A inaplicabilidade do princípio da insignificância nos atos de improbidade administrativa

Resumo: O presente trabalho visa discutir a improbidade administrativa que sempre foi presença constante nas esferas do governo brasileiro. Antes da Constituição de 1988 pode-se notar que os legisladores se preocupavam em coibir práticas de imoralidade na Administração Pública. Porém, durante muitos anos o país carecia de uma legislação severa de âmbito geral para que pudesse abolir, ou pelos menos diminuir a corrupção e a desonestidade na atividade estatal. Com o advento da Lei nº 8.429/92, demonstrou-se um avanço acerca do assunto em que são previstas várias sanções a serem aplicadas àqueles que infringem tal instituto. Contudo, há grande controvérsia doutrinária sobre a aplicação do princípio da insignificância que embora seja utilizado no Direito Penal para tornar condutas atípicas pela inexpressiva lesão ao bem jurídico tutelado, pode ser aplicado analogicamente em outros ramos do Direito. Portanto, o presente artigo propõe um estudo sobre a inaplicabilidade deste princípio na prática de atos de improbidade administrativa, pois o que busca o legislador é punir aquele que fere o comportamento ético e moral, que deve ser sempre observado pelas pessoas que compõem a Administração Pública, em obediência ao princípio da moralidade administrativa previsto na Carta Magna.

Palavras-chave: Improbidade, Lei nº 8.429/92, Princípio da Insignificância, Moralidade Administrativa.

Sumário:

Introdução. 1. Base constitucional da improbidade administrativa. 2. Considerações sobre as espécies de atos de improbidade prevista na Lei n 8.429/90. 3. Princípio da insignificância nos atos de improbidade administrativa. 3.1. Posicionamento da primeira corrente. 3.2. Posicionamento da segunda corrente. Conclusão. Referências.

Introdução

O presente artigo tem como finalidade demonstrar a possibilidade ou não de aplicação do princípio da insignificância nos atos de improbidade administrativa praticados por agentes públicos, com o intuito exclusivo de esclarecer ao máximo a divergente discussão existente atualmente entre os estudiosos sobre o assunto.

Inicia-se a análise de forma geral, enfocando a evolução que a legislação brasileira sofreu durante os anos para o combate à corrupção na esfera estatal, eis que o tema apresentado é de suma importância no campo do Direito Administrativo, uma vez que envolve de forma direta o princípio da moralidade administrativa, consagrado pela Constituição Federal de 1988, que visa extirpar as condutas ilegais e imorais praticadas por aqueles que tratam com a coisa pública.

Além disso, a matéria em comento merece uma atenção toda especial, posto que se trata de objeto inerente a Lei nº 8.429/92 em que é demonstrado no presente estudo uma cognição superficial apresentando as três espécies de atos de improbidade administrativa previstas na legislação e seus aspectos mais relevantes.

Com efeito, podemos dizer que um dos principais problemas que dificultam o enfrentamento da improbidade administrativa no Brasil são a impunidade e inaplicabilidade das leis vigentes.

É de fácil percepção que quando estamos diante de situações menos danosas ou que não causam lesão ao erário, esses comportamentos são por vezes tratados como insignificantes, porém os efeitos destas condutas podem gerar efeitos devastadores na Administração Pública.

Entretanto, a discussão é polêmica, de forma que nossos tribunais e doutrinadores têm posicionamentos conflitantes acerca da aplicação do princípio da bagatela nos atos previstos na Lei de Improbidade Administrativa, uma vez que a incidência deste instituto gera a atipicidade da conduta ilícita, não sendo o infrator responsabilizado judicialmente.

1. Base constitucional da improbidade administrativa

Os termos improbidade, corrupção e desonestidade, conforme bem destaca Simão (2011, p.41), caminham juntos. O ímprobo é aquele que desrespeita as normas morais, sociais e costumeiras, agindo sempre contra esses princípios.

A previsão normativa com o objetivo de combater este tipo de ilegalidade do agente público com o trato da função estatal foi preocupação dos legisladores à época da elaboração das Constituições do Brasil em 1946 e 1967, em que determinavam o sequestro dos bens de pessoas indiciadas por crimes de que resultassem prejuízo para a Fazenda Pública. Tais dispositivos constitucionais foram regulamentados pelas Leis nº 3.164/1957 e nº 3.502/58 conhecida como Lei Bilac Pinto, além do Ato Institucional nº 14 que alterou a Carta de 1967.

