitucionais consideradas individualmente, todas com o mesmo desejo finalístico de obter no direito um forte instrumento de transformação da sociedade. Na verdade todas essas teorias compõem uma unidade representada pelo neoconstitucionalismo (MOREIRA, 2008-a).


O neoconstitucionalismo é uma nova teoria do direito, cujos pressupostos apareceram no pós 2ª Guerra Mundial, especialmente na Alemanha e Itália (BARROSO, 2008).


Nesse período a Europa ocidental passava pelo processo de reconstitucionalização que no decorrer da segunda metade do século XX redefiniu o lugar da constituição e a influência do direito constitucional. Porém só no início do século XXI, que essa nova teoria do direito é batizada pela doutrina como neoconstitucionalismo (MOREIRA, 2008-a).


Como uma teoria do direito, o neoconstitucionalismo pode ser compreendido como um novo modelo que revisa  as teorias da norma, das fontes e da interpretação, as quais se aglutinam sob uma base útil e transformadora da teoria e prática dos diversos campos jurídico (MOREIRA, 2008-a).


Ao revisar a teoria da norma o neoconstitucionalismo passa a incluir os princípios no centro do estudo do direito, ou seja, o direito passa a apresentar uma estrutura principiológica. Ao se referir da teoria da norma anterior ao neoconstitucionalismo, Moreira afirma o seguinte:


“Aquela que partia da lei e de seus estudos estáticos fica completamente transformada no neoconstitucionalismo. Somente o estudo aprofundado dos critérios jurídico-procedimentais (como a ponderação e a coerência) e sua repercussão na prática, aponta para um novo caminho, bem distante daquele encontrado na teoria da norma” (2008-a).


Além dessa mudança apresentada pela teoria da norma com a adoção da estrutura principiológica do direito, houve o surgimento de uma nova técnica de interpretação constitucional, a derrotabilidade, a qual traz a possibilidade de uma norma continuar válida mesmo tendo seus efeitos negados em um caso excepcional (MOREIRA, 2008-a).


Em uma nova teoria das fontes o neoconstitucionalismo passa a desprezar a ordem estabelecida das fontes supletivas à lei, tendo em vista que a força dos preceitos constitucionais faz desaparecer lacunas jurídicas e as antinomias entre leis, ou seja, não há que se falar em lacunas em antinomias, pois a constituição preenche todos os espaços. Tudo tem que se adequar à constituição e nesse sentido toda interpretação se torna uma interpretação constitucional (MOREIRA, 2008-b).


Para Moreira o neoconstitucionalismo,


“[…] aprofunda o papel da Constituição como fonte e amplia a potencialidade da hermenêutica constitucional, ao atribuir dimensão de relevância aos princípios jusfundamentais – incluídos os direitos humanos -, à argumentação jurídica e, consequentemente, revoluciona a estrutura legal com uma (necessária) revisão das fontes do direito.


Todo ordenamento deve ser estudado a partir da Constituição como eixo, interligando as leis, as decisões jurídicas e as práticas sociais”. (2008-b, p. 175).


Entretanto o neoconstitucionalismo “[…] não se encerra em proposta de teoria de direito, pois também deseja ser proposta de filosofia do direito e proposta de teoria política”. (MOREIRA, 2008-a).


Como filosofia do direito o neoconstitucionalismo preocupa-se:


“com o cientista do direito conectado ao que ocorre no mundo; com as derivações concretas das leis; com a conexão do direito através de parâmetros de racionalidade e intersubjetivos; com a relação necessária com a moral e com a política, estas guiadas por uma pretensão de correção; com a preocupação de um direito avaliado por critérios de coerência e de proporcionalidade; com o direito exposto por uma sólida teoria da argumentação, enfim um direito que alcança outros patamares até onde ele pode ser (MOREIRA, 2008-a).


Já como filosofia política o neoconstitucionalismo:


“redefine o papel dos elementos do estado num mundo cosmopolita; também tem orientação para ver o impacto das decisões constitucionais na população de uma maneira especial, a participação popular, que surge, por vezes, de uma (ainda crescente) cultura constitucional, já trabalhada no sentido de um sentimento ou patriotismo constitucional. Elementos de Estado, da crise de representatividade, de blocos continentais e de multiculturalismo, tudo isso é debatido dentro e a partir do viés constitucional na dimensão de filosofia política do neoconstitucionalismo” (MOREIRA, 2008-a).


Ou seja, o neoconstitucionalismo como teoria do direito, filosofia do direito e filosofia política, tem a pretensão de ser um novo paradigma para a concepção do direito. Uma concepção que se utiliza da correção como um critério racional regulador do direito, pois não enxerga o direito somente nas leis, mas também e primordialmente na ordem jurídica constitucional, da qual se extraem os princípios e diretrizes que irão guiar a produção do direito e as decisões judiciais.


