A inadequada recepção da ponderação alexyana pelo direito brasileiro

Resumo: O presente artigo tem por finalidade analisar aspectos relevantes no âmbito do direito constitucional, levando em consideração a decisão judicial, pois a importância do ato de decidir em um Estado Democrático de Direito passa pela perfeita compreensão da diferença existente entre escolher e decidir, nos termos propostos por Lenio Luiz Streck. Não deve o juiz, ao tomar suas decisões, o fazer de forma parcial, discricionária, descomprometida com os fatos. Nesse sentido, torna-se e imperioso combater posturas decisórias discricionárias. Há o necessário enfrentamento de posturas doutrinárias que aceitam a discricionariedade judicial, entre elas a ponderação alexyana, importada do direito alemão difundida equivocadamente no direito brasileiro pelos nossos doutrinadores, verificável pela análise de grande parte da doutrina constitucional pátria, bem como pelo estudo de casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal. Como instrumento para o problema da discricionariedade judicial é proposta a Teoria da Decisão Judicial do eminente doutrinador gaúcho Lenio Luiz Streck.

Palavras-chave: Discricionariedade judicial. Ponderação. Doutrina. Jurisprudência. Teoria da Decisão Judicial.

Abstract: The purpose of this article is to analyze relevant aspects within the scope of constitutional law, taking into account the judicial decision, because the importance of deciding in a Democratic State of Law passes through the perfect understanding of the difference between choosing and deciding, under the terms proposed by Lenio Luiz Streck. The judge should not, in making his decisions, do so in a partial, discretionary, uncompromising way with the facts. In this sense, it is imperative to combat discretionary decision-making positions. There is the necessary confrontation of doctrinal positions that accept judicial discretion, among them the alexyana weighting, imported from the German law mistakenly diffused in the Brazilian law by our doctrinators, verifiable by the analysis of great part of the constitutional doctrine homeland, as well as by the study of judged cases by the Federal Supreme Court. As an instrument for the problem of judicial discretion is proposed the Judicial Decision Theory of the eminent Gaucho doctrine Lenio Luiz Streck.

Keywords: Judicial discretion. Weighting. Doctrine. Jurisprudence. Theory of Judicial Decision.

Sumário: 1. Introdução. 2. A inadequada recepção da ponderação alexyana no Brasil. 2.1 Incongruências verificadas a partir da incorporação das teses alexyanas pela doutrina nacional brasileira. 2.2 Jurisprudência do STF 13. Pesquisa quantitativa. 2.2.1. Pesquisa qualitativa: análise de julgados 2.2.2.1 Caso Elwanger 2.2.2.2 Caso dos Anencéfalos 3. Considerações finais. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O ato de decidir é sem dúvidas momento capital da aplicação do direito. Por isso, não há falar em julgar de forma tal que não seja estritamente pautado em paradigmas constitucionais, sobretudo em um Estado Democrático de Direito. Ou seja, a função de julgar não é e não pode ser aceita como tarefa fácil e descomprometida: a atuação judicial merece ser efetivada como rigoroso cumprimento constitucional.  Por essa razão, importa esclarecer desde já a distinção existente entre decidir e escolher proposta por Lenio Streck, não raras vezes tumultuada, pelo Judiciário e por parcela considerável da doutrina.

Com efeito, de acordo com o que afirma Streck, decidir (como ato do poder judiciário), não deve ser compreendido como a simples determinação de um posicionamento a partir da verificação de várias possibilidades, apontando para a que parece ser a mais adequada. Posto que decidir não é escolher. Escolher, pela lição do autor, é sim a possibilidade de apontar para a solução mais conveniente sempre que se está diante de várias opções, e os efeitos dessa eleição não estariam vinculados a nada além do caso específico em litígio.

Verifica-se, pois, que escolher pressupõe parcialidade, discricionariedade, e em muitos casos, arbitrariedade. Decidir, por outro lado, é o resultado da análise do caso posto em questionamento judiciário a partir do comprometimento com o Direito construído pela comunidade política, efetivamente produzindo respostas constitucionalmente adequadas. Afasta-se, portanto, a discricionariedade judicial.

O problema é que, no Brasil, tem-se uma equivocada compreensão de que a atividade judicial é em si um ato de escolha, resultando na defesa da discricionariedade, o que ocorre tanto na prática dos juízes e tribunais, como também no âmbito doutrinário.

Neste contexto, é possível afirmar que este imaginário jurídico marcado pela aceitação da discricionariedade judicial foi forjado, dentre um dos fatores, pela recepção da teoria da ponderação de Robert Alexy.

As teses alexyanas são hodiernamente bastante difundidas, sendo realmente difícil encontrar alguma obra jurídica no campo do Direito Constitucional brasileiro que não se aproprie dos conceitos propostos pelo autor alemão, quando analisam a função dos princípios, ou quando tratam sobre a possibilidade de colisão entre direitos fundamentais e a solução dessa colisão através da ponderação.

É constante também a menção a Robet Alexy, e aos variados termos utilizados em suas teses, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o discurso emitido pelos ministros do Supremo demonstram a aceitação e importação ampla das teses alexyanas.

Nesse sentido, o objetivo deste artigo é analisar parte da doutrina nacional e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal para verificar se a adoção da teoria alexyana como metodologia apta a tratar da decisão judicial está de acordo com compromisso democrático de fundamentação plasmado na Constituição Brasileira; e se a forma como as teses alexyanas foram recepcionada no Brasil denotam que Robert Alexy foi adequadamente compreendido. Tendo por hipótese que a teoria do direito brasileiro importou de modo inadequado à proposta de autor alemão.

Tudo isso com o fito de afirmar que o atual paradigma filosófico demanda uma teoria do direito que inclua uma teoria da decisão, tal qual a proposta por Lenio Streck.

2 A INADEQUADA RECEPÇÃO DA PONDERAÇÃO ALEXYANA NO BRASIL

A discricionariedade judicial é elemento que não se coaduna com o ideal de Estado Democrático de Direito, pois, não basta se ter um direito democraticamente produzido, de forma indispensável, deve ser ele democraticamente interpretado  e aplicado.

Por determinação constitucional, é dever dos julgadores promover uma profunda e adequada fundamentação das decisões judiciais, conforme preconiza o artigo 93, IX da atual Carta Magna, tal previsão constitucional afasta a possibilidade de atuação solipsista do julgador ao proferir sua decisão, uma vez que os juízes, dentro do paradigma do Estado Democrático de Direito, não podem motivar ou justificar suas decisões, proferir julgados comprometidos exclusivamente com sua consciência ou apoiados em fundamentos eminentemente pessoais, ao contrário, as decisões devem ser proferidas mediante critérios objetivos, devem ser fundadas e justificadas na própria Constituição.

 Por essa razão, posturas que aceitem o comportamento discricionário dos julgadores merecem ser identificadas e combatidas. Verifica-se que as teorias alexyanas estão em desacordo com a determinação constitucional de fundamentação das decisões judiciais, pois, em diversos elementos e técnicas defendidas pelo autor, prevalece a possibilidade de comportamento solipsista e discricionário dos juízes, exemplificativamente, quando Alexy estabelece sua técnica de sopesamento de princípios e a criação de uma regra a partir da identificação das condições de precedência e da aplicação da lei de colisão, observa-se que há evidentemente demonstrada a discricionariedade do juiz, pois é o próprio juiz que, no caso concreto, irá determinar quais essas condições de precedência que servirão para criar a chamada lei de colisão.

O autor alemão desenvolve sua teoria na tentativa de racionalizar a atuação dos juízes e reprimir a atuação subjetiva, entretanto, conforme demonstrado, não alcança efetivamente a superação do problema da discricionariedade judicial, ao contrário a potencializa. A técnica da ponderação cria a possibilidade de inserção de elementos subjetivos na tarefa primordial dos juízes, que é julgar.

Oliveira analisa que Alexy estabelece que a ponderação é o procedimento apto a solucionar as colisões de princípios e, propõe que a utilização de tal técnica evitaria, dessa forma, a livre escolha do juiz no momento de decidir, “ou seja, Alexy cria, na sua intenção em tornar racional o discurso prático, uma espécie de “elemento camaleônico” que não consegue superar a velha oposição entre teoria e prática”, pois conforme avalia o autor:

“a racionalização do discurso jurídico prático baseado em valores se dá por um meio matemático de fundamentação que é a ponderação. No fundo, o que se instala é uma (nova) tentativa de aprisionar a razão prática num modelo teórico (porque matemático) de fundamentação. No fundo, como ressalta Lenio, em Alexy tem lugar um repristinação da discricionariedade do positivismo jurídico”.

Para além das consequências ruins que a aceitação da diferença entre regras e princípios e demais elementos da teoria alexyana podem provocar, no Brasil, através da análise de diferentes doutrinadores e de casos julgados pelo STF, verifica-se que Robert Alexy é mal compreendido, pois sobre as teorias alexyanas recaem os efeitos de um processo de simplificação de teorias e institutos jurídicos quando importados, trazidos de contextos jurídicos estrangeiros.

As razões dessa simplificação podem ser resultado da própria diferença linguística, ou por questões de adequação e interferência culturais naturalmente efetivadas. Mas a principal razão para esse referido processo de simplificação passa pela inclusão dos autores nacionais e dos julgadores no que Warat nomeou de “sentido comum teórico dos juristas”.

Verifica-se que há certa operabilidade tautológica que permeia a atuação dos juristas brasileiros, no sentido de que, por diversas vezes, os juristas pátrios expressam a mesma ideia, os mesmos conceitos, as mesmas teorias, de forma repetitiva e não procedem à reflexão necessária para a compreensão devida. Há um enclausuramento lógico da reflexão e dos discursos jurídicos, o que reduz os significados a conceitos. De maneira mecanicista, o jurista brasileiro reflete um sistema incorporado em seu subconsciente através de sua formação, os significados dados através do “conhecimento” adquirido nos bancos acadêmicos, na jurisprudência “pacífica”, como um mero reprodutor de conceitos.

O senso comum teórico se caracteriza por uma significação ideológica em uma Ciência que parte do pressuposto de relação entre sujeito e objeto. “Consubstanciando-se em uma doxa no interior da episteme jurídica e em nome do método, estereotipa o conhecimento, reduzindo-o a conceitos e objetificando-o”.

“Fecha-se, desta forma, um movimento dialético que tem, por primeiro momento certos hábitos significativos (uma doxa); por segundo momento, a espera dos conceitos (uma episteme construída mediante processos lógicos purificadores sobre o primeiro momento); e, por terceiro momento, o senso comum teórico (dado pela reincorporação dos conceitos nos hábitos significativos). Este último momento caracteriza-se pelo emprego da episteme como doxa”.

Há a validação dos conceitos produzidos quando da aplicação na práxis da (des)informação obtida pelo operador jurídico, e no momento que essa aplicação se confirma repetitivamente. Verifica-se que o senso comum teórico se desenvolve de forma cíclica, pois, a partir do ponto zero de reflexão, necessariamente chega-se, novamente, ao ponto zero, para que se confirme e valide o procedimento. Esse movimento cíclico pode ser compreendido como uma semiologia de referência, praticada de forma habitual, estruturada, que desvincula-se os conceitos produzidos de seu fundamento teórico, perdendo sua consistência ontológica, o que permite a construção de um “sistema de verdades”, a partir da apropriação do significado, pela instituição que exercerá o poder de usá-lo.

Sendo desenvolvido de forma tautológica, o procedimento validado é a expressão da pureza de reflexão e aplicação do Direito legitimado pela epistemologia tradicional. Para Luiz Alberto Warat “é o discurso kelseniano, tornado senso comum, que influi para que o jurista de ofício não seja visto como um operador das relações sociais; mas sim, como um operador técnico dos textos legais”.