Em 1988 foi promulgada a atual Constituição Federal que impôs aos agentes públicos a punição dos atos ímprobos cometidos no exercício da função administrativa em seu art. 37, §4º ao dispor que:

“Art. 37, §4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”

Por se tratar de norma de eficácia limitada a aplicabilidade ganhou alcance prático com a Lei nº 8.429/92. Cabe ressaltar que os atos de improbidade administrativa definidos nesta lei são de amplitude muito maior do que as hipóteses de enriquecimento ilícito previstas nas Constituições e legislações anteriores.

Ademais, o constituinte de 1988 também fez outras referências ao dever de probidade administrativa em diversos dispositivos constitucionais, tais como:

a) art. 14, §9º ao remeter à lei complementar a prerrogativa de fixar outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação a fim de proteger a probidade administrativa para o exercício de mandato;

b) art. 15, V que admite a perda ou a suspensão dos direitos políticos no caso de improbidade administrativa;

c) art. 37, caput que enumera os princípios expressos que devem ser obedecidos pela Administração Pública (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência);

d) art. 85, V que definiu como crime os atos do Presidente da República que atentem contra a probidade da Administração.                           

Contudo, em relação à violação da probidade administrativa pelos agentes políticos (Presidente da República, Ministros de Estado, magistrados, Procurador-Geral da República, Governadores e Secretários de Estado) sempre foi prevista como crime de responsabilidade que atualmente está disciplinada na Lei nº 1.079/50, recepcionada pela atual Carta Magna. Quanto aos Prefeitos Municipais, os crimes de responsabilidade estão estampados no Decreto-Lei nº 201/67.

Segundo Di Pietro (2008, p.769), a expressão ato de improbidade administrativa, aplicável às infrações praticadas por servidores públicos, só foi introduzida pela Constituição de 1988.

Neste ínterim, o constituinte deu especial atenção à probidade, já que, nos dizeres de Silva (2005, p.669), “a improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e a correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem”.

No entanto, costuma-se dizer que probidade é sinônimo de moralidade, mas improbidade é mais grave do que imoralidade. Isso porque um ato pode ser imoral, mas não caracterizar o ato de improbidade da Lei 8.429/1992, pois este exige, em regra, a má-fé do agente público.

2. Considerações sobre as espécies de atos de improbidade prevista na lei nº 8.429/90

A Lei nº 8.429/92 define ato de improbidade administrativa como todo aquele que lesa o interesse da coletividade, importa em enriquecimento ilícito, que causa prejuízo ao erário e que atenta contra os princípios da Administração Pública (CUNHA JÚNIOR, 2009, p. 619).

Quanto aos atos de improbidade que importem em enriquecimento ilícito, previsto no art. 9º da Lei, o agente público visa o recebimento de vantagem patrimonial indevida, quando da função pública, sendo caracterizado o ato independentemente da ocorrência de dano ao erário. Por serem condutas graves são puníveis com penalidades mais severas. Para a doutrina, a configuração do ato ímprobo depende da conduta dolosa do agente público ou terceiro, pois o próprio rigor das sanções busca punir condutas que tenham o mínimo de ofensividade ao patrimônio público. Assim, a mera configuração de culpa e a simples promessa de vantagem patrimonial não são suficientes para a aplicação das sanções que são imputadas no art. 12, I, da Lei nº 8.429/92.

Por lado, os atos que causam prejuízo ao erário configuram condutas de gravidade mediana que não provocam enriquecimento ilícito ao agente, porém enseja desvio, apropriação, dilapidação, perda patrimonial ou malbaratamento dos bens ou haveres da Administração Pública, bem como de entidades que recebam recursos públicos, sendo possível, inclusive, a punição dos agentes públicos ou terceiros que cometerem tais condutas na modalidade culposa, conforme determina o art. 10 da Lei.