Nesse sentido sabia são as palavras de Jürgen Habermas:


“O direito não se identifica com a totalidade das leis escritas. Em certas circunstâncias, pode haver um ‘mais’ de direito em relação ao estatutos positivos do poder do Estado, que tem a sua fonte na ordem jurídica constitucional como uma totalidade de sentido e que pode servir de corretivo para a lei escrita; é tarefa da jurisdição encontra-lo e realiza-lo em suas decisões” (apud, MOREIRA, 2008-b, p. 49).


2.1 A Sobreinterpretação da Constituição


Um dos principais pressupostos do neoconstitucionalismo, a sobreinterpretação é a teoria da interpretação do neoconstitucionalismo (MOREIRA, 2008-b). Para essa nova teoria da interpretação os princípios, outrora fonte subsidiária, tem papel fundamental na regência das leis. Portanto, “toda e qualquer norma jurídica – não só as leis, mas a sua concretização, a jurisprudência – deve condicionar-se à sobreinterpretação dos princípios jusfundamentais” (MOREIRA, 2008-b, p. 81).


O significado desse neologismo é explicado por Moreira:


“O prefixo sobre à palavra interpretação forma um neologismo que põe em evidência a força normativa da Constituição no processo de hermenêutica jurídica” (2008-b, 9. 82).


A sobreinterpretação tem o significado de que toda produção legislativa e decisão judicial fica condicionada ao filtro constitucional, ou seja, condicionam-se à verificação de compatibilidade com a Constituição. Por isso, nos dizeres de Moreira, toda interpretação jurídica é interpretação constitucional (2008-b).


Essa vinculação à Constituição realizada pela sobreinterpretação se dá de três formas: a) direta; b) indireta por juízo negativo; e c) indireta por juízo finalístico (MOREIRA, 2008-b).


Diretamente ocorre a sobreintepretação, ou a vinculação ao texto constitucional, quando uma decisão judicial se baseia em um princípio ou norma constitucional. De forma indireta por juízo negativo quando a decisão não faz menção a alguma inconstitucionalidade, tendo em vista que o dispositivo passou ileso pelo exame de compatibilidade com o texto constitucional. E, por último, quanto a indireta por juízo finalístico, esta ocorre sempre quando a decisão seguir orientação constitucional (MOREIRA, 2008-b).


Ou seja, a Constituição assume no neoconstitucionalismo absoluta supremacia dentro do ordenamento jurídico e dela irradia a força normativa para a totalidade. Por isso, toda interpretação tem que buscar se coadunar com os seus fins, seus princípios (MOREIRA, 2008-b).


Nesse sentido toda regra é passível de interpretação, pois ela não é completa em si, há a exigência de se compatibilizar com os princípios constitucionais através da sobreinterpretação. “A abertura do texto constitucional enterrou, de uma vez por todas, a noção de que somente o texto legal que não fosse claro deveria ser interpretado” (MOREIRA, 2008-b, p. 84).


Em suma, a sobreinterpretação tem um papel significativo para a teoria neoconstitucional do direito, tendo em vista que eleva a importância da Constituição como norteadora de todo ordenamento jurídico através de seus princípios e normas. É a sobreinterpretação um instrumento de irradiação da força normativa da Constituição e nesse sentido contribui para a consolidação do Estado Constitucional de Direito.


3. A HIERARQUIA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS 

3.1 Processo de formação dos tratados internacionais


Antes de adentrarmos no objeto específico desse capítulo, qual seja a verificação da hierarquia que os tratados internacionais de direitos humanos assumem no ordenamento jurídico brasileiro, faremos uma introdução sobre o significado dos tratados internacionais lato sensu e o seu processo de formação.


Os tratados internacionais são definidos pela doutrina como acordos internacionais firmados entre sujeitos de Direito Internacional, gerando obrigação entre as partes e vinculação ao objeto definido no acordo. Segundo Piovesan “foi com o crescente positivismo internacional que os tratados se tornaram a fonte maior de obrigação no plano internacional, papel então reservado ao costume internacional” (2007, p. 43).


Louis Henkin contribui também para a definição do termo:


“O termo ‘tratado’ é geralmente usado para se referir aos acordos obrigatórios celebrados entre sujeitos de Direito Internacional, que são regulados pelo Direito Internacional. Além do termo ‘tratado’, diversas outras denominações são usadas para se referir aos acordos internacionais. As mais comuns são Convenção, Pacto, Protocolo, Carta, Convênio, como também Tratado ou Acordo Internacional. Alguns termos são usados para denotar solenidade (por exemplo, Pacto ou Carta) ou a natureza suplementar do acordo (Protocolo)” (apud, PIOVESAN, 2007, p. 46).


