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A importãncia do cristianismo para a concepção da dignidade da pessoa humana e para a universalização de sua consciência

Resumo: A dignidade da pessoa humana é o núcleo essencial dos direitos fundamentais, valor ético supremo da Constituição e da civilização moderna. Com enfoque explicativo, crítico e reflexivo, a pesquisa procurou, mediante análise dogmática, doutrinária e ética, identificar a influencia do cristianismo sobre a noção da dignidade e sobre a universalização de sua consciência e a importância de sua contribuição para a civilização moderna. O método usado foi o dedutivo, pois se pretendeu, a partir da análise de material bibliográfico, de dados históricos, dados endógeno e exógeno-jurídicos da realidade, identificar uma questão geral e, pela observação, investigação, comparação, e reflexão dialética, tentar explicar a possível natureza e fundamento desta questão. A pesquisa se realizou mediante coleta seletiva de dados bibliográficos jurídicos e meta-juridicos como p.e, a ética jurídica e a doutrina cristã no sentido de se identificar a possível natureza e os fundamentos meta-juridicos do fenômeno. A pesquisa usou como referencial teórico, sobretudo a obra de Jesus Gonzáles Peres intitulada: “La dignidad de la persona”. Objetivou o presente trabalho, depois de encontrar e identificar o fundamento da dignidade humana nos valores transcendentais éticos e espirituais, e na visão cristã igualitária, libertária e universal da essência comum e identidade de natureza do homem, criado à imagem e semelhança de Deus, e, reconhecida sua importância, propor sua afirmação como valor referencial absoluto e seguro para a plena realização da pessoa humana.[1]

Palavras-chave: Dignidade Humana, Cristianismo, Pessoa, Valor, Universalização.

Abstract: The human dignity is the core of fundamental rights, supreme ethical value of the Constitution and modern civilization. With explaining, critical and reflexive focus, the aim of this research was, through dogmatic, doctrinal and ethical analysis, to identify the influence of Christianity on the notion of dignity and the universalization of its consciousness. The deductive method was used, since it was intended, through analysis of bibliographic material, historical data and reality data, legal related or not, to identify a general question; and, through observation, investigation, comparison, and dialectical reflection, try to explain the possible nature and basis of this issue. The survey was conducted by selective collection of bibliographic data, primarily accessing titles that addressed the subject directly, objectively considered. Subsequently, others texts were analyzed, which sought to situate the importance of the topic within constitutional low, and associate it with fundamental rights. Finally, was considered titles related to legal ethic and Christian doctrine, in order to identify the potential nature and meta-juridical foundations of the phenomenon. The study used the work of Jesus Gonzáles Peres entitled: "La dignidad de la persona", as the main reference. Finally, after identify the foundation of human dignity in transcendental ethical and spiritual values, in the egalitarian, libertarian and universal Christian vision of the common essence of the human been, created in image of God, recognizing its importance, this research proposes its statement as an absolute reference value and insurance for the complete realization of the human been.

Keywords: Human Dignity, Christianity, Person, Value, Universalization.

Sumário:  1. Introdução.
1.1. Pessoa humana Dignidade humana Direito e relevância do tema. 1.2. Positivação da noção de Dignidade Humana e suas causas. 1.3. Enfoque e objetivo da Monografia. 2. Desenvolvimento do trabalho. 2.1. Noções preliminares. 2.1.1. Conceito. 2.1.2. Influência da Declaração Internacional dos Direitos do Homem. 2.1.3. Dupla perspectiva da Dignidade Humana. 2.2. Natureza da Dignidade Humana. 2.2.1. Crítica à noção de Dignidade Humana como sentido meramente normativo- constitucional. 2.2.2. Critica à noção de Dignidade Humana como mero princípio construído pela história. 2.3. A Dignidade Humana na Constituição Brasileira. 2.3.1. Como fundamento do Estado brasileiro e suas implicações. 2.3.2. Noção de mínimo existencial e vetor de interpretação constitucional. 2.3.3. Relação com os Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. 2.4. Cronologia da Dignidade Humana. 2.4.1. Código de Hamurabi. 2.4.2. Código de Manu. 2.4.3. Grécia. 2.4.4. Estóicos. 2.5. O cristianismo como fundamento da concepção da Dignidade Humana. 2.5.1. Jesus Cristo. 2.5.1.1. Seu ensinamento e viver. 2.5.1.2. Seu julgamento e morte. 2.5.1.3. Sua ressurreição e ascensão. 2.5.2. Tomás de Aquino. 2.5.3. A Reforma Protestante. 2.6. Contribuição do cristianismo para a universalização da consciência da Dignidade Humana. 2.6.1. Jesus Cristo. 2.6.2. O Apóstolo Paulo. 2.7. Valorização da Natureza da Dignidade Humana. 3. Considerações finais. Referências.

1. INTRODUÇÃO

1.1. Pessoa humana, Dignidade humana, Direito e relevância do tema

A dignidade da pessoa humana é o núcleo essencial dos direitos fundamentais, valor ético supremo das Constituições e da civilização moderna. No centro do Direito está a pessoa humana. O fundamento e o fim de todo direito é justamente a pessoa humana. A finalidade e a razão de ser do Direito, em última instância, é a realização dos valores do ser humano em sociedade. Pode-se, afirmar que o Direito tanto mais se aproximará de sua finalidade precípua quanto mais considerar o homem, em todas as suas dimensões, realizando os valores que lhe são mais importantes. Neste aspecto, tanto a consciência quanto a promoção da dignidade da pessoa humana como um valor absoluto se constituem, dentro do Direito, em elementos indispensáveis à realização da pessoa humana em toda a sua plenitude, dentro de uma sociedade moderna e considerada civilizada.

Se o Direito é para o homem, há que se considerar necessariamente na sua formulação a natureza humana e suas necessidades, e, dentro do Direito, possivelmente não haja outro tema que as toque tão profunda e intimamente quanto a questão da dignidade da pessoa humana. Isso porque, todo e qualquer homem necessita de um mínimo de condições essenciais para uma existência digna e para sua plena realização. Justamente daí defluir as noções de direitos humanos e, ou direitos fundamentais e sua relação com a noção de dignidade humana, valores estes que o Direito visa proteger e promover. Daí decorre que desrespeitar o que o homem é em sua natureza, nunca constituirá o legitimo Direito. Assim, não se pode avançar um passo no conhecimento do verdadeiro Direito sem esbarrar com a necessidade de uma concepção do homem, da natureza humana e da dignidade humana.

Ademais, não há como negar a importância teórica e prática da noção de "dignidade humana” para a proteção e realização da “pessoa humana", não obstante as diversidades sócio-culturais dos povos. Justamente por tal motivo este assunto foi escolhido como objeto temático da presente monografia por envolver a razão de ser do Direito Constitucional e, porque não dizer, a essência do próprio Direito, ou seja: a pessoa humana.

A dignidade humana, por excelência é o elemento civilizador e humanizador do Direito. O homem, o ser humano, como a realidade central da sociedade e do Direito, não pode ser objeto de caprichos, de menoscabo ou de violência, antes, deve ser tratado como ser digno como portador que é de direitos inerentes ao seu próprio ser para que possa se desenvolver e se realizar.

No plano teórico e filosófico a abordagem do tema afeta diretamente nossas consciências, e sua reflexão e conscientização é importante a fim de evitarmos a reedição de modelos sociais que atentaram contra a dignidade humana como p.e, o liberalismo burguês que, desconsiderando totalmente a questão da dignidade humana, produziu uma massa de proletariados famintos e desassistidos com péssimas condições humanas de existência totalmente indignas. Evitemos igualmente os horrores do holocausto vivenciados durante a Segunda grande guerra, nem de regimes totalitários que, em nome do Estado, ideologias e filosofias niilistas e desumanas, vilipendiaram os mais comezinhos princípios fundamentais de existência digna, violentando assim a consciência da civilização contemporânea.

1.2. Positivação da noção de Dignidade Humana e suas causas 

A positivação da noção de dignidade, por outro lado, é uma conquista relativamente recente da civilização moderna do século XX, sobretudo após as barbáries verificadas nos campos de extermínio nazistas, mas também nos gulags; nos paredões comunistas; na escravização dos seres humanos; no extermínio de povos pelos próprios governos, quando foi abandonada a referência à razão e ao direito natural, onde a dignidade humana viu-se violentada, aviltando-se as consciências e o mundo transformado num lugar de intolerância e de crueldades.

Os homens, as nações e os organismos internacionais, perplexos com a selvageria e barbárie violadoras do direito natural da dignidade, começaram a buscar nos valores éticos judaico-cristãos, um porto seguro para reformular sua concepção jurídico-filosófica sobre o homem e a natureza humana. No mundo contemporâneo, o conceito e positivação da dignidade é um traço marcante, sobretudo, das Constituições de nações democráticas, principalmente após a edição da Declaração Internacional dos Direitos do Homem em 1948, que instilou nos espíritos e na comunidade internacional a consciência universal da necessidade de reconhecimento da dignidade humana como valor absoluto e como pressuposto inclusive do Estado e da vida em sociedade.

A partir de então, a maioria das nações de diferentes signos ideológicos, inclusive mais recentemente o Brasil, passaram a incorporar em seus ordenamentos jurídicos o reconhecimento do valor absoluto dos direitos fundamentais e, ou dos direitos humanos como indispensáveis a uma existência humana digna. Essa postura revela, assim, a consciência das sociedades modernas, inclusive a brasileira, de que certos valores e direitos naturais do homem são de tal relevância que o seu desrespeito inviabilizaria a própria existência do Estado e da sociedade.

Tanto isso é verdade, que o legislador constituinte nacional, p.e, para reforçar esta idéia e sua opção política, erigiu a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito, colocando proposital e estrategicamente, o capítulo dos direitos fundamentais antes mesmo da própria organização do Estado.

Com a consciência da noção de dignidade da pessoa humana e de sua positivação constitucional a nível internacional inaugura-se um marco no constitucionalismo moderno, incluído aí o brasileiro, qual seja:  o reconhecimento e afirmação de que o  Estado  é visto como meio e não mais como  fim em si mesmo, ou seja, o Estado é visto como meio  para a  proteção e realização da pessoa humana e não o contrário.

1.3. Enfoque e objetivo da Monografia 

Não obstante tratar-se a dignidade humana de uma noção que possa ser abordada a partir de uma grande variedade de perspectivas e disciplinas, pois é uma idéia que tem aplicações em diversas esferas da vida humana, oportuno esclarecer que neste trabalho o conceito de dignidade humana será enfocado sob uma perspectiva jusfilosófica cristã.

Ainda que pese o fato de que na atualidade a noção da dignidade humana tenha sido idealizada e desenvolvida, por razões pragmáticas no seu duplo aspecto –  ou seja, tanto no aspecto negativo, no sentido de se preservar o ser humano contra toda degradação e menoscabo pelo Estado e também pelos seus semelhantes,  quanto no aspecto positivo, da realização da pessoa humana – o fato é que este trabalho procura questionar o fundamento e a natureza da dignidade humana como valor em si mesmo, e tal implica responder a questões como: porque alguém deve respeitar a dignidade de seu semelhante e, vice versa? Porque o Estado deve respeitar a dignidade humana? Onde reside esta dignidade ou o seu valor ontológico?

Consoante já explanado é fato que a positivação do conceito e do instituto se deu por razões pragmáticas e deontológicas, mas a questão que poucos autores e obras abordaram ou se propuseram a questionar acerca da dignidade humana é: qual é o seu fundamento? Qual é a sua  natureza? Qual é a sua razão ou valor ontológico?

Baseou-se a presente monografia, sobretudo, na obra do autor espanhol Jesus Gonzáles Perez, intitulada: La Dignidad de La Persona Humana y Derecho, a qual diferentemente de outras obras sobre o assunto, procura abordar o tema não apenas sob uma perspectiva prática, mas principalmente sob uma perspectiva jusfilosófica cristã, enfocando a dignidade humana como valor ontológico em si mesmo. 

A presente monografia objetivou igualmente analisar e identificar pela investigação, comparação e reflexão dialética, a importância e a influência do cristianismo para a construção da noção de dignidade humana e para a universalização de sua consciência. Depois, propôs reconhecer sua contribuição para a civilização moderna, principalmente ao associar a noção e compreensão da dignidade, à  concepção de “pessoa” com valor individual em si mesmo, eis que os homens criados à imagem e semelhança de Deus, seriam todos essencialmente iguais e livres por compartilharem uma natureza comum e uma “identidade de origem”.

Este valor era novo e, até então desconhecido ou pouco percebido pela cultura oriental na antiguidade, mas serviu de pressuposto e fundamento para a compreensão e desenvolvimento deste tema tanto no aspecto filosófico quanto no aspecto de sua positivação nas Constituições das nações modernas e civilizadas.

Sob este enfoque, portanto, é que se analisará o tema Dignidade Humana, ou seja, como um atributo ou valor ético absoluto que todo ser humano possui naturalmente ao nascer, inerente, portanto, à natureza humana e, via de conseqüência, de direito natural, anterior à sociedade, ao Direito e ao próprio Estado e que merece ser respeitado, pelo simples fato de se ser humano, independentemente de qualquer status ou condição, seja ela de raça, credo, sexo, nacionalidade, ou posição social.

Justamente por encontrar na natureza humana a razão de ser da dignidade humana, decorre o princípio de que o Direito não a cria nem a atribui, mas apenas a reconhece, ou seja, é um valor inerente a todo ser humano e anterior ao Direito e à própria sociedade. Logo, o máximo que o Direito pode fazer é reconhecer valor à natureza humana e àquilo que entende por sua dignidade bem como a necessidade de preservá-la para que o homem se realize plenamente, mas não pode, ele mesmo, o Direito, explicar nem justificar o seu fundamento ou a natureza de seu valor.

Assim, se por um lado, o Direito não é capaz de explicar a natureza humana e, conseqüentemente tampouco a dignidade humana, visto estarem diretamente relacionadas, deve necessariamente reconhecer seu fundamento e natureza em outros segmentos da cultura e do conhecimento humano, e, assim, valorá-los e incorporá-los no seu seio. Por outro lado, a doutrina judaico-cristã, na avaliação deste trabalho, parece ser a filosofia que melhor explica o fundamento e a natureza da dignidade humana, pois é ela mesma, consoante se demonstrará,  a que melhor explica a própria natureza humana.

