Resumo: A Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, chamada “de inclusão da pessoa com deficiência”, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, no seu artigo 114, deu nova redação ao artigo terceiro do Código Civil ficando estabelecido que os absolutamente incapazes para os atos da vida civil são apenas os menores de dezesseis anos, revogando os incisos I a III, que previam a incapacidade absoluta para os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos e os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Os aplicadores do direito, no foro, passaram a afirmar que deixou de existir a incapacidade absoluta decorrente da condição física ou de saúde. Alguns passaram a entender, inclusive, a necessidade de ser feita revisão de sentenças de interdição, mesmo de ofício, sob a justificativa de se “adequar” as situações de fato ao novo Estatuto. Pretendemos demonstrar através deste artigo que a incapacidade absoluta para os atos da vida civil existe de fato, embora tenha deixado de existir de direito, para específicas condições de saúde, o que implica em uma inadequação da alteração legal que distanciou a norma da realidade, deixando um vazio legislativo que (esperamos) o bom senso da hermenêutica possa suprir no decorrer do tempo e da prática forense.
Palavras-chave: Debilidade mental. Incapacidade jurídica. Estatuto da Pessoa com Deficiência
Abstract: The law no. 13,146, of July 6, 2015, called "inclusion of persons with disabilities," also known as the Disabled Person Statute, in it’s article number 114, states that the only absolutely incapable for acts of civil life are minors under the age of sixteen, Repealing sections I to III, which provided absolute incapacity for those who, because of illness or mental deficiency, do not possess the necessary discernment for the civil practices and those who, even for transitory cause, can not express their will. The operators of the law have stated that there is no longer an absolute incapacity due to physical or health conditions. Some even came to understand that there is a need for revision of interdiction sentences, even ex officio, under the justification of "fitting" those situations to the new Statute. We intend to demonstrate through this article that the absolute incapacity for acts of civil life does exist in fact, although it ceased to exist in law, for specific health conditions, which implies an inadequacy of the legal amendment that distanced the norm from reality, leaving a legislative vacuum that (hopefully) the common sense of hermeneutics can fill in the course of time and forensic practice.
Keywords: Mental weakness. Legal incapacity. Statute of the Person with Disabilities
1. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA – BREVES CONSIDERAÇÕES
A produção legislativa brasileira tem sido péssima em termos de qualidade. As normas chegam a público com erros de grafia, de concordância verbo-nominal, de técnica legislativa, isso quando não se limitam a repetir regras que já existem. O antigo aforisma de que “não existem palavras inúteis na lei” já não se aplica no nosso país há muitos anos. Uma das últimas leis bem elaboradas (em todos os aspectos) ainda vigente em nosso país foi a Lei 8.666/93 (lei das licitações e contratos administrativos), que também já foi amplamente “retalhada” sob o pretexto de “adequação à realidade brasileira”.
Não raro os aplicadores do direito ficam perplexos quando surge uma nova lei e essa perplexidade é muito mais por conta do seu conteúdo extravagante do que por causa de alguma dificuldade de interpretação que eventualmente se verifique. Os exemplos de leis esdrúxulas são tantos que não convém enumerar. Para citar apenas um, a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que regula os planos de saúde no Brasil, sofreu tantos remendos feitos por medidas provisórias, para atender ao lobby das operadoras de planos de saúde, tendentes a restringir os direitos dos usuários, que já não se extrai dela um sistema compreensível e que de fato regule o setor. Em razão disso vive-se a queda de braço tripla entre operadoras, médicos e usuários que se desdobra em uma chuva de liminares no Judiciário, com a A.N.S. assistindo a tudo omissa.
Para identificarmos a origem desse “mal”, devemos ponderar que a democracia tem como um dos seus órgãos vitais a alternância periódica no poder e a possibilidade de que a escolha dos seus ocupantes seja feita, senão por todos do povo, ao menos por uma parcela significativamente expressiva dele, sempre segundo regras estabelecidas numa norma fundamental que preveja a maneira de sua aquisição e os limites do seu exercício. O voto é, portanto, a célula mater da nossa democracia.
Há muitos que dizem não ser o brasileiro suficientemente esclarecido para o exercício do direito de escolher os seus governantes, em virtude de a conquista do voto pelos eleitos, no nosso sistema, obedecer à lógica da troca. Prevalece, portanto, a distribuição de dinheiro, bens e favores, além da demagogia explícita, para a conquista dos votos necessários ao sucesso eleitoral, segundo regras pouco compreensíveis e cálculos de quocientes menos ainda. Mas há registros históricos de que a democracia brasileira sempre foi assim.
O ambiente de troca de favores e de vantagens é o mais adequado para que pessoas sem escrúpulos alcancem posições de destaque no Legislativo e no Executivo. Fato de conhecimento público é o de que a maior parte dos políticos de carreira sujeitos a processos criminais por conta da prática de corrupção ocuparam (ou ainda ocupam), cargos nestes dois poderes, nos três níveis: federal, estaduais e municipais. No ano de 2017 cinco vereadores tomaram posse e depois retornaram para a cadeia no interior do Paraná, por conta de prisão preventiva em ação penal que apura o crime de corrupção; outro caso se encontra na mesma situação no interior de Minas Gerais, além de existirem deputados, senadores, prefeitos e ex-governadores todos presos provisoriamente, ou cumprindo sentença condenatória definitiva Brasil afora.
Como sintoma de uma doença terminal, o Legislativo parou de exercer a sua função primeva: a de legislar. Hoje o Executivo Federal é o que legisla sobre todos os assuntos através de medidas provisórias, sem qualquer observação aos princípios de relevância e urgência. Deputados ou senadores não conseguem aprovar um só projeto de lei individualmente, pois as presidências das casas legislativas pautam exclusivamente os interesses do Executivo, que literalmente despeja uma enxurrada dessas medidas trancando as pautas. Projeto de lei ordinária, que não seja oriundo de medida provisória, somente alcança aprovação se obtiver o aval do Governo.
Num ato de pusilanimidade, o Congresso Nacional editou a Lei 12.382/11, que autoriza o presidente da República a fixar o reajuste do salário-mínimo por decreto, abrindo mão da sua prerrogativa natural de discussão do assunto pelo seu corpo heterogêneo (em virtude da sua própria composição democrática), onde se encontram pessoas que representam a maior parte das categorias profissionais e que deveriam velar pelos interesses do povo brasileiro. Entenderam mais conveniente que um grupo de tecnocratas o fizesse, com chancela legal do Presidente da República.
Num lugar de intenções pútridas, onde apenas os interesses pessoais ou de grupos são tratados, há espaço suficiente para o exercício pleno da demagogia, ou seja, a manipulação da opinião pública em discursos inflamados diante das câmeras das televisões Senado e Câmara (criadas para este desiderato), tendente a fazer crer que se obra em favor da população. Como conclusão, da árvore doente, brotam frutos podres.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência é uma dessas normas que o Legislativo Federal regurgitou em julho de 2015, e para compreender bem isso basta que sejam vistas algumas das alterações feitas no Código Civil por seu intermédio, apenas para argumentar, pois uma crítica ao texto completo demandaria um outro trabalho, mais extenso.
O artigo 116, que alterou o 1783 do Código Civil e criou a tomada da decisão apoiada, (que é uma coisa incompreensível) e assim está definida: a tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.
A primeira pergunta que cabe fazer é: como uma pessoa portadora de deficiência mental pode ter condições de escolher quem o vai apoiar na tomada de decisões para a sua vida? Qual a idoneidade dessa escolha?
Ora, cuidar da pessoa com enfermidade mental (plena ou parcial) é o papel do curador, que a depender do grau de incapacidade do curatelado, pode ter fixados seus limites de atuação na sentença de interdição. O que o Estatuto criou foi uma espécie de assessoria para o incapaz. Por outro lado, por que duas pessoas? Na prática já é difícil encontrar uma pessoa que se disponibilize a ajudar outra, quanto mais duas.