Em 1969 foi concluída a elaboração da Convenção de Viena, designada a Lei dos Tratados, a qual disciplina e regula o processo de formação dos tratados internacionais. Conforme Rebecca M.M. Wallace “para os fins da Convenção, o termo ‘tratado’ significa um acordo internacional concluídos entre Estados, na forma escrita e regulada pelo Direito Internacional” (apud, PIOVESAN, 2007, p. 44).  Portanto na definição de tratado da Convenção de Viena somente os Estados podem expressar o consentimento na adoção de um tratado internacional.


Outra regra importante para o estudo aqui desenvolvido é o que consta do art. 27 da referida Convenção: “Uma parte não pode invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o não-cumprimento do tratado” (apud, PIOVESAN, 2007, p. 45). Essa regra consagra o princípio da boa-fé, tendo em vista que como o Estado parte agindo livremente contrai obrigações na ordem internacional e por isso deve respeitar o que foi acordado no tratado.


Nesse sentido, não pode deixar de cumprir a obrigação a qual se vinculou alegando dispositivo de seu ordenamento interno, pois não foi forçado a aceitar o conteúdo do tratado e por isso tem que respeitar o tratado. Inclusive, conforme dispõe o art. 52 da Convenção de Viena, é nulo o tratado quando sua aprovação se der mediante emprego de ameaça ou uso de força.


Por isso, incompreensível a atitude de alguns Estado que desrespeitam os tratados internacionais por eles acordados livremente. Além da liberdade no exercício da expressão da vontade, existe a possibilidade de fazer reservas e após a aprovação há ainda a hipótese de denúncia do tratado. O primeiro instituto consiste em uma declaração unilateral feita pelo Estado, quando da assinatura, ratificação, acessão, adesão ou aprovação de um tratado, com o propósito de excluir ou modificar o efeito jurídico de certas previsões do tratado, quando da sua aplicação no respectivo Estado. Quanto ao segundo, trata-se de um ato unilateral pelo qual um Estado manifesta a sua vontade de deixar de ser parte no tratado.


O processo de formação do tratado internacional varia de Estado para Estado, porém geralmente tem início com os atos de negociação, conclusão e assinatura do tratado pelo poder executivo. Essa fase que culmina com a assinatura representa apenas,


“um aceite precário e provisório, não irradiando efeitos jurídicos vinculantes. Trata-se de mera aquiescência do estado em relação à forma e ao conteúdo final do tratado. A assinatura do contrato, via de regra, indica tão somente que o tratado é autêntico e definitivo” (PIOVESAN, 2007, p. 47).


 Logo em seguida o poder legislativo aprecia o conteúdo do tratado e aprovando o mesmo, segue para o executivo ratificar o instrumento. Na definição de Piovesan:


“A ratificação significa a subseqüente confirmação formal por um Estado de que está obrigado ao tratado. Significa, pois, o aceite definitivo, pelo qual o Estado se obriga pelo tratado no plano internacional. A ratificação é o ato jurídico que irradia necessariamente efeitos no plano internacional” (2007, p. 47).


De tal modo, com o condicionamento da efetividade do tratado à aprovação pelo executivo e posterior aprovação do legislativo, consagra-se o sistema do “checks and balances”, ou seja, a conjugação de vontade entre executivo e legislativo. A respeito desse sistema, observa Louis Henkin:


“Com efeito, o poder de celebrar tratados […] é uma autêntica expressão do constitucionalismo; claramente ele estabelece a sistemática de ‘checks and balances’. Ao atribuir o poder de celebrar tratados ao Presidente, mas apenas mediante referendo do Legislativo, busca-se limitar e descentralizar o poder de celebrar tratados, prevenindo o abuso desse poder. Para os constituintes, o motivo principal da instituição de uma particular forma de ‘checks and balances’ talvez fosse o de proteger o interesse de alguns Estados, mas o resultado foi o de evitar a concentração do poder de celebrar tratados no Executivo, como era então a experiência européia” (apud, PIOVESAN, p. 50).


A fase final do processo de formação do tratado é o deposito do instrumento de ratificação no órgão que assumiu a responsabilidade pela guarda dos referidos documentos.


No Brasil, conforme o art. 84, VIII da Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB de 1988 (BRASIL, 1998), celebrar tratados, convenções e atos internacionais é competência privativa do Presidente da República. Em contrapartida a ratificação depende do referendo do Congresso Nacional que, conforme o art. 49, I da CRFB de 1988 (BRASIL, 1988), tem a competência exclusiva de resolver definitivamente sobre os tratados, acordos ou atos internacionais. Desse modo, a CRFB de 1988 consagra a sistemática do ‘check and balances’:


“Logo, os tratados internacionais demandam, para seu aperfeiçoamento, um ato complexo no qual se integram a vontade do presidente da República que os celebra, e a do Congresso Nacional, que os aprova, mediante decreto legislativo” (PIOVESAN, 2007, p. 48).


Cabe aqui transcrever a crítica feita por Piovesan a ausência de prazos no estabelecidos pelo ordenamento jurídico pátrio para a conclusão das etapas do processo de formação dos tratados:


“Contudo, cabe observar que a Constituição brasileira de 1988, ao estabelecer apenas esses dois dispositivos supracitados (os arts. 49, I, e 84, VIII), traz uma sistemática lacunosa, falha e imperfeita: não prevê, por exemplo, prazo para que o Presidente da República encaminhe ao Congresso Nacional o tratado por ele assinado. Não há ainda previsão de prazo para que o Congresso Nacional aprecie o tratado assinado, tampouco previsão de prazo para que o Presidente da República ratifique o tratado, se aprovado pelo Congresso. Essa sistemática constitucional, ao manter ampla discricionariedade aos Poderes Executivo e Legislativo no processo de formação dos tratados, acaba por contribuir para a afronta ao princípio da boa-fé vigente no Direito Internacional. A respeito, cabe mencionar o emblemático caso da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, assinada pelo Estado brasileiro em 1969 e encaminhada à apreciação do Congresso Nacional apenas em 1992, estando ainda pendente de apreciação parlamentar” (2007, p. 50).


3.2 A hierarquia dos tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro


Questão importante quando tratamos do grau de eficácia que os direitos humanos alcançam nos ordenamentos jurídico dos Estados, é saber qual a hierarquia que os tratados internacionais de direitos humanos assumem quando internalizados ao ordenamento jurídico interno. A questão da hierarquia assumida pelos direitos humanos quando internalizados é extremamente relevante para o sucesso do processo de universalização e internacionalização de tais direitos internacionais.


“A relação entre Direito Internacional e Direito Interno no passado era fundamentalmente um interessante problema teórico, que instigava os estudiosos do direito em debates puramente doutrinários; essa relação, hoje, transformou-se em um importante problema prático, primeiramente em face da crescente adoção de tratados, cujo escopo é não mais a relação entre Estados, mas a relação entre Estados e seus próprios cidadãos. (…) A eficácia desses tratados depende essencialmente da incorporação de suas previsões no ordenamento jurídico interno” (LEARY, apud, PIOVESAN, 2007, p. 51).


Na Constituição brasileira de 1988 o processo de internalização e a definição de hierarquia normativa tem guarida, respectivamente, nos parágrafos 2º e 3º do artigo 5º:


Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [..]


§ 2º – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.


§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (BRASIL, 1998).


Como podemos observar, a Constituição brasileira abre o seu catálago de direitos fundamentais para a recepção de novos direitos e nesse sentido reconhece que não detém a pretensão de completude. Por não reconhecer a completude do seu catálago de direitos fundamentais é que a Constituição brasileira se abre para a recepção de novos direitos. Nesse sentido, conforme Konrad Hesse, A Constituição passa a ser definida como “ordem jurídica fundamental e aberta da comunidade” (apud, PIOVESAN, 2007, p. 56).


Decorrente dessa análise do parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição, que conclui pela abertura do catálogo, podemos extrair a seguinte classificação dos direitos e garantias previstos na Constituição:


“a) o dos direitos expressos na Constituição (por exemplo, os direitos elencados pelo Texto nos incisos I a LXXVII do art. 5º); b) o dos direitos expressos em tratados internacionais de que o Brasil seja parte; e, finalmente, c) o dos direitos implícitos (direitos que estão subentendidos nas regras de garantias, bem como os decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição)” (PIOVESAN, 2007, p. 58).


Portanto, podemos afirmar a partir dessa classificação que entre os direitos fundamentais expressos se encontram não só os listados no catálogo do art. 5º, mas também os expressos em tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Aqui encontramos regra constitucional que positiva os direitos humanos oriundos de tratados internacionais ratificados pelo Brasil, tornando-os direitos fundamentais porque positivados.


Desse revestimento de fundamentalidade atribuída pela interpretação do art. 5º, §2º, podemos inferir que os direitos humanos enunciados nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil são protegidos pela “cláusula pétrea” do art. 60, §4º, IV da Constituição brasileira e dotados de aplicabilidade imediata, conforme dicção do art. 5º, §1º também da mesma Constituição: “§ 1º – As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (BRASIL, 1988).


E no que concerne a norma expressa no art. 5º, §3º, introduzida pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, em relação a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos, há uma evidente atribuição de hierarquia de norma constitucional a tais direitos, desde que seus instrumentos sejam aprovados por quorum qualificado de três quintos dos membros do Congresso Nacional em dois turnos.


Desse modo passam esses direitos humanos recepcionados pelo Brasil a ser considerados material e formalmente constitucionais, tendo em vista que agora são aprovados pelo mesmo quorum exigido às emendas constitucionais (PIOVESAN, 2007).


Tal inovação constitucional que veio com o intuito de sanar as dúvidas referentes à hierarquia desses direitos internacionais, trouxe ainda mais confusão e divergências doutrinárias.


