Resumo: O presente paper tem a finalidade de expor os principais pontos da obra A Identidade do Sujeito Constitucional, do jurista estadunidense Michel Rosenfeld. A obra é muito instigante no que toca ao contínuo diálogo que o autor estabelece com a filosofia e a psicanálise, com o qual demonstra o caráter aberto, e por vezes ambíguo, que a identidade constitucional, entendida na tríplice acepção de sujeito constituinte, destinatários da constituição (povo) e conteúdo constitucional, assume no contínuo processo de adequação sócio-histórica.
Palavras-chave: Constitucionalismo – Pluralismo – Identidade do Sujeito Constitucional.
Sumário: 1. Nota biográfica 2. Relação constitucionalismo e pluralismo 3. A natureza evasiva do sujeito e da identidade constitucional 4. A formação da identidade do sujeito constitucional 5. A necessidade de reconstrução da identidade constitucional 6. Instrumentos de reconstrução da identidade constitucional: a negação, a metáfora e a metonímia 6.1 A negação 6.2 A metáfora 6.3 A metonímia 7. Conclusão 8. Referências
1. Nota biográfica
MICHEL ROSENFELD, titular da Cátedra Justice Sidney L. Robins de Direitos Humanos da Benjamim N. Cardozo Scholl of Law – Yeshiva University, Nova Iorque, é sectário do liberalismo defendido por Rawls e Dworkin. Como se sabe, esta linha do direito constitucional contemporâneo – que está centrado no tema do pluralismo político – fundamenta-o na configuração da sociedade moderna sob a perspectiva da diversidade de opiniões acerca do bem e da vida boa (diversidades ético-morais) pelos mais variados grupos que a formam, buscando, neste contexto social, reconhecer e efetivar os direitos fundamentais por meio de princípios da moralidade política, em especial, o princípio da igual dignidade de todos perante o direito[1].
O presente paper foi elaborado a partir da tradução da obra de ROSENFELD, A identidade do sujeito constitucional, traduzida pelo Prof. Menelick de Carvalho Netto.[2]
2. Relação constitucionalismo e pluralismo
Em dois momentos distintos de sua obra Rosenfeld afirma a relação indissociável entre o constitucionalismo e o pluralismo:
“O constitucionalismo não faz sentido na ausência de qualquer pluralismo. Em uma comunidade completamente homogênea, com um objetivo coletivo único e sem uma concepção de que o indivíduo tem algum direito legítimo ou interesse distinto daqueles da comunidade como um todo, o constitucionalismo […] seria supérfluo” (ROSENLFED, 2003, p. 21, nota 13).
E, “[…] o constitucionalismo depende do pluralismo e pode, em última instância, ser visto como aquele que outorga os meios para institucionalizar o pluralismo”. (Idem, p. 36).
Por isso, em seu livro, o autor procura fundamentar a construção da identidade do sujeito constitucional a partir de uma ética pluralista, em que o constituinte, ao fundar um Estado Constitucional, deve renunciar à sua identidade pré-constitucional afirmando o pluralismo como sua característica mais proeminente. Esta construção se dá necessariamente pelo discurso jurídico, mormente o discurso jurisdicional, na medida em que a identidade do sujeito constitucional, por ser evasiva, prenhe de vacuidade, deve ser reconstruída a cada momento de modo a legitimar a Constituição dentro dos parâmetros do constitucionalismo, donde surge, no entender de Rosenfeld, uma tensão entre Constituição (enquanto texto) e o direito constitucional (valores político-morais a serem implementados), tendo como paradigma o governo limitado (check and balances), os direitos fundamentais e o Estado de Direito.
3. Natureza Evasiva do Sujeito e da Identidade Constitucional:
No primeiro capítulo Rosenfeld já desfia o tema central para se compreender a identidade do sujeito constitucional, a saber, a sua natureza evasiva e problemática.
A aporia já se estabelece na própria idéia de sujeito constitucional, pois o termo em inglês – constitucional subject – pode denotar três significados distintos:
a) subject pode denotar o mesmo que súdito, como seja, aquele que se sujeita à Constituição;
b) subject também pode denotar aquele que tem o poder de elaborar a Constituição, como seja, sujeito constituinte;
c) subject, por fim, pode denotar o conteúdo, o material das normas constitucionais (subject matter).
O problema persiste mesmo que se possa estabelecer com precisão o “o quê” e o “quem” significam sujeito constitucional, na medida em que existe uma propensão em se ligá-lo, por suas relações, profundas e complexas, com outras identidades relevantes, tais como as identidades nacionais, culturais, étnicas e religiosas.
Ademais, a identidade constitucional é propensa a se alterar com o tempo, abarcando ora um significado ora outro, conforme a interpretação que se faça da expressão, devendo-se, portanto, fazer-se a sua reelaboração através de um entrelaçamento entre o passado e o futuro das gerações que se sujeitam a uma determinada Constituição.
No contexto do problema do entrelaçamento, o autor aponta a complexidade que decorre de uma Constituição escrita na relação que ela tem consigo mesma, vale dizer, a possibilidade de se fazerem interpretações distintas do mesmo texto constitucional. Que fazer? Socorrer-se na idéia originalista (a Constituição significa o que os fundadores da Constituição entendiam que ela deveria significar), ou socorrer-se na necessidade de reinterpretação e reconstrução do texto constitucional (lembrar Dworkin), a fim de compatibilizá-la com a geração presente?
Ademais, uma Constituição é necessariamente incompleta, no sentido de que não lhe é possível nem recobrir toda a matéria constitucional relevante, bem como é certo que ela não o faz, porquanto a necessidade de normação surge da necessidade, sujeitando-se, por conseqüência, a Constituição a distintas interpretações. Assim, uma constituição escrita deve ser necessariamente aberta à interpretação, mesmo que isso pressuponha aceitar-se uma multiplicidade de interpretações divergentes, embora igualmente defensáveis.
Igualmente o problema das emendas à Constituição impõe um caráter evasivo e conflitivo da Constituição com si mesma, pois da maior facilidade ou dificuldade que uma Constituição imponha para ser emenda poderá surgir o questionamento: estas emendas destroem a identidade constitucional? O caso da Hungria é bastante claro: com o passar desta nação do socialismo para o capitalismo, a partir de 1989, somente o dispositivo que prevê Budapeste como capital da República permaneceu. Qual a identidade desta “nova” Constituição com a “velha”? (ROSENFELD, 2003, p. 20)
No contexto acima, a própria Constituição Americana é bastante expressiva neste sentido: antes da Guerra da Secessão, permitia-se a escravidão (caso Dread Scott v. Stanford), sendo após, a mesma proibida (emenda XIV), permitindo-se, no entanto, a segregação racial (regra separate but equal, caso Plessy v. Ferguson), para, ao depois, se negar à possibilidade da própria segregação (caso Brown v. Board of Education). Que identidade constitucional permaneceu no correr destas alterações?
O constitucionalismo impõe, para a formação da identidade constitucional, um confronto entre o pluralismo e a tradição, que está fundada nas identidades pré-constitucionais, tais como: religião, etnia, cultura e nacionalidade, o que se faz com uma imposição de limites às identidades pré-políticas da nação (ULRICH PREUSS, apud ROSENFELD, idem, p. 21).
A identidade constitucional, por competir com aquelas identidades pré-constitucionais relevantes, não pode ser conceituada como mera oposição a elas, porquanto disso decorreria um conceito tão abstrato que não teria qualquer relevância operativa. A identidade constitucional tem, contemporaneamente, fundamento em razões de moralidade política, tais como os direitos fundamentais, o direito de igualdade (equal protection of law) e a liberdade de expressão. Contudo, estes fundamentos morais só têm relevância e operatividade num contexto em que as identidades pré-políticas não são excluídas por definitivo, mas conformadas pelo liberalismo. Assim, o direito de igualdade, por ser um conceito abstrato, somente tem operatividade se da sociedade em concreto se poder aferir que tipo de igualdade necessita: meramente formal (ou de oportunidades) ou a material (distributiva).
Disto significa que a problemática do sujeito constitucional decorre, de um lado, da necessidade de se o contrapor àquelas identidades pré-políticas (nacionalidade, étnicas, culturais e religiosas), ao mesmo tempo em que este as deve abarcar, porquanto o interprete constitucional, quando da concretização do texto constitucional, jamais se despirá de qualquer destas identidades que formam o seu caráter, ou seja, se ao se formar a identidade constitucional, o constituinte se despisse de qualquer daquelas identidades, mesmo assim estas se esgueirariam para dentro do mesmo com o ato de interpretação feita pelo interprete delas informado.
Assim, fica evidente que a identidade do sujeito constitucional é algo sempre complexo, fragmentado, parcial e incompleto, o que se mostra bastante evidente numa living constitution, como é o caso da Constituição de 1787, posto que esta se renovou a todo tempo, sendo, por isso, a identidade constitucional o produto de um processo dinâmico sempre aberto à maior elaboração e revisão.
Neste sentido, Rosenfeld analisa o preâmbulo da CF/1787, através da conhecida expressão “Nós, o povo…”, que num primeiro momento se faz anunciar como o sujeito constitucional desta Constituição:
a) abstratamente: Nós, o Povo… informa que tomam parte da identidade do sujeito constitucional não somente os constituintes que a fizeram, como também todas as pessoas que viviam nos EUA à época; alem do que, desta expressão se infere que todos as pessoas não somente reconhecem a legitimidade do texto, como também, conforme Rousseau, se sujeitam à sua normatividade, por expressar a vontade geral;
b) concretamente: os constituintes de 1787 eram todos brancos, anglo-saxões, protestantes e proprietários de terras, que de modo algum representavam todas as pessoas que se sujeitariam àquela Constituição, pois, por definição, se muito, representavam pouco mais de 25% da população ali residente: 50% eram mulheres, que estavam excluídas do processo político, e 24% eram negros, a quem não se reconheciam nem mesmo a condição de seres humanos (neste sentido, o Juiz Presidente Taney no seu voto no caso Dread Scott).
c) historicamente: ao se cotejar o Nós, o Povo… com a cláusula “todos os homens nascem iguais” da Declaração de Independência Americana de 1776, que deveria servir de fundamento para a formação do sujeito constitucional, por ser o documento de libertação face a Colônia, evidencia-se a aporia entre o texto e a realidade, seja pela exclusão das mulheres, seja pela negação da identidade humana aos negros. Disto evidencia-se a dissociação entre os autores e os que se sujeitariam à norma constitucional, já que, no caso dos negros, torna-se bastante evidente a sua exclusão enquanto sujeito de direito.
Assim, segundo Rosenfeld, a identidade do sujeito constitucional deve ser considerada mais como uma ausência, um hiato, um vazio, do que como algo concreto e estabelecido do qual possamos extrair legitimidade para o exercício do poder político, o quê possibilita:
“a) a sua reconstrução, pois, por ser indispensável, deverá sempre ser reconstruída como condição de legitimidade da Constituição;” e
“b) a sua complementação, porquanto, para conseguir aquele fim acima colimado, deverá ser reconstruído, mas sob a condição de que esta reconstrução, este preenchimento do hiato não poderá ser definitivo ou completo, como seja, a reconstrução será um continuum, um processo permanente pela busca de legitimidade do texto constitucional.”
Em suma: a identidade do sujeito constitucional só é suscetível de determinação parcial mediante um processo de reconstrução orientado no sentido de se alcançar um equilíbrio entre a assimilação e a rejeição das demais identidades relevantes.
4. A formação da identidade do sujeito constitucional
O modo pelo qual Rosenfeld procura reconstruir a identidade do sujeito constitucional se dá de dois modos: primeiro assimila o processo de reconstrução da identidade do sujeito constitucional com fundamento na teoria da formação da identidade do sujeito de Hegel (dialética: negação – subsunção – negação da negação), e nas teorias psicanalíticas de Freud e Lacan; em seguida, para fins de reconstrução do sujeito constitucional o autor utiliza três processos: negação, metáfora e metonímia. Pela negação se forma a identidade do sujeito; pela metáfora, se aproxima o sujeito das demais identidades relevantes a partir da analogia e da similaridade; pela metonímia, se estabelece a identidade do sujeito constitucional pela contextualização do discurso – que é um processo oposto ao da metáfora.
A formação do eu (sujeito) somente se torna necessária quando se confronta com o outro. Sem que o outro seja percebido como um outro eu, não se faz necessário o levantamento de qualquer problema acerca do sujeito.
No tema referido à identidade do sujeito constitucional, este eu somente se torna relevante quando se o contrasta com o outro eu contido nas identidades pré-constitucionais, contidas que estão na tradição (nacionalidade, etnia, religião e cultura). Este outro eu fundamenta-se a si mesmo, já que, num certo sentido, todos as pessoas compartilham estas identidades. O constitucionalismo moderno, que se origina na contradição entre o pluralismo e a tradição, forma-se necessariamente em contraposição com a esta, que é o seu outro. Como conseqüência, o pluralismo constitucional requer que um grupo que se constitua em um eu coletivo reconheça grupos similarmente posicionados como outros eu, e/ou que cada eu individual trate os demais indivíduos como outros eu. Desta relação, surge a contradição entre o eu do pluralismo (eu interno) com o eu da tradição (outro externo).
Formação do sujeito em HEGEL: o confronto entre o eu e o outro deriva da separação entre sujeito e objeto. O sujeito somente reconhece o outro quando, após perseguir a satisfação de seu desejo por meio de objetos, vê que esta satisfação não é perene, na medida em que é levado, após aquela primeira satisfação, a procurar outros objetos, e assim, sucessivamente, sem jamais se satisfazer. Somente quando ele se volta para outros sujeitos é que seu desejo é satisfeito. Portanto, o desejo do sujeito é que impulsiona o eu a buscar o outro.
A dialética da formação do sujeito em HEGEL por si só não leva à reciprocidade entre os sujeitos, como se vê na relação entre o Senhor e o Escravo: o Senhor se afirma com sujeito quando supera o medo da morte e se afirma como um eu reconhecido; já o Escravo, por não superar o medo da morte, se submete ao papel que lhe é imposto por aquele que reconhece. Assim, abrindo mão de sua identidade, se submete ao Senhor, que é o outro reconhecido/temido. Contudo, por meio da dialética, os papéis se invertem: o Senhor depende do trabalho do escravo para a satisfação de suas necessidades, e tomando o Escravo, como conseqüência, consciência de seu labor e habilidade, forma a sua identidade no sentido de ser indispensável ao seu Senhor. Assim, o Senhor se torna dependente do Escravo e o Escravo senhor de seu Senhor. Neste sentido, o modo de formação do sujeito em Hegel se dá por meio da sujeição do eu ao outro.
Formação do sujeito na teoria psicanalítica: o sujeito busca a satisfação de seus desejos nos objetos, mas, como debalde, isto não é perene, ele necessita ajustar o seu comportamento por meio da renúncia. Renunciando aos objetos ele obtém o reconhecimento do outro.
A relação, portanto, entre sujeito e objeto se revela numa carência de duas formas: a) como ele necessita de objetos para ser completo, ele é, por si só, incompleto; b) o sujeito, enquanto não é reconhecido pelo outro, é uma carência no sentido de não ter senão a negação de seus objetos. Da separação entre o sujeito e objeto surge a sua consciência de que é carente e incompleto. Para isso ele precisa que o outro o reconheça, para que disso possa formar a sua própria identidade, suprindo a sua carência e incompletude.
Da afirmação de Hegel, secundada por LACAN, de que a identidade do sujeito se forma tão somente pela sujeição ao outro parece não corresponder a realidade do sujeito constitucional, posto que na teoria constitucional moderna, principalmente se fundada no direito revolucionário, é-lhe atribuído o poder de criar um mundo político ex nihilo (ULRICH PREUSS), sem qualquer consideração pelas identidade relevante que acaba por suplantar.
Contudo, mesmo que fruto de uma revolução, o sujeito constitucional não consegue purificar-se totalmente das identidades pré-constitucionais, e isto se dá porque com o passar do tempo as novas gerações não se sentem mais presas à herança revolucionária – mas também não renunciaram àquelas identidades pré-constitucionais pretensamente suplantadas; seja porque, no mundo real inexiste a possibilidade de formação de algo ex nihilo. Isto quer significar que, não obstante se tente espancar a tradição, ela sempre se esgueira para dentro da identidade constitucional formada a partir da revolução, sendo, portanto, a identidade constitucional condicionada tanto pelo passado que se quer preterir quanto pelo futuro que se pretende construir. Não há como o eu revolucionário descartar definitivamente o outro tradicional, pois do contrário, o eu revolucionário não se forma no sentido do Constitucionalismo, que é pluralista, mas torna-se, sim, terror, que é exclusivista (lembrar, neste sentido, o Terror na França pós-Revolução de 1789).
Assim, o Constitucionalismo tem por fundamento o pluralismo, o que impõe a necessidade de se formar uma identidade que transcenda a identidade tradicional, o que torna a identidade constitucional num vazio, numa ausência que há de estabelecer entre dois pólos: a auto-compreensão dos constitucionalistas – fundados na tradição – e na nova sociedade política que se quer constituir, fundada no pluralismo, cujo vértice de equilíbrio é o rule of law (Estado de Direito), o governo limitado (separação dos poderes) e a proteção dos direitos fundamentais.
Como se deu nos EUA: um governo limitado pelo sistema de freios e contrapesos (check and balances system): divisão de poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário -, cabendo a este, por construção da Suprema Corte, a competência para afastar a permanência das normas inconstitucionais, bem como um governo limitado pela construção do sistema federativo, estribado na repartição de competências entre o governo central (União) e os governos estaduais (Estados-Membros). A Federação permitiu que os EUA moldassem a identidade do sujeito constitucional mediante a conjunção dos interesses federais e os interesses estaduais, de modo que uma não se sobressaísse sobre as demais.
Como se deu na França: embora a Constituição de 1793, e as que a seguiram, tenham se fundado sobre um governo limitado, com divisão de poderes e proteção dos direitos individuais, o regime constitucional francês investiu na supremacia do legislativo nacional, posto que, adotando a teoria de Rousseau, competia àquele órgão evidenciar a vontade geral. Vale lembrar que em Rousseau a vontade geral não é nem a vontade individual nem a vontade coletiva, mas sim a produção da oposição recíproca de cada um com os demais. De que modo? Cindindo-se o indivíduo em duas figuras complementares: o cidadão publicamente inspirado (a participar da formação da vontade geral) e a do burguês privativamente inspirado (exclusividade da exploração econômica).
A identidade do sujeito constitucional é objeto de atualização – posto que vazio e incompleto – por intermédio do discurso constitucional pluralista, o que impõe ao agente do discurso abstrair-se de sua própria identidade e se fixe na identidade plural. Isto se dá por meio de um discurso contextualizado, e que toma em conta as restrições normativas e factuais relevantes. Como o discurso é elaborado em dado contexto, e como o texto constitucional é aberto-a-finalidade e sujeito a transformações, é pelo discurso constitucional que o indivíduo inventa e reinventa a identidade do sujeito constitucional. Contextualizar, então, é construir a identidade do sujeito constitucional adequada a determinada época.
5. A necessidade de reconstrução da identidade constitucional
Na medida em que a identidade do sujeito constitucional está aberta à contextualização, por ser, repita-se, incompleto e vago, é que a sua construção e reconstrução são frutos do discurso constitucional.
Isto pressupõe, em vista do pluralismo, que o agente do discurso não pode personificar-se a si mesmo como sendo o sujeito da identidade constitucional. Assim, nem os constituintes, nem os cidadãos e nem os intérpretes da constituição são propriamente o sujeito constitucional. Este se forma a partir da soma de todos estes sujeitos parciais, sendo que, disso, a auto-identidade do sujeito constitucional deve vincular todas as pessoas que se reúnem sobre o conjunto das normas constitucionais.
Neste contexto, a teoria de Dworkin – da construção e reconstrução da interpretação constitucional – se faz necessária, pois somente assim, considerando-se o passado, o presente e o futuro, é que se poderá contextualizar a identidade do sujeito constitucional.
No entender de Rosenfeld, a construção e a reconstrução são dois momentos distintos da investigação da incompleta e sempre em desenvolvimento identidade do sujeito constitucional, na medida em que a interpretação constitucional se pauta pela dualidade, ao menos, de decisões “corretas” acerca do problema em concreto. Neste sentido, relembra o autor a famigerada decisão da Suprema Corte no caso Roe v. Wade, da década de 70, em que aquele Órgão decidiu, contramajoritariamente, em favor do direito individual da mulher em abortar até o terceiro mês de gestação – como consectário do direito de privacidade – julgando inconstitucional as leis estaduais que penalizavam a conduta. Contramajoritariamente porquanto nos EUA a maior parte da população é contrária ao aborto. Esta decisão significou um enorme impacto na formação do sujeito constitucional, na medida em que, até hoje, os legislativos estaduais intentam a revisão da decisão, propugnando pela criminalização do aborto. Neste caso, muito embora a Constituição não regulamentasse em nenhum dispositivo sobre aborto ou direito do nascituro, a partir de uma construção do direito de privacidade, outorgou-se à mulher americana o direito de opção pela interrupção da gravidez.
O importante no processo de reconstrução é a justificabilidade da decisão, vale dizer, a razão de se optar por uma determinada interpretação em detrimento de outra, o que permite a tomada de posição a favor ou contra a decisão. De qualquer sorte, qualquer decisão constitucional importante envolve uma modificação do sujeito constitucional.
Assim, a função da reconstrução é a de harmonizar o velho e o novo no contexto em que aplicado, de forma a se poder formular uma compreensão do sujeito constitucional.
Rosenfeld, tomando como fundamento à teoria reconstrutiva de Dworkin, desta se afasta no que diz respeito à sua insuficiência para a fundamentação da contrafactualidade. Com efeito, Dworkin, em primeiro lugar, apõem o primeiro requisito da reconstrução em torno dos princípios de moralidade pública por ele defendidos, e que poderiam ser assim resumidos: o direito de cada pessoa a igual respeito e dignidade; em segundo lugar, e que no entender de Rosenfeld é insuficiente, é o critério da coerência, vale dizer, a conformidade da nova interpretação com o corpus sedimentado das interpretações pretéritas (lembrar a teoria sobre a criticismo-construtivismo de Dworkin). Esta segunda exigência é, no entender do autor, insuficiente, pois impede o exercício da contrafactualidade, vale dizer, a reconstrução da identidade do sujeito constitucional de modo a renová-lo, adaptando-o à realidade social vigente.
6. Instrumentos de reconstrução da identidade constitucional: a negação, a metáfora e a metonímia
A reconstrução da identidade do sujeito constitucional se pauta em dois pólos, a saber, a auto-identidade do sujeito constitucional (o que ele é) e o constitucionalismo (aquilo que ele deve ser: entenda-se, plural). A isto ele denomina de discurso contrafactual. Por esta narrativa é que é possível preencher-se o vazio a que está condicionado o sujeito constitucional.
Esta reconstrução está sujeita a dois distintos grupos de intérpretes:
“a) os que pretendem manter o status quo: a identidade do sujeito constitucional deve ser formada de modo a compatibilizar o eu constitucional como o eu do constitucionalismo, demonstrando, assim, a identificação de um com o outro;
b) os que pretendem apresentar uma cisão entre o eu constitucional e o eu do constitucionalismo: este discurso contrafactual revela os simulacros do discurso meramente legitimante, revelando a contradição entre Constituição (o eu constitucional) e Direito Constitucional (o eu do Constitucionalismo).”
Seja em “a” ou “b”, o discurso constitucional toma como norte de operação as mesmas técnicas, a saber:
“a) negação: porque o sujeito constitucional somente emerge a partir da renúncia: aquilo que ele não, para se afirmar, no processo dialético, naquilo que ele é, negação da negação;
b) metáfora: por esta técnica, também denominada de condensação, a identidade do sujeito constitucional se formar a partir de um discurso que busca apontar as similaridades com as identidades pré-constitucionais rechaçadas na negação, como modo de não se perder na mera negatividade: ele é símile, se identifica com aquelas identidades, mas de um modo a não assimilá-las completamente, mas sim do modo e nos termos em que ele regula;
c) metonímia: ou também deslocamento, o discurso é contextualizado, de modo a situar historicamente o sujeito constitucional, pois de modo contrário ele não teria condições de concretizar-se no âmbito da sociedade em que inserido.”
6.1. A Negação:
O papel da negação na formação do sujeito constitucional é multifacetado, intrincado e complexo, na medida em que envolve, dentre outras coisas, a rejeição, o repúdio, a repressão, a exclusão e a renúncia, na medida em que a formação do sujeito, conforme averba Hegel, se estabelece mediante um processo dialético: negação, subsunção e negação da negação. Na negação, o sujeito primeiramente adquire a sua própria identidade mediante a negação da mesma, já que ela não é redutível aos objetos de seus desejos.
Surge, portanto, como uma carência, na medida em que a identidade é afirmada tão-somente como aquilo que ela não é; na subsunção, o sujeito parte para a formação de sua identidade de forma positiva, o que envolve, num primeiro momento, na negação de que seja uma carência, um hiato, um vazio, buscando, desta sorte, afirmar-se a partir das múltiplas identidades concretas que o cercam, alienando-se, desta sorte, a si mesmo, já que ele somente adquire identidade afirmando aquilo que é o outro; por fim, na negação da negação, ele assume ser uma identidade distinta de todas as demais, tendo-as assimilado, tornando-se, portanto, um ser para si mesmo.
Na formação da identidade constitucional se dá o mesmo.
Na primeira etapa, negação, ele se afirma como um ser que é distinto do ser pré-constitucional, formado pelas identidades parciais vindas da tradição ou da revolução, para se afirmar como uma identidade plural, e que, portanto, deve recusar aquelas identidades não-plurais.
Na segunda etapa, a subsunção (em Hegel subsumir tem um duplo significado, a saber, extinguir, fazer cessar, mas também preservar, conservar. O que a subsunção extingue é a imediatidade da identidade do sujeito, não a sua existência, que é mediatizada pela identidade que o subsume), pela qual o sujeito constitucional recorre àquelas mesmas identidades vindas da tradição ou da revolução por ele descartadas no processo da negação.
O constitucionalismo, sob pena de tornar a Constituição abstrata e não concretizável na sociedade, deve assimilar aquelas identidades, mas não de modo que seja por elas suplantado, mas sim as suplantando, as subsumindo mediante um duplo processo de extinção de suas imediatidades e da preservação de suas mediatidades, como seja, como instrumentos a serviço deste mesmo constitucionalismo, que por definição, é plural. Isto quer significar, precisamente, que o constitucionalismo convive com as identidades pré-constitucionais de forma bastante clara, como seja, não se anula perante as mesmas, antes as conforma de modo à somente valerem nos termos regulamentados pelo pluralismo.
No entanto, por este processo, o constitucionalismo se aliena, pois somente consegue formar-se enquanto sujeito assimilando as identidades que quer suplantar. Assim, por exemplo, a identidade religiosa é suplantada pelo constitucionalismo para logo depois ser por ele subsumida, como seja, encarta-a, reservando-lhe, no entanto, o espaço privado, de modo a que as demais religiões recebam a mesma proteção.
Numa terceira e última etapa da formação da identidade do sujeito constitucional, que é a negação da negação, o sujeito enfrenta aquela alienação que o habilita a ser alguém subsumindo as identidades que nega. Por este terceiro estágio da dialética, o sujeito toma consciência que ele é um ser para si mesmo, na medida em que, apesar de ter de assimilar as identidades pré-constitucionais que pretendia descartar, ao assimilá-las não se anulou a si mesmo, mas sim que construiu algo novo. A identidade que se formou é obra sua, e coerente com as suas pretensões, como seja, assimilando as mais diversas compreensões acerca do bem e do justo, e não somente uma. No dizer de Rosenfeld:
“Mas quais dessas concepções de bem deverão ser reincorporadas, e em qual medida, é algo que é determinado pelos critérios normativos impostos pelo pluralismo, tornando claro, assim, que a tolerância do pluralismo das diversas concepções de bem resulta de uma posição ativa e não de uma postura passiva” (ROSENFELD, 2003, p. 57)
Ao negar a negação de que não é um sujeito, se não mediante uma alienação face as identidades pré-constitucionais, o sujeito constitucional, fundado no pluralismo, se torna um ser para si mesmo. Ele é Senhor de sua obra, e não coadjuvante.
6.2. A Metáfora:
A metáfora é essencial para o discurso de auto-afirmação do sujeito constitucional na medida em que busca estabelecer a identidade do constitucionalismo a partir de similaridades e equivalências, deixando de lado as diferenças e dessemelhanças.
Assim, na asserção presente na Declaração de Independência de 1776 “todos os homens nascem iguais”, o discurso constitucional metafórico deve se prender no estabelecimento de afirmações que afirmem as semelhanças entre os mais diversos seres humanos, independentemente de qualquer outro critério, a não ser a natureza humana, rechaçando-se, assim, as diferenças de cor, de raça, de origem etc. Nos Estados Unidos, na decisão confirmatória do regime de segregação (Plessy v. Ferguson), o Juiz Harlan, em voto vencido, afirmou a famosa regra segunda a qual, a Constituição é cega à cor das pessoas (the Constitution is colorblind). Trata-se, como se vê, de um discurso metafórico, centrado no pluralismo, porque se concentra na identidade comum de brancos e negros – seres humanos -, e não no que os diferencia, a cor.
O mesmo se passa no entendimento da dimensão constitucional do princípio da proteção da privacidade e da liberdade de expressão. Em 1965, no caso Griswold v. Connecticut, a Suprema Corte entendeu que casais casados têm direito de usarem contraceptivos, sendo vedado aos Estados proibi-los; já em 1972, no caso Eisenstadt v. Baird, aquela Corte entendeu que idêntica proteção se estende aos casais heterossexuais não casados.
Contudo, em 1986, no caso Bowers v. Hardwick, a Corte entendeu, por maioria, que os casais homossexuais não são similares, para fins de proteção do direito de intimidade, aos casais heterossexuais, sendo, portanto, constitucionais as legislações estaduais que proíbem e criminalizam o sexo homossexual consensual entre adultos. No entanto, nos votos dissidentes, os Juízes que se posicionaram favoravelmente à idêntica proteção, afirmaram a similaridade entre homossexuais e heterossexuais no que diz respeito ao ponto de vista do sujeito, isto é, quer hetero quer homossexuais, têm o mesmo interesse em decidir como viverão suas próprias vidas e, mais estritamente, em decidir como se comportarão em suas associações pessoais e voluntárias com seus companheiros. A intromissão do Estado na conduta privada de qualquer um deles – hetero ou homossexuais – é igualmente opressiva (ROSENFELD, 2003, pp. 66-67).
6.3 A Metonímia:
A metonímia opera, no discurso constitucional, de modo diverso da metáfora, ou seja, estabelece um eixo de continuidade, de contextualização da identidade do sujeito constitucional frente às identidades pré-constitucionais relevantes.
Como a identidade do sujeito constitucional é um hiato, um vazio, ele busca preencher este seu vazio por intermédio de uma contextualização junto àquelas identidades pré-constitucionais, numa síntese entre presente, passado e futuro. Mas o passado é de impossível recordação, e o futuro é incerto, donde o presente ser sempre um vazio que se busca preencher.
Os argumentos jurídicos fundados na metonímia evocam as diferenças mediante a contextualização, repousam sobre relações de proximidade para delinear o quadro que revele o máximo possível de detalhes concretos, sendo, portanto, o discurso metonímico um modo de demonstrar que as argumentações metafóricas ultrapassam o caso paradigmático, não podendo, portanto, prosperar.
No caso Bowers vs. Hardwick, a Suprema Corte alegou, por decisão majoritária, que as relações homossexuais praticadas por pessoas maiores e capazes, por livre consentimento, não se assemelha de modo nenhum, para fins de proteção constitucional, ao relacionamento heterossexual, sejam casadas ou solteiras, sendo, portanto, válidas as leis estaduais que criminalizam esta prática, pois, consoante voto de um Juiz daquela Corte, é condenado pelo código ético-moral judaico-cristão, que como se sabe, é parte da identidade pré-constitucional dos EUA. Trata-se, como se observa, de um discurso metonímico, que nega a similaridade entre a união homossexual e a união heterossexual, porquanto aquela é negada como legítima pela identidade religiosa preponderante nos EUA.
7. Conclusões
Desta sorte, numa síntese possível, vê-se que a negação, a metáfora e metonímia se conjuminam no sentido de estabelecer a identidade do sujeito constitucional. A negação, é claro, delimita o sujeito constitucional ao fazer a mediação entre identidade e diferença. Mas identidade e diferença só podem adquirir formas determinadas ao se utilizar o trabalho da metáfora e da metonímia. Em outros termos, somente a metáfora e a metonímia revelarão qual identidade – ou mais precisamente, quais identidades – e qual diferença – ou diferenças – devem ser mediatizadas pela negação para a produção de uma reconstrução plausível de um sujeito constitucional adequado.
Assim, negação, metáfora e metonímia se estabelecem como padrões de formação da identidade do sujeito constitucional, tomando como ponto de partida a própria vagüidade do pluralismo. Assim, a negação nega o status quo tradicional; a metáfora amplia o plexo de situações protegidas constitucional, por assimilação – fecha os olhos para as diferenças, visualizando tão-somente os pontos de convergência -, o que, em certa medida, pode tornar a identidade do sujeito constitucional por demais abstrata e descontextualizada de seu medium social; a metonímia, por fim, estabelece um eixo de contigüidade entre a identidade constitucional e as identidades tradicionais mais relevantes e impregnadas no medium social, como, por exemplo, a identidade religiosa. Por este processo, o discurso constitucional contextualiza o sujeito constitucional perante a própria ótica social.
Por meio desta tríplice argumentação, que funcionam como tese, antítese e síntese, a identidade do sujeito constitucional é reconstruída a cada momento da história sócio-política de um determinado povo. Mas esta reconstrução é parcial, incompleta, na medida em que está é, por definição, a identidade do sujeito constitucional.
Professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Rondônia. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia, turma de 1996. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
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