No que se refere aos atos que atentam contra os princípios da Administração Pública, elencados no art. 11 da Lei, são definidos comportamentos de menor gravidade, por isso as sanções previstas são mais leves. Diferentemente dos outros atos de improbidade administrativa, tais condutas não se caracterizam pelo prejuízo ao erário, nem com o enriquecimento ilícito do agente, sendo necessário apenas o desrespeito aos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições públicas. No entanto, deverá haver a comprovação de má-fé do administrador público, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, pois caso não haja, a simples punição na seara administrativa será suficiente, evitando a aplicação das severas penalidades da Lei n.º 8.429/90. 

É importante ressaltar que os atos descritos nos arts. 9º, 10 e 11 da Lei são exemplificativos (numerus apertus), posto que o legislador utilizou a expressão “notadamente” corroborando a ideia de que outras condutas também podem ser enquadradas nos tipos de improbidade administrativa.

Deve-se observar que as penalidades impostas pela Lei nº 8.429/92 têm natureza cível, uma vez que a Constituição dispôs que a sanção de improbidade não traz prejuízo à ação penal cabível. Assim como no âmbito administrativo que os atos podem ser apurados de forma independente por meio de processo administrativo regulamentado pelos Estatutos dos Servidores de cada ente federativo (no âmbito federal a Lei nº 8.112/90).

3. Princípio da insignificância nos atos de improbidade adminitrativa

Primeiramente, ressaltar-se que o princípio da insignificância “é o que permite não processar condutas socialmente irrelevantes, assegurando, inclusive, que a justiça seja desafogada ou bem menos assoberbada” (GOMES, 2013, p.51).

Carvalho Filho (2012, p.120) ensina que “o principio da bagatela é aplicável também quando o bem jurídico atingido é inexpressivo e a punição pode retratar ofensa ao principio da proporcionalidade”.

Tal instituto não está previsto na legislação brasileira, mas os Tribunais têm aplicado esse princípio com a ideia de que não se pode acionar o Poder Judiciário para tratar de assuntos sem lesão significativa a bens jurídicos relevantes.

Nesse sentido o Supremo Tribunal Federal estabeleceu quatro critérios de aplicação, quais sejam: mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e inexpressividade da lesão jurídica. Entretanto, esses critérios apresentam grande subjetividade para serem aplicados no caso concreto e, por isso, os magistrados são provocados a medir conceitos que não têm escala métrica.

Tal princípio tem mais atenção no Direito Penal, mas também tem ganhado força em outros ramos do Direito. Para Costa (2009):

“A aplicação do princípio da insignificância no âmbito do Direito Administrativo ainda gera grandes controvérsias jurídicas, isto, pelo fato da seara de aplicação, a administrativa. Pela aceitação da aplicação existem correntes progressistas, que afirmam poder ser aplicado o princípio da bagatela em analogia. Contudo, o problema todo é que o objeto tutelado em primeiro plano pelas normas cogentes penais no direito administrativo é a moralidade pública.”

Com efeito, surge outra grande discussão doutrinária e jurisprudencial, se existe a possibilidade ou não de aproveitamento do princípio da insignificância nos atos de improbidade administrativa, tendo em vista que um agente público no exercício da função pode cometer uma infração civil tipificada na Lei nº 8.429/92 e alegar em juízo que a lesão ao bem jurídico foi tão ínfima que não merece reparação dos danos e até mesmo a isenção das sanções das penalidades impostas pela legislação.

O tema chega aos Tribunais Superiores de forma tímida, mas o posicionamento ainda não foi consolidado por existirem duas correntes doutrinárias, a que entende ser impossível a aplicação do princípio da bagatela e de outro lado a que defende ser aplicável o referido princípio no âmbito da Lei nº 8.429/90.

3.1. Posicionamento da primeira corrente

Uma primeira corrente defende o posicionamento de que não é possível a aplicação do princípio da insignificância nos atos de improbidade administrativa, uma vez que a Lei nº 8.429/92 visa resguardar não apenas o aspecto patrimonial do ato praticado pelo agente público, mas principalmente a moral administrativa.

O professor Alexandre Mazza em sua obra “Manual de Direito Administrativo – 2ª edição” cita um importante julgado do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 892.818/RS em que a Corte afastou a aplicação do princípio da insignificância na prática de atos de improbidade administrativa.