A dúvida é criada em torno dos tratados internacionais de direitos humanos aprovados antes do advento da Emenda Constitucional nº 45, os quais foram aprovados pelo mesmo quorum exigidos as leis ordinárias. Para alguns estudiosos do tema eles teriam a hierarquia de norma infraconstitucional em paridade com a lei ordinária sendo apenas materialmente constitucional, porém para outros se trataria mesmo de normas constitucionais. Na defesa desse último posicionamento citamos entendimento de Piovesan:


“Uma vez mais, corrobora-se o entendimento de que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados anteriormente ao mencionado parágrafo, ou seja, anteriormente à Emenda Constitucional n. 45/2004, têm hierarquia constitucional, situando-se como normas material e formalmente constitucionais. Esse entendimento decorre de quatro argumentos: a) a interpretação sistemática da Constituição, de forma a dialogar os §§ 2º e 3º do art. 5º, já que o último não revogou o primeiro, mas deve, ao revés, ser interpretado à luz do sistema constitucional; b) a lógica da racionalidade material que devem orientar a hermenêutica dos direitos humanos; c) a necessidade de evitar interpretações que apontem a agudos anacornismos da ordem jurídica; e d) a teoria geral da recepção do Direito brasileiro” (2007, p. 73).


Para Piovesan (2007), a inovação trazida pela Emenda Constitucional nº 45, especialmente no que diz respeito ao quorum qualificado para tornar um direito humano formalmente constitucional, só vale para os tratados internacionais de direitos humanos ainda não ratificados depois da vigência da novel emenda. Os tratados já ratificados, por outro lado, são material e formalmente constitucionais, não necessitando passar por nova votação no Congresso Nacional para ser aprovado por quorum qualificado em dois turnos para adquirir o atributo de normal formalmente constitucional.


No mesmo sentido está a decisão do Superior Tribunal de Justiça – STF, no julgamento do Recurso Ordinário em Hábeas Corpus – RHC nº 18799:


“[…] o § 3º do art. 5º da CF/88, acrescida pela EC n. 45, é taxativo ao enunciar que ‘os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais’. Ora, apesar de à época o referido Pacto ter sido aprovado com quorum de lei ordinária, é de se ressaltar que ele nunca foi revogado ou retirado do mundo jurídico, não obstante a sua rejeição decantada por decisões judiciais. De acordo com o citado § 3º, a Convenção continua em vigor, desta feita com força de emenda constitucional. A regra emanada pelo dispositivo em apreço é clara no sentido de que os tratados internacionais concernentes a direitos humanos nos quais o Brasil seja parte devem ser assimilados pela ordem jurídica do país como normas de hierarquia constitucional. Não se pode escantear que o § 1º supra determina, peremptoriamente, que ‘as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata’. Na espécie, devem ser aplicados, imediatamente, os tratados internacionais em que o Brasil seja parte. O Pacto de São José da Costa Rica foi resgatado pela no disposição (§ 3º do art. 5º), a qual possui eficácia retroativa. A tramitação de lei ordinária conferida à aprovação da mencionada Convenção […] não constituirá óbice formal de relevância superior ao conteúdo material do novo direito aclamado, não impedindo a sua retroatividade, por se tratar de acordo internacional pertinente a direitos humanos” (apud, PIOVESAN, 2007, p. 74).


E contra a paridade entra os tratados internacionais de direitos humanos e a lei ordinária, mas a favor da supralegalidade, ou seja, abaixo da Constituição e acima das leis ordinárias, o ministro do STF Gilmar Ferreira Mendes, quando de seu voto proferido no julgamento do Recurso Extraordinário – RE 466.343, em 22 de novembro de 2006:


“[…] a mudança constitucional ao menos acena para a insuficiência da tese da legalidade ordinária dos tratados já ratificados pelo Brasil, a qual tem sido preconizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o remoto julgamento do RE n. 80.004/SE […] Tudo indica, portanto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sem sombra de dúvidas, tem de ser revisitada criticamente […] Assim, a preemente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional torna imperiosa uma posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos na ordem jurídica nacional” (apud, PIOVESAN, 2007, p. 75).


Portanto, após a introdução do § 3º pela Emenda Constitucional nº 45, os tratados internacionais de direitos humanos passaram ser divididos em duas categorias: a) os materialmente constitucionais (aqueles não aprovados por quorum qualificados); e b) os material e formalmente constitucionais (aprovados por quorum qualificados).


Além dessa classificação, existe ainda a diferença entre tratados internacionais em geral e os tratados internacionais sobre direitos humanos. Como o § 3º do art. 5º só se refere a este último, cabe concluir que os primeiros aderem à teoria da paridade com a lei ordinária, tendo em vista a interpretação feita a partir da norma constitucional expressa no art. 105, III, a:


Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: […]


III – julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:


a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência”; (BRASIL, 1988).