Assim, uma vez demonstrado e reconhecido o fundamento e a natureza da dignidade humana, que na avaliação desta monografia é metajurídica, a presente obra propõe a afirmação, reconhecimento e valoração desta natureza e fundamento como referencial seguro do homem contra o Estado e o próprio homem. Conclui a monografia que sempre que não se reconheceu adequadamente a natureza e fundamento da dignidade humana negando-se ou relativizando-se o seu valor absoluto, objetivamente considerado, ou teorizando-os equivocadamente, pagou-se um preço caro por isto. Alem disso,  as sociedades que insistiram em fazê-lo, não resistiram por muito tempo ou tiveram que se reorientar ideologicamente ou, ainda que se mantivessem, fizeram-no ao custo da opressão e do sacrifício extremo da dignidade de inocentes.

Não se pode esquecer, de acordo com Perez (1986, p. 29), a origem divina da dignidade humana, pois só assim se garantirá o respeito devido à mesma. Dessa forma, o Estado não poderá intervir no que afeta a igualdade, a liberdade e a dignidade humana nascidos de sua origem divina e que, portanto, antes pertencem a Deus que ao Estado. Os homens esquecem freqüentemente este ponto de partida, essencial na ordem jurídica; mas voltam seus olhos a Deus cada vez que um novo absolutismo de direita ou de esquerda suprime liberdades e afronta a dignidade do homem. Em outras palavras, á onipotência de Deus não se pode opor a mera potência do homem (PÉREZ, p. 29-30).

De acordo com o mesmo Pérez (1986, p. 26), se o homem é pessoa porque assim foi feito, e, se as coisas e animais são impessoais porque assim foram feitas, então, a última razão e o fundamento da categoria da pessoa humana, não pode ser o homem mesmo senão um Ser superior a todo homem e capaz de conferir razão e liberdade na maneira em que fomos feitos, ou seja, o mesmo Deus comum (grifo nosso).

Por fim, neste trabalho, optou-se pelo método dedutivo de pesquisa, pois, se identificou na presente obra uma questão geral, a partir da análise de material bibliográfico, de dados históricos, e,  pela observação, investigação, comparação, e reflexão dialética sobre dados endógeno e exógeno-jurídicos da realidade, se propôs a presente obra a explicar a natureza e o fundamento desta questão. A pesquisa se realizou mediante coleta seletiva de dados bibliográficos jurídicos e meta-juridicos como p.e, a ética jurídica e a doutrina cristã no sentido de nelas se identificar e reconhecer a natureza e os fundamentos meta-jurídicos do fenômeno

. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO

2.1. Noções preliminares

2.1.1. Conceito

A palavra Dignidade, etimologicamente, vem do latim, digna, anunciando o que seria merecedor de consideração e respeito, logo, digno, respeitável, considerável etc. Significaria, também, cargo ou honraria. É adjetivo derivado da forma verbal decet, de decere, convir (DA SILVA, 2004, p. 264). 

Dignidade Humana,

“é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais,mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.” (MORAES, 2002, p.50).

A positivação da noção de dignidade humana é uma conquista da civilização moderna, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial quando os homens e as nações internacionais, perplexos com a selvageria e barbárie violadoras do direito natural da dignidade cometidas pelo nazismo, buscaram encontrar nos valores éticos judaico-cristãos, um porto seguro para reformular sua concepção jurídico-filosófica sobre o homem e a natureza humana.

Barbárie que, ao que parece, nem o positivismo de Kelsen, nem o determinismo material e histórico de Marx ou as formulações cientificas e teóricas de então, puderam justificar e, muito menos evitar. Perceberam então os homens a necessidade de, além do mero positivismo jurídico e do materialismo histórico, revelados até então insuficientes, descer mais profundamente aos valores éticos e espirituais da alma humana e neles encontrar fundamento e referencial seguro que assegurassem aos homens conteúdos mínimos de coexistência que se impusessem ao próprio Estado e aos demais membros da sociedade.

Nas palavras de Ascensão (2006, p. 145-168), “o conteúdo material nuclear que se desenvolveu foi justamente representado pela pessoa humana.”

Aliás, em relação à formulação de Kelsen, na busca da norma pura e descontaminada de elementos pré e meta-juridicos, se faz a seguinte crítica:

“Esbarra o professor de Viena com aqueles ordenamentos violadores de princípios de direito natural e cuja força coatora permite que a ordem jurídica injusta conforme a sociedade. É bem verdade que com a Segunda Guerra mundial e a falência do direito aético, destituído de um conteúdo mínimo de justiça, isto é, do direito composto de normas secundárias e primárias, permitiu que um rejuvenescimento do estudo do direito natural, principalmente na Alemanha e na Áustria se fizesse. Surge, então, a figura impar de Johannes Messner ao separar com nitidez, as diversas linhas das leis naturais, essenciais e não criáveis pelo homem porque a ele inerentes, daquelas outras leis, de seu livre-arbítrio criador”. (MESSNER,1985,p.23-24,apud MARTINS, 1988, p. 29).

O tema da Dignidade Humana, portanto, é dos mais palpitantes, justamente escolhido como objeto da presente monografia, por tratar da essência da natureza humana. O tema possibilita uma abordagem reflexiva, crítica e ética do cerne do Direito, tornando possível identificá-lo e associá-lo aos valores mais profundos da existência humana como, p.e, a vida, a liberdade, a igualdade, a justiça, a solidariedade, a fraternidade, entre outros.

Conforme assinala Maritain (1967, p.16) com muita pertinência temática em frase que epigrafa esta obra, “sabemos que um traço essencial de uma civilização digna desse nome é a noção e respeito da dignidade da pessoa humana”.

2.1.2. Influência da Declaração Internacional dos Direitos do Homem

No mundo contemporâneo, o conceito e positivação da dignidade é um traço marcante, sobretudo das Constituições de nações democráticas, principalmente após a edição da Declaração Internacional dos Direitos do Homem em 1948, que instilou nos espíritos e na comunidade internacional a consciência universal da necessidade de reconhecimento da dignidade humana como valor absoluto e como pressuposto do Estado e da vida em sociedade.

A partir de então, a maioria das nações de diferentes signos ideológicos passaram a incorporar em seus ordenamentos jurídicos, ainda que indiretamente, o reconhecimento do valor absoluto dos direitos fundamentais e, ou dos direitos humanos como indispensáveis a uma existência humana digna.

Com efeito, o artigo 1° da Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama que:

“Todos os homens nascem livres e iguais em Dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”

Magalhães (2001, p. 136), ao comentar o artigo primeiro do diploma legal acima citado, leciona que,

“o art. 1º da Declaração Universal de Direitos Humanos enunciado acima estabelece a exigência de que todos sejam tratados segundo uma regra isonômica decorrente do reconhecimento da igualdade entre os homens, naquelas qualidades que lhes constituem a essência ou natureza, ou seja, naquilo que os distingue dos demais seres, sendo esse elemento individualizador o que responde pela dignidade humana, pressuposto da dignidade da pessoa humana.”

Esta simples abordagem preliminar já permite antever a natureza do instituto e vislumbrar seu conteúdo material que será visto mais adiante.

2.1.3. Dupla perspectiva da Dignidade Humana

A abordagem da noção de dignidade, consoante assinala a maioria da doutrina, nos permite antever duas perspectivas de sua dimensão: uma negativa e, outra, positiva. No aspecto negativo, vale dizer que cada membro da sociedade deve ser considerado e respeitado pelo Estado e pelos demais integrantes da sociedade em sua dimensão individual, sem qualquer possibilidade de discriminação, menoscabo, humilhação, opressão, tratamento desumano ou exclusão, ou seja, o homem é focado pelo ordenamento jurídico como objeto de proteção contra qualquer tipo de abuso.

Trata-se de um princípio que impõe limites à atividade dos poderes públicos e que se depreende da própria Constituição Federal quando determina, por exemplo, que:

– ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, inciso III da CF);

 – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei (art. 5º, XLII, da CF);

– não haverá penas:

– de morte, salvo em caso de guerra declarada (art. 5º, XLII da CF);

– de caráter perpétuo (art. 5º, inc. XLVII, "b" da CF);

– de trabalhos forçados (artigo 5º, inciso XLVII, letra c da CF);

– de banimento (art. 5º, XLVI, letra d da CF);

– cruéis (artigo 5º, inciso XLVII, alínea e da CF);

– é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX da CF), entre outras.

Já no aspecto positivo, impõe-se ao Estado o dever de propiciar meios à sociedade a fim de promover a realização da pessoa humana em toda a sua plenitude. Assim, não bastaria ao Estado meramente reconhecer a dignidade humana e seu valor, mas se lhe impõe o dever de atuar de maneira prática e positiva no sentido de realizá-la.

Daí, decorrem os deveres impostos ao Estado pela Constituição, tais como de promover:

– Renda mínima (art. 212 da CF);

– Educação básica (artigo 3º, parágrafo 3º da Emenda Constitucional n. 59/2009);

– Ensino obrigatório (parágrafo 3º do artigo 212 da CF);

– Saúde básica (art. 6º e 196 da CF);

– Saneamento básico (Lei 11.445 de 2007), etc.

Esta dupla abordagem de perspectivas é vista igualmente na lição de Sarlet (2002, p.62), segundo o qual, a Dignidade Humana é,

“a qualidade intrínseca e distintiva de cada Ser Humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”

2.2. Natureza da Dignidade Humana

Consoante se depreende do art. 1º da Declaração Universal de Direitos Humanos, a Dignidade da Pessoa Humana é um valor ético ou uma qualidade intrínseca do ser humano, anterior ao próprio Direito e Estado e que por este, deve ser reconhecido e protegido como valor absoluto, de Direito natural, visando à plena realização da personalidade humana.

A própria “Declaração dos Direitos da Virgínia”, no seu artigo primeiro já assentava a natureza dos direitos da personalidade, ligados à noção de dignidade no seguinte enunciado:

“Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança.”

Trata-se, portanto, de um atributo que todo ser humano possui naturalmente ao nascer, inerente à natureza humana e, portanto de Direito natural, que merece ser respeitado, pelo simples fato de se ser humano, independentemente de qualquer status ou condição, seja ele de raça, credo, sexo, nacionalidade, ou posição social, e que envolve noções como tolerância e solidariedade no sentido de se respeitar o semelhante e de se incluir o diferente.

Uma vez reconhecida a verdadeira natureza da dignidade humana, oportuno se fazer duas críticas a duas correntes que lhe atribuem natureza diversa.

2.2.1. Crítica à noção de Dignidade Humana como sentido meramente normativo-constitucional.

Não obstante opiniões em contrário que entendem que o conceito de dignidade da pessoa humana deve levar em conta apenas o seu sentido jurídico-normativo e não qualquer idéia aprioristica do homem, a presente monografia, a exemplo do que leciona Peres, (1986, p.19) propõe seja a questão da dignidade humana, que ocupa o tema central da ciência e filosofia do Direito, uma concepção de índole jusnaturalista, inerente á vida e, á natureza humana e, que pelo seu interesse, ultrapassa as marcas puramente científicas para integrar-se na problemática especificamente humana.

É exatamente essa orientação ontológica que segue nossa Constituição ao declarar implicitamente que a dignidade não é um direito que a norma constitucional atribui, mas um valor que ela apenas reconhece como absoluto e anterior a ela mesma e ao próprio Estado. 

Neste sentido,

“o sistema normativo de Direito não constitui, pois, por óbvio, a Dignidade da Pessoa Humana. O que ele pode é tão-somente reconhecê-la como dado essencial da construção jurídico-normativa, princípio do ordenamento e matriz de toda organização social, protegendo o homem e criando garantias institucionais postas à disposição das pessoas a fim de que elas possam garantir a sua eficácia e o respeito à sua estatuição. A Dignidade é mais um dado jurídico que uma construção acabada no direito, porque firma e se afirma no sentimento de justiça que domina o pensamento e a busca de cada povo em sua busca de realizar as suas vocações e necessidades”. (ROCHA, 1999, p. 26).

Ainda em relação ao tema, com a devida vênia dos que pensam diferentemente, entende o presente trabalho não ser possível estudar e situar a dignidade da pessoa humana dentro do Direito Constitucional apenas à luz do seu sentido normativo-constitucional de Direito posto, como sentido fechado de auto referibilidade.

Não se pode esquecer que a noção de Dignidade humana está intimamente associada a uma autêntica compreensão do que é o homem e a natureza humana e a respeito do verdadeiro sentido de sua vida, sentido esse que não pode ser encontrado apenas numa perspectiva reduzida à sua dimensão material ou meramente jurídico-normativa. Deve ser respondido também quanto à sua dimensão psíquica e espiritual, voltada para o transcendente, indissociável de sua natureza. (ALVES, 2001, p.160).

Há que se levar em conta a problemática humana: suas angustias e lutas, seus sofrimentos, suas humilhações, suas indignações, ambições, aspirações e grandezas, conceitos mais afetos à psicologia, ética, filosofia, antropologia, sociologia, teologia e à religião que propriamente ao Direito e que tornam tão rica e palpitante a experiência humana de vida. (MARTINS, 1988, p.4-5).

Segundo Baracho (2006, p.106), “a pessoa humana é um prius para o direito, isto é, uma categoria ontológica e moral, não meramente histórica ou jurídica” (grifo nosso). E, para o referido autor, “pessoa é todo indivíduo humano, homem ou mulher, por sua própria natureza e dignidade, à qual o direito se limita a reconhecer esta condição”.

O que se permite admitir, portanto, apenas é que a abordagem do reconhecimento ou da positivação a nível constitucional da noção de dignidade em uma sociedade específica e, em um determinado momento histórico específico, deva necessariamente levar em conta seu amplo sentido normativo-constitucional, e, ainda assim, não como seu único elemento.

Outro não é o entendimento de Reale (2003, p.9), em suas lições preliminares de Direito, ao indagar,

“qual a natureza deste mundo jurídico que nos cabe conhecer? Quais as vias que devemos percorrer na perquirição de seus valores? O mundo jurídico encontra em si sua própria explicação? Ou explica-se, ao contrario, em razão de outros valores? O mundo do Direito tem um valor próprio ou terá um valor secundário? O Direito existe por si, ou existe em função de outros valores? Devemos, pois, colocar o fenômeno jurídico e a Ciência do Direito na posição que lhes cabe em confronto com os demais campos da ação e do conhecimento. Que relações prendem o direito à economia. Que laços existem entre o fenômeno jurídico e o fenômeno artístico? Que relações existiram e ainda existem entre o Direito e a Religião? É preciso que cada qual conheça o seu mundo, o que é uma forma de conhecer-se a si mesmo”.

Na verdade, à luz do enriquecimento de conteúdo que todos os elementos anteriormente citados proporcionam, a conclusão inescapável a que se chega é que a natureza da dignidade, objetivamente considerada, repousa na noção ética de valor, “derivada da estrutura psicomoral do ser humano como operação natural da razão prática em razão dos fins intrínsecos do homem individual e social, pois que os seus juízos deônticos têm como ponto de referência a própria natureza humana” (MORAES, 1985, p.14).

Justamente por encontrar na natureza humana a razão de ser da dignidade, decorre o princípio de que o Direito não a cria nem a atribui, mas apenas a reconhece, ou seja, é um valor inerente a todo ser humano e anterior ao Direito e à própria sociedade. Portanto, o máximo que o Direito pode fazer é reconhecer valor à natureza humana e aquilo que entende por sua dignidade bem como a necessidade de preservá-la para que o homem se realize plenamente, mas não pode ele mesmo, o Direito, explicar nem justificar seu fundamento ou a natureza de seu valor.

Assim, se por um lado, o Direito não é capaz de explicar a natureza humana e, conseqüentemente tampouco a dignidade humana, visto estar diretamente a ela relacionada, deve ele necessariamente reconhecer seu fundamento e natureza em outros segmentos da cultura humana e, assim valorá-los e incorporá-los no seu seio.

Por outro lado, a doutrina judaico-cristã, na avaliação deste trabalho, parece ser a filosofia que melhor explica o fundamento e a natureza da dignidade humana, pois é ela mesma, consoante demonstrará a presente obra, a que melhor explica a própria natureza humana.

Em última análise, consoante se verá mais detalhadamente a partir do item 2.5, a dignidade humana repousa no fato de os homens terem sido criados à imagem e semelhança de Deus, sendo, portanto, todos essencialmente iguais e livres por compartilharem uma “natureza comum” e uma “identidade de origem”. Assim, toda pessoa humana é digna, porque a dignidade é justamente o pressuposto de sua existência o que justifica o entendimento de que ninguém é mais digno ou menos digno que outrem. Em outras palavras, entre o nada e o homem mais humilde, a diferença é infinita, e, entre este e o gênio, muito menor do que uma naturalíssima ilusão nos faz crer.

Precisamente, a igualdade dos homens, como se verá mais adiante, consiste em que, tendo todos a mesma natureza essencial idêntica, são todos os homens chamados à mesma e eminente dignidade de filhos de Deus (PEREZ, 1986, p. 24). 

2.2.2. Crítica à noção de Dignidade Humana como mero princípio construído pela história

Ainda com relação à natureza da dignidade humana, discorda a presente monografia daqueles que pretendem ver neste fenômeno, um princípio, mera e exclusivamente construído pela história, ou, puramente como fruto do materialismo histórico. A preocupação em abordar o assunto pode num primeiro momento parecer despicienda, mas, como se verá mais adiante, revelar-se-á das mais relevantes em suas conseqüências práticas.

Em relação ao determinismo histórico, como já assinalava Hegel (conforme Peter SINGER. In: Los Filósofos: Una introducción a los grandes pensadores de Occidente, p.171-179), seríamos seres condicionados por uma vontade objetiva representada pelo contexto-histórico-cultural em que vivemos, o qual influenciaria decisivamente nossa maneira de pensar. Em outras palavras, isso significaria que nosso pensar e agir, de acordo com essa filosofia, estaria histórica e culturalmente condicionado.

Sob esta perspectiva o enfoque da dignidade humana seria meramente materialista alicerçado numa relação do ser que conhece em relação ao objeto conhecido, de natureza ontognoseológica que imporia certos pressupostos imutáveis, sem liberdade decisória do homem e que formularia o destino humano como resultado do determinismo evolucionista em que a ação humana estaria previamente condicionada do nascimento à morte. Portanto, sob esta perspectiva a história mais faria o homem que ele a ela.

O materialismo histórico, na verdade, acaba por anular a dignidade humana na medida em que reduz o homem a mero robô ou expectador automatizado que não cria a própria história, mas que perde sua liberdade criativa por conta da sua submissão à vontade objetiva determinada pela história dos povos e de sua convivência dentro do contexto histórico-cultural. Referida compreensão, nega ao homem sua principal prerrogativa e um dos elementos de sua dignidade: a liberdade, uma vez que, sob sua ótica, com ou sem a liberdade, a história fatalmente evoluiria de acordo com uma programação universal objetiva.

Há que se objetar esta abordagem filosófica aplicada à noção de dignidade humana, uma vez que este fenômeno está intimamente ligado à natureza humana e, portanto, mais afeto aos princípios de imutabilidade e universalidade associados ao jusnaturalismo e que escapariam, assim, ao mero historicismo cultural, devendo ser vistos como intemporais, vale dizer, nas palavras de Cícero, “diffusa in omnes” (LAFER, 1988, p.36).

Esta concepção materialista e fria do determinismo histórico, em relação ao Direito, sofre a severa crítica e advertência de suas conseqüências, de autores de renome:

“Ao negarem Deus e qualquer forma de conhecimento não racional, negam também a liberdade do homem em escolher seu próprio destino e de ultrapassar o reduzido campo da percepção pela razão. As correntes espiritualistas, ao contrário, entendendo que a ordem de criação não pressupõe, em relação á vida e ao seu principal personagem, regras inteiramente preestabelecidas ofertam à ação humana um grau de liberdade, que lhe é negada pelas correntes materialistas. Aceitando a tese de que Deus, por não querer escravos, oferenda ao homem liberdade plena, inclusive de negá-lo, alicerçam nessa liberdade absoluta, o maior dom criador do ser humano. Em outras palavras, as correntes espiritualistas, por acreditarem no livre arbítrio do homem, ofertam-lhe uma dignidade de concepção e ação que as correntes materialistas não podem ofertar, visto que para estas últimas, o homem é obrigatoriamente fruto de um atavismo evolutivo. Desta forma, em matéria política, os materialistas da história tendem a ser vocacionados para o totalitarismo, visto que só acreditam na evolução da forma como pretendem ter detectado. Por outro lado, os espiritualistas tendem a estar voltados para o exercício democrático, na medida em que, por acreditarem no livre arbítrio da vontade, não tem vocação para impor idéias, mas para defendê-las livremente com o respeito devido ás idéias opostas” (MARTINS, 1988, p.9-10).

Em reforço a este raciocínio, argumenta o renomado constitucionalista acima mencionado, que os grandes pensadores políticos da anterioridade, depois dos quais pouco se criou em matéria política, eram espiritualistas e democráticos, como Sócrates, Platão, Aristóteles e Pitágoras.

Assim, consoante discorre o ilustre professor, as correntes espiritualistas por crerem na liberdade criativa e de ação humana influiriam na historia por meio da democracia, enquanto as correntes materialistas, que crêem no evolucionismo histórico material tenderiam a ser vocacionadas para o totalitarismo, uma vez que, segundo elas, o homem não possuiria liberdade e responderia sempre, em face de determinadas situações, da mesma forma e com os mesmos reflexos.

Qual seria, então, a importância de se analisar, descobrir, identificar e reconhecer valor à natureza da dignidade humana? Propõe o presente trabalho, em função do acima exposto, que o homem, por conta de seu livre arbítrio, racionalidade e espírito criativo, faz tanto a história, quanto a história a ele.

Entende a presente monografia que, não obstante a abordagem da temática da dignidade deva levar em conta a perspectiva histórico-cultural, não se deve considerar o fenômeno meramente em seu aspecto histórico-material sob pena de se correr sérios riscos à própria dignidade humana, como a própria historia já evidenciou.

Reconhece a presente obra que não se pode, a pretexto de “descontaminar o direito”, infelizmente como muitos operadores do direito o fazem, deixar de considerar os elementos e fundamentos pré ou meta-jurídica de conteúdo axiológico que informam a noção de dignidade como, por exemplo, a ética, a moral, a filosofia, a sociologia, a política, a economia, a teologia, a religião, a psicologia, a antropologia, entre outros. Tais elementos auxiliariam inclusive a justificar a legitimidade do próprio Direito. Defende este trabalho que nada justifica seja a questão da dignidade humana abordada de forma simplista associando-a única e exclusivamente ao seu conteúdo histórico como único elemento de sua constituição e que mais a descreve ou a revela, que a explica, ou seja, a história pela história, como fundamento de si mesma.

Ainda que se admita o Direito como “realidade histórico-cultural”, ha que se abordar tal realidade, sobretudo a questão da dignidade humana, em toda a sua dimensão e conteúdo uma vez que não obstante ser reconhecido como fenômeno histórico, não se acha inteiramente condicionado pela história, pois apresenta a presente temática uma constante axiológica, de realidade cultural, sendo esta também resultado da experiência humana e sobretudo do espírito criativo humano e da própria natureza humana.

Este é o raciocínio crítico de Reale (2003, pags. 65-68), ao defender aquilo que chama de tridimensionalidade específica e dinâmica do Direito, teoria que, a partir da tridimensionalidade genérica, analisa o conceito de valor, reconhecendo seu papel de elemento constitutivo da experiência ética e a implicação constante entre valor e história, criticando as visões monistas que falham em considerar os valores humanos, originando numa “alienação à Filosofia [por exemplo] e, a qualquer tipo de análise não-fática do Direito ou à ignorância contextual provocada pela anti-historicidade do monopólio do valor”.

Na realidade o que propõe a presente monografia é que a história mais descreve e revela o fato de a dignidade ser um valor absoluto e inerente à natureza humana, valor de índole jusnaturalista, cuja fonte é divina, que o homem sempre possuiu e sempre lutou por reconhecê-lo, e que todas as vezes que o valor da dignidade não foi respeitado e, portanto, negado, ou relativizado, sanções intrínsecas igualmente de ordem natural advieram para as sociedades humanas.

“Estabelece-se a lei natural, em razão dos fins intrínsecos do homem individual e social, pois que os seus juízos deônticos têm como ponto de referencia a própria natureza humana. E é lei obrigatória. A sanção natural, conquanto não essencial à obrigatoriedade da lei, está na mesma degradação, perturbação e frustração do individuo na sociedade” (MORAES, 1985, p.14).

Como conseqüência natural, viveremos para testemunhar na história, se repetidas as mesmas causas, os mesmos efeitos como p.e, as injustiças sociais, tanto as que precederam a Revolução Francesa (abuso do homem pela monarquia), como as que a sucederam (abuso do homem pelo homem, durante a Revolução industrial); bem como a Segunda Guerra mundial e os regimes totalitários que a sucederam (abuso do homem pelo Estado).

A história apenas evidenciou a percepção da necessidade da afirmação e do reconhecimento do valor da dignidade e de sua positivação, primeiramente em documentos internacionais de declarações de direitos universais e, depois nas Constituições dos países, apenas como reconhecimento da existência de um valor de ordem natural inerente ao homem e que sempre existiu e que sempre o acompanhou antes mesmo do Direito e do Estado.

A compreensão da abordagem do tema sob as duas correntes e a descoberta, identificação e valoração da verdadeira natureza da dignidade é que determinará nas sociedades e respectivas Constituições, as formas de Governo e Estado bem como os regimes sociais e orientação filosófica, ideológica, ontológica e deontológica que regerão a nossa vida em sociedade.

Portanto, não se pode esquecer a origem divina da dignidade humana. Só assim se garantirá o respeito devido à mesma (PÉREZ, 1986, p 29). É importante notar que sempre que uma sociedade negou ou relativizou o valor absoluto da dignidade, objetivamente considerada, teorizando equivocadamente sua natureza ou seu fundamento, pagou um preço caro por isto e não resistiu por muito tempo, ou, teve que se reorientar ideológica ou deontologicamente ou, ainda que se mantivesse, fê-lo ao custo da opressão e do sacrifício extremo da dignidade de inocentes.

Portanto, é inquestionável que não se pode afastar o elemento ético, [e, um deles, talvez o maior de todos, a dignidade], associando-o á natureza humana e ao jusnaturalismo e, assim, sujeitando-a “à imposição normativa, posto que quanto mais uma sociedade se orientar por tal elemento, tanto mais durará no tempo” (MARTINS, 1988.p 30).

Se o homem não é a imagem de Deus, diz Ossório (1928, p.19) citado por Pérez (1986, p.30) e, se as relações humanas não recebem a inspiração divina, de ordem, facilmente degeneram no culto à lei do mais forte e na negação da dignidade. Consoante leciona o mesmo Péres (1986, p.29), o Estado não poderá intervir no que afeta a liberdade e a dignidade humana nascidos de sua origem divina e que, portanto, antes pertencem a Deus que ao Estado. Os homens esquecem freqüentemente este ponto de partida, essencial na ordem jurídica; mas voltam seus olhos a Deus cada vez que um novo absolutismo de direita ou de esquerda suprime liberdades e afronta a dignidade do homem.

Em outras palavras, conclui o ilustre autor, á onipotência de Deus não se pode opor a mera potência do homem. 

2.3.  A Dignidade Humana na Constituição Brasileira

2.3.1. Como fundamento do Estado brasileiro e suas implicações

No Brasil, a dignidade humana foi alçada à categoria de fundamento do Estado brasileiro, a nível constitucional, no inciso III do artigo 1º da Constituição Federal de 1988, nos seguintes termos:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…)

III – a dignidade da pessoa humana;”

A relevância desta opção política revela o fundamento do próprio Estado brasileiro e a consciência nacional, como reflexo da consciência universal, de que o reconhecimento da importância da dignidade da pessoa humana para a sociedade e, conseqüentemente de sua positivação, a nível constitucional, associando-a aos direitos fundamentais, é o nítido reconhecimento da valoração que uma determinada sociedade faz, notadamente a brasileira, de que certos princípios e valores  naturais são absolutos e de tal relevância que o seu desrespeito ou negação inviabilizaria a própria existência do Estado.

Tanto isso é verdade, que o legislador constituinte, para reforçar esta percepção e sua opção política, ao erigir a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito, colocou proposital e estrategicamente o capítulo dos direitos fundamentais antes mesmo da própria organização do Estado.

Ora, se questão da dignidade da pessoa humana é tão importante a ponto de ser erigida à categoria de fundamento do Estado Democrático de Direito em nossa Constituição, é justamente porque o Brasil fez uma opção política de constituição de um Estado moderno, de um lado voltado para a tutela das garantias individuais, primeiramente em relação ao próprio Estado e, depois, também em relação aos demais membros da sociedade; e, de outro lado, voltado para o desenvolvimento e realização da pessoa humana em toda a sua plenitude.

Com a consciência da noção de dignidade da pessoa humana e de sua positivação constitucional inaugura-se um marco no constitucionalismo brasileiro – qual seja, o reconhecimento e afirmação de que o Estado brasileiro é visto como meio e não mais como fim em si mesmo, vale dizer, o Estado é visto como meio para proteção e  realização da pessoa humana e não o contrário.

Esta consciência e reconhecimento revelam-se importante na medida em que, em determinados momentos da história nem todos os seres humanos foram considerados pessoas como sujeitos de direitos. Alguns, como os escravos, p.e, em determinados momentos da história, eram considerados objetos, não sendo reconhecidos como pessoas humanas titulares de direitos. Em outros momentos, como p.e, na Segunda Guerra mundial, por conta de raça, credo, cor ou particularidades físicas ou pessoais foi negado a milhões de seres humanos, o direito à igualdade, liberdade e à própria vida, e, portanto, o reconhecimento à sua dignidade.  

2.3.2 Noção de mínimo existencial e vetor de interpretação constitucional

Não obstante, ainda que se possa, de um lado negativo, se opor a vagueza ou indeterminação do conteúdo e alcance da noção da dignidade humana, há um razoável consenso doutrinário no sentido de se atribuir ao conceito um núcleo que representaria, pelo menos, o mínimo existencial, indispensável, ou, básico para uma existência humana digna.

Justamente daí decorrer os conceitos ou noções de:

– necessidades vitais básicas (inciso IV do artigo 7 da CF);

– salário mínimo básico (inciso IV do artigo 7 da CF);

– piso salarial básico (inciso V do artigo 7 da CF);

– renda mínima (art. 212 CF);

– saúde básica (art. 6º e 196 da CF);

– saneamento básico (Lei 11.445/07);

– ensino obrigatório (parágrafo 3º do artigo 212 da CF), entre outros.

Além disso, no aspecto prático, esse princípio valorativo impõe que toda a interpretação infraconstitucional há que se orientar por esse valor absoluto, objetivamente considerado, o que no aspecto prático tem levado nossos tribunais a soluções de questões importantes de ordem humanitária como p.e: fornecimento compulsório de medicamentos (STJ, ROMS 11.183-PR, DJ 4.9.00, Rel. Min. José Delgado); a nulidade de cláusula contratual limitadora do tempo de internação hospitalar (TJSP, AC 110.772-4/4-00, ADV 40-01/636, nº 98859, Rel. Des. O. Breviglieri), entre outras.

Ou, suscitará ainda muitas polêmicas em questões de natureza mais controvertida envolvendo a necessidade de ponderação entre direitos fundamentais contrapostos que possuam como conteúdo a noção de dignidade humana, como p.e: certas formas de procriação; recusa de transfusão de sangue por credo religioso ou dever de consciência; disponibilidade de órgãos humanos; manipulações genéticas; experiências com seres humanos; eutanásia, e, mais recentemente pelo STF a autorização para o aborto de feto anencéfalo.

Com essa diretriz básica, percebe-se que o Constituinte de 1988 alicerçou o Estado brasileiro no reconhecimento de que a pessoa humana, individualmente considerada, se constitui no fim maior da ordem jurídica e que toda a ação do Estado, tanto no seu aspecto negativo de dever de abstenção de abuso, como no aspecto positivo, ou seja, dever de prestação positiva para a realização da pessoa humana, deve se orientar por este vetor constitucional interpretativo.

2.3.3. Relação com os Direitos Humanos e Direitos Fundamentais

Em sua relação com o tema dignidade humana, pode-se afirmar que os Direitos Fundamentais seriam aqueles positivados na Constituição, não obstante ligados à natureza humana e que a acompanham do nascimento à morte e sem as quais o ser humano não se realiza, e, portanto, indispensáveis a uma vida humana digna. No dizer de Pérez Luño (1979, p.23-24) apud da Silva (1998, p. 182), direitos fundamentais do homem seriam, “aquelas prerrogativas e instituições que ele [direito positivo] concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas”.

Pode-se dizer que a dignidade seria o núcleo material dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, ou seja, a sua fonte originária. Neste sentido, leciona Barcellos (2002, p. 110-111) que, “o conteúdo jurídico da dignidade se relaciona com os chamados direitos fundamentais ou humanos. Isto é: terá respeitada a sua dignidade o indivíduo cujos direitos fundamentais forem observados e realizados, ainda que a dignidade não se esgote neles”.

Direitos humanos é expressão usada preferencialmente nos documentos internacionais justamente por serem compreendidos como uma categoria anterior, informadora e legitimadora dos direitos fundamentais, assim como os direitos fundamentais seria uma categoria positivada e enunciativa dos direitos humanos, justamente por terem seu pressuposto em um sistema de valores prévio, de ordem universal e natural que teria força jurídica, ainda que não positivados.

“Em que pese sejam ambos os termos (‘direitos humanos’ e ‘direitos fundamentais’) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo ‘direitos fundamentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humano, reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional)” (SARLET, 2002, p.35-36).

Pode-se afirmar que o conteúdo e a fonte irradiadora dos direitos fundamentais e dos direitos humanos é a dignidade da pessoa humana –  os primeiros, seriam, portanto, a causa e, o segundo, a sua emanação. Portanto, reprisando o que já fora dito alhures – só se considerará respeitada a pessoa humana em sua dignidade, quando e, se forem observados os direitos fundamentais e, ou os direitos humanos que resguardem aquele valor nuclear.

2.4. Cronologia da Dignidade Humana

Oportuno, antes de adentrar na questão do cristianismo como fundamento da dignidade humana, proceder a uma breve retrospectiva histórica do tema.

2.4.1. Código de Hamurabi

O antigo Código do rei sumério Hamurabi (1792-1750 ou 1730-1685 a.C.), fundador do primeiro Império Babilônico já dispunha de alguns direitos, tais como o direito à vida, à família, à honra, à dignidade, proteção especial aos órfãos, viúvas e, aos mais fracos a fim de que houvesse justiça. Todavia, segundo Rao (1991, p.52-53), ainda se admitia que a reparação do ofendido se desse na mesma proporção da ofensa, muito parecida com a lei do talião, ou seja, olho por olho, dente por dente.

2.4.2. Código de Manu

O Código de Manu, na Índia, surgiu posteriormente ao Código de Hamurabi e já admitia a possibilidade de retribuição ao lesado de forma pecuniária, pacificando assim, o espírito de vingança entre famílias, já demonstrava a existência de direitos à personalidade  (RAO, 1991, p.52-53).

2.4.3. Grécia

Os gregos não formularam diretamente a noção de dignidade da pessoa humana, mas a importância de seu pensamento na civilização ocidental decorre da idéia do homem com validade normativa e universal, de base filosófica e racional oposto ao pensamento mítico. Assim, a razão é vista como meio de se questionar e se resolver os problemas.

Além do mais, na Grécia e pela filosofia, se criou a consciência de que a natureza obedece a leis e princípios universais e imutáveis os quais podem ser apreendidos pelo pensamento e que o próprio pensamento obedece a regras universalmente válidas e que nos permitem diferenciar o verdadeiro do falso. Esta reflexão sobre o homem e a existência humana teria repercussões importantes sobre a noção de dignidade humana no mundo moderno (MARTINS, 2003, p.20-21).

2.4.4. Estóicos

Os estóicos defendiam a fraternidade entre todas as pessoas e a existência de princípios morais, universais, eternos e imutáveis, que resultavam dos direitos inerentes ao homem e da igualdade de natureza entre os seres humanos. Para essa filosofia, não deveria importar para os homens as classes sociais, etnia ou estágio cultural.

O filósofo Cícero, a quem se atribui a celebra frase “homo res sacra homine” (o homem é coisa sagrada para outro homem), “porque todos somos membros de um mesmo corpo” (membra sumus corporis magni), é o ícone do pensamento estóico que procura compreender a dignidade em um sentido mais amplo e do reconhecimento, em sentido igualitário, da dignidade em todos os seres humanos (MONDIN, 1980). 

2.5. O cristianismo como fundamento da concepção da Dignidade Humana

Não obstante a contribuição que se possa reconhecer às culturas acima mencionadas para a noção e consciência da dignidade humana, o fato é que não há, nos povos antigos, o conceito de pessoa tal como o conhecemos hoje. O homem para a filosofia grega, por exemplo, era um animal político ou social, como para Aristóteles e sua identidade estava associada ao conceito de cidadania, ou seja, ao fato de pertencer ao Estado, que por sua vez possuía íntima conexão com o Cosmos, vale dizer,  com a natureza.

Mondin (1980), afirma que na filosofia antiga falta até mesmo o termo para exprimir a personalidade, já que o termo "persona" deriva do latim. Mesmo entre as culturas mais evoluídas da época antiga, como Roma e Grécia, não havia ainda a noção de uma singularidade valorizadora do ser humano como ser em si, abstraído do contexto social da polis dominada pelas aristocracias locais. O ser humano nestas distantes épocas não havia conhecido ainda alguma filosofia ou pensamento que lhe atribuísse um valor em si, uma valoração embasada na sua dignidade pessoal, como fim em si mesmo, mas apenas enquanto membro de um grupo social.

Neste aspecto, não havia diferença entre os greco-romanos e outras culturas como, por exemplo, os babilônicos, os egípcios, os medos-persas e fenícios que reconheciam o homem em relação ao meio social que vivia, ou, ao determinismo natural que os cercava e que lhe fornecia matéria-prima para sua sobrevivência, convivendo com o temor da ira dos deuses com suas catástrofes e julgamentos divinos.

Os antigos não conheciam nem dispunham nem de liberdade, igualdade, nem direito à vida, à educação, ou liberdade religiosa. O homem tinha muito pouco valor, perante esta autoridade suprema e reverenciada como quase divina que se chamava pátria ou Estado.

Na cultura oriental, mesmo em nossos dias, ainda prevalece muito esta concepção do coletivo sobre o individual. Oliveira Lima (2008), em brilhante artigo publicado na internet intitulado: “O princípio da dignidade da pessoa humana: análise de sua evolução histórica como abertura para a concretização no âmbito do Direito Civil Brasileiro”, faz oportuno e balizado comentário:

“Diz-se e frisa-se aqui que a dignidade humana é uma conquista Ocidental porque no Oriente prevalece muito mais a visão do todo, do coletivo, por sobre o individual, não superando o determinismo da natureza e, em última instância, da sociedade, sobre a individualidade. Bastar observar que na cultura Oriental a noção de individualidade é tênue e frágil, pois se valoriza muito mais as aspirações sociais do que a manutenção da personalidade e do valor da vida individual, contraposta ao totum coletivista. Exemplo disso são os kamikazes, os guerreiros japoneses que na Segunda Guerra Mundial sacrificaram as próprias vidas em prol da causa de seu país, pouco importando suas existências singulares frente à necessidade de sacrifício em benefício de sua nação. O importante era a derrota dos Estados Unidos da América e a manutenção da concepção divina da força de seu Imperador, que representava então a vitória da sociedade nipônica sobre a sociedade ocidental. Dentro do mais acentuado coletivismo, agiam os guerreiros suicidas que buscavam um ideal bem mais alto (na concepção deles) que suas pessoas individuais. Recentemente, também, observa-se que a cultura árabe valoriza a Jihad (“Guerra Santa”) e impõe a muitos de seus fiéis que sacrifiquem suas existências individuais em função da causa muçulmana e da derrota da cultura do Ocidente. Assim foi também nos tempos de Maomé e da dilatação da cultura mulçumana pelas terras do norte da África e do sul da Europa, onde milhões de árabes morreram para expandir a fé e fortalecer sua sociedade. Os hindus se auto-imolam em nome de seus milhares de deuses e se sacrificam para prestar homenagem aos seus antepassados, e ainda para fortalecer sua sociedade, augurando benesses de boas colheitas e prosperidade junto aos deuses não para si, mas para o corpo coletivo. O sacrifício humano e a penitência da individualidade são considerados naturais. Nessas exemplificações estão contidas as nuances mais relevantes de uma visão orgânica da comunidade superando a própria noção de vida individual. A vida orgânica da comunidade é, pois, para os orientais, algo de valor bem mais acentuado que a vida individual”.

Na avaliação do citado autor, este fenômeno se deve principalmente à concepção oriental natural de existência, e, porque a formação histórica oriental estaria focada na ligação do homem com a natureza, e não fundada em valores espirituais individualistas. Além disso, a formação histórico-cultural oriental baseia-se, sobretudo, na valorização da vida coletiva acima da individual o que faria sobressair o valor do coletivo sobre o individual.

Segundo o referido autor, não havia, portanto, até então, uma filosofia ou pensamento que atribuísse ao homem um valor personalíssimo, uma valoração embasada na sua dignidade individual e pessoal, como fim em si e não como membro integrante de uma comunidade coletiva ou independente de seu status nela ocupado, ou, de seu grau de evolução social ou cultural.

A noção de pessoa como categoria espiritual e individualidade subjetiva com valor em si mesma em dignidade, como ser de fins absolutos e que, em conseqüência, é possuidor de direitos subjetivos ou direitos fundamentais, surge com o Cristianismo com a chamada filosofia patrística, sendo depois desenvolvida pelos escolásticos.

Segundo Martins (2003, p.220), a construção do conceito de dignidade humana foi um processo que, no campo da religião, começou a partir da afirmação da fé monoteísta da qual a religião cristã é uma espécie. Leciona ainda o mesmo autor que na concepção cristã, o mundo foi criado por um Deus único, transcendente e perfeito, diferente dos vários deuses de então, que teriam poderes sobre-humanos, mas que compartilhavam com a humanidade alguns de seus defeitos.

De acordo com a tradição judaico-cristã, esse Deus único criou o ser humano à Sua imagem e semelhança (Gen.1:26a), comunicando-lhe, portanto, alguns de Seus atributos pessoais, conferindo-lhe autoridade sobre todos os itens criados e reconhecendo-o como o fim da criação e não como meio (Gen.1:26b), infundindo-lhe ainda Sua essência divina –  o espírito humano (Gen.2:7), e criando, assim a alma humana (Gen. 2:7) com sua personalidade individual dotada, na lição de Lee (2010, p. 57-59), de:

1- mente ou intelecto, de onde decorre as noções de inteligência, racionalidade, pensamento, conhecimento, sabedoria (Prov. 2:10) etc.;

2- vontade própria, de onde decorre as noções de livre arbítrio, autonomia, autodeterminação, liberdade de escolha para tomar decisões e se orientar (Jó 7:15), até mesmo para rejeitar o Criador se assim o quisesse (Gen. 2:9);

3- emoções, de onde decorrem as noções dos sentimentos de: amor (I Sam. 18:1), raiva (II Sam. 5:8), alegria, tristeza (I Sam. 30:6), frustração, esperança, respeito, etc.

No dizer de Perez (1986, p. 26), o homem se destaca de toda a natureza e aparece como um ser superior ao universo material. Dotado de inteligência e liberdade, está muito além da natureza e da história. Reconhece o ilustre professor que a liberdade é da essência do homem e o que o diferencia dos demais itens da criação é que estes têm um fim fora de si mesmo, o homem, porem, teria um fim próprio a cumprir por determinação própria.

Argumenta ainda o festejado escritor acerca da dignidade que,

“la dignidad de la persona es, pues  el rango de la persona como tal . Ser  persona es un rango, una categoria que no tiene los seres irracionales . Esta prestancia o superioridade del ser humano sobre los que carecen de razon  es lo que se llama  la dignidade de la persona humana. En palabras de San Augustin , “nada hay más poderoso que esta criatura que se llama la mente racional, nada mas sublime que ella; lo que esta sobre ella, ya es el Criador. Precisamente por esta supremacia por esta supremacia del hombre en el mundo, todos los hombres son iguales en dignidad. “Nadie em más que nadie”, dice un proverbio de Castilla” (PERES, 1986, p. 24)

 Aduz igualmente o renomado jurista espanhol que assim como não damos valor ao ar que respiramos até que nos encontremos num claustro ou afogados, facilmente esquecemos o fundamento firme de nossa dignidade que é a verdadeira humanidade [consoante o registro histórico do pouco valor dado pelos homens à dignidade humana numa situação extrema como o foi, por exemplo, durante a Segunda Guerra mundial] e que a igualdade dos homens consiste  em que, tendo todos a mesma natureza comum, são todos chamados à mesma eminente dignidade de filhos de Deus.

Reconhece, outrossim, o ilustre autor que a dignidade humana não é a superioridade de um homem sobre outro, mas sim de todo homem sobre os seres que carecem de razão. Ou seja, o senhorio do homem seria um domínio humano das coisas e dos seres irracionais, isto é o que prescreve a ordem natural. Citando Agostinho, assevera que Deus criou o homem à sua imagem e quis que ele dominasse sobre os seres irracionais e não o homem sobre o homem.

Ao fazer referência ao comissionamento de Deus para o homem dominar sobre a terra, reconhece o professor espanhol, a implicação de permissão de se usar todos os recursos que a terra e o mundo visível encerram em si e que, mediante a atividade consciente do homem, poderiam ser descobertos e oportunamente usados.

 Por fim, arremata, na página 26 de seu livro intitulado “La dignidade de la persona humana y el Derecho”, que se o homem é pessoa, porque assim foi feito, e que, se as coisas e animais são impessoais, porque assim foram feitas, então, a última razão e o fundamento da categoria da pessoa humana, não pode ser o homem mesmo senão um Ser superior a todo homem e capaz de conferir razão e liberdade na maneira em que fomos feitos, ou seja, o mesmo Deus comum (grifo nosso).

O cristianismo, portanto, logrou, pela criação de uma cultura comum e universal, forjar a consciência de que todo o gênero humano formaria uma só unidade, pela doutrina de que todos os povos e homens descenderiam de um mesmo pai com sua essência comum em todos os homens. Com a unidade no Deus único e sua única e mesma essência em todos os seres humanos, surge nos espíritos a consciência da dignidade humana comum.

De acordo com a filosofia cristã, a dignidade da pessoa humana é decorrente da própria natureza divina do homem, ou seja, o homem em razão de conter em seu ser parte daquilo que é chamado de essência divina, deve ser considerado como ente digno. A dignidade seria a quota divina que todo homem possui, é elemento indissociável, e por si só, é capaz de fundamentar a existência de direitos e garantias fundamentais outorgados à proteção do gênero humano. A noção de Dignidade da Pessoa Humana deve, portanto, muito à doutrina cristã, já que foi a partir desta que se pôde pensar o homem sob a ótica da igualdade. Um homem criado à imagem e semelhança de Deus e que, portanto, tem valor especial na escala dos seres.

A concepção de dignidade humana, por conseguinte, faz parte da tradição personalista e metafísica do cristianismo, que com seu influxo sobre a cultura Ocidental, sobretudo, partir do século IV depois de Cristo, possibilitou fosse abandonada a antiga acepção grega de cosmogonia e de poliarquia como fundamento da dignidade humana. A partir de então, o homem passou a ser concebido como um ser de filiação divina e não um produto natural, fundando-se cabalmente a dignidade do homem no ‘reino do espírito’ e na liberdade da vontade.

Nesta linha de raciocínio, o cristianismo, em sua doutrina filosófica formatou, em linhas gerais, a cultura ocidental, pois, a partir de então se passou a conceber o homem focado em sua dignificação pessoal e não na dignidade ‘coletiva’, produzindo-se um deslocamento da concepção de dignidade, do senso coletivo para o individual, da personalidade sobre o grupamento social. Com isso, surge o reconhecimento de direitos personalíssimos de cada homem e a afirmação de que na vida social a vida do homem não se confunde com a vida do Estado, formando-se, a partir de então, a consciência da necessidade de haver equilíbrio entre liberdade-igualdade e a autoridade.

Tobeñas (1969, p.4), preleciona que foi o Cristianismo que, desde seus primeiros momentos, afirmou o indivíduo como um valor absoluto, exaltando o sentimento de dignidade da pessoa humana e proclamando uma organização da sociedade que viesse a permitir o total desenvolvimento de sua personalidade, sem prejuízo para o bem comum, ao revés, colaborando para desfrutar deste.

Veremos a seguir, a figura central do cristianismo, ou seja, seu ícone maior: Jesus Cristo, seu ensinamento e viver dignos; a antítese da dignidade humana vista em seu julgamento e morte; e, a mais elevada expressão da dignificação humana vista em sua ressurreição e ascensão e a contribuição da genuína doutrina cristã para a concepção da dignidade humana e para a universalização de sua consciência.

2.5.1. Jesus Cristo

2.5.1.1. Seu ensinamento e viver

Se a criação do homem à imagem semelhança de Deus revelada na Bíblia, implica no valor e reconhecimento que Este atribui à natureza humana, a ponto de pretender Ele que o homem O expressasse a partir da humanidade – assim como uma luva é feita à semelhança da mão com o propósito de expressá-la (Lee, 2011, p. 1) – a encarnação do Verbo, (Jo 1:14) e seu viver humano digno e promotor da dignidade, representam, em última instância, a reafirmação deste valor. Isto porque, a fim de redimir a natureza humana e reconduzi-la à dignidade perdida na queda, segundo a doutrina judaico-cristã, Deus mesmo teve que se revestir da natureza humana a fim de alcançá-la, deixando-nos exemplo do paradigma do viver divino-humano de dignidade que ele idealizou para o homem.

Talvez a maior contribuição da pregação de Cristo para a concepção da dignidade humana e para a universalização de sua consciência tenha sido a valorização do ser humano individualmente considerado em seus sermões e mensagens, reforçada por seu viver digno e piedoso, cuidando inclusive da dignidade de categorias diferentes de pessoas, às quais a sociedade da época dava muito pouco ou nenhum valor.

Possivelmente não haja maior expressão da importância que Cristo atribuiu ao homem, individual e objetivamente considerado, que a parábola da ovelha perdida de Lucas 15, em que Ele mesmo, de forma autobiográfica, é descrito como um pastor que deixa as outras noventa e nove ovelhas em busca de uma única que se perdeu (Lucas 15:4-7). Essa mensagem deixa implícita a idéia de que, pelo valor que possui o homem para Deus, ainda que existisse apenas um único ser humano sobre a Terra que necessitasse de salvação, ainda assim, Cristo teria se encarnado e morrido na cruz por sua redenção, revalorização e dignificação.

Este raciocínio acerca do amor pessoal e da salvação individual também é evidenciado e reforçado pela expressão “todo aquele” (grifo nosso), mencionada no evangelho de João cap. 3, v.16, enfatizando a salvação pessoal e individual e o valor que Deus atribui à natureza humana, a ponto de por ela morrer e conceder ao homem a vida eterna:

“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito, para que todo aquele que Nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. (grifo nosso).

Talvez não haja maior expressão de fraternidade e solidariedade, ligadas à noção de dignidade, que o ensino de Jesus sobre amar o próximo inclusive nosso inimigos (Mateus 5:44) como a nós mesmos (Luc. 10:27) bem como o dever de fazer aos outros o mesmo que gostaríamos que eles fizessem a nós (Mat. 7:12). Novamente, o indivíduo é enfatizado e valorizado, abstraído do entorno coletivo que o envolve. Como observa Popper (1974, p. 117) com propriedade, Cristo não disse: ame a tua tribo ou tua nação, mas ama o teu próximo, como a ti mesmo (grifo nosso).

O cristianismo criou uma nova dimensão do homem até então pouco percebida: a da pessoa humana. Tal noção era tão estranha ao racionalismo clássico, que é praticamente impossível de se achar na filosofia grega as categorias e as palavras para exprimir essa nova realidade. O pensamento helênico não estava em condições de conceber que o infinito e o universal pudessem exprimir-se em uma única pessoa. Daí decorrer, justamente em se reconhecer no cristianismo, como pretende a presente monografia, o fundamento da dignidade humana, pois, não se pode conceber a dignidade humana sem o seu pressuposto lógico-filosófico, qual seja –  a concepção de pessoa humana individualmente considerada com valor em si mesma, noção esta, formatada justamente pela genuína doutrina Cristã.

Este raciocínio é igualmente apurado por Mondin (1980, p. 285) que diz que o sentido da pessoa na antigüidade continua embrionário até os inícios da era cristã. O homem antigo é absorvido pela cidade e pela família, submetido a um destino cego, sem nome, superior aos próprios deuses.

A partir do cristianismo, todo e qualquer ser humano passou a ser visto e reconhecido como pessoa, fossem homens, mulheres, escravos, crianças, estrangeiros ou até inimigos. Aduz Andreotti (1999, p.86) que o ensinamento de Cristo representou um salto qualitativo enorme frente ao determinismo da polis antiga, onde, segundo o referido pensador, a religião nunca mais legitimou o ódio entre os povos, nem entre inimigos, nem preceituou ao cidadão como deve detestar o estrangeiro ou o inimigo. Pelo contrário, passou a ter por essência ensinar ao homem que tem deveres de justiça e até de benevolência para com o estrangeiro e até para com o inimigo, donde possivelmente o suposto embrião da concepção humanitária do respeito à dignidade dos presos inimigos capturados em combate, positivada posteriormente na Convenção de Genebra.

 A tolerância e fraternidade igualmente vinculadas à noção de dignidade são também enfatizadas nos evangelhos de Cristo, p.e, na parábola do credor intolerante (Mat. 18,21-35) que, após ser perdoado pelo rei de uma dívida de dez mil talentos, recusou-se a perdoar seu servo que lhe devia cem denários, no que foi censurado por não tratar com isonomia seu semelhante. O ensinamento de Cristo constituiu um marco na história dividida em antes e depois dele, considerando que, antes da doutrina cristã, nada havia no plano das idéias universais que limitasse a priori as medidas de caráter excludentes e intolerantes.

A fraternidade e tolerância ensinadas por Jesus encontram eco até hoje na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que determina em seu primeiro artigo que:

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (grifo nosso).

Segundo Maia Neto (2008), em interessante artigo publicado na internet, no Portal Jurídico Investidura, intitulado: Jesus Cristo e os Direitos Humanos, também ressoam as lições cristãs em nosso ordenamento jurídico em institutos tais como: a comutação de pena; a graça; a clemência e o indulto (arts. 107, II e 120 CP; arts. 187/193 LEP; arts. 734 e segts. CPP c.c. art. 84 XII CF).

O mesmo autor em seu brilhante artigo chega a afirmar que,

“a doutrina Cristã é precursora dos conceitos internacionais de Direitos Humanos, consagrando as cláusulas pétreas dos instrumentos universais de aceitação tácita ou aqueles aderidos e ratificados pelos governos (ver Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU – 1948;Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ONU -1966; Convenção Americana sobre Direitos Humanos, OEA – 1969; Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação, ONU – 1965; Convenção sobre os Direitos da Criança, ONU -1989, entre tantos outros.”

Cristo igualmente doutrinou acerca da liberdade, não da forma como imaginavam os judeus, ou possivelmente alguns de seus seguidores mais próximos, ou seja, a libertação material ou política do Império romano pela subversão da ordem, da lei ou das autoridades romanas pela força. Aliás, contra essa concepção ele mesmo se insurgiu ao ensinar o respeito às autoridades instituídas e à lei, dizendo que os judeus deviam dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Diversamente, pregou a libertação  pelo conhecimento da verdade (Jo 8:32), contra as trevas da ignorância, vale dizer, pela mudança do paradigma de pensamento e de valores até então vigentes. Uma revolução pela conscientização das idéias, princípios e valores dignificantes incorporados em seu ensinamento de caráter imutável e universal.

Jesus não apenas ensinou ou teorizou acerca da dignidade, ele a vivenciou em sua experiência humana prática e diária. Jesus Cristo tratou indistinta e dignamente todas as categorias de pessoas com quem conviveu: homens, mulheres e crianças; pobres ou ricos; nacionais (judeus) ou estrangeiros (ver exemplos das mulheres gentias, samaritana (Lc. 4,1-42) e siro-fenícia (Mat. 15,21-28)); prestou assistência espiritual, moral e até material, aos pobres e doentes (Mat. 15:30; Jo 9,1-41, Lc.5,1-26); aos leprosos (Mat. 8,1-3); às pessoas marginalizadas como p.e: coletores de impostos (Lc. 5,27-39; 19,1-10); uma prostituta (Lc. 7,36-50) e uma mulher flagrada em adultério (Jo 8,1-11), entre outras. 

Portela (2005, p. 280), em pertinente artigo publicado na Revista eletrônica, Opinião Jurídica, ano 2005, intitulado “Contribuição da doutrina cristã para o desenvolvimento dos direitos humanos”, fornece oportuna explanação:

“A mensagem evangélica proclama a igualdade de todos os seres humanos. De fato, Cristo dirigia sua Palavra e sua ação não só aos judeus adultos e homens, mas também a povos e grupos discriminados na sociedade da época, como os samaritanos, romanos e estrangeiros em geral, crianças, mulheres, pecadores, doentes – a exemplo dos leprosos – e toda sorte de desamparados, antecipando aquilo que São Paulo afirmaria posteriormente em Romanos 2,11, ao recordar que “para Deus, não há acepção de pessoas”. Com isso, a mensagem de Cristo e os direitos que aporta adquirem também o caráter da universalidade, inerente aos direitos humanos, e caminham para a superação daquilo que Comparato chamava de “concepção nacionalista da religião, pela qual cada culto pertencia a um povo específico.”

O mesmo autor leciona ainda que Jesus pregava a paz e a pacificação de conflitos (Mat. 5, 9 ; 5,23-26); preconizou a tolerância consubstanciada na proibição da vingança (Mat. 5, 38-42),  nas virtudes do perdão aos inimigos (Mat. 5,43-44), na humildade  e  na mansidão (Mat. 5,3 e 5); exaltou a justiça (Mat.5,20) e ensinou  o respeito ao próximo (Mat. 5,21-26).

Além disso, Jesus Cristo interpretou a lei teleologicamente, resumindo-a no seu espírito de amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo (Mat. 22,36-40). Ou seja, em relação ao primeiro, quem de fato ama a Deus, nada fará ou dirá que O desonre e, em relação ao segundo, aquele que de fato ama o próximo, nada fará que afronte sua dignidade.

Cristo fez referência a muitos outros direitos relacionados à dignidade em seu ministério como, por exemplo, a valorização da vida humana, manifestada em sua oposição à pena de morte contra a mulher adúltera em João 8, 1-11. Ele mesmo declarou que veio dar vida aos homens e vida em abundância. Esse discurso se revela extremamente rico em implicações práticas, considerando que a língua grega possui 3 acepções distintas para o termo.

Lee (2008, p. 600-601), em sua nota de rodapé 174, interpretando o versículo 17 de Romanos cap. 5 do Novo Testamento (Versão Restauração), explica os 3 significados distintos da palavra vida, no grego, dando a entender que a vida que Jesus oferece aos homens, atende à dignidade humana nestas 3 dimensões:

1-    vida física  = bios (Luc. 8:14);

2-    vida psicológica = psique (Mat. 16:25-26);

3-  vida espiritual = zoe (Rm. 5:10, 18,21; 8:2, 6 e 10)

Entretanto, não há maior expressão do valor que Cristo atribuiu à vida do que sua própria Ressurreição, bem como os milagres que realizou a seu favor, devolvendo p.e, a vida a Lázaro (Jo 11,1-44); à filha de Jairo (Lc. 8,40-56); e, quando movido de compaixão, devolveu a vida ao filho único de uma viúva (Lc. 7,11-17). Não resta dúvida, portanto, que a doutrina de Cristo corroborada pelo seu viver digno foi a que melhor formulou o conceito, sentido e alcance de dignidade da pessoa humana, densificando seu conteúdo, enriquecendo-o de valores e virtudes humanas experienciados no seu cotidiano. 

Não obstante tenham existido após Cristo, outros pensadores e teóricos que discorreram sobre o conceito da dignidade da pessoa humana, é de se observar que apenas secularizaram e desenvolveram o conceito e sua noção, adaptando-os à realidade histórica de seu tempo e ambiente.

2.5.1.2. Seu julgamento e morte

A relação do cristianismo com a noção de dignidade é, por um lado, a mais emblemática e, por outro a mais paradoxal, pois, se é correto afirmar que possivelmente não tenha existido na face da terra alguém que tenha respeitado e cuidado do ser humano em sua dignidade, bem como ensinado acerca de sua valorização, é igualmente correto afirmar que possivelmente não tenha existido outro ser humano que tenha sofrido mais violações e menoscabo em sua dignidade pessoal do que ele próprio e, bem assim, seus seguidores inaugurais. 

Pereira Ribeiro (2008) e Maia Neto (2008) abordam, em profícuos artigos publicados na internet e já referenciados, as barbaridades jurídicas verificadas no julgamento, condenação e execução de Cristo. Pode-se afirmar que o Julgamento de Jesus Cristo não atendeu ao principio universal do devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV da CF). Houve também várias outras arbitrariedades envolvidas no processo que o sentenciou à morte.

A prisão de Cristo não poderia ter sido efetuada à noite, principalmente porque era a época da celebração do Pessach – a mais importante festividade do calendário judaico, mas Jesus foi procurado e preso ilegalmente a noite, sem qualquer mandado de prisão. O interrogatório não poderia ter sido conduzido fora das dependências do Sinédrio, mas o foi. O interrogatório de Anás foi ilegal porque o mesmo já não era Sumo-Sacerdote do Sinédrio e mesmo assim conduziu o interrogatório. Não era prevista, à época, a prisão preventiva, somente a prisão em flagrante delito, no entanto, Jesus foi preso ilegalmente sem cometer crime algum. O próprio Governador Pôncio Pilatos reconheceu este fato (Lucas 23:4).

Havia proibição, pela lei da época, de que qualquer parente amigo ou inimigo do acusado o julgasse, no entanto, todos os membros do Tribunal eram seus inimigos pessoais e já vinham conspirando contra ele. Em seu julgamento foram violados os princípios do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º LV da CF.), não restando a ele nem um tipo de defesa técnica, afrontando assim dois corolários do devido processo legal. Diante das legislações Romanas e Hebraicas, a condenação de Jesus teve seus motivos incriminadores, mas ambas não possuíam nenhuma tipificação exata que levasse um acusado a um julgamento ilegal, arbitrário e potencialmente sumário. Além disso, seus acusadores o caluniaram imputando-lhe condutas adversas das que Jesus havia cometido.

No julgamento instituído contra Jesus, desde a prisão, uma hora talvez antes da meia-noite de quinta-feira, tudo quanto se fez até ao primeiro alvorecer da sexta-feira subseqüente, foi tumultuário, extrajudicial, e atentatório dos preceitos hebraicos e romanos. (BARBOSA, 1957, p. 67-71).

Todos os princípios básicos da processualística foram violados, todo o meio legal que depõe a favor de um réu foram esquecidos, todos os direitos fundamentais que um cidadão tem direito foram sumariamente apagados da lembrança dos acusadores, o nobre principio da dignidade humana simplesmente foi violentado diante de tal processo, julgamento e execução iníquos, reveladores da perversidade humana.

Jesus sofreu o maior dos constrangimentos ilegais, foi humilhado e sentenciado sem provas, através de denúncias caluniosas, injuriosas e difamantes (violação dos arts. 138 a 145, e 339 do CP), associado ao abuso de autoridade (violação da Declaração das Nações Unidas sobre os princípios fundamentais de justiça para as vítimas de delitos e do abuso de poder, 1985; Lei nº 4.898/65; art. 350 CP).

Cristo foi preso, torturado de forma brutal e desumana (inc.III, XLIII, art. 5º CF, e Lei nº 9.455/97) e mau tratado (art. 136 CP) ante grave violência arbitrária (art. 322 CP); foi desrespeitado em sua integridade pessoal, física e moral, privado de suas vestes sendo  exposto nu ao desprezo e humilhação públicas e submetido à  que talvez fosse a mais vil, degradante e excruciante forma de execução de criminosos (sem que o fosse: Jo 18,38): a crucificação (violação das  Regras Mínimas da ONU para o Tratamento dos Reclusos, 1955; Conjunto de Princípios para a proteção de todas as pessoas submetidas a qualquer forma de detenção ou prisão, 1988; Convenção contra a Tortura e outros tratos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes, ONU, 1984 e OEA, 1985;  inc. XLIX, art. 5º CF;  art. 38 CP e art. 40 LEP).

2.5.1.3. Sua ressurreição e ascensão

Se por um lado, o julgamento e morte de Cristo marcaram a história da humanidade pela barbárie e degradação humana e pelo aviltamento da dignidade humana – como uma antítese desta, sua ressurreição e ascensão, à luz da doutrina cristã, representam a mais elevada expressão da dignificação humana. O fato é que, segundo as sagradas escrituras, Jesus, ao ressuscitar e ascender, não se despojou de sua humanidade, mas dignificou-a ao máximo, divinizando-a e introduzindo-a na glória divina, revelando, assim, o propósito divino da dignificação da pessoa humana.

Lee (2008, p.581), a propósito, leciona com propriedade na nota de rodapé 41 da sua Versão Restauração do Novo Testamento, acerca de Romanos1: 4, que faz menção ao fato de Cristo, após sua ressurreição, ter sido designado Filho de Deus:

“Antes de encarnar, Cristo a pessoa divina, já era o Filho de Deus (Jo 1:18; Rm 8:3). Por meio da encarnação, Ele se revestiu de um elemento, a carne humana, que nada tinha a ver com a divindade; essa parte Dele precisava ser santificada e elevada passando pela morte e ressurreição. Por meio da ressurreição, a Sua natureza humana foi santificada, elevada e transformada. Portanto, pela ressurreição, Ele foi designado Filho de Deus com Sua humanidade (At.13:33;Heb1:5). A sua ressurreição foi a sua designação. Agora, como Filho de Deus, Ele possui humanidade assim como divindade. Por meio da encarnação, Ele introduziu Deus no homem; por meio da ressurreição, Ele introduziu o homem em Deus, isto é, Ele introduziu a Sua humanidade na filiação divina. Desse modo, O Unigênito Filho de Deus tornou-Se o Primogênito Filho de Deus que possui tanto divindade como humanidade. Deus usa tal Cristo, o Primogênito, que possui tanto divindade como humanidade, como o produtor e o protótipo, o modelo para produzir Seus muitos filhos (Rm. 8:29-30) – nós que cremos no Seu Filho e O recebemos. Também nós seremos designados filhos de Deus e revelados como tais, assim como Ele o foi na glória da Sua ressurreição (8:19,21) e com Ele expressaremos a Deus.”

Este processo pode ser resumido nas palavras de santo Atanásio (Patrística, 2002): Deus se fez homem para que, Nele, nos tornássemos Deus (grifo nosso). Esta pode ser considerada, por fim, a mais elevada expressão da dignidade humana, à luz da doutrina cristã.

2.5.2. Tomás de Aquino

Outro nome de expressão dentro pensamento cristão de construção da noção de dignidade da pessoa humana é Tomás de Aquino. A relevância da contribuição deste renomado filósofo cristão acerca do tema se deve ao fato de ter sido ele possivelmente o primeiro filósofo e pensador a referir-se expressa e diretamente ao tema.

Para o pensador cristão da Idade Média o fundamento da dignidade humana residiria na racionalidade humana e no seu livre arbítrio que justificaria sua capacidade de autodeterminação e auto-orientação de sua vida de maneira independente, decorrente justamente do fato de ter sido o homem criado à imagem e semelhança de Deus. De acordo com sua doutrina, o homem seria composto de matéria e espírito que formariam uma unidade substancial, mas que apesar disso não impediria a alma humana de ser imortal.

Para Tomás de Aquino, pessoa é toda substância individual de natureza racional, conceito que ele resgata de Boécio.

“Com efeito, no pensamento de Tomás de Aquino, restou afirmada a noção de que a dignidade humana encontra seu fundamento na circunstância de que o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus, mas também radica na capacidade de autodeterminação, inerente à natureza humana, de tal sorte que, por força de sua dignidade, o ser humano, sendo livre por natureza, existe em função de sua própria vontade” (SARLET, 2011, p. 37).

Desta concepção destaca-se, segundo o renomado filósofo, o caráter singular do ser humano que o diferencia dos demais seres como ser racional e autônomo e, conseqüentemente a noção de que todos os seres humanos são iguais em dignidade, já que todos seriam igualmente dotados da mesma racionalidade. Por conta desta racionalidade, todo homem é livre e responsável por seu destino e, portanto, dignidade seria um valor absoluto e um atributo inerente a todo ser humano (MARTINS, 2003, p. 23-24). Justamente dessa concepção de dignidade, fundada na igualdade essencial e universal de todo ser humano, decorreria o núcleo da noção de universalidade dos direitos humanos, ou seja, direitos inerentes e comuns a todos os homens sem distinção de qualquer natureza.

2.5.3. A Reforma Protestante

Outro fator importante para a fundamentação da visão humanista da dignidade humana foi a Reforma Protestante de Lutero, pois a partir dela as relações entre Deus e homem foram substancialmente modificadas e encaradas de outra forma. Deus agora seria, a partir de então, pela leitura pessoal e individual da Bíblia, disponibilizada à população pela imprensa e, antes um privilégio exclusivo do clero, encarado como ser transcendente que se firmava como uma realidade a ser interpretada pelo sujeito subjetivo individual.

O homem, agora individualmente considerado, ganhava assim em posição a sua dimensão pessoal e substancial em contraposição ao renegado sujeito teológico medieval, dependente da Igreja Católica para se firmar e ser orientado.

Lafer (1988, p. 121), argumenta que a passagem das prerrogativas estamentais para os direitos do homem que lhe assegurassem a dignidade, encontrou na Reforma um marco importante para o rompimento da noção hierárquica de vida na esfera religiosa, uma vez que a Reforma despertou a consciência para o sucesso material como um sinal de confirmação da salvação individual. O prestigiado jurista aponta inclusive a Reforma, com a sua ruptura com a antiga ordem religiosa, como a fonte do primeiro direito individual tutelador da dignidade humana, ou seja: o direito à liberdade de opção religiosa (grifo nosso); e chega mesmo a afirmar que este direito é uma marca do legado puritano da “constitutio libertatis”, ou seja, a afirmação da liberdade na Revolução americana.

Informa ainda o festejado autor, em seu livro intitulado: “A Reconstrução dos Direitos Humanos”, que este legado da liberdade de expressão e liberdade religiosa, está na raiz da pratica governamental das colônias inglesas na América do Norte sendo um dos fundamentos das Declarações de Direitos dos Estados americanos, a primeira das quais foi a de Virginia, a qual, por sua vez, teria inspirado a Declaração francesa.

Leciona, outrossim, o ilustre embaixador que a partir da Reforma e da Renascença, seria o próprio homem a ser valorizado e não sua imagem de ser destinado espiritualmente a um domínio sobrenatural do qual estaria dependente. Pela liberdade subjetiva progressivamente conquistada, o homem na Idade Moderna, passou a ser dignificado. Nesse sentido é relevante a lição de Solari (1946, p. 3):

“El movimiento protestante, al sostener la interioridad y la espontaneidad del sentimiento religioso poniendo al hombre en relación directa con Dios, favorecía la emancipación del individuo y de sus derechos de conciencia de toda ingerencia de autoridad religiosa o civil, y no dejó de tener una influencia directa y decisiva en sentido individualista, sobre el desarrollo de las doctrinas jurídicas y políticas.”

Mais adiante, assevera o pensador italiano que a modificação da concepção medieval e católica de religião causou também uma renovação da fundamentação dos direitos subjetivos e do direito Estatal em geral, haja vista que a fundamentação do poder estatal na teologia não mais pôde ser aceita e se consagrou a força da contratualidade e da liberdade na formação da vontade dos indivíduos componentes da polis.

“Las teorías de los derechos innatos, de la soberanía popular y del contrato como medio para crear, resolver y modificar las relaciones entre el individuo y el Estado, mientras por un lado respondían al espíritu democrático que animaba al Cristianismo, sobre todo en su primitiva constitución, por otro constituían la esencia misma del movimiento protestante, Y en realidad, en los países donde el nuevo espíritu religioso y rebelde pudo manifestarse libre y lógicamente sin someterse a restricciones y a transacciones impuestas por la influencia del passado, vemos desarrollarse, en interés mismo de la fe y de la religión, las declaraciones de derechos, las teorías contractualistas y del pueblo en el ejercicio de la soberania” (SOLARI,1946, p. 4).

Ademais, encontramos na Reforma Protestante outro exemplo da influência do cristianismo na codificação do Direito: o desenvolvimento das relações comerciais ampliou o poder político e econômico da burguesia em aposição ao ensino ortodoxo da Igreja de Roma, que não obstante pregasse “ser mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”, mantinha o lucrativo comércio das vendas das indulgências e, ao mesmo tempo negava a dignidade humana ao queimar nas fogueiras os “hereges” opositores de sua doutrina, durante a Inquisição (SARLET, 2011, p. 34).

Além do mais, outra contribuição da Reforma protestante para a consciência e positivação da dignidade é que, a partir de Grócio começaria a ocorrer a laicização do Direito Natural e a tomada de consciência da razão como fundamento do Direito, aceitável por isso mesmo por todos, porque comum aos homens independentemente de suas crenças religiosas. Essa conscientização e mudança de paradigma culminaram com a liberdade do uso autônomo da própria razão, com as expressões de liberdade de pensamento, opinião e religião que possibilitaram a formulação da tese do Contrato Social como explicação da origem do Estado.

Esse processo de secularização do Direito Natural ensejado pela Reforma, culminou, na lição de Lafer (1988, pag.121), com o sapere aude kantiano consubstanciado no famoso livro de Kant: “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, acerca da dignidade, alcançando sua formulação clássica da dignidade da pessoa humana. Referido conceito é aquele que prevalece no atual pensamento jurídico vigente e segundo o qual, “no reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade”. Segundo o renomado jurista, “quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade” (KANT, 2004, p.58).

Não obstante, quando Kant formula o imperativo categórico conforme o qual se reivindica que, justamente porque o homem, como pessoa, em sentido técnico, tem uma dignidade, se põe acima de tudo que pode ser usado como meio e, ele, diferentemente se põe como um fim em si mesmo, a exemplo de Hegel que defende que cada um deve ser tratado por outro, como pessoa, não fazem outra coisa que não traduzir para a linguagem de sua ética e filosofia pessoal as considerações genuinamente cristãs e as conseqüências que delas derivam para o Direito (PEREZ, 1986, p.29).

2.6. Contribuição do cristianismo para a universalização da consciência da Dignidade Humana

2.6.1. Jesus Cristo

O Cristianismo, diversamente do judaísmo, nasceu com vocação universal. A comissão universal de Cristo aos seus discípulos, em Mat. 28,19-20, de irem a todo mundo e fazer discípulos de todas as nações, ensinando-os a guardar todas as coisas que Ele havia ordenado, é a maior expressão do caráter universal de seu ensinamento incorporador da dignidade humana, rompendo com a concepção e tradição nacionalista do judaísmo que fazia acepção entre judeus e gentios.

“É com o cristianismo que todos os seres humanos só por o serem e sem acepção de condições, são considerados pessoas dotadas de um eminente valor. Criados à imagem e semelhança de Deus, todos os homens são chamados à salvação através de Jesus que, por eles, verteu Seu Sangue” (MIRANDA, p.187).

Foi com o cristianismo que se criou a concepção dos direitos humanos fundados na dignidade humana de caráter igualitário e universal, ou seja, no reconhecimento de que todos os seres humanos sem qualquer distinção merecem idêntico respeito como titulares de direitos que lhe são ínsitos.

“O que se conta nestas páginas é a parte mais bela e importante de toda a História: a revelação  de que todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos entes do mundo capazes de amar, de descobrir a verdade e criar a beleza. É o reconhecimento universal de que, em razão desta radical igualdade – nenhum individuo, gênero, etnia, classe social, grupo ou nação – pode afirmar-se superior aos demais”. (COMPARATO, 2003, p.1)

Comparato (2003, p. 18) nos informa igualmente que a mensagem de Cristo e os direitos enunciativos da dignidade humana que aporta, revelam o caráter da universalidade dos direitos humanos inerentes à pessoa humana e apontam para a superação daquilo que chama de concepção nacionalista da religião, pela qual cada culto pertencia a um povo específico.

Idêntico raciocínio é desenvolvido por Lafer (1988, p.119) para quem o cristianismo formulou a noção e universalização da consciência dos direitos humanos:

“O cristianismo retoma e aprofunda o pensamento judaico e grego, procurando aclimatar no mundo, através da evangelização, a idéia de que cada pessoa tem um valor absoluto no plano espiritual, pois Jesus chamou a todos para a salvação. Neste chamamento, “não há distinção entre judeu e grego” (São Paulo, Epístola aos Romanos 10,12), pois, não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus (São Paulo, Epístola aos Gálatas, 3,28). Nesse sentido, o ensinamento cristão é um dos elementos formadores da mentalidade que tornou possível o tema dos direitos humanos.”

Esta nova orientação filosófico-doutrinária, igualitária, fraterna, solidária e inclusiva, aponta para o caráter universal da doutrina cristã e para sua aplicabilidade a todos os membros da espécie humana, independente de origem, raça, cor, língua, sexo, posição social ou qualquer outra condição.

Esta nova concepção acerca do homem ecoou, a princípio, nos apóstolos de Cristo, seus seguidores mais próximos, e logrou reproduzir-se no ensinamento de seus discípulos a ponto de se ver reconhecida, de forma surpreendente para um judeu convicto e ortodoxo, como o apóstolo Pedro em Atos 10, 34, acerca de um gentio, com quem a princípio, relutou em se relacionar, dentro da Palestina, verbis:   

“Então na verdade reconheço que Deus não faz acepção de pessoas“ (grifo nosso).

“Neste contexto, Cristo – Deus-Homem – coloca sua missão evangelizadora como a de reabilitação e de revalorização do homem, qualquer que seja ele, e independente de nobreza, posses e qualidades. Esse pensamento significa uma grande mudança na reflexão filosófica, visto que representa a idéia de uma igualdade inerente a todos os homens e não somente aos escolhidos: Deus não faz distinções, todos merecem o mesmo respeito e consideração”.  (MARTINS, 2003, p. 23).

Contribuiu, por outro lado para a universalidade da doutrina cristã plasmada com a noção da dignidade humana, sobretudo o impulso Imperial de Roma. Constantino através do Edito de Milão legalizou o cristianismo, colocando-o em primeiro plano no Estado, o qual acabou por ser imposto como religião oficial em Roma pelo Imperador Teodósio (séc. IV). A partir disso, a ligação entre o cristianismo e o Estado, exerceu grande importância na vida civil de Roma e no mundo ocidental, razão pela qual o Direito Romano, fortemente influenciado pelo verdadeiro cristianismo, foi a base do Direito Comum Europeu, que por sua vez serviu de base às legislações modernas (DOS SANTOS, 2006).

Posteriormente, estas lições cristãs se fariam ecoar igualmente, quase dois séculos mais tarde, já com dimensões universais nos ideais da Revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade, bem como no instrumento que os positivou, ou seja, a Declaração de Direitos do Homem e do cidadão em 1789, com reflexos importantes para o constitucionalismo moderno inclusive o brasileiro. Com efeito, pela simples leitura do preâmbulo da Constituição brasileira, percebe-se que ela incorporou os valores universais do cristianismo a que nos referimos:

“Nós representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,…” (grifo nosso).

De fato, a idéia da universalidade da doutrina cristã, é uma das características da noção de dignidade humana e, conseqüentemente dos direitos humanos bem como dos direitos fundamentais que os asseguram e bem assim de seu sistema de proteção internacional contemporâneo. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos instrumentos internacionais subseqüentes, essa noção bem como seu sistema de proteção é igualmente concebida como universal, devendo sua aplicação incidir em qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo sem distinção de qualquer espécie, senão vejamos:

“Artigo 1:

Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Artigo 2:

I) Todo o homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição(grifo nosso).

2.6.2. O Apóstolo Paulo

A dificuldade dos primeiros apóstolos judeus, por conta de seus antecedentes judaicos de superarem a antiga concepção nacional de povo escolhido e separado de Deus, a fim de divulgarem a mensagem do evangelho, promotora da dignidade humana, no mundo gentio, demonstrada, p.e, na relutância do apóstolo Pedro em pregá-lo inicialmente a um gentio dentro da Palestina, em Atos 10, foi, ao que parece, superada pelo apóstolo Paulo.

Com efeito, a contribuição de Paulo para a universalização da noção e da consciência de dignidade, consubstanciada no evangelho, foi a sistematização do ensino de Cristo e sua aplicação prática em pequenas comunidades cristãs dentro do mundo gentio e por toda a terra, chamadas igrejas, que seriam a realidade do reino dos céus, pregado por Jesus em seus evangelhos, onde justamente a dignidade humana seria respeitada. Assim, o reino dos céus, a que se referiu Jesus, não seria uma questão meramente política, mas uma esfera de viver que envolveria princípios e valores que deveriam ser respeitados a fim de que a sociedade dos homens fosse favorável à vida pessoal e particular de cada homem para que não houvesse a diminuição da dignidade humana, de um homem criado à semelhança de Deus.

O reino dos céus seria, portanto, a sociedade formada com o reconhecimento e respeito aos direitos humanos ou fundamentais do homem (OLIVEIRA FILHO, 1968, p. 13 e 14). 

Cumpre ressaltar que o apóstolo Paulo se notabilizou na história do Cristianismo como o principal promotor da disseminação da doutrina cristã além dos limites de Israel, conduzindo o evangelho até a Grécia e Roma, além de outras regiões, reafirmando sua validade universal em todo mundo e a valorização da identidade de natureza, comum a  todos os homens. Este traço marcante, a exemplo de Jesus, é característico tanto no ensino de Paulo quanto em seu viver.

Oportuna, a respeito de Paulo, a lição de Martins (2003, p.22), para o qual, “todavia, foi apenas a partir de Saulo de Tarso [São Paulo], com a disseminação da idéia de que o genuíno cristianismo era para todos os povos, que a religião cristã passa a ser um verdadeiro corpo doutrinário e adquire pretensão universal”. Pode-se perceber a reprodução do ensinamento de Cristo acerca da identidade e igualdade de natureza entre os homens nas epístolas de Paulo bem como, o mesmo caráter de universalidade, em passagens bíblicas como, por exemplo, em Gálatas 3,28:

“Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”; Romanos 10,12: “Porquanto não há distinção entre judeu e grego; porque o mesmo Senhor o é de todos, rico para com todos os que o invocam”; Tito 2,11: “Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens”; I Tm 2:3a – 4: “… Deus, nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (grifo nosso).

O viver de Paulo e sua prática entre as igrejas, além de sua doutrina, é igualmente permeado por esta concepção de igualdade em dignidade entre os homens de diferentes raças e classes sociais como, por exemplo, na passagem de Atos 13,1:

“Havia na igreja em Antioquia profetas e mestres; Barnabé, Simeão, por sobrenome Níger, Lucio de Cirene, Manaém, colaço de Herodes, o tetrarca e Saulo” (grifo nosso).

Lee (2008, p. 513) nas notas de rodapé 15, 16, 17, 18 e 19, referentes a Atos 13,1, do Novo Testamento, Versão Restauração, faz pertinente comentário a respeito desta passagem, que, à primeira vista e, aparentemente não nos revela nada importante, mas que na verdade possui importantes implicações de lições práticas:

“Os cinco profetas e mestres aqui mencionados eram judeus e gentios [Barnabé era levita, natural de Chipre; Níger, quer dizer negro, provavelmente alguém da raça negra, possivelmente de origem africana; Lucio era natural de Cirene no norte da África; Manaem era irmão de criação do rei Herodes que tinha laços políticos com os romanos, portanto, Manaém deve ter-se europeizado; Saulo era judeu nascido em Tarso], cada qual com passado, instrução e classe social diferentes. Isso indica que a igreja se compõe de todas as raças e classes de pessoas sem levar em consideração os antecedentes de cada um, e que os dons e funções espirituais dados aos membros do Corpo de Cristo não se baseiam na condição social em que nasceram”.

O fato de Paulo, mesmo sendo judeu, conviver numa mesma igreja, situada em terras gentias, com diferentes tipos de pessoas, de diferentes povos, raças, nacionalidades, culturas e classes sociais, demonstra que, a exemplo de Cristo, Paulo não era um teórico apenas, mas alguém que de fato praticava a unidade universal de seu ensino promotor da dignidade no entorno da diversidade.

Este espírito de universalidade, tolerância e de inclusividade característicos do ensino e do viver deste apóstolo, promotores da dignidade humana, superando barreiras raciais, sociais e culturais, é evidenciado igualmente em 1 Co 9,19-22:

“Porque sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. Para os judeus, fiz-me como judeu a fim de ganhar os judeus: para os que estão sob a lei [judeus], como se estivesse sob a lei (embora eu não esteja sob a lei), a fim de ganhar os que estão sob a lei. Para os que estão sem lei [gentios], como seu estivesse sem lei (embora eu não esteja sem lei para com Deus, mas na lei de Cristo) a fim de ganhar os que estão sem lei” (grifo nosso).

2.7. Valorização da Natureza da Dignidade Humana

Por derradeiro, cumpre ressaltar que o reconhecimento da dignidade humana pela civilização moderna, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial e a falência do direito aético, ou da dignidade humana vista como mero fenômeno histórico-cultural ou mero fenômeno jurídico-normativo, ou normativo-constitucional pertence antes, àquela esfera de direitos naturais, essenciais não criados, mas apenas reconhecidos como tais pelo ordenamento jurídico e pelo próprio homem porque a ele inerentes e de natureza diversa daqueles direitos criados pelo seu livre arbítrio.

É importante que esse aspecto seja ressaltado e que se identifique, reconheça e se valorize adequadamente a natureza da dignidade humana como um valor absoluto associado à natureza humana e, portanto, ao direito natural. Sempre que uma sociedade negou ou relativizou o valor absoluto da dignidade, objetivamente considerada, teorizando equivocadamente sua natureza ou seu fundamento, pagou um preço caro por isto e não resistiu por muito tempo, ou, teve que se reorientar ideologicamente ou, ainda que se mantivesse fê-lo ao custo da opressão e do sacrifício extremo da dignidade de inocentes.

A esse respeito, defende Messner (1967) que não se pode afastar o elemento ético do Direito [e, um deles, talvez o maior de todos, a dignidade humana, nem dissociá-la da natureza humana e do jusnaturalismo], devendo sujeitá-lo à imposição normativa, posto que quanto mais uma sociedade se orientar por tais elementos, tanto mais durará no tempo.

Consoante lecionam os jusnaturalistas, existem leis naturais, físicas, biológicas e sociais e, se, em relação às ciências exatas ou biológicas não existem dúvidas a este respeito, infelizmente os positivistas tencionaram expurgá-las das ciências sociais, presumindo que tais ciências derivam exclusivamente da criação intelectual do ser humano e não de leis preexistentes à sua conformação e apenas por ele detectadas.

Argumenta Martins (1988, p. 23-24) que os materialistas presumem que a partir do livre-arbítrio, inerente ao ser humano, apenas a razão com plena liberdade de pensamento e expressão seria capaz de justificar a sua “verdade” cientifica, absoluta e definitiva o que reduziria todo o campo de indagação e pesquisa a uma mera formulação ontognoseológica, do sujeito que conhece o objeto conhecido, e arremata:

“Não obstante serem incapazes das explicações mais elementares tais como de onde viemos, porque vivemos, para onde vamos, o que é o universo, qual sua extensão, quais são as leis que o regem, qual a origem da vida, sua soberba intelectual ganhou foros de grandiosidade na proporção inversa de seu desconhecimento absoluto sobre a maior parte dos grandes mecanismos da existência. Quanto mais perguntas faziam, mais o campo de sua ignorância se estendia. É que as ciências não criam verdades. Descobrem-nas. Instrumentalizam-nas, mas não podem violentar a natureza das coisas. O fenômeno é comum às ciências exatas, às ciências biológicas e às ciências sociais”. (MARTINS, 1988, p. 23-24)

Daí, a importância de se reconhecer, não sem resistências é claro, a natureza da dignidade humana na natureza humana e no jusnaturalismo bem como seu fundamento e origem nos valores éticos do cristianismo primitivo e a contribuição deste para a noção do instituto e para a universalização de sua consciência.

Nesta esfera material toda e qualquer sociedade encontrará sempre um valor absoluto e um referencial seguro contra a anulação da dignidade humana pelo próprio homem e pelo Estado como já presenciamos inclusive em nações ditas civilizadas como é o caso da Alemanha Nazista durante a Segunda Grande Guerra Mundial. E, o que é mais grave e nos chama a atenção neste caso específico, é que tal nação, para o fim a que se propunha Hitler, pôde contar, por mais incrível que pareça e para justificá-la, com o ordenamento jurídico consubstanciado no positivismo de Kelsen e com formulações teórico-filosóficas temerárias. 

Daí a importância da compreensão e conscientização do tema. Ora, a abordagem deste tema e de sua natureza, afeta diretamente nossas consciências, e o reconhecimento, reflexão e conscientização da natureza e fundamento da dignidade humana é importante a fim de evitarmos a reedição de modelos sociais que atentaram contra a dignidade como p.e, o liberalismo burguês que, desconsiderando a questão da dignidade humana, produziu uma massa de proletariados famintos e desassistidos com péssimas condições humanas de existência totalmente indignas; não reeditemos os horrores da Segunda guerra mundial e o holocausto, nem de regimes totalitaristas que, em nome do Estado, ideologias e filosofias niilistas desumanas, vilipendiaram os mais comezinhos princípios fundamentais de existência digna, violentando assim a consciência da civilização contemporânea. 

Na verdade o reconhecimento e a conseqüente valoração adequada da verdadeira natureza e fundamento da dignidade podem parecer de somenos importância, mas é esta abordagem que permitirá à nossa sociedade encarar o homem como o centro do Direito e humanizá-lo, bem como orientar o Direito, as formas de Governo e de Estado e bem assim os regimes sociais e orientação filosófica, ideológica, ontológica e deontológica que regerão e possibilitarão  a nossa vida humana em sociedade de forma digna e civilizada.

Portanto, como assevera Péres (1986, p.29), não se pode esquecer nunca a origem divina da dignidade humana, pois só assim, se garantirá o respeito devido à mesma. Se o homem não é a imagem de Deus, diz Osório (1928, p.19) apud Perez (1986, p.30), e, se as relações humanas não recebem a inspiração divina, de ordem, facilmente degeneram no culto á lei do mais forte e na negação da dignidade.

Como ensina o mesmo Péres (1986, p. 30), o Estado não poderá intervir no que afeta a liberdade e a dignidade humana nascidos de sua origem divina e que, portanto, antes pertencem a Deus que ao Estado. Os homens esquecem freqüentemente este ponto de partida, essencial na ordem jurídica, mas voltam seus olhos a Deus cada vez que um novo absolutismo de direita ou de esquerda suprime liberdades e afronta a dignidade do homem. Em outras palavras, á onipotência de Deus não se pode opor a mera potência do homem. (PEREZ, 1986, p. 23).

Por derradeiro, concluímos com o douto jurista que, se todo homem é pessoa porque assim foi feito, o mesmo com relação às coisas e animais que seriam assim porque assim foram feitos, a ultima razão, o fundamento da dignidade da pessoa humana não pode ser o próprio homem nem o Direito, mas sim um Ser superior a todo homem e capaz de infundir razão e liberdade á matéria com que fomos feitos. É Ele o próprio Deus.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema escolhido para a presente monografia assim o foi justamente porque envolve a razão de ser do Direito Constitucional e, porque não dizer, a essência do Direito: a pessoa humana em sua dignidade. Provavelmente não haja nenhum outro tema em nossa constituição ou ordenamento jurídico que esteja tão intimamente relacionado à natureza humana e toque tão profunda e intensamente a alma humana.

A positivação do tema no Direito Constitucional brasileiro e a posição estratégica do instituto situado antes mesmo da organização do Estado é justamente a prova da consciência jurídica nacional da importância do tema bem como o reconhecimento e afirmação de que o Estado brasileiro é visto como meio e não mais como fim em si mesmo, ou seja, o Estado é visto como meio para a realização e promoção da pessoa humana e não vice-versa.

O foco do Direito, notadamente o Direito Constitucional, deve ser a pessoa humana, sua valorização e promoção de sua dignidade. A dignidade humana, por excelência, é o elemento civilizador e humanizador do direito, daí a relevância do tema. O homem, o ser humano, como a realidade central da sociedade e do direito, não pode ser objeto de caprichos, de menoscabo ou de violência, antes, deve ser tratado como ser digno como portador que é de direitos inerentes ao seu próprio ser para seu pleno desenvolvimento e cabal realização.

Ocorre que, consoante já dito anteriormente, o máximo que o Direito pode fazer é reconhecer valor à natureza humana e aquilo que entende por sua dignidade bem como a necessidade de preservá-la para que o homem se realize plenamente, mas não pode ele mesmo, o Direito, com a devida vênia, explicar nem justificar seu fundamento ou a natureza de seu valor. Assim, se por um lado, o Direito não é capaz de explicar a natureza humana e, conseqüentemente tampouco a dignidade humana visto estarem umbilicalmente ligadas, deve necessariamente reconhecer seu fundamento e natureza em outros segmentos da cultura humana e, assim valorá-los e incorporá-los.

Por outro lado, a doutrina judaico-cristã, na avaliação deste trabalho, e pelas razões nele sobejamente expostas, parece ser a filosofia que melhor explica o fundamento e a natureza da dignidade humana, pois é ela mesma, consoante demonstrou a presente obra, a que melhor explica a própria natureza humana.

Este foi justamente o objetivo deste trabalho, ou seja, conseguir associar e interpenetrar estas duas áreas do conhecimento e da cultura humana: Direito e doutrina cristã.  Se por um lado, a presente obra foi elaborada por um amante do Direito, por outro, foi também realizada por um amante da doutrina cristã genuína e, provavelmente não haja dentro da cultura humana outra filosofia ou doutrina que melhor tenha interpretado, dado significado, valorizado e promovido o ser humano e sua dignidade, que a pura doutrina cristã.

Não é sem razão que há praticamente uma quase unanimidade entre os doutrinadores em reconhecê-la como a origem e fundamento deste tema jurídico. A doutrina cristã, como de fato descreveu este trabalho, é, com efeito, a que melhor explica e justifica a razão ontológica de ser da dignidade humana. Daí o objetivo – associar o tema da dignidade humana com a doutrina cristã verdadeira, culminando com a proposta da afirmação e do reconhecimento da importância dos valores éticos cristãos e de seu resgate como critério de fundamento sólido e de referencia para a noção de dignidade da pessoa humana no mundo moderno.

Só assim, a noção de dignidade humana encontrará um ambiente seguro na afirmação de seu valor absoluto contra os abusos e formulações teóricas temerárias e equivocadas do homem que sempre que não reconheceu sua verdadeira natureza ou ignorou o real fundamento do instituto, colocou em risco a vida em sociedade pela negação da própria dignidade. 

O enfrentamento do tema, portanto, não obstante ter sido feito sob a perspectiva jurídica, exigiu sobrelevar sua natureza e fundamento, a fim de melhor compreender seu objeto e conteúdo porque, entende a presente obra que só chegando a identificar e reconhecer sua natureza e fundamento último, se poderá encontrar um baluarte inexpugnável em que o homem se sinta seguro frente a tudo e a todos. A partir deste fundamento e natureza encontrados se chegará aos princípios de imutabilidade e universalidade que, entende a monografia serem inerentes ao tema, e que são superiores a todo ordenamento jurídico e ao próprio Estado.

Assim, o Direito positivo que apenas pode reconhecer a Dignidade Humana e não atribuí-la e muito menos criá-la, só será de fato Direito, na medida em que suas normas sejam expressões destes princípios de imutabilidade e universalidade que regerão os procedimentos para a plena realização da vida social de forma digna (PEREZ, 1986, p. 20).

Por derradeiro, considerando que a Constituição é instrumento de condensação e positivação de valores humanos indispensáveis á vida em sociedade de forma digna e, da promoção da pessoa humana e sua dignidade, conclui-se que quanto mais humana e cristã for a Constituição e todo o Direito, melhor. Quanto mais focada na valorização e proteção da dignidade humana, melhor; quanto mais valores, ético-cristãos genuínos consubstanciar, melhor. Melhor para a tutela e realização do homem em sua plenitude e para a construção, de fato, de uma sociedade mais humana, justa, fraterna e, portanto, mais digna.

 

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Notas:
[1] Monografia apresentada ao Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual como requisito parcial à obtenção do grau de especialista em Direito Público. Orientador: Professora Dra. Roberta dos Anjos Moreira.

Informações Sobre o Autor

Gerson Marcos Morgado

Analista Judiciário da Justiça Federal no Estado de São Paulo com cursos de extensão de Processo Civil pela PUC-SP e pós graduação em Direito Público pela LFG


Equipe Âmbito Jurídico

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