In casu, o Chefe de Gabinete do Município de Vacaria/RS, teria se aproveitado da força de trabalho de três servidores municipais, membros da Guarda Municipal, bem como utilizado veículo de propriedade do Município, para carregar utensílios de uso particular. O servidor, por sua vez, pediu exoneração e ressarciu aos cofres públicos a importância de R$ 8,47 (oito reais e quarenta e sete centavos) referentes ao combustível utilizado no percurso de 3 km que se apurou ter o veículo do Município percorrido.

Porém, o Ministério Público daquele Estado ajuizou ação civil de improbidade administrativa imputando ao réu as condutas descritas nos arts. 9º e 11 da Lei nº 8.429/92 e requereu a suspensão de seus direitos políticos por dez anos, a proibição de contratar com o Poder Público por três anos, além de pagamento de multa civil de cem vezes o valor da remuneração por ele percebida. O pleito foi acatado pelo juiz de 1ª instância, afastando apenas as duas últimas penalidades.

Na oportunidade, o réu apelou da decisão requerendo que o Tribunal de Justiça relevasse a multa civil aplicada em R$ 1.500,00 (um mil e quinhentos reais), tendo em vista o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade. E, por isso, acatando a defesa, aquele Tribunal extinguiu a ação civil pública, sem aplicação das penalidades, ante o princípio da insignificância aplicado por analogia ao caso.

Assim, o Ministério Público recorreu da sentença e o tema chegou ao Superior Tribunal de Justiça no qual entendeu que o objeto do processo não seria apenas o valor ínfimo de R$ 8,47 (oito reais e quarenta e sete centavos), e sim a moralidade administrativa ofendida, levando em consideração de que o servidor havia utilizado o veículo do Município por motivos particulares, e por isso deveria ser incluindo também na quantificação do dano o valor do frete que o servidor teria de contratar, bem como a remuneração do dia de trabalho dos três servidores municipais que o ajudaram.

Desse modo, a Corte restabeleceu a decisão da 1ª instância para condenar o réu à multa civil. Interessante se faz observar a ementa do julgado:

“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. MERA IRREGULARIDADE ADMINISTRATIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. DISTINÇÃO ENTRE JUÍZO DE IMPROBIDADE DA CONDUTA E JUÍZO DE DOSIMETRIA DA SANÇÃO.

1. Hipótese em que o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul ajuizou Ação Civil Pública contra o Chefe de Gabinete do Município de Vacaria/RS, por ter utilizado veículo de propriedade municipal e força de trabalho de três membros da Guarda Municipal para transportar utensílios e bens particulares.

2. Não se deve trivializar a Lei da Improbidade Administrativa, seja porque a severidade das punições nela previstas recomenda cautela e equilíbrio na sua aplicação, seja porque os remédios jurídicos para as desconformidades entre o ideal e o real da Administração brasileira não se resumem às sanções impostas ao administrador, tanto mais quando nosso ordenamento atribui ao juiz, pela ferramenta da Ação Civil Pública, amplos e genéricos poderes de editar provimentos mandamentais de regularização do funcionamento das atividades do Estado.

3. A implementação judicial da Lei da Improbidade Administrativa segue uma espécie de silogismo – concretizado em dois momentos, distintos e consecutivos, da sentença ou acórdão – que deságua no dispositivo final de condenação: o juízo de improbidade da conduta (= premissa maior) e o juízo de dosimetria da sanção (= premissa menor).

4. Para que o defeito de uma conduta seja considerado mera irregularidade administrativa, exige-se valoração nos planos quantitativo e qualitativo, com atenção especial para os bens jurídicos tutelados pela Constituição, pela Lei da Improbidade Administrativa, pela Lei das Licitações, pela Lei da Responsabilidade Fiscal e por outras normas aplicáveis à espécie. Trata-se de exame que deve ser minucioso, sob pena de transmudar-se a irregularidade administrativa banal ou trivial, noção que legitimamente suaviza a severidade da Lei da Improbidade Administrativa, em senha para a impunidade, business as usual.

5. Nem toda irregularidade administrativa caracteriza improbidade, nem se confunde o administrador inábil com o administrador ímprobo. Contudo, se o juiz, mesmo que implicitamente, declara ou insinua ser ímproba a conduta do agente, ou reconhece violação aos bens e valores protegidos pela Lei da Improbidade Administrativa (= juízo de improbidade da conduta), já não lhe é facultado – sob o influxo do princípio da insignificância , mormente se por "insignificância" se entender somente o impacto monetário direto da conduta nos cofres públicos – evitar o juízo de dosimetria da sanção, pois seria o mesmo que, por inteiro, excluir (e não apenas dosar) as penas legalmente previstas.

6. Iniqüidade é tanto punir como improbidade, quando desnecessário (por atipicidade, p. ex.) ou além do necessário (= iniqüidade individual), como absolver comportamento social e legalmente reprovado (= iniquidade coletiva), incompatível com o marco constitucional e a legislação que consagram e garantem os princípios estruturantes da boa administração.

7. O juiz, na medida da reprimenda (= juízo de dosimetria da sanção), deve levar em conta a gravidade, ou não, da conduta do agente, sob o manto dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade , que têm necessária e ampla incidência no campo da Lei da Improbidade Administrativa.

8. Como o seu próprio nomen iuris indica, a Lei 8.429/92 tem na moralidade administrativa o bem jurídico protegido por excelência, valor abstrato e intangível, nem sempre reduzido ou reduzível à moeda corrente.

9. A conduta ímproba não é apenas aquela que causa dano financeiro ao Erário. Se assim fosse, a Lei da Improbidade Administrativa se resumiria ao art. 10, emparedados e esvaziados de sentido, por essa ótica, os arts. 9 e 11. Logo, sobretudo no campo dos princípios administrativos, não há como aplicar a lei com calculadora na mão, tudo expressando, ou querendo expressar, na forma de reais e centavos.

10. A insatisfação dos eminentes julgadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul com o resultado do juízo de dosimetria da sanção , efetuado pela sentença, levou-os, em momento inoportuno (isto é, após eles mesmos reconhecerem implicitamente a improbidade), a invalidar ou tornar sem efeito o próprio juízo de improbidade da conduta , um equívoco nos planos técnico, lógico e jurídico.

11. A Quinta Turma do STJ, em relação a crime de responsabilidade, já se pronunciou no sentido de que "deve ser afastada a aplicação do princípio da insignificância, não obstante a pequena quantia desviada , diante da própria condição de Prefeito do réu, de quem se exige um comportamento adequado, isto é, dentro do que a sociedade considera correto, do ponto de vista ético e moral." (REsp 769317/AL, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, DJ 27/3/2006). Ora, se é assim no campo penal, com maior razão no universo da Lei de Improbidade Administrativa, que tem caráter civil.

12. Recurso Especial provido, somente para restabelecer a multa civil de R$ 1.500,00 (um mil e quinhentos reais), afastadas as sanções de suspensão de direitos políticos e proibição de contratar com o Poder Público, pretendidas originalmente pelo Ministério Público.”

Em outra oportunidade o mesmo Tribunal Superior no julgamento do HC 148.765/SP entendeu que não é possível a aplicação do princípio da insignificância a prefeito que utiliza de maquinário público por ofensa à moralidade administrativa. Vejamos:

“PENAL. PREFEITO. UTILIZAÇÃO DE MAQUINÁRIO PÚBLICO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE.

1. Não é possível a aplicação do princípio da insignificância a prefeito, em razão mesmo da própria condição que ostenta, devendo pautar sua conduta, à frente da municipalidade, pela ética e pela moral, não havendo espaço para quaisquer desvios de conduta.

2. O uso da coisa pública, ainda que por bons propósitos ou motivado pela "praxe" local não legitima a ação, tampouco lhe retira a tipicidade, por menor que seja o eventual prejuízo causado. Precedentes das duas Turmas que compõem a Terceira Seção.

3. Ordem denegada.”      

Desse modo, o Superior Tribunal de Justiça em reiteradas decisões tem assentado o entendimento que o princípio da insignificância e a teoria dos delitos de bagatela não se aplicam aos atos de improbidade administrativa (MAZZA, 2012, p.505).

De acordo com Garcia (2011, p.121), “a razão de ser do entendimento encontra suporte na constatação de que ou a moralidade é violada e a improbidade está configurada, ou não, caso em que estaríamos perante mera irregularidade”.

Ainda, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 88.941, julgado em 19/08/2008, restou acertado que a condição pessoal do agente público no caso concreto, qual seja, prefeito municipal, deve ser levado em consideração para que não seja aplicado o principio da insignificância, cuja ementa se deu nos seguintes termos:

“CRIME – INSIGNIFICÂNCIA – QUALIFICAÇÃO DO AGENTE E BEM ENVOLVIDO – COISA PÚBLICA. Descabe agasalhar o princípio da insignificância – consoante o qual hão de ser levados em conta a qualificação do agente e os valores envolvidos – quando se trata de prefeito e de coisa pública. PENA – DOSIMETRIA. Mostra-se consentânea com a ordem jurídica decisão que, considerado o máximo de doze anos, fixa a pena-base, presente circunstâncias judiciais negativas, em quatro anos e seis meses de reclusão”. (grifo nosso) (HC 88941, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 19/08/2008, DJe-202 DIVULG 23-10-2008 PUBLIC 24-10-2008 EMENT VOL-02338-02 PP-00213 RTJ VOL-00207-03 PP-01146)

Verifica-se que os atos de pouco ou nenhum potencial lesivo no plano financeiro podem gerar efeitos devastadores à gestão da coisa pública estimulando a proliferação de comportamentos desonestos e nitidamente deploráveis (GARCIA, 2011, p. 121).

A partir dessa reflexão, pode-se dizer que a jurisprudência seguida pelo Superior Tribunal de Justiça é a de que os atos de improbidade não se confundem com singelas e inofensivas irregularidades administrativas, pois apesar de semelhantes, o ato antijurídico só adquire a natureza de improbidade se, com culpa ou dolo, ferir os princípios constitucionais da Administração Pública e a ordem jurídica de atuação do agente público.

Assim, para os favoráveis da impossibilidade de aplicação do princípio da bagatela aos atos de improbidade administrativa, o comportamento ético e moral deve sempre ser observado pelos agentes públicos e também por aqueles que de qualquer forma compõem a Administração Pública, independentemente de a conduta ser mínima ou não, pois o que deve ser analisado é a moralidade administrativa.   

3.2. Posicionamento da segunda corrente

De um lado diametralmente oposto, encontra-se a posição doutrinária e jurisprudencial de que é possível a aplicação do princípio da insignificância nos atos de improbidade administrativa. Para os adeptos desta corrente, como bem destaca a Professora Carmona (2012):

  “A punição administrativa esta inserida no conceito do poder punitivo do Estado e, como tal, não poder ser preterida dos avanços do mundo jurídico com relação ao princípio da insignificância. Quer dizer, uma pena administrativa não deve ensejar uma resposta mais rigorosa do que aquela que seria aceita no sistema criminal, motivo pelo qual não se poderia deixar de aplicar alguns institutos penais no direito administrativo”. (grifo nosso).

Assim, apesar da teoria dos delitos de bagatela ser instituto do Direito Penal, para esta corrente progressista tal princípio pode ser aplicado em analogia para o Direito Administrativo, e consequentemente na prática de atos de improbidade administrativa.

Por conseguinte, com a possibilidade da utilização do princípio da insignificância no campo da improbidade administrativa é admissível afastar a tipicidade material de determinadas condutas, ou seja, a conduta ínfima cometida pelo agente público seria atípica e, por isso, não seria necessário aplicar as severas sanções descritas no art. 12 da Lei nº 8.429/92.

Por essa razão, ressalta Osório (2006, p.127) ao se referir aos atos que causam prejuízo ao erário que “não basta em princípio, apenas a culpa leve por parte do agente ou do terceiro, exigindo-se também a culpa grave para a configuração da improbidade administrativa”.

Importante anotar o posicionamento do Professor Luiz Manoel Gomes Junior (2012) o qual destaca que “somente condutas culposas admitiriam a incidência do princípio da insignificância, já que nem teria sentido afirmar que atos dolosos estariam fora dos limites da Lei de Improbidade, por menores que fossem”.

Assim sendo, nem todo e qualquer deslize no dia a dia da Administração vem a configurar improbidade administrativa, pois mera irregularidade administrativa comporta sanção administrativa, e não sanção de improbidade (NEVES, 2012, p.86).

Julgado emblemático que aborda o tema foi decidido nos autos da Apelação Civil nº 70011242963 proferido pela 4ª Turma do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 25/05/2005, no qual um servidor público serviu-se de material do serviço público que compreendia do uso de catorze folhas de papel timbrado para patrocinar defesa de interesse pessoal com o apoio e a determinação de outro servidor público que se negligenciou de suas funções e atribuições legais para ser remunerado com verba pública, cuja ementa foi lavrada nos seguintes termos:

“ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE. USO DE PAPEL TIMBRADO. INSIGNIFICÂNCIA DO FATO MÍNIMO.

1. A ação civil pública para coibir atos de improbidade administrativa não pode ser amesquinhada e utilizada para reprimir o uso de quatorze folhas de papel timbrado da Câmara de Vereadores em defesa prévia, assinada por Assessor Jurídico do Legislativo em outra ação da mesma natureza. Princípio da insignificância dos fatos mínimos. (grifo nosso)

2. APELAÇÃO DESPROVIDA”. (Apelação Civil 70011242963, Rel. DES. ARAKEN DE ASSIS, 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgado em 25/05/2005, DJe 16/06/2005).

Ainda segundo esta corrente, o processo disciplinar em alguns casos, já tem o condão de provocar efeitos educativos para o agente público que pode revestir-se como um inevitável exemplo para o servidor (CARMONA, 2012).

Nesse sentido, é o entendimento de Santos (2007, p.45) que destaca:

“[…] entendemos que o aludido dispositivo dá margem para que o juiz, diante do fato concreto de um ato de improbidade que venha causar uma pequena lesão ao erário, aplicando o princípio da proporcionalidade, possa enquadrá-lo no art. 11 em vez do art. 10, a fim de reduzir a intensidade das sanções deste, condenando, por força do mencionado dispositivo, o agente ímprobo ao ressarcimento do dano de pequena monta, mesmo em se tratando de violação de princípio. Se a hipótese for a de potencial ofensivo insignificante, a chamada improbidade de bagatela, ou seja, punida pelo estatuto dos servidores públicos com a sanção de advertência – a mais branda – entendemos que, por não haver justa causa para o acionamento do agente como incurso nas penas do art. 12, III, da lei comentada, ele deverá ser responsabilizado apenas na seara administrativo-disciplinar.” (grifo nosso)

De acordo com essa corrente doutrinária, as sanções aplicadas aos servidores públicos ímprobos devem estar em consonância com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, por isso endossa-se a aplicabilidade do princípio da insignificância na prática de atos de improbidade administrativa.

Para Moraes Filho (2012, p.2) mais prudente esta corrente na qual defende que embora a ética e a moral sejam condutas inerentes a todo agente público, é indispensável uma adequada correlação entre meio e fim na imposição de qualquer sanção.

Nessa mesma linha, podemos ressaltar outra importante decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no caso de uma demanda proposta por ex-prefeito do Município de Taquaral/SP que foi denunciado por suposta infração capitulado no art. 1º, II, do Decreto-Lei nº 201/1967, por utilizar máquinas e caminhões de propriedade da prefeitura para efetuar serviços de terraplanagem na sua residência, nos autos do HC 104.286/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 03/04/2011. Vejamos a ementa:

“Habeas Corpus. 2. Ex-prefeito condenado pela prática do crime previsto no art. 1º, II, do Decreto-Lei 201/1967, por ter utilizado máquinas e caminhões de propriedade da Prefeitura para efetuar terraplanagem no terreno de sua residência. 3. Aplicação do princípio da insignificância. Possibilidade. 4. Ordem concedida”. (grifo nosso) (HC 104286, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 03/05/2011, DJe-095 DIVULG 19-05-2011 PUBLIC 20-05-2011 EMENT VOL-02526-01 PP-00042 RT v. 100, n. 909, 2011, p. 425-434)

No caso concreto, a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado, dado aos serviços prestados não ultrapassariam o valor de R$ 40,00 (quarenta reais) que foi ressarcido aos cofres públicos pelo paciente. Na oportunidade, o Superior Tribunal de Justiça, em primeira análise, entendeu ser inaplicado o princípio da bagatela, tendo em vista a condição do condenado (prefeito) e que o valor não seria apto à aplicação do princípio por se tratar de coisa pública.

Contudo, discordando do entendimento deste Tribunal Superior, o Ministro Relator Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal entendeu que deve ser levada em conta a avaliação dos aspectos de ordem objetiva na prática do ato, ou seja, o próprio fato, e não atributos do agente, aplicando ao caso concreto o princípio da insignificância.  

Para Gomes (2013, p.165), “o fato de o agente ser prefeito municipal não pode já excluir de plano a incidência do principio da insignificância. O fato de o delito atingir o erário público não impede por si só, a aplicação deste princípio”. Além disso, a denegação do princípio da bagatela, só em razão da qualidade do agente ou do bem jurídico contraria a lógica do razoável (GOMES, 2013, p.166).

Segundo essa corrente, mostra-se impossível não ignorar a desproporcionalidade no ajuizamento de uma ação de improbidade administrativa sem que esteja presente um dano relevante para a Administração Pública. Daí a necessidade de se observar o principio da proporcionalidade no caso concreto.      

Portanto, de acordo com essa posição doutrinária o princípio da insignificância deve ser aplicado desde que realizada uma análise de cada caso em concreto.

Considerações finais

O princípio da bagatela vem sendo muito aplicado no Direito Penal e tem por objetivo tornar atípicas as condutas insignificantes. Sua aplicação impede que o Poder Judiciário fique sobrecarregado de processos que atinjam de modo ínfimo ao bem jurídico tutelado. Por isso, há grande discussão acerca da aplicação desse princípio em outros ramos do Direito.

 Por outro lado, o país é devastado por atos de imoralidade, corrupção e improbidade na Administração Pública por conta de agentes públicos despreparados para assumir uma função pública e incumbidos de má-fé. Assim, foram criados instrumentos legais e severos para combater este mal que ainda assola o país.

Nesse diapasão, a incidência do princípio da bagatela no âmbito da Lei nº 8.429/90 pode acabar criando uma sensação de impunidade e fomentar ainda mais a prática de atos de improbidade administrativa. É de se destacar que o princípio da moralidade, constitucionalmente consagrado, é requisito válido para todos os atos da Administração Pública, e não um pressuposto referente ao mérito, isto é, o ato que contraria a moral administrativa é nulo, e por isso não está sujeito à análise de oportunidade e conveniência.

Sendo assim, apresentadas as duas posições acerca do tema, entende-se não ser possível a aplicação do princípio da insignificância para os atos de improbidade administrativa, conforme afirmado pela corrente majoritária, tendo em vista que não há ofensa que possa ser considerada insignificante na Administração Pública, uma vez que a conduta moral e ética deve ser sempre observada pelos agentes públicos. Ademais, o bem jurídico tutelado pelo legislador ao criar a Lei nº 8.429/92 é por excelência a moralidade administrativa e por isso não pode ser desprezada.

Desse modo, é incabível dizer que uma conduta ímproba ofenda de modo ínfimo a moralidade.  Verifica-se, ainda, que de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça os atos de improbidade não se confundem com meras irregularidades administrativas, pois para que um ato seja ímprobo é imprescindível que sejam ofendidos os princípios constitucionais da Administração Pública e que haja também má-intenção do administrador.

Portanto, por mais que o valor lesado seja insignificante ou de pequena monta e que haja a respectiva devolução do mesmo, a ilicitude da conduta é configurada pelo simples comportamento imoral e desonesto do administrador público, pois o bem jurídico protegido pela Lei foi violado (a probidade administrativa).

Assim sendo, verifica-se que o combate à improbidade administrativa deve ser analisado com seriedade, devendo, portanto a Lei nº 8.429/92 ter efetividade máxima, uma vez que os agentes públicos estão obrigados a atuar, não segundo a sua vontade, e sim de acordo com o que a legislação determina em obediência ao princípio da indisponibilidade do interesse público.

Por fim, conclui-se que caso haja a incidência do princípio da insignificância nos atos de improbidade administrativa estaria se evitando a aplicação da Lei e uma sensação de impunidade para sociedade brasileira, comprometendo um comportamento socialmente esperado do administrador e o bom trato com a máquina administrativa.

Referências
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Anexo
Relatório Copyspider:
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Informações Sobre o Autor

Lorena de Azevedo Almeida

Advogada e pós-graduada em Direito Administrativo na Universidade Anhanguera – Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes


Equipe Âmbito Jurídico

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