Na vida real, que os senhores ocupantes das cadeiras do Legislativo desconhecem, esse “instituto” jamais terá aplicação, não passando de objeto de mera elucubração acadêmica.
O desdobramento do artigo em seus parágrafos só piora a compreensão e burocratizam a vida do deficiente, a exemplo do §6º: Em caso de negócio jurídico que possa trazer risco ou prejuízo relevante, havendo divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores, deverá o juiz, ouvido o Ministério Público, decidir sobre a questão.
Pois bem, não satisfeito em criar uma assessoria de duas pessoas ao incapaz, chamando-os de apoiadores, o legislador ainda previu que a discordância entre eles deva ser judicializada! Quem representará o “apoiado” em juízo, para citar apenas um dos problemas criados?
O §7º é incoerente com o caput do artigo (Se o apoiador agir com negligência, exercer pressão indevida ou não adimplir as obrigações assumidas, poderá a pessoa apoiada ou qualquer pessoa apresentar denúncia ao Ministério Público ou ao juiz), pois o apoiador não tem obrigações a assumir com o “apoiado”. Segundo a compreensão da cabeça do artigo, o apoiador não passa de um mero consultor
No que se refere à curatela, praticamente tudo o que existe no Estatuto, já existia no Código Civil e no Novo Código de Processo Civil, com ressalva à curatela compartilhada (cujo benefício para o curatelado, para mim, é de grande dúvida).
No artigo 1771 do Código Civil, alterado pelo Estatuto, vê-se a quimera de o juiz ser assistido por equipe multidisciplinar antes de proferir sentença de interdição já que, na prática, o exame por médico psiquiatra constitui grande dificuldade. O artigo 1768, IV do Código Civil, alterado pelo estatuto prevê que o processo de curatela pode ser promovido pela própria pessoa: é uma grande tolice. Ou alguém pode imaginar uma pessoa indo ao Judiciário pedir a própria interdição?
O artigo 1769 prevê que o Ministério Público somente pode promover a interdição nos casos de deficiência mental ou intelectual. Mas o que é deficiência mental ou intelectual, se suas definições foram excluídas do texto legal? O conceito de deficiência ou enfermidade mental, para os fins legais, era a inexistência do discernimento necessário para a prática dos atos da vida civil – isso não existe mais no Direito Brasileiro. Repare que não se trata de uma apreciação de caráter médico, mas jurídico.
O inciso III do mesmo artigo diz: “se, existindo, forem menores ou incapazes as pessoas mencionadas no inciso II”. Mas qual inciso II, se ele foi revogado?
Se não existe mais a incapacidade absoluta para o enfermo mental, como fica a aplicação do artigo 166 do Código Civil?[1] Então os contratos de empréstimos bancários são plenamente válidos. Poderão os bancos emprestar dinheiro aos aposentados por invalidez mental sem qualquer receio de anulação judicial e a enxurrada de ações cíveis que tramitam nas varas de defesa do consumidor que buscam a anulação desses negócios jurídicos cairá por terra. Isso foi bom para as pessoas com deficiência? A equipe de assessores que trabalhou no projeto não percebeu isso?
Não vamos mencionar as outras extravagâncias existentes no texto do Estatuto que, se não se qualificam como repetição dos direitos e garantias fundamentais para todo e qualquer cidadão, são disposições que de um ou de outro modo já estavam previstas em outras normas.
A verdade é que o Estatuto da Pessoa com Deficiência representa a perda de uma grande oportunidade de conquista de direitos e garantias para essas pessoas porque sua elaboração foi movida por pura demagogia e incompetência. A falta desse instrumento continuará a oferecer as dificuldades cotidianas que o Ministério Público e as associações do setor possuem em demandar judicialmente as questões de efetivo interesse coletivo à pessoa com deficiência, de modo que a lei supostamente elaborada para solucionar problemas enfrentados na vida não o fez e, pelo contrário, criou outros.
A impossibilidade da institucionalização forçada é um dos entraves criados pelo Estatuto. Não se pode ignorar os vastos guetos de usuários de crack[2] que se disseminaram nas grandes cidade Brasil afora (as cracolândias), onde se encontram pessoas sem nenhuma condição de decidir a respeito de suas próprias vidas, de discernir o que é melhor para elas. Há relatos desses usuários de que desejam abandonar o vício, optar por outra forma de vida, mas eles simplesmente não conseguem[3].
A Lei 13.146/2015 foi, portanto, um desserviço ao Brasil.
2. A INCAPACIDADE ABSOLUTA, DE FATO
É preciso que se comece aqui afirmando o óbvio: existem pessoas cuja condição física e/ou mental não as capacitam a tomar quaisquer decisões sobre suas vidas. Essa condição de que falamos pode comprometer os cuidados básicos com a subsistência e até a higiene pessoal, que precisa ser feita por terceiros, sem mencionar aquelas que estão em estado profundo de inconsciência – o chamado estado de coma.
Se a realidade vivenciada revela uma incapacidade do exercício pleno da consciência (vale dizer em termos jurídicos: a capacidade de discernir – de compreender, de se determinar de acordo com essa compreensão, a percepção do eu, etc.), é preciso que a norma jurídica preveja de forma clara e precisa essa condição humana.
Para dar apoio à argumentação serão abordados alguns aspectos de enfermidades mentais, o estado de coma e a paralisia cerebral, sem pretender aprofundar no assunto, mas apreendendo alguns conceitos a respeito dessas condições mentais específicas, em as quais as pessoas apresentam capacidade de discernimento nulo ou muito reduzido, podendo ser conceituado como de incapacidade absoluta.
Convém ressaltar, entretanto, que nos nossos dias não se podem ignorar os avanços que a ciência tem proporcionado às pessoas portadoras de necessidades especiais, sobretudo as terapias ocupacionais, os novos medicamentos, os mecanismos de inclusão social etc., o que termina por melhorar substancialmente a capacidade de compreensão e discernimento delas, mas (é preciso que se diga) essas situações são as exceções da regra.
Não restam dúvidas de que é alvissareiro ver na mídia televisiva os programas e projetos de integração que se utilizam de diversos mecanismos de aprendizado, de desenvolvimento psicomotor, com ênfase no aspecto lúdico que atrai a atenção e desperta o interesse da pessoa especial, mas essas medidas não contemplam a maioria. A regra que se constata no dia a dia das varas de família, no exame das ações de interdição, é a existência de pessoas que não tiveram nenhum acesso a mecanismos de inclusão, educação básica, ou afeto dos familiares. Muitos moram nas ruas ou estão institucionalizados; quando convivem com familiares são párias dentro do lar, um peso para o grupo social, de modo que não conseguem nenhum nível de socialização. Nas entrevistas feitas pelo juiz não articulam palavras, alguns não reconhecem irmãos ou mães como seus cuidadores. Outros apresentam ideações suicidas renitentes que, se não fosse pesada medicação, levariam a vida a termo. São a essas pessoas que está dedicado este artigo.
2.1 Transtornos mentais
Não há consenso na conceituação e classificação das enfermidades mentais. Passando ao largo das controvérsias, adota-se para fins deste artigo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais – DSM IV, da American Psychiatric Association, em publicação vertida para o vernáculo sob a responsabilidade da Associação Brasileira de Psiquiatria – ABP.
Como termos genéricos para os transtornos mentais pode-se adotar as expressões enfermidade mental ou doença mental, sendo certo que na sua maioria as suas causas são orgânicas.
2.1.1 Esquizofrenia
“A esquizofrenia é a patologia que mais desperta atenção e interesse em psiquiatria, e também a que mais exaustivamente tem sido estudada, em inúmeros de seus aspectos e sob diferentes pontos de vista pelo fato de ser um transtorno cerebral grave, duradouro e debilitante”.[4]
Segundo o DSM IV, citado alhures, classifica-se a esquizofrenia em Catatônica, cujos sintomas são: alteração psicomotora que pode envolver a mobilidade motora, atividade motora excessiva, negativismo extremo, mutismo, peculiaridade dos movimentos voluntários, ecolalia ou ecopraxia; Desorganizada: com as seguintes características: discurso desorganizado, comportamento desorganizado, afeto inapropriado ou embotado; ausência de objetivos determinados, incapacidade para desempenhar tarefas quotidianas; Paranóide: apresentando ideias delirantes e dominantes; alucinações auditivas; ansiedade e cólera; indiferença, etc.; Residual: deve ser utilizada quando existe pelo menos um episódio de esquizofrenia, mas no atual quadro clínico não existe evidência de sintomas psicóticos positivos dominantes, como por exemplo, ideias delirantes, alucinações, discurso ou comportamento desorganizado. Existe evidência constante de que a perturbação é traduzida pela presença de sintomas negativos, como por exemplo, embotamento afetivo, pobreza do discurso ou desmotivação. Para além disso tem presente sintomas apresentados de forma atenuada, como por exemplo, crenças estranhas, experiências perpetuais estranhas. E, finalmente, Indiferenciada: caracterizada pela presença de sintomas que preenchem o critério da esquizofrenia, mas que não preenchem os critérios para os tipos paranoide, desorganizado ou catatônico.
Uma forma da doença é a esquizofrenia hebefrênica, que pode incapacitar totalmente a pessoa para qualquer ato da vida civil, conforme o estudo de caso que passamos a transcrever, em breve resumo:
“HISTÓRIA PESSOAL
J.S.J.B., sexo masculino, 22 anos, natural da Paraíba, servente de obra, católico e residente na obra onde trabalha, é o terceiro de uma prole de 8 filhos, sendo 4 mulheres e 4 homens, todos lavradores. Na Paraíba moravam num sítio, casa de estuque, chão batido, em estado de miserabilidade total, carente de qualquer princípio de higiene compatível com a saúde.
HISTÓRICO DA DOENÇA ATUAL
O paciente informa que há cerca de 6 meses, vem sendo perseguido por um bicho muito grande, mais alto que ele, metade animal, metade gente, que para ele representa o diabo. Possui uma "corcunda" em seu espinhaço e chifres como o diabo". Diz que via tal aparição sempre que parava suas atividades na obra, o que acontecia à tarde ou à noite. Diz que além de ver, também sonha com a aparição e que esta não fala, mas que o olha com cara de "enfezado" ou ri e zomba dele. Relata que fica muito assustado quando tal coisa lhe aparece, que pedia ajuda aos amigos, mas que ninguém quis se envolver com o "bicho". Às vezes tenta fugir, chegando certa vez a montar em sua "corcunda", sentindo-o com as mãos, mas foi jogado ao chão. Na véspera de ser internado (21/1/78) foi passear na Rodoviária e viu o bicho perseguindo-o, descobriu que o bicho tinha uma "botija" enterrada no chão. Diz que "botija" quer dizer bolsa de dinheiro. Tentou então arrancar a "botija" do chão e que o "bicho" ao vê-lo fazendo isso não gostou e avançou em cima dele. Pegou então um ferro que estava pendurado na parede e começou a lutar contra o "animal". Diz que já estava todo machucado quando um enfermeiro o amarrou e o levou para o hospital. Nesse ponto devemos informar que foi levado pela polícia. Não sabe para que foi levado para lá nem como lá chegou. Não se acha doente e só se sente machucado da briga, apesar de não existir marca alguma que confirmem as agressões físicas. Logo após a internação, disse que não via mais o diabo, pois se sentia protegido, voltando a vê-lo porém de tamanho, cores e "quantidades" diferentes. Vive lutando com o "diabo" pois este, tenta tirar dele o "botijão" que se acha enterrado. O paciente arranca vasos sanitários, tentando arrancar o "botijão". Recolhe lixo do chão e diz ser dinheiro.
Ao exame psíquico, apresentou-se em péssimas condições de higiene, aparência descuidada, embotamento afetivo, totalmente desorientado, em episódio de delírio de cunho persecutório, alucinações visuais, atitude indiferente, hipovigil, hipotenaz e hipopragmático. Não demonstrava vontade de conversar mas falava rapidamente, referindo-se ao "cão", chegando a apresentar fuga de idéias. Diz que não sabe porque está aqui, que lugar é esse, que quer ir embora. Levanta-se, pede dinheiro, roupas para ir embora, senta-se e volta a falar no "cão" e de suas brigas com ele.
PROGNÓSTICO
O paciente teve como tratamento, basicamente, associações de neurolépticos que o deixaram numa total impregnação. Permaneceu vários dias sob o uso dessa medicação. Como não apresentou melhoras, esse tratamento foi suspenso para dar lugar a uma série de ECT[5], usado como último recurso. Embora não se tenha completado nenhuma etapa da série, a médica assistente do mesmo, acredita numa grande probabilidade de melhora.
EVOLUÇÃO E PROGNÓSTICO
A evolução espontânea da esquizofrenia na maior parte dos casos é desfavorável, seja pela persistência do processo, seja pela repetição dos surtos.
A evolução varia segundo as formas da esquizofrenia.
A forma hebefrênica evolui desfavoravelmente com raras e completas remissões”.[6]
A esquizofrenia não tem cura, embora possa ser controlada, em alguns casos com medicamentos. No caso relatado acima se percebe que a doença terminou por forçar uma institucionalização forçada do indivíduo, inclusive porque ele passou a adotar atitudes antissociais e agressivas na via pública. O paciente não é capaz de decidir, não consegue reunir conceitos e ideias elementares para a formação de um juízo de valor sobre nenhum assunto. Contempla uma realidade alternativa, criada por ele mesmo, onde existem monstros e situações absurdas, seu estado é, portanto, de incapacidade absoluta.
2.1.2 O mal de Alzheimer
A Doença de Alzheimer é uma enfermidade incapacitante, incurável, de causas desconhecidas que acomete pessoas idosas e de difícil diagnóstico. Seu principal sintoma é a demência, ou perda de funções cognitivas (memória, orientação, atenção e linguagem), causada pela morte de células cerebrais. Embora não haja cura, seus efeitos podem ser retardados e há indicações recentes no sentido de que, em alguns casos de diagnóstico precoce, pode-se paralisar o avanço da doença. O nome dessa enfermidade atribui-se a ao médico Alois Alzheimer, o primeiro a descrevê-la em 1906.
A degenerescência orgânica e psíquica do paciente portador do Alzheimer é visível e gradual. Sem adentrar nos aspectos médicos para evitar aridez do texto, podemos referir de modo breve que ocorrem lesões cerebrais características da doença, sem que se saibam as suas razões. As duas principais alterações que se apresentam são as placas senis decorrentes do depósito de proteína beta-amiloide, anormalmente produzida, e os emaranhados neurofibrilares, frutos da hiperfosforilação da proteína tau[7]. Outra alteração observada é a redução do número das células nervosas (neurônios) e das ligações entre elas (sinapses), com redução progressiva do volume cerebral.
Em fase agudas da doença o paciente não interage, não executa as funções básicas da sobrevivência, em alguns casos é necessário recorrer à alimentação enteral (por via de tubulação). A higiene pessoal somente pode ser feita por terceiros, há necessidade de uma série de intervenções fisioterápicas a fim de evitar a aprofundamento da perda da massa muscular e para diminuir as consequências das escaras (feridas decorrentes da imobilidade no leito).
Esclarecem sobre esta fase os seguintes estudos:
“Estágio 7: demência muito grave a estágio terminal
Nessa fase, alguns paciente vivem em clínicas especializadas, mas às vezes com muita ajuda, eles podem ser mantidos em casa. Ocorrem incontinência urinária e fecal, e as quedas repetidas requerem cadeira de rodas e, mais tarde, o confinamento à cama. A dificuldade de engolir acabará causando pneumonia.[8]
A fase avançada ou terminal da Doença de Alzheimer é descrita como fase das perdas significativas, diminui-se vocabulário, apetite e peso, e aparecem descontrole urinário e fecal, dependência progressiva do cuidador(18). Geralmente é nesse estágio que os enfermeiros assistenciais têm contato com os pacientes, pois ficam mais suscetíveis a problemas que necessitem de internação hospitalar. Com isso, levantou-se o questionamento sobre um plano de cuidados específicos para essa fase”.[9]
Na fase terminal do Mal de Alzheimer não há como deixar de admitir a existência da incapacidade absoluta da pessoa reger sua vida, menos ainda tomar decisões apoiadas.
Segundo a Associação Brasileira de Alzheimer, existem no Brasil cerca de 1,2 milhão de casos, a maior parte deles ainda sem diagnóstico.[10]
2.1.3 Paralisia cerebral
No que se refere à paralisia cerebral, convém inicialmente que se observe em linhas gerais a sua definição:
“Paralisia Cerebral (PC) é uma lesão que atinge o cérebro quando este é imaturo, e interfere no desenvolvimento motor normal da criança. É o resultado de uma lesão ou mau desenvolvimento do cérebro, de caráter não progressivo, existindo desde a infância. A deficiência motora se expressa em padrões anormais de postura e movimentos, associados com um tônus postural anormal.”[11]
A capacidade de compreensão dos fatos da vida por parte do portador da paralisia cerebral é bastante reduzida, sendo impossível a ele o discernimento necessário para o exercício dos atos de gestão de sua própria pessoa, inclusive os de higiene pessoal.
Artigo sobre o tema relata perfunctoriamente o problema:
“Embora a PC seja caracterizada pela disfunção motora, outras alterações podem estar relacionadas a esse transtorno, associado em diferentes combinações a uma série de outros sintomas, tais como deficiência mental, epilepsia, transtornos de linguagem, auditivos, visuais e de conduta1. Assim sendo, apresentam variados padrões de funcionamento intelectivo. Nessa perspectiva, um número significativamente alto de crianças com PC apresenta nível inferior de coeficiente intelectual (QI<50), representado entre 14% a 59% dos casos descritos na maioria dos estudos.
A correlação entre inteligência fluida e as funções executivas reside nos processos cognitivos relacionados à memória de trabalho, definida por Baddeley3, como "um sistema de capacidade limitada capaz de armazenar e manipular informações". A definição do QI se baseia no fato de que "a inteligência fluida refere-se às operações mentais que uma pessoa usa quando está defronte de tarefas novas que não podem ser executadas automaticamente. Essas operações mentais incluem o reconhecimento e a formação de conceitos, a compreensão de implicações, resoluções de problemas, extrapolação e reorganização ou transformação de informações".
Sendo assim, as implicações das alterações de funções executivas em crianças com PC originam-se na complexidade de processos cognitivos que, de forma integrada, permite ao indivíduo direcionar comportamentos a metas, avaliar eficiência e a adequação desses comportamentos, abandonar estratégias ineficazes em prol de outras mais eficientes4.”[12]
Embora não haja cura, os portadores dessa disfunção conseguem grandes progressos a partir de tratamentos que minimizam o sofrimento decorrente da degeneração orgânica, há inclusive algumas conquistas registradas com a equoterapia (tratamento que utiliza cavalos como montaria para os enfermos), desde que esses procedimentos terapêuticos os alcance na infância. O portador de PC não se recupera, não há possibilidade de ele levar uma vida com autonomia funcional. Se sua paralisia for parcial em grau leve a moderado poderá alcançar muito sucesso a partir de esforços
2.1.4 O estado de coma
Também chamado (embora com menor frequência) de estado vegetativo, é definido como sendo:
“Coma é um estado em que o indivíduo não demonstra conhecimento de si próprio e do ambiente, caracterizado pela ausência ou extrema diminuição do nível de alerta comportamental (nível de consciência), permanecendo não responsivo aos estímulos internos e externos e com os olhos fechados(1-2)”[13]
Classificam-se em diferentes tipos: Coma estrutural, devido a alterações na estrutura anatômica do cérebro, como ocorre nos traumatismos ou nos acidentes vasculares encefálicos, por exemplo. Coma não estrutural: quando há distúrbios metabólicos do cérebro, como no diabetes mellitus, intoxicações e asfixias, por exemplo. Coma induzido: provocado artificialmente por medicações, com finalidades terapêuticas, como nas cirurgias de grande complexidade ou em situações onde é conveniente reduzir a um mínimo o consumo de energia. Geralmente ele é induzido pelo médico, que controla também o seu nível de profundidade.
Causado por uma perturbação grave do funcionamento cerebral de natureza reversível ou irreversível, devido a traumas, acidentes vasculares cerebrais, tumores, distúrbios metabólicos, envenenamentos ou asfixia.
É desnecessário tecer outras considerações a respeito dessa condição de saúde, obviamente de incapacidade absoluta. Não obstante, a situação comporta reversão do quadro em alguns casos, de forma que esse estado pode não ser definitivo.
3. Conclusões
Embora tenha havido o afã de suprimir da legislação pátria a expressão “incapacidade absoluta”, aqueles que conceberam o Estatuto da Pessoa com Deficiência tomaram uma providência para que a mesma expressão permanecesse travestida na Lei nº 8.742/1993 (LEI ORGÂNICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL – LOAS), sob o epíteto: impedimento de longo prazo, mental, intelectual ou sensorial (Artigo 20, §2º), sendo que o §10 delimita esse impedimento de longo prazo como sendo superior a dois anos. Ora, o que pode significar impedimento mental de longo prazo? Incapacidade absoluta? Entendemos que sim.
De que serviu a supressão da expressão incapacidade absoluta da norma jurídica? Será que ao excluí-la do Direito promoveu-se a cura das pessoas? Ou o objetivo foi mais raso, varrer para debaixo do tapete a realidade que insiste em mostrar a sua face sem que o poder público se esforce em habilitar materialmente políticas públicas de tratamento e inclusão social pelo SUS, incluindo aí a contratação de psiquiatras e outros profissionais de saúde, centros multidisciplinares de atendimento (não apenas os CAPS), acessíveis a todos indistintamente?
Entendemos que a incapacidade absoluta continua existindo no Direito Brasileiro, agora denominada de impedimento mental de longo prazo e é essa a expressão que deve ser utilizada nas ações de curatela, nos manuais, nos artigos e demais textos voltados ao estudo do assunto, porque, conforme se demonstrou aqui de modo superficial, essa condição humana existe de fato e não é a mera supressão de palavras que vai fazê-la desaparecer.
Com efeito, a analogia pode resolver algumas situações legais a partir da definição existente na LEI ORGÂNICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL – LOAS, sobretudo no que se refere à questão previdenciária e negocial das pessoas com deficiência.
Nas situações indicadas no corpo deste artigo, além de outras semelhantes, em que o enfermo não consegue interagir, expressar sua vontade, a sua interdição há de ser total, levando-se em consideração o seu impedimento mental de longo prazo. Assim, até que o bom senso faça o legislador brasileiro revogar o atual Estatuto da Pessoa com Deficiência, estabelecendo uma norma que de fato resolva do ponto de vista jurídico a questão.
Promotor de Justiça do Estado da Bahia, com atribuições na 8ª Vara de Família de Salvador. Possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Católica do Salvador – UCSal (1992). Especialização em Ciências Criminais e Segurança Pública pela Universidade Jorge Amado – Unijorge. 2009. Concluinte de pós graduação em Filosofia pela Universidade Estácio de Sá. É escritor. http://lattes.cnpq.br/4942649167721851
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