Em relação a hierarquia atribuída aos tratados internacionais de direitos humanos, referido no início desse subtítulo, cabe agora tratar das quatro teses a respeito: a) supraconstitucional; b) constitucional; c) supralegal; d) lei ordinária.


Para os que defendem a supraconstitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, esses direitos alcançam um grau de superioridade acima da própria Constituição. Esse era um antigo entendimento do STF até 1970.


“A supremacia da ordem supranacional sobre a ordem nacional preexistente não pode ser então uma supremacia jurídica, normativa, detentora de força coativa e de imperativa. Estamos, em suma, ante um normativismo supranacional. Concluímos, pois, que as características da Constituição, como ordem jurídica suprema do direito interno, são aplicáveis em um todo às normas da Convenção, enquanto ordem jurídica suprema supranacional. Não duvidamos de que muito intérpretes resistirão a considerá-la direito supranacional e supraconstitucional, sem prejuízo dos que se negarão a considerá-la direito supranacional e supraconstitucional, sem prejuízo dos que se negarão a considerá-la sequer direito interno, ou, mesmo, direito” (GORDILLO, apud, PIOVESAN, 2007, p. 68).


 Na defesa dessa mesma tese, André Gonçalves Pereira e Fausto Quadros:


“No Brasil, a Constituição de 1988 não regula a vigência do Direito Internacional na ordem interna, salvo quanto aos tratados internacionais sobre os Direitos do Homem, quanto aos quais o art. 5º, parágrafo 2º, contém uma disposição muito próxima do art. 16, n. 1, da Constituição da República Portuguesa de 1976 que, como demonstraremos adiante, deve ser interpretada como conferindo grau supraconstitucional àqueles tratados […] ao estabelecer que ‘os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das regras aplicáveis do Direito Internacional’, o seu art. 16, n. 1, ainda que implicitamente, está a conceder grau supraconstitucional a todo o Direito Internacional dos Direitos do Homem, tanto de fonte consuetudinária, como convencional. De facto, à expressão ‘não excluem’ não pode ser concedido um alcance meramente quantitativo: ela tem de ser interpretada como querendo significar também que, em caso de conflito entre as normas constitucionais e o Direito Internacional em matéria de direitos fundamentais, será este que prevalecerá” (apud, PIOVESAN, 2007, p. 68-69).


No mesmo sentido também as lições de Marotta Rangel:


“A superioridade do tratado em relação às normas do Direito Interno é consagrada pela jurisprudência internacional e tem por fundamento a noção de unidade e solidariedade do gênero humano e deflui normalmente de princípios jurídicos fundamentais, tal como o pacta sunt servanda e o voluntas civitatis maximae est servanda” (apud, PIOVESAN, 2007, p. 70).


As vozes contrárias a esse primeiro entendimento costumam alegar que essa hierarquia ofenderia a soberania estatal. Porém esse argumento para Lopes não pode prosperar, pois:


“Os direitos fundamentais nasceram e até hoje representam uma limitação ao poder soberano, a par de também terem eficácia no meio privado. Todo o direito positivo, em si, é uma limitação, seja à liberdade individual, seja ao poder estatal. A questão da hierarquia das fontes normativas não interfere na soberania, até porque soberano é o povo e foi em nome deste que foi posta a Carta Fundamental, com base na qual é desenvolvida a controvérsia ora em apreciação” (2005).


Quanto à segunda posição, a de norma de hierarquia constitucional, a defesa é a de que essa orientação se extrai da própria natureza materialmente constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos. Conforme Piovesan:


O reconhecimento se faz explícita na Carta de 1988, ao invocar a previsão do art. 5º, § 2º. Vale dizer, se não se tratasse de matéria constitucional ficaria sem sentido tal previsão […]


A constituição de 1988 recepciona os direitos enunciados em tratados internacionais de que o Brasil é parte, conferindo-lhes natureza de norma constitucional. Isto é, os direitos constantes nos tratados internacionais integram e complementam o catálago de direitos constitucionalmente previsto, o que justifica estender a esses direitos o regime constitucional conferido aos demais direitos e garantias fundamentais.


Tal interpretação é consoante com o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais” […] (2007, p. 54 e 58).


Em seguida continua Piovesan da defesa desse entendimento:


“[…] conferir hierarquia constitucional aos tratados de direitos humanos, com a observância do princípio da prevalência da norma mais favorável, é interpretação que situa em absoluta consonância com a ordem constitucional de 1988, bem como com sua racionalidade e principiologia” (2007, p. 64).


Nesse caso, o tratado de direito internacional ao adentrar ao ordenamento jurídico pátrio, seria recebido como norma constitucional, ou seja, se transformaria em um direito fundamental (direito humano positivado na Constituição) e em conseqüência dessa transformação, em consonância com o disposto no art. 5, § 1º e art. 60, parágrafo 4º, IV, gozariam de aplicabilidade imediata e proteção contra proposta de alterações pelo poder constituinte derivado (cláusula pétrea). E caso entrasse em conflito com outro direito fundamental (direito interno), tal disputa seria resolvida pelo princípio da norma mais favorável à vítima (PIOVESAN, 2007).


Na verdade, antes mesmo do advento do art. 5, § 3º era claro a hierarquia de norma constitucional atribuída aos tratados internacionais de direitos humanos, porém não era essa a interpretação dominante, ou seja, “o próprio Supremo Tribunal Federal, órgão que poderia efetivamente promover o reconhecimento formal a partir do artigo 5º, § 2º da Constituição Federal de 1988, absteve-se de fazê-lo” (BATISTA, et. al., 2008).


Foi no intuito de sanar a controversa a respeito é que a Emenda Constitucional n. 45 foi promulgada, entretanto criou mais dúvidas, pois o § 3º ao exigir quorum qualificado dificultou ainda mais o processo de internalização de direitos humanos ao bloco de constitucionalidade (catálago) e gerou dúvidas quanto a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados antes da entrada em vigor da referida emenda.


Coaduna com esse entendimento o princípio da máxima efetividade, segundo o qual deve se dar a norma constitucional a interpretação que maior eficácia lhe dê:


“A nenhuma norma constitucional se pode dar interpretação que lhe retire ou diminua a razão de ser. Considerando os princípios da força normativa da Constituição e da ótima concretização da norma, à norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê, especialmente quando se trata de norma instituidora de direitos e garantias fundamentais” (PIOVESAN, 2007, p. 59).


Em tom de crítica Lopes defende a tese de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 45 no que tange ao texto do § 3º do art. 5º:


“Sem embargo disso, para quem crê, como nós, que as normas internacionais de direitos humanos já haviam ingressado em nosso sistema de direito como niveladas às já expressas na Lei Maior, qualquer emenda à Carta Fundamental que negue tal presença normativa é abolitiva de direitos e garantias fundamentais, estando, portanto, em conflitos com a cláusula pétrea do art. 60, parágrafo 4º, IV, CR, sendo, pois, inválida” (2005).


Como proposta para dirimir a controversa em relação aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados anteriormente a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45 foi sugerido o seguinte:


“Como alternativa a esse problema, buscamos no Direito Comparado experiências de países que alteraram o status dos tratados de direitos humanos, atribuindo-lhes hierarquia constitucional. A contribuição que nos pareceu mais adequada foi a da Constituição Argentina que, antes de estabelecer o procedimento de constitucionalização desses tratados, elenca quais dentre os já ratificados deveriam ter o mesmo tratamento” (BATISTA, et. al., 2008).


O terceiro entendimento consagra a hierarquia infraconstitucional, porém supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos. Esse é o entendimento que atualmente mais tem possibilidade de reverter a jurisprudência do STF que desde 1977 adota a tese de paridade. Nesse sentido estão os votos proferidos pelos ministros Sepúlveda Pertence e Gilmar Ferreira Mendes, respectivamente, no RHC nº 79.785-RJ de maio de 200 e no RE nº 466.343 de 22 de novembro de 2006 (apud PIOVESAN, 2007).


Porém o entendimento dominante, inclusive acolhido pelo STF a partir de 1977, é o da paridade entre tratado internacional e lei federal. Para Celso Duvivier Albuquerque de Melo:


“A tendência é a de um verdadeiro retrocesso nesta matéria. No recurso extraordinário n. 80.004, decidido em 1977, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que uma lei revoga o tratado anterior. Esta decisão viola também a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969) que não admite o término de tratado por mudança de direito superveniente” (apud PIOVESAN, 2007, p. 62).


Adotando esse entendimento, estando encontrando-se em conflito lei ordinária com tratado internacional de direitos humanos, a solução é a aplicação das máximas: a) lei posterior revoga lei anterior; e b) lei específica revoga lei genérica.


Tal tese entra em conflito com o princípio internacional da boa-fé no relacionamento entre Estados e contra o disposto no art. 27 da referida Convenção de Viena, a qual dispõe que “uma parte não pode invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o não-cumprimento do tratado” (apud PIOVESAN, 2007, p. 62).


Entende Piovesan que tal não deveria ser o tratamento adequado dispensado aos tratados internacionais de direitos humanos, tendo em vista que esses se distinguem dos tratados internacionais em geral na medida em que estabelecem a obrigação aos Estados de salvaguardar prerrogativas (direitos humanos) de seus indivíduos e não prerrogativas dos Estados (PIOVESAN, 2007).


Também apontando para a mesma corrente de pensamento de Piovesan, A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua Opinião Consultiva nº 2 de setembro de 1982 afirma o seguinte:


“Ao aprovar estes tratados sobre direitos humanos, os Estados se submetem a uma ordem legal dentro da qual eles, em prol do bem comum, assumem várias obrigações, não em relação aos outros Estados, mas em relação aos indivíduos que estão sob sua jurisdição” (PIOVESAN, 2007, p. 65).


CONCLUSÃO


Ao partir do princípio de que os direitos humanos são frutos de uma constante construção, fruto de um processo histórico sem fim, podemos afirmar que estamos diante de mais uma etapa de construção desses direitos que precisa ser tocada adiante sob pena de retrocesso.


Nessa fase da história dos direitos humanos temos a tarefa de universalizar e internacionaliza-los através da positivação desses direitos internacionais nos ordenamentos jurídicos dos Estados com o intuito de revestir de maior eficácia a proteção à dignidade da pessoa humana e que não ocorra retrocesso.


Nesse sentido é que a doutrina nacional se debate em torno da definição da hierarquia alcançada pelos tratados internacionais de direitos humanos quando adentram o ordenamento jurídico brasileiro.


Dependendo do grau hierárquico alcançado pelo tratado, maior será sua eficácia ou até mesmo nula.


Por isso, dentre as quatro hipóteses apresentadas durante esse trabalho, a que mais se coaduna com os anseios do processo histórico dos direitos humanos e com a nova teoria neoconstitucional do direito, é a que atribui aos tratados internacionais de direitos humanos, ratificados pelo Brasil, o status de norma constitucional.


Chega-se a tal conclusão quando relembramos os pressupostos lançados durante esse trabalho. Quando falamos de uma teoria neoconstitucional, nos referimos a uma concepção do direito que tem na Constituição a base principal de toda e qualquer interpretação jurídica. Por isso, toda interpretação jurídica é uma interpretação constitucional, baseada em princípios e normas desse texto maior. Toda interpretação deve estar de acordo com a Constituição.


Então partindo de uma interpretação constitucional, ao buscar a interpretação que mais se coaduna com o espírito da Constituição, localizamos alguns dispositivos desse texto que serve para resolver esse imbróglio hermenêutico.


No art. 1º, III da Constituição brasileira, encontramos como fundamento da República Federativa do Brasil o princípio da dignidade da pessoa humana. Logo mais a frente encontramos no art. 4º, II o princípio da prevalência dos direitos humanos como norteador das relações internacionais do Brasil.


Interpretando o art. 5º, § 2º com base nos princípios da dignidade da pessoa humana e no da prevalência dos direitos humanos, podemos concluir através da utilização da sobreinterpretação, ou seja, através da interpretação que coloca a Constituição acima de tudo com poder irradiante sobre todo o ordenamento, ao abrir o catálogo dos direitos fundamentais explícitos no texto constitucional a outros direitos decorrentes dos tratados internacionais de direitos humanos, quis o constituinte originário proteger os direitos humanos reconhecidos no plano internacional pelo Brasil.


Tal proteção só efetivamente ocorreria se esses direitos adquirissem os mesmos atributos dos direitos fundamentais, quais sejam, direitos material e formalmente constitucionais, blindados contra o poder reformador e munidos de aplicabilidade imediata. Caso contrário, ou seja, se não fosse essa a real intenção do constituinte originário, não faria sentido reconhecer tais direitos como direitos fundamentais se não os revestisse de proteção contra atos normativos inferiores.


Essa interpretação é a que dá maior eficácia ao texto da Constituição, pois abre o ordenamento jurídico ao processo histórico de construção dos direitos humanos, ou seja, é a que mais realiza a dignidade da pessoa humana.


E no que refere ao § 3º do art. 5, propugnamos pela inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 45 que inseriu tal dispositivo no texto da Constituição, tendo em vista que fere a cláusula pétrea expressa no art. 60, § 4º, IV ao tentar restringir a eficácia de direitos que garantem a dignidade da pessoa humana.


Além disso, como no plano internacional o país deve se guiar pela prevalência dos direitos humanos, não faria sentido assinar um acordo que em seu ordenamento interno irá desrespeitar, pois não estaria completando o sentido do princípio, que é o de proteger a dignidade humana dos indivíduos que residem em solo brasileiro através da celebração de tratados e acordos de direitos humanos.


Nesse sentido também cai por terra o argumento de que essa recepção dos tratados internacionais de direitos humanos como norma constitucional ofenderia a soberania nacional, tendo em vista que esses tipos de acordos obrigam o Estado brasileiro em relação aos seus indivíduos e não a outros Estados.


Em suma, tendo como base a ótica do neoconstitucionalismo, concluí-se pela natureza de normas constitucionais dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, independente do quorum de aprovação.


 


Referências bibliográficas

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Informações Sobre o Autor

Willian Cézar Nonato da Costa

Advogado no Estado de Mato Grosso


Equipe Âmbito Jurídico

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