Preceitua o autor citado, que os seguintes elementos, apesar de sua falta de consistência, levam a uma uniformidade última de pontos de vista sobre o direito e suas atividades institucionais: desenvolvimento de uma série móvel de conceitos, separados, das teorias que os produziram; estabelecimentos de um arsenal de hipóteses vagas e, às vezes, contraditórias; definição de opiniões costumeiras; declaração de premissas não explicitadas e vinculadas a valores; ou por estabelecimento de metáforas e representações do mundo.

As teorias alexyanas acerca dos Direitos Fundamentais e a sua técnica da ponderação entre princípios, quando da sua importação pelo Direito brasileiro, estão, atualmente, imersas neste senso comum teórico dos juristas, na medida em que os conceitos vinculados aos pressupostos alexyanos encontram-se ciclicamente repetidos em parte da doutrina nacional e na própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, verificando-se que a tautologia característica deste processo impede que seja efetivada uma necessária e aprofundada análise dos aspectos primordiais tratados por Robert Alexy. Conforme será analisado, há equívocos na abordagem efetivada pelos autores brasileiros sobre os elementos presentes nas teses alexyanas e, ainda, em diversos julgados, a utilização da teoria citada, ou de partes desta, se dá como mero artifício retórico pelo Supremo Tribunal Federal.

2.1 Incongruências verificadas a partir da incorporação das teses alexyanas pela doutrina nacional brasileira

Conforme mencionado, é vasta a doutrina constitucionalista pátria que trata das teorias alexyanas, ou, ao menos, que tenta analisá-las. Entretanto, é possível constatar que as percepções acerca do suporte teórico alexyano, muitas vezes, não correspondem às proposições do autor alemão, apresentam-se de forma incompleta, simplificadas e, por vezes, equivocadas. O fato é que, a incorporação alexyana pela doutrina pátria representa um equívoco em si, na medida em que não acompanham a viragem ontológica linguística, e alocam o juiz no equivocado paradigma epistemológico da filosofia da consciência.

Analisando a doutrina pátria, serão utilizados, exemplificadamente, determinados autores que adotam de forma problemática Robert Alexy e suas teorias.

Inicialmente, verifica-se que Mendes e Coelho reproduzem a ideia de separação entre regras e princípios nos termos proposto por Alexy, analisando o exercício da ponderação. Os citados autores adotam a concepção de que os princípios constitucionais podem assumir pesos hierárquicos abstratos diversos no caso concreto, e que o juiz está apto a verificar qual o princípio deve prevalecer no caso concreto.

Tais autores não percebem a carga de discricionariedade depositada na conta do juiz ao autoriza-lo a inferir peso hierárquico aos princípios e ao apostar na possibilidade de escolha entre determinados princípios nos casos concretos. É ainda indispensável atentar para o fato que, considerando os termos propostos por Robert Alexy, não há a aplicação direita de um princípio e afastamento do outro, há a identificação dos critérios de precedência e através da aplicação da lei de colisão, a criação de uma regra aplicada ao caso em questão.

Conforme preceitua Streck, certos autores pátrios, ao adotarem a ponderação, não consideram que é impossível utilizar esta técnica de forma direta para se resolver o caso concreto. Pois, para o próprio autor alemão, “a ponderação não é uma operação na qual se coloca dois princípios em uma balança e se aponta para aquele que pesa mais”. Não se pode conceber que, no caso de verificar-se uma colisão entre princípios, o juiz estaria autorizado a escolher um deles. “A tese de Robert Alexy não determina essa escolha direta. Na formatação proposta por Alexy, a ponderação conduz à formação de uma regra – que será aplicada ao caso por subsunção”.

De acordo com Sarmento, é fundamental a função argumentativa dos princípios constitucionais. “Em razão da dimensão de peso que os caracterizam, os princípios não contêm respostas definitivas para as questões jurídicas sobre as quais incidem, mas apenas mandados prima facie, que podem, eventualmente, ceder em razão da ponderação com outros princípios.” Defende o autor, que “os princípios constitucionais apresentam-se como argumentos, ou pontos de vista, que tem de ser considerados no equacionamento dos hard cases do Direito Constitucional”.

De acordo com o exposto, observa-se há a defesa da atuação discricionária dos juízes influenciada pela ideia de que os princípios são apenas argumentos que se prestam a aplicação descomprometida e irrestrita para justificar as mais diversas situações colocadas para julgamento.

Ao analisar Barroso percebe-se seu posicionamento favorável as teses acerca da ponderação. Ao tratar da diferenciação entre princípios e regras, Barroso aborda o tema tal qual o faz Alexy, ao afirmar que uma das diferenças visíveis está quando do conflito entre regras e a colisão entre princípios, explicando que, em caso de conflito, a aplicação dos princípios se dá, principalmente, mediante ponderação.

Grave em Barroso é perceber sua aceitação da ponderação de regras, como se a ponderação de princípios não fosse capaz de causar danos suficientes. O autor chega a afirmar que “há situações em que uma regra, perfeitamente válida em abstrato, poderá gerar uma inconstitucionalidade ao incidir em um determinado ambiente”, sendo, portanto, passível de ponderação sua utilização ou não.

“Princípios – e, com a crescente adesão na doutrina, também as regras – são ponderados, à vista do caso concreto. E, na determinação de seu sentido e na escolha dos comportamentos que realizarão os fins previstos, deverá o interprete demonstrar o fundamento racional que legitima sua atuação.”

Nos termos defendidos por Barroso, fica clara sua aceitação de uma ponderação ampla para incluir a possibilidade de o intérprete-juiz ponderar tanto a aplicação de princípios, quando, mais grave, a possibilidade de se ponderar também as regras, a depender da melhor adequação ao caso concreto.

Barroso é fiel a Alexy inicialmente quando estabelece a ponderação como uma técnica necessária a produção de uma solução quando há uma colisão entre princípios que impossibilite a decisão em um determinado caso concreto, cita, exemplificativamente, quando do debate acerca do papel da imprensa, liberdade de expressão e direito à informação em contraste com o direito à honra, à imagem e à vida privada. Entretanto, diversamente do proposto por Alexy, Barroso, para explicar de forma simples a ponderação, sustenta que esta técnica pode ser dividida em três etapas.

A primeira das etapas caberia ao intérprete detectar as normas relevantes ao caso concreto para identificar eventuais conflitos entre elas, pois a ponderação se dá em razão da insuficiência de solução desses conflitos pela subsunção. De acordo com o autor, nesse estágio os fundamentos normativos que indicam a mesma solução devem fazer parte de um mesmo conjunto de argumentos, facilitando assim a fase posterior de comparação entre os elementos normativos em jogo.

Na segunda etapa, na visão de Barroso, caberia examinar os fatos, as circunstancias concretas do caso e sua interação com os elementos normativos. “o exame dos fatos e os reflexos sobre eles das normas identificadas na primeira fase poderão apontar com maior clareza o papel de cada uma delas e a extensão de sua influencia”, conclui o autor.

A terceira fase trata-se da ponderação em si, esta é a fase, na visão de Barroso, na qual será possível efetuar-se a decisão. Nela os grupos diversos de normas e a repercussão sobre os fatos serão examinados conjuntamente, de modo a analisar os pesos que devem ser atribuídos aos diferentes elementos em disputa, definindo-se quais grupos de normas devem preponderar sobre o caso. Prossegue o autor afirmando que em seguida é preciso decidir a intensidade que o grupo de norma vai prevalecer sobre os demais, por fim, decidir-se-á o grau apropriado em que a solução deve ser aplicada, todo o processo deve ter por fio condutor a proporcionalidade ou a razoabilidade.

Registra-se que todo o processo apresentado por Barroso para descrever o que ele garante ser a simplificação da técnica da ponderação estão em desacordo com o estabelecido por Robert Alexy na medida em que desprezam o que o autor alemão propõe, ignoram o estabelecimento de uma relação de precedência condicionada e a criação de uma lei de colisão a ser aplicada ao caso concreto, mas principalmente, todas as etapas estão permeadas de discricionariedade judicial, o próprio autor em diversas passagens do texto fala sobre a possibilidade de escolha de regras, de posicionamento discricionário em grupos de normas, há intensa subjetividade presente nesta técnica apresentada.

Barroso confessa a discricionariedade inerente a esta técnica por ele, desenvolvida/apresentada, quando afirma que “no estágio atual, a ponderação ainda não atingiu o padrão de objetividade desejável, dando lugar a ampla discricionariedade judicial.” O autor tenta minimizar os efeitos nocivos da sua constatação afirmando que “tal discricionariedade, no entanto, como regra, deverá ficar limitada às hipóteses em que o sistema jurídico não tenha sido capaz de oferecer a solução em tese, elegendo um valor ou interesse que deva prevalecer.” Tal argumento não subsiste, pois se aceita a ponderação como técnica de decisão judicial quando há alegado conflito entre princípios, e muito pior, se houver possibilidade de ponderação na aplicação de regras, estará autorizado o juiz a escolher entre diversos caminhos a seguir àquele que melhor reflita os interesses que entenda adequado, não haverá vinculação alguma, apenas à própria consciência do julgador.

 Ana Paula de Barcellos é também uma das autoras nacionais que aceitam a ponderação como técnica apta a solucionar os casos de conflitos entre princípios, e assim como Barroso, sustenta a aplicação da técnica da ponderação em três etapas, as mesmas apresentadas anteriormente.

Guerra Filho aponta para uma visão relativista dos princípios, contribuindo para utilização da técnica da ponderação entre princípios de forma a possibilitar a efetiva discricionariedade dos julgadores:

“O traço distintivo entre regras e princípios, por último referido, aponta para uma característica desses que é de se destacar, pois também os diferencia dos valores: sua relatividade. Não há princípio do qual se possa pretender seja acatado de forma absoluta, em toda e qualquer hipótese, pois uma tal obediência unilateral e irrestrita a determinada pauta valorativa – digamos, individual- terminada por infringir uma outra – por exemplo, coletiva. Daí se dizer que há uma necessidade lógica e, até, axiológica, de se postular um “princípio de proporcionalidade”, para que se possam respeitar normas, como os princípios tendentes a colidir.”

As palavras do autor demonstram, de forma evidente, a equivocada concepção da ponderação alexyana como princípio e não como técnica. Barroso identifica este problema, afirmando que “há quem situe [a ponderação] como componente mais abrangente do princípio da proporcionalidade, e outros que já a vislumbrem como princípio próprio”, vê-se a confusão que prevalece acerca do tema na doutrina pátria, e, embora defensor da sua utilização, conforme já analisado, Barroso admite que “é possível a utilização da ponderação como um rótulo para voluntarismos e soluções ad hoc, tanto as bem-inspiradas como as nem tanto.”

Humberto Ávila é um dos autores nacionais que mais se inspiram nas teses alexyanas, em seu: “Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos” o autor trata da diferenciação entre regras e princípios, sendo que ele amplia essa diferenciação com a inserção de um plano adicional, acrescentando às regras e princípios os postulados. Os postulados, para o autor, não visam, à diferença dos princípios no sentido mais estrito, à consecução direta de um fim, mas cumprem, muito pelo contrário, a função distinta de prescrever e orientar determinados modos de pensamento e argumentação, estruturando, destarte, o modo de aplicação das regras e dos princípios. Por isso os postulados não se localizam no plano das regras e dos princípios, mas num metaplano, o que leva o autor a qualifica-los como normas de segundo grau ou normas de aplicação. Portanto, o autor brasileiro vai além do próprio Alexy.

Pela análise dos excertos colacionados, fica evidente a importação deformada da teoria alexyana, visto que, com aponta Streck, “a ponderação, nos termos prolatados por seu criador, Robert Alexy, não é uma operação em que se colocam os dois princípios em uma balança e se aponta para aquele que pesa mais”.

Como já definido, nos termos propostos por Alexy, a técnica de solução da colisão entre princípios não determina a escolha direta entre um dos princípios, passa pelo estabelecimento de critérios de precedência, e através da lei de colisão, a definição de uma regra a ser aplicada no caso concreto.

Da forma equivocada que a tese alexyana se propaga no Brasil, contribui para a permanência da concepção do julgador como sujeito solipsista, que busca o seu convencimento, e discricionariamente se utiliza dos princípios como argumentos aleatórios para a tomada de decisões.

Tal comportamento dos juristas brasileiros aponta Streck, deve-se ao fato de estarem juristas brasileiros ainda submersos no equivocado paradigma da filosofia da consciência. Justificando a adoção de princípios de forma aleatória a partir do seu consentimento interior, ou até mesmo fazendo surgir os mais diversos princípios, que pode ser identificado como pamprincipiologismo brasileiro.

2.2 Jurisprudência do STF

De acordo com a técnica utilizada por Robert Alexy, quando uma norma de direito fundamental com caráter de princípio colide com um princípio antagônico, para se chegar a uma decisão é necessário um sopesamento nos termos da lei da colisão. Estabelece-se uma relação de precedência condicionada entre os princípios, com base nas circunstâncias do caso concreto.

O estabelecimento de relações de precedências condicionadas consistiria na fixação de condições sob as quais um princípio tem precedência em face do outro. Cria-se, dessa forma, a chamada lei da colisão, que põe fim ao conflito, definindo o princípio que deverá prevalecer, solucionando o caso concreto. 

A natureza principiológica das normas de direitos fundamentais implica a máxima da proporcionalidade com suas três máximas parciais, conforme visto, a da adequação, da necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em sentido estriti (mandamento do sopesamento propriamente dito). Na aplicação da técnica acima descrita, existe a consideração da máxima da proporcionalidade, nos três aspectos apontados.

Entretanto, como será analisada, a forma como o STF utiliza a tese alexyana demonstra a não utilização adequada desta técnica, em verdade, não há a solução de colisão entre direitos fundamentais nos casos analisados, posto que, não há, concretamente, colisão entre princípios veiculados em direitos fundamentais.

A introdução desta teoria para o Brasil acarreta consequências jurídicas relevantes, que devem ser investigadas. É possível que estas teses tenham sido introduzidas no contexto dogmático e jurídico brasileiro sem que tenha havido um exercício de reflexão que intente compreender os efeitos possíveis. A adoção prematura das teses alexyanas pode representar um equívoco por serem elas incompatíveis com o ideal democrático de fundamentação das decisões judiciais preconizado pelo atual ordenamento constitucional brasileiro.

A hipótese defendida neste trabalho é de que Robert Alexy é um autor hodiernamente constantemente citado tanto pela doutrina, como visto anteriormente, como pela jurisprudência brasileira. Para analisar a forma como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) adotou as teorias alexyanas fora realizada uma pesquisa jurisprudencial que se dividiu em duas partes, uma deles quantitativa, e outra qualitativa.

A pesquisa quantitativa pretende analisar dados gerados através do instrumento de busca do sítio eletrônico do próprio STF (www.stf.gov.br), pela sequência de links: Jurisprudência > Pesquisa > Pesquisa de Jurisprudência. Buscou-se investigar se é possível afirmar que o STF adota as teses alexyanas, se o autor alemão é citado pelos ministros ao proferirem seus votos. Foram digitados diversos termos de busca, tais como: Robert Alexy, ponderação entre princípios, etc.

A pesquisa qualitativa se trata da análise de casos julgados pelo STF, nos quais foram mencionadas as teorias alexyanas como instrumento de solução de conflitos com a finalidade de se chegar a uma decisão judicial para determinado caso concreto, tais casos foram selecionados em razão de sua representatividade para a hipótese defendida na presente dissertação.

2.2.1Pesquisa quantitativa[1]

Com o termo de busca “Robert Alexy”, foram gerados os seguintes resultados: Acórdãos: 40 documentos encontrados; Repercussão geral: Nenhum documento encontrado.

Utilizando-se “Ponderação” como termo de busca, foi gerado: Acórdãos: 249 documentos encontrados; Repercussão geral: Um documento encontrado.

Com “Técnica da Ponderação”, observou-se: Acórdãos: 25 documentos encontrados; Repercussão geral: Nenhum documento encontrado.

Pesquisando-se “Ponderação entre princípios”, foram gerados os seguintes resultados: Acórdãos: 23 documentos encontrados; Repercussão geral: Nenhum documento encontrado.

Através do termo de busca “Colisão de Direitos Fundamentais”, foi possível observar o seguinte retorno: Acórdãos: 21 documentos encontrados; Repercussão geral: Nenhum documento encontrado.

Por fim, com o termo “Colisão entre princípios”, retornou como resultado: Acórdãos: 10 documentos encontrados; Repercussão geral: Nenhum documento encontrado.

Do exposto, conclui-se que os termos relacionados com as teorias alexyanas são constantemente citados na jurisprudência do STF, demonstrando que a tese da ponderação como técnica para solução no caso de colisão entre direitos fundamentais que veiculem princípios antagônicos esta hodiernamente presente no direito brasileiro, como ficou demonstrada na análise da doutrina pátria, e através da pesquisa quantitativa de jurisprudência considerada. Cumpre investigar, se, tal qual se concluiu através da análise doutrinária, as teorias alexyanas são utilizadas de forma simplificada e equivocada também pelos ministros do STF ao proferirem seus votos.

2.2.2 Pesquisa qualitativa: análise de julgados

Foram selecionados dois casos que servem aos objetivos traçados no presente trabalho no que se refere a verificação da inadequação da utilização das teses alexyanas pelo direito brasileiro. O primeiro deles, o caso Elwanger, trata-se de Habeas Corpus impetrado no Supremo Tribunal Federal em setembro de 2002, o segundo, trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, na qual, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, pretendiam a declaração da inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.

2.2.2.1 Caso Elwanger

O primeiro caso a ser analisado se trata do Habeas Corpus 82.424, impetrado em dezembro de 2002 no Supremo Tribunal Federal, tendo por paciente Siegfried Ellwanger Castan.

Ellwanger foi processado em 1991, em primeira instância pela 8ª vara criminal de Porto Alegre, pelo crime de racismo (art. 5o, XLII da Constituição Federal e art. 20, da lei 7.716/89, na redação dada pela Lei 8.081/90) pelo fato de escrever, editar e publicar livros com conteúdo antissemita. Tendo sido absolvido das acusações na primeira instância, da decisão houve recurso ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que modificou a decisão condenando-o ao cumprimento de dois anos de reclusão. A defesa impetrou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça contra a decisão do acórdão na tentativa de desconstituir a imprescritibilidade do ato pelo qual Ellwanger havia sido condenado. Denegado o remédio constitucional pelo Superior Tribunal de Justiça, a defesa recorreu ao Supremo Tribunal Federal.

A discussão no Supremo foi permeada pela suposta colisão de dois direitos fundamentais: dignidade da pessoa humana e a liberdade de expressão, tal colisão seria resolvida através da utilização da ponderação como técnica.

Importante observar, entretanto, que tanto os votos vencedores quanto os votos vencidos, utilizaram o discurso da ponderação como instrumento através do qual seria possível se chegar à solução do caso concreto, demonstrando, portanto, que tal técnica pode ser utilizada de forma aleatória por ambos os lados, mesmo opostos. 

Essa fragilidade verificada através da utilização da técnica da ponderação, demonstra a necessidade do aprofundamento e incorporação de uma teoria da decisão, que afaste a discricionariedade judicial.

No caso em tela, a ponderação serviu como mecanismo de solução para o problema da colisão entre dignidade da pessoa humana e a liberdade de expressão, entenderam que tratam-se de dois “valores” constitucionais que mereciam proteção, e que o interprete, no caso o Supremo Tribunal Federal, deveria assumir o papel de confrontador dos valores em choque, pois “cabe ao intérprete harmonizar os bens jurídicos em oposição, como forma de garantir o verdadeiro significado da norma e a conformação simétrica da Constituição […]”.

Em verdade, o problema posto para solução não representava algo complexo. Não há falar em colisão entre valores, posto que nunca houve o confronto direto entre a punição ao crime cometido e o respeito a liberdade de expressão. O fato criminoso cometido pelo autor, ao publicar livro com conteúdo racista, deve ser punido pelo simples fato de ter ferido lei penal. A aplicação da lei penal não viola nenhum direito fundamental.

Ao avaliar a questão Marcelo Cattoni de Oliveira faz o seguinte questionamento: “[…] como é que uma conduta pode ser considerada, ao mesmo tempo, como lícita (o exercício de um direito à liberdade de expressão) e como ilícita (crime de racismo, que viola a dignidade humana), sem quebrar o caráter deontológico, normativo, do Direito?”. A conduta questionada no HC analisado, não pode ser lícita e ilícita ao mesmo tempo, nem é possível a ponderação de algo lícito com algo ilícito.

Preocupante é verificar que tanto os votos vencedores quanto os vencidos utilizarem a mesma “técnica” da ponderação, o que evidencia a sua fragilidade. A referida técnica, pela forma como foi usada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, justificou entendimentos completamente antagônicos. Por exemplo, os votos dos ministros Marco Aurélio, pela concessão e do Ministro Celso de Mello pela denegação do HC.

O Ministro Marco Aurélio, ao analisar o caso em epígrafe, acredita que está “ diante de um problema de eficácia de direitos fundamentais e da melhor prática da ponderação dos valores, o que, por óbvio, forca este Tribunal, guardião da Constituição, a enfrentar a questão da forma como se espera de uma Suprema Corte.” Enfatiza que trata-se da colisão entre os princípios da liberdade de expressão e da proteção à dignidade do povo judeu. Devendo, aquela corte constitucional, definir os limites da ponderação para limitar a liberdade de expressão pela alegada prática de um discurso preconceituoso atentatório à dignidade de uma comunidade de pessoas ou se deve prevalecer tal liberdade.

Com fulcro no acredita serem as lições do Robert Alexy, o Ministro Marco Aurélio defende que as colisões entre direitos fundamentais podem ser superadas apenas através da restrição de um – ou ambos – os “lados” da balança e que o conflito entre princípios “encontra solução na dimensão do valor, a partir do critério da ‘ponderação’, que possibilita um meio termo entre a vinculação e a flexibilidade dos direitos”.

Dessa forma, conclui que uma “atitude de ponderação dos valores em jogo” é um instrumento de resolução do conflito de direitos fundamentais válido e amplamente utilizado pelas cortes constitucionais no mundo. Vota o ministro pela concessão do Habeas Corpus, pois acredita que a condenação efetuada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul não foi o meio mais adequado, necessário e razoável.  

Por outro lado, o ministro Celso de Mello, ao proferir seu voto pela denegação do habeas corpus, entende que a colisão de princípios constitucionais deve ser realizada através de:

“[..] critérios que lhe permitam ponderar e avaliar, ‘hic et nunc’, em função de determinado contexto e sob uma perspectiva axiológica concreta, qual deva ser o direito a preponderar no caso, considerada a situação de conflito ocorrente, desde que, no entanto, a utilização do método da ponderação de bens e interesses não importe em esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais […]”.

Ou seja, mesmo tratando-se de posicionamento diverso, em voto que defende a denegação do Habeas Corpus, o discurso da ponderação continua presente, demonstrando se tratar apenas de um “enunciado performático, uma espécie de álibi teórico capaz de fundamentar os posicionamentos mais diversos”, nas palavras de Lenio Streck.

No caso posto para exame, mesmo tendo por resultado decisão adequada, o Supremo Tribunal Federal demonstrou como a postura adotada pelos seus ministros põe em risco as garantia presentes nos direitos fundamentais, pois, além de resumi-los ao simples e perigoso cálculo de custo/benefício, transforma aquele tribunal em um poder legislativo de “segundo grau” que controla, fora da sua função jurisdicional, “[…] as escolhas políticas legislativas e executivas, assim como as concepções de vida digna dos cidadãos, à luz do que seus onze Ministros considerem ser o melhor – e não o constitucionalmente adequado – para a sociedade brasileira”.

Assim, é evidente que a importação e mixagem da teoria da argumentação e da Jurisprudência dos Valores pelo Supremo Tribunal Federal, representam um perigo para a efetivação dos direitos fundamentais. Tal compreensão pressupõe ser possível a aplicação gradual de normas por confundir princípios com valores e, essa utilização do “relativismo ponderativo”, além de obscurecer a importância da tradição como guia da interpretação, viabiliza a discricionariedade.

2.2.2.2 Caso dos anencéfalos

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, teve por requerente a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, que diante da polêmica advinda do ajuizamento de ação na qual se pretendia autorização para realização de procedimento cirúrgico para interrupção de gravidez em razão de anencefalia fetal[2], resolveu interpor medida antecipatória que resguardasse os direitos dos profissionais de saúde que acaso realizassem tal procedimento, para declaração da inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, pretendeu-se, também, o reconhecimento do direito da gestante de submeter-se ao citado procedimento sem estar compelida a apresentar autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão do Estado. Nas palavras do relator, Ministro Marco Aurélio, “a questão posta nesta ação de descumprimento de preceito fundamental revela-se uma das mais importantes analisadas pelo Tribunal”.

O Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. Ou seja, não serão processados e condenados os profissionais de saúde e as gestantes que efetivarem procedimento cirúrgico com a finalidade de interromper a gravidez quando confirmado diagnóstico de anencefalia.

No seu voto o relator ministro Marco Aurélio deixa claro que, neste caso, não há colisão real entre direitos fundamentais, apenas conflito aparente.

“A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher. No caso, ainda que se conceba o direito à vida do feto anencéfalo – o que, na minha óptica, é inadmissível, consoante enfatizado –, tal direito cederia, em juízo de ponderação, em prol dos direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral e à saúde, previstos, respectivamente, nos artigos 1º, inciso III, 5º, cabeça e incisos II, III e X, e 6º, cabeça, da Carta da República.”

Muito embora o ministro não acredite haver conflito entre direitos fundamentais no caso julgado, como ele afirma em seu voto, afirma que caso existisse essa colisão, seria possível utilizar a ponderação para definir como direito prevalente o direitos à dignidade da pessoa humana ou à liberdade no campo sexual da mulher, mais uma vez deixa claro que, em sua visão, a ponderação seria a possibilidade de se escolher entre dois princípios quando forem estes “conflitantes” em um determinado caso concreto.

O ministro Cezar Peluso, ao proferir seu voto, pela procedência da ação de descumprimento de preceito fundamental ora analisada.

Estabelece que a questão posta para julgamento deva ser analisada sobre três vieses

“Essas considerações iniciais são importantes para o direcionamento das posições que fundamentam o meu voto. Para a clareza da exposição, é possível enfrentar o tema por três enfoques: (i) atipicidade da antecipação terapêutica do parto, em caso de anencefalia, quanto ao crime de aborto; (ii) vontade do legislador na retirada da anencefalia do rol das excludentes de ilicitude; e (iii) ponderação de valores entre liberdade, dignidade e saúde da mulher e a vida do feto anencefálico. A sopesar, ainda, à luz da causa de pedir aberta própria dos processos objetivos, o fundamento adicional trazido da tribuna, qual seja, o de que a criminalização da interrupção da gestação de feto anencéfalo, ou de feto sem viabilidade de vida extrauterina, implica violação de direito fundamental da mulher no tocante aos chamados direitos reprodutivos.”

Pelo exposto, no terceiro enfoque apresentado, o ministro Cezar Peluso, indica que é adepto da ponderação de valores, e que o caso em julgamento é um exemplo concreto onde valores convergentes entram em rota de colisão, quais sejam liberdade, dignidade e saúde da mulher e a vida do feto anencefálico.

No decorrer do seu voto, faz uma extensa abordagem da questão sob o ponto de vista da teoria alexyana, pois acredita ser necessário encontrar um critério racional de argumentação para que o convencimento leve à aplicação de um princípio e ao afastamento do outro no caso em análise, pois, de acordo com suas palavras, “a busca é de um critério argumentativo, e não de peso de valores, pois, como já foi mais que repetido, um valor não pesa mais que outro em ordenamentos jurídicos democráticos”. Caso contrário, ainda na visão do ministro, a escolha não passaria de uma preferência pessoal do responsável pela solução do caso concreto.

Para tanto ele utiliza uma verdadeira fórmula matemática[3], analisando cada um dos elementos. Para concluir que:

“ao enfoque da teoria da proporcionalidade, o quociente da divisão das razões em favor da liberdade da mulher em cotejo com a proteção do feto anencefálico por meio da omissão do Estado e da declaração de inconstitucionalidade da leitura que inclui a interrupção, ou a antecipação terapêutica do parto, em caso de comprovada anencefalia, presentes as certezas empíricas sobre a afetação da esfera de atuação de cada um dos princípios em jogo, é maior que um”.

Verifica-se que o voto do ministro do STF esta permeado dos elementos caracterizadores das teses alexyanas, e que a utilização dos elementos matemáticos como mecanismo de racionalizar a decisão, dificulta sobremaneira a compreensão dos argumentos apresentados, e ao fim, não demonstram relevância prática.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pela análise procedida, conclui-se que a noção equivocada de que a Constituição é uma ordem concreta de valores foi inadequadamente adaptada à teoria da colisão de princípios e inadvertidamente introduzida no ambiente jurídico e acadêmico brasileiro, sendo comum, hodiernamente, perceber tal influencia pela análise de grande parte da doutrina constitucional pátria e de julgados do Supremo Tribunal Federal.

A adoção da teoria alexyana como metodologia apta a tratar da decisão judicial apresenta um duplo equívoco: primeiro, porque ela se apresenta inadequada ao compromisso democrático de fundamentação plasmado na Constituição Brasileira; segundo, porque o modo como ela foi recepcionada no Brasil torna Robert Alexy um autor mal compreendido.

Confirma-se que a teoria da ponderação de Robert Alexy contribui efetivamente para aceitação da discricionariedade judicial no ambiente jurídico e doutrinário brasileiro.

A contrariedade à discricionariedade presente em teses como a alexyana deve ser buscada. Por isso, é fundamental a análise da decisão judicial à luz de uma proposta que demonstre as insuficiências e os problemas da Jurisprudência dos Valores e da importação equivocada da ponderação de Alexy, em favor de respostas constitucionalmente adequadas e da refutação de ponderações e relativizações dos direitos fundamentais, como a Teoria da Decisão Judicial de Lenio Streck.

Para tentar transportar a atuação judicante para um locus diverso do próprio da discricionariedade, Lenio Streck desenvolve sua Teoria da Decisão Judicial pautada em quatro elementos centrais.

O primeiro deles pode ser compreendido como a alteração da concepção do ato interpretativo, que, para Streck, deve se desenvolver através de um viés filosófico e racional. Adota o método hermenêutico-fenomenológico pensado por Martin Herdegger. Aliada a essa concepção, o autor traz elementos da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, que passa a entender a interpretação não mais como uma técnica de extração de sentido e sim como atribuição de sentido que se desenvolve em um contexto de intersubjetividade. Conforme aponta Tassinari, nesse primeiro ponto, “Streck faz a primeira ruptura hermenêutica com a tradição: o afastamento das posturas objetivistas (vontade da lei/ vontade do legislador)”.

O segundo aspecto indispensável na Teoria da Decisão de Streck analisada é extraído da teoria do Direito de Dworkin: a responsabilidade política dos juízes, que emerge da ideia da integridade do Direito. Sendo assim, os juízes, ao tomarem suas decisões, devem sentir-se politicamente constrangidos pela comunidade de princípios que constitui a sociedade.

O dever de fundamentação é outro importante aspecto da teoria streckiniana, como decorrência intrínseca da necessária responsabilidade política dos juízes. Para exercer a fundamentação em suas decisões os juízes precisam ter clara a diferenciação entre escolher e decidir, sendo a escolha uma adoção descomprometida com um dos lados colocados em questionamento em um caso concreto, abrindo grande margem para a discricionariedade, ou até mesmo para a arbitrariedade, e decisão, por outro lado, o ato de decidir coloca o julgador comprometido com o que a comunidade política constrói como direito.

Muito embora a Teoria da Decisão de Streck deva ser analisada de forma mais aprofundada, para cumprimento dos objetivos desse trabalho, apresenta-se o quarto elemento que conduz a um esboço básico da compreensão da teoria do autor, que é o desenvolvimento da atuação dos juízes tendo por finalidade a construção de respostas constitucionalmente adequadas. Essa resposta não pode ser entendida como a melhor resposta ou a única resposta, mas a resposta constitucionalmente adequada para solucionar o caso concreto posto para julgamento.  Tal conduta leva ao afastamento de posturas discricionárias e fortalece o constitucionalismo democrático.

Nas palavras de Tassinari:

“Com esse dever de cumprimento da constituição, a discricionariedade judicial é radicalmente superada, representando uma ruptura com posturas solipsistas, que fragilizam a força normativa do texto constitucional. Ganha espaço o papel dos princípios como fechamento interpretativo e o respeito à história institucional do direito. […] Tal posicionamento revela-se como âmago do constitucionalismo democrático, sendo indispensável para a legitimidade da jurisdição”.

Através da reunião desses quatro pontos, a respeito da Teoria da Decisão Judicial de Lenio Streck, busca-se identificar como sendo a teoria do citado autor um caminho a ser perseguido na busca por uma atuação judicial democrática e constitucionalmente comprometida, que se distancie de posturas adeptas da discricionariedade judicial, como a importada ponderação alexyana.

 

Referências
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Notas
[1] A pesquisa fora realizada no dia 08 de janeiro de 2014, às 10h. stf.gov.br.
[2] O Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, sob a relatoria do ministro Joaquim Barbosa, cujo desfecho, antes que o julgamento nesta Corte pudesse ocorrer, deu-se com o término da gravidez, vindo o feto anencéfalo a falecer minutos após o parto. A requerente buscou a concessão de medida acauteladora, dizendo sobre o concurso do sinal do bom direito e do risco de se manter o quadro, sujeitando-se a mãe e todos aqueles que participem da antecipação terapêutica do parto a processo-crime, aspecto a evidenciar o risco. Habeas Corpus n. 84.025, da relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, extinto, contudo, sem resolução do mérito, por perda de objeto (a gestante paciente do HC deu à luz a criança cujos órgãos vitais funcionaram por sete minutos apenas).
[3] É a seguinte fórmula:   Wi,j = Ii. Wi. Ri
­­­­­­­­­­­                                                                 Ij. Wj. Rj

Informações Sobre o Autor

Lorena Duarte Lopes Maia

Mestra em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS (2015). Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (2007). Analista Judicial do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí.


Equipe Âmbito Jurídico

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