João Pedro Dornelles Claret[1], Tarsis Barreto Oliveira[2]
Resumo: Analisa-se o artigo 33, parágrafo 4º do Código Penal Brasileiro no tocante à vedação por este estipulada de progressão de regime, bem como o princípio da insignificância nos crimes contra a administração pública, em confrontação com os princípios da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana. A tese é defendida mediante revisão literária de posicionamentos doutrinários que objetivam discutir a inconstitucionalidade do referido artigo na tratativa distinta direcionada ao agente público desprivilegiado; o tema também é debatido mediante a colação escorreita de jurisprudências contraditórias ao tema oriundas das mais altas Cortes do país, apontando conclusivamente para a insegurança jurídica de uma jurisprudência que não relaciona de forma equidistante a moralidade pública, o princípio da insignificância e o instituto da progressão de regime aos agentes públicos que incorrem nos tipos penais descritos no Título XI do Código Penal Brasileiro, bem como o princípio moralidade pública com o grau de punição adotado em detrimento da natureza do agente ativo, visto se público ou particular.
Palavras-chave: Direito penal. Inconstitucionalidade. Administração pública.
Abstract: Article 33, paragraph 4 of the Brazilian Penal Code is analyzed with regard to the prohibition of its regime progression, as well as the principle of insignificance in crimes against public administration, in confrontation with the principles of reasonableness and dignity of the human person. The thesis is defended by means of a literary review of doctrinal positions that aim to discuss the unconstitutionality of the referred article in the different treatment directed to the underprivileged public agent; the theme is also debated through the flawless collation of contradictory jurisprudence to the theme from the highest courts in the country, pointing conclusively to the legal uncertainty of a jurisprudence that does not equidistantly relate to public morality, the principle of insignificance and the institute of progression of regime to public agents who incur the criminal types described in Title XI of the Brazilian Penal Code, as well as the principle of public morality with the degree of punishment adopted to the detriment of the nature of the active agent, whether public or private.
Keywords: Criminal law. Unconstitutionality. Public administration.
Sumário: Introdução. 1. Considerações sobre a administração pública. 2. A tutela jurídico-penal da administração pública. 3. A corrupção e os crimes de maior incidência contra a administração pública. 4. Aspectos sociais, jurídicos e criminológicos do fenômeno da corrupção. 5. A (in)constitucionalidade da vedação à progressão de regime nos crimes contra a administração pública. Considerações Finais. Referências.
Lista de siglas: CF. – Constituição Federal. CP. – Código Penal. Hc. – Habeas Corpus. STJ. – Superior Tribunal de Justiça. STF. – Supremo Tribunal Federal.
Introdução
A Constituição Federal é estrela guia do Direito brasileiro; portanto, há de ser regida pelo princípio da supremacia da Constituição, significando que “a Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos”. Deste princípio, resulta o princípio da compatibilidade vertical das normas, significando que às normas de inferior grau será conferida validade somente se compatíveis com o texto constitucional. Portanto, tudo o que fere a CF, por violar seus princípios e normas, é inconstitucional, e deve assim ser reconhecido por decisão que produz efeitos ex nunc, isto é, prospectivos. (LENZA, 2017, p. 240-241).
No âmbito das leis de grau inferior que guardam relação principiológica de compatibilidade vertical com as normas da Constituição Federal está o Código Penal Brasileiro de 1940, recepcionado pela Carta Magna e guarnecendo o fim de tipificar os crimes que justificam o princípio da ultima ratio ou intervenção mínima. O Código Penal e a Constituição Federal confluem quanto a títulos que tutelam a Administração Pública mediante a definição de disposições gerais da Administração e tipificações de crimes contra esta, conforme ocorre respectivamente nos artigos 37 da CF e Título XI do CP. Esta conexão entre as leis supracitadas encontra amparo no fato de que “o poder público não desfruta de meios suficientes para realizar diretamente todas as finalidades a que se destina”, figurando-se, portanto, imprescindível a regulação do funcionamento do Estado mediante normas de direito público que protejam o interesse público, surgindo então o esforço do Direito Penal (MASSON, 2020, p. 546).
Todavia, ao emanar o reforço da tipificação dos crimes contra a Administração Pública em seu Título XI, o Código Penal possivelmente atentou contra um importante princípio que guarda estreita relação com a dignidade da pessoa humana, isto é, o princípio da insignificância, um princípio que, se recusado pelas tipificações do Código Penal, não fará deste Código o bastião da ultima ratio. Neste sentido, a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância nos julgados da jurisprudência pátria é causa de controvérsia no âmbito dos crimes contra a Administração Pública, pois em razão do artigo 33, §4º do Código Penal, os condenados por crimes previstos no Título XI do CP não desfrutam do direito de progressão de regime, o que, para Greco (2019, p. 733), carece de critério de justiça. Nesta ótica, cita a hipótese de um funcionário público ser julgado com uma pena correspondente ao crime de peculato-furto, que varia entre 2 a 12 anos de reclusão, pelo ato de subtrair uma caneta de uma repartição pública.
Portanto, a possível inconstitucionalidade do artigo 33, §4º do Código Penal brasileiro no que se refere à vedação de progressão de regime nos crimes contra a administração pública é tema de elevada pertinência, visto a suposta injustiça sofrida por agentes públicos que, apesar de terem cometido crimes contra a Administração Pública, se viram impedidos do usufruto da progressão de regime ante um dano insignificante ao erário público. Neste sentido, o artigo objetiva discutir a justiça em alto grau quanto à especificidade relativa ao tema supramencionado, visto que é um tema fortemente atrelado à dignidade da pessoa humana prevista no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal, bem como princípios, direitos e garantias fundamentais previstos no artigo 5º da Carta Magna que possivelmente se veem atingidos pelo artigo 33, §4º do Código Penal pelas razões acima expostas.
Neste turno, a presente pesquisa demonstra, com o devido amparo doutrinário, que não há relação entre a impossibilidade de progressão de regime nos moldes prescritos no artigo 33, §4º do Código Penal, e o princípio da moralidade da administração pública descrito no artigo 37 da Constituição Federal quando o bem público lesado comportar a aplicação do princípio da insignificância ante uma lesão ínfima cometida por agente público.
Administração pública é o aparelhamento estatal que realiza os anseios políticos do governo. O conceito de administração pública em sentido subjetivo, formal ou orgânico se resume no conjunto de órgãos, entidades públicas e agentes públicos que desempenham a função administrativa. Todavia, quando conceituada em seu sentido material, objetivo ou funcional, a administração pública toma o significado de atividade, dever ou função inerente ao objetivo almejado pelo governo, neste sentido englobando todas as atividades de fomento econômico, poder de polícia, intervenção e serviços públicos prestadas pelo Estado. (SCATIOLINO, 2017, p. 27).
O Estado, enquanto elemento conjuntivo da administração pública, é pessoa jurídica de Direito Público constituído de direitos e obrigações regulamentadas conforme os princípios do direito público; sendo assim, é constituído o Estado por povo, território, governo e soberania para se organizar independentemente de outros Estados. De acordo com Knoplock (2016, p. 11), no que concerne à sua organização, o Estado está estruturado conforme o art. 1º da Constituição Federal, que dispõe: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito.” (BRASIL, 1988).
A administração pública é, portanto, definida como o conjunto de atividades executadas pelas pessoas jurídicas de direito público ou por suas delegatárias em prol do interesse público e na persecução dos objetivos legalmente impostos ao Estado. Este conceito abrange tanto a administração pública direta, formada pela União, Estados, Municípios e Distrito Federal, quanto a administração pública indireta, formada pelas autarquias, sociedades de economia mista, empresas públicas e fundações (GRECO, 2019, p. 728).
Dentre os princípios que norteiam a administração pública podemos citar os princípios da supremacia do interesse público sobre o privado, finalidade, razoabilidade, proporcionalidade e o da responsabilidade do Estado, todos estes previstos no artigo 37 da Constituição Federal (BRASIL, 1988).
O conceito de funcionário público no âmbito do Código Penal se encontra descrito em seu artigo 327, considerando-se funcionário público “quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública” (BRASIL, 1940), e equiparando-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal ou empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para execução de atividade típica da administração pública (GRECO, 2019, p. 729).
No âmbito do Direito Penal o Código preconiza o fim da atividade em si, quando em prol do interesse público, para definir o agente enquanto funcionário público. Neste sentido, o Direito Penal apresenta um conceito divergente dos de outras searas do Direito. O Direito Administrativo, por sua vez, é mais restritivo, significando funcionário público como uma espécie de agente administrativo pertencente ao gênero dos agentes públicos. O Direito Penal, no entanto, amplia o conceito, englobando os empregados públicos, os servidores públicos ocupantes de cargos em comissão, os servidores temporários, os particulares em colaboração com o interesse público, dentre outras modalidades que possam se apresentar (MASSON, 2020, p. 553).
O artigo 337-D do Código Penal (BRASIL, 1940), por sua vez, traz o conceito de funcionário público estrangeiro, que, para efeitos penais, significa “quem, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública em entidades estatais ou em representações diplomáticas de país estrangeiro”; o parágrafo único do mesmo artigo complementa: “equipara-se a funcionário público estrangeiro quem exerce cargo, emprego ou função em empresas controladas, diretamente ou indiretamente, pelo Poder Público, de país estrangeiro ou em organizações públicas internacionais”.
Os conceitos encontrados nos artigos 327 e 337-D em muito se assemelham, guardando como única diferença o fato de que conforme o artigo 337-D, o cargo, emprego ou função do agente público estrangeiro deve ser levado a efeito em entidades estatais ou em representações diplomáticas de país estrangeiro (GRECO, 2019, p. 730-731).
2. A Tutela Jurídico-Penal da Administração Pública
O Estado é regulado por normas de Direito Público que nem sempre são suficientes para a proteção do interesse público. Neste sentido, o Direito Penal visa tipificar crimes contra a Administração Pública no intento de auxiliar a proteção do interesse público. Todavia, a expressão Administração Pública não possui no Direito Penal o mesmo viés significativo que possui nos Direitos Constitucional e Administrativo, obtendo nestes dois últimos domínios o sentido de parte da tripartição dos poderes, ao lado dos poderes legislativo e jurisdicional. Neste sentido, o Código Penal significa Administração Pública de maneira amplificada, considerando-a como o desempenho das atividades tipicamente administrativas tanto em aspecto subjetivo, isto é, entes que desempenham a função pública, quanto em aspecto objetivo, isto é, atividades desenvolvidas em prol do interesse público (MASSON, 2020, p. 546).
Há décadas os crimes contra a administração pública estão previstos na legislação brasileira, mas nem sempre esta delimitação do código apresentava-se com a complexidade hodierna. O Código Penal Imperial de 1830 enumerava delitos no título de “Crimes contra a boa ordem e administração pública”, abrangendo os crimes cometidos por funcionários públicos, mas excluindo o peculato desta modalidade. O Código Penal de 1890, já republicano, repetia a epígrafe do anterior, mas inseria desacato, resistência, fugida de presos, dentre outros; arrombamento de cadeia e desobediência no rol do título; todavia, como se pode ver, alguns crimes eram de natureza política e não propriamente contra a administração pública. Somente com o Código Penal de 1940 os crimes contra a administração pública tomaram a dimensão contemporânea (ESTEFAM, 2019, p. 535).
A tipificação dos crimes contra a administração pública possui por finalidade assegurar a normalidade funcional da administração pública, assegurando a manutenção de todos os princípios que a fundam: probidade, moralidade, eficácia, incolumidade, dentre outros (BITENCOURT, 2019, p. 36). Neste sentido, a tutela penal somente fundamenta sua legitimidade política quando se dispõe a proteger os valores fundamentais entoados pela Constituição Federal (ESTEFAM, 2019, p. 537).
Segundo o Título XI da Parte Especial do Código Penal (BRASIL, 1940) os crimes contra a administração pública podem ser cometidos tanto por particulares quanto por funcionários públicos; neste sentido, quando praticados por funcionários públicos a doutrina os divide em crimes funcionais próprios ou impróprios.
Hungria (1959, p. 316) destaca que os crimes funcionais, (ou de responsabilidade) dividem-se em próprios e impróprios ou mistos. Nesta classificação, os próprios correspondem ao exercício da função pública enquanto atividade do sujeito ativo, sendo este exercício elemento crucial para a tipificação do fato, como ocorre, por exemplo, na concussão, prevaricação e corrupção passiva; já no caso dos impróprios ou mistos, por sua vez, há um crime comum além da violação do dever da função do agente público, por exemplo, peculato.
Contudo, os crimes funcionais próprios e impróprios ou mistos não são inerentes somente aos funcionários públicos; o artigo 30 do Código Penal prescreve que “não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime” (BRASIL, 1940), isto é, não há importância se as circunstâncias elementares subjetivas, relativas ao agente, se comunicam com as objetivas, relativas aos fatos, sendo prescindível apenas, neste caso, que as circunstâncias elementares tanto subjetivas quanto objetivas tenham ingressado na esfera pública de conhecimento com o fim de impedir a adequação na tipificação penal objetiva. Neste sentido, quando ocorre concurso de pessoas, a condição de funcionário público comunica-se a todos os particulares envolvidos na prática do delito. Portanto, crimes funcionais com concurso de pessoas culminam nas tipificações guardadas no Capítulo I do Título XI da Parte Especial do Código Penal (MASSON, 2020, p. 552-553).
O procedimento previsto para crimes cometidos por funcionários públicos contra a administração pública está presente nos artigos 513 a 518 do Código de Processo Penal. São diversos os efeitos da sentença penal na esfera administrativa; o artigo 92, I do Código Penal prevê a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo quando a pena restritiva de liberdade for superior a um ano nos crimes cometidos com abuso de poder ou violação do dever para com a administração pública, também quando for aplicada pena restritiva de liberdade superior a quatro anos nos demais casos (GRECO, 2019, p. 732).
Além da perda de cargo oriunda da sentença penal poderá a administração pública aplicar sanção administrativa ao funcionário público, medida esta garantida pela Lei nº 8.112, de 11 de setembro de 1990, cujas sanções podem variar entre advertência, suspensão, demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, destituição de cargo em comissão e destituição de função comissionada.
Todavia, quando há uma sentença penal absolutória a administração pública não fica totalmente impedida de aplicar a sanção administrativa, haja vista a independência das instâncias administrativa e penal. Neste sentido:
“A autonomia do poder disciplinar só se entende com os fatos que constituem, exclusivamente, faltas disciplinares. Fora daí, só é admissível a ação disciplinar, no caso de absolvição do acusado no juízo penal, quando, embora afastada a identificação do fato imputado como crime, persista, residualmente, uma falta disciplinar.” (HUNGRIA, 1959, p. 324-325).
Dispõe o artigo 327, § 2º do Código Penal que: “A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste capítulo forem ocupantes de cargos de comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público” (BRASIL, 1940). Neste sentido, existem duas correntes relacionadas ao disposto acima. A corrente restritiva sustenta que para a incidência do aumento de pena consideram-se agente público os entes descritos no artigo supracitado, excluindo os prestadores de serviços das entidades mencionadas que não tenham cargo de direção, como se somente os dirigentes estivessem condicionados ao artigo 327, § 2º; enquanto a corrente ampliativa alcança todos os servidores ou empregados das pessoas jurídicas previstas no artigo supracitado, estando ou não ocupantes de cargos em comissão ou de direção ou assessoramento (CAPEZ, 2019, p. 468-469).
O alcance da equiparação prevista no artigo 327, § 1º do Código Penal segue a mesma lógica semelhante da prevista para o artigo 327, § 2º; porém, discute-se se esta é inerente somente aos casos em que o indivíduo seja o autor do crime contra a administração pública, ou se também pode ser válida caso o indivíduo figure como sujeito passivo do delito. Neste contexto, a teoria restritiva restringe somente ao sujeito ativo a possibilidade de majoração da pena, identificando-se como corrente dominante na doutrina, enquanto na corrente extensiva a equiparação se estende tanto ao sujeito ativo quanto ao sujeito passivo do delito (MASSON, 2020, p. 558). Assim sendo, pronunciou-se o Superior Tribunal de Justiça da seguinte maneira: “A teor do disposto no art. 327 do Código Penal, considera-se para fins penais, o estagiário de autarquia funcionário público, seja como sujeito ativo ou passivo do crime” (HC 52.989/AC, rel. Min. Félix Fischer, 5.ª Turma, j. 23.05.2006).
O Supremo Tribunal Federal proferiu a seguinte decisão: “O artigo 327, §1º do Código Penal equipara a funcionário público servidor de sociedade de economia mista. Essa equiparação não tem em vista os efeitos penais somente com relação ao sujeito ativo do crime, mas abarca também o sujeito passivo (HC 79.823/RJ, rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma, j. 28.03.2000).
Neste sentido, em sede de Embargos de Declaração no Recurso Ordinário em Habeas Corpus, o relator Ministro Gilmar Mendes proferiu o seguinte entendimento em seu voto, seguido por unanimidade no plenário: “A inserção do servidor público no quadro estrutural do Estado deve e pode ser considerada no juízo de culpabilidade. Afinal, tratando-se de crime contra a Administração Pública, penso que não é possível cogitar do universo de servidores como sendo realidade jurídica única” (STF. RHC 117.488 AdR/RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 01.10. 2013).
A corrente ampliativa é a mais utilizada pela jurisprudência, haja vista o conceito de funcionário público que para o Direito Penal é equivalente a agente público. A causa da majoração da pena em caso de crime contra a administração pública cometido por funcionário público, por sua vez, se fundamenta no fato de o princípio da moralidade administrativa se dar pela previsão de dever que a Constituição faz recair sobre o administrador, devendo este, portanto, demonstrar que sua atuação não ofende a moralidade administrativa, tratando-se então de um princípio constitucional negativo, pois verifica não a conduta daquilo que se considera moral, mas sim a não conduta daquilo que se considera imoral (BITENCOURT, 2019, p. 56).
A ação penal nos crimes contra a administração pública é pública incondicionada, independentemente de sua natureza culposa ou dolosa. Nos crimes funcionais previstos nos artigos 312 a 326 do Código Penal sofre aplicação do procedimento especial previsto no artigo 514 do Código de Processo Penal. Anteriormente, o excesso de exação e o contrabando ou descaminho não eram julgados com base no procedimento especial, visto que o artigo 323, I do CPP prescrevia que crimes punidos com pena de reclusão superior a dois anos eram inafiançáveis. Todavia, com o advento da Lei 12.403/2011, que modificou o instituto da prisão e da liberdade provisória, os dois crimes acima passaram a ser afiançáveis e sujeitos ao procedimento especial (CAPEZ, 2019, p. 469).
Ademais, condenação criminal acarreta diversos efeitos penais e extrapenais, este último devendo ser especificado na sentença. O art. 92 do CP prevê a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo, cabível quando “a pena do agente for igual ou superior a um ano, em crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a administração pública; cabível também quando a pena aplicada for superior a quatro anos, qualquer que seja a infração penal” (BRASIL, 1940). Todavia, trata-se de efeito permanente, isto é, o agente, além de perder o cargo ou função, torna-se incapacitado para o exercício de outro cargo ou função pública, podendo readquirir esta capacidade somente por meio da reabilitação prevista nos artigos 93 a 95 do CP, mas sem ocupar o cargo ou função que ocupava anteriormente (ESTEFAM, 2019, p. 544).
3. A Corrupção e os Crimes de Maior Incidência Contra a Administração Pública
A corrupção é a venalidade no desempenho da função pública, é aquilo que não se caracteriza como parte essencial de nenhum sistema, regime ou forma de governo, é aquilo que advém da imoralidade e da desordem dos costumes, do sentimento, da impunidade e da cobiça materialista. A corrupção esteve presente na humanidade em todas as épocas. Na Roma antiga a Lei das XII Tábuas reprimia com pena de morte os magistrados que recebessem pecúnia em troca de sentenças vantajosas aos pagadores. No Brasil o crime foi tipificado primeiramente no Código Penal de 1830, que distinguia a peita (art. 130), na qual a corrupção se materializava por meio do dinheiro ou qualquer outro donativo; e o suborno (art. 133), isto é, a corrupção por intermédio da influência. Poucas foram as mudanças no Código Penal de 1890, mas coube ao Código Penal de 1940, nos moldes do Código Suíço, disciplinar a corrupção ativa e passiva em dispositivos e capítulos distintos, rompendo com a bilateralidade obrigatória desta infração penal (BITENCOURT, 2019, p. 110-111).
O crime de corrupção pode ser de natureza passiva (quando envolve conduta de funcionário público corrompido – artigo 317 do CP) e ativa (inerente à conduta do corruptor – art. 333 do CP). Essa nova visão rompeu com a teoria unitária ou monista prevista no art. 29 do CP que aduz que “quem, de qualquer modo concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade” (BRASIL, 1940); neste sentido, abriu-se margem para uma exceção pluralista (MASSON, 2020, p. 621).
O bem jurídico tutelado pelo Código Penal neste caso é a Administração Pública no que se refere à probidade dos agentes públicos, enquanto o objeto material é a vantagem indevida. Mas, dentre as espécies citadas acima de corrupção, existem, no âmbito do funcionalismo público, quatro espécies de corrupção passiva; na corrupção passiva própria e imprópria o fator de diferenciação é a licitude ou ilicitude do ato funcional sobre o qual decai a venalidade do agente, em que na própria o funcionário público intermedeia o ato ilícito, enquanto que na imprópria o funcionário público intermedeia a transação por meio de ato público lícito; já na corrupção passiva antecedente ou subsequente o critério de diferenciação é inerente ao momento da negociação da transação indevida, isto é, na antecedente a vantagem indevida é entregue no acordo de um ato comissivo ou omissivo futuro do agente público, enquanto que na subsequente a vantagem indevida é entregue após ato comissivo ou omissivo passado do agente público (MASSON, 2020, p. 622).
Ao contrário da corrupção ativa, o sujeito do crime na corrupção passiva só pode ser funcionário público; todavia, para ser considerado ativo o sujeito não necessariamente precisa estar no exercício da função, desde que este se utilize da administração pública para praticar o crime, mesmo que seja extraneus, isto é, que se passe por particular ou que realize o crime em outra repartição pública. Já o sujeito passivo do crime de corrupção é sempre a administração pública (BITENCOURT, 2019, p. 112).
A corrupção ativa é um crime de ação múltipla composto por três possíveis ações nucleares: solicitar, isto é, pedir, manifestar desejo de algo, desde que sem apresentar ameaça explícita ou implícita, ou seja, a vítima cede por própria vontade, não sendo necessário ato de terceiro para que a prática se configure, bastando a solicitação da vantagem indevida; receber e aceitar, obtendo a posse, isto é, neste caso a proposta parte da indivíduo externo à administração pública e o agente público aceita a vantagem indevida. Apenas aceitar a vantagem indevida neste caso não configura a prática do crime, o agente público deve recebê-la, ou seja, antes de se caracterizar a corrupção passiva neste caso, é necessária a configuração antecedente da corrupção ativa. Por fim, outra ação nuclear para configurar a corrupção passiva é a de aceitar a promessa de receber vantagem indevida, bastando que o funcionário público aceite o recebimento da vantagem, sem necessitar do devido recebimento desta para configurar o crime (CAPEZ, 2019, p. 513).
O art. 317, §2º do Código Penal oferece a modalidade privilegiada do crime de corrupção passiva, neste caso o agente público não visa para si a vantagem indevida, mas cede em virtude da influência de quem lhe solicitou o criminoso comportamento.
O primeiro ilícito tipificado dentre os crimes contra a administração pública é o peculato, presente no artigo 312 do Código Penal. O artigo citado apresenta a seguinte definição: “Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio” (BRASIL, 1940). O parágrafo primeiro dispõe que aquele funcionário público que concorre no crime sofrerá a aplicação da mesma pena aplicada ao agente principal, que neste caso varia de dois a doze anos de reclusão, e multa. Neste crime também existe a modalidade culposa prevista no parágrafo segundo, sofrendo o funcionário a aplicação de uma pena menor, que varia de três meses a um ano de detenção.
O crime de peculato é considerado grave. Na modalidade culposa, porém, se houver reparação do dano causado ao erário antes da sentença irrecorrível, extingue-se a punibilidade, enquanto que se o dano for reparado posteriormente à sentença irrecorrível, reduz-se a pena pela metade, visto o disposto no parágrafo terceiro do artigo 312 do CP. O Código prevê quatro espécies de peculato: peculato apropriação, previsto na primeira parte do caput do art. 312; peculato desvio, presente no final do caput do mesmo artigo; peculato furto, presente no parágrafo primeiro e, por fim, peculato culposo, presente no parágrafo segundo (MASSON, 2020, p. 565).
Existem três requisitos exigidos para a configuração do peculato: posse ilícita e ilegítima; inversão do ânimo da posse; posse decorrente de cargo público. No que se refere à inversão do ânimo da posse, esta pode se dar de duas maneiras: mediante apropriação propriamente dita, onde o agente público pratica ativamente atos de venda, desvio, doação, consumo, ocultação ou aluguel do bem; mediante negativa de restituição, isto é, quando o servidor se nega a devolver o bem ou dar-lhe destinação devida, situação esta que não admite a modalidade tentada (ESTEFAM, 2019, p. 549).
Ainda no universo do conceito de peculato, é necessária para a concretização da tipificação a anterior posse lícita ou legítima da coisa móvel pública, da qual o funcionário apropria-se indevidamente. Ademais, a posse que precede o crime deve ser exercida pelo agente em nome do poder público; a ausência da posse do bem alheio mediante agente público alteraria a tipicidade do crime para peculato-furto (art. 312, § 1º) ou simplesmente crime de furto (art. 155 do CP). Ademais, para se configurar peculato a posse do bem intermediada pelo agente público deve ocorrer em função do cargo público, não do exercício da função; ou seja, é necessário meramente que o agente público tenha disponibilidade física direta ou imediata do bem móvel público, não dispensando a disponibilidade jurídica, que significa a disponibilidade facultada legalmente ao agente pelo cargo desempenhado, isto é, poder de ordem para a obtenção de determinado bem público (BITENCOURT, 2019, p. 42-43).
São, portanto, cinco as modalidades de peculato. O peculato-apropriação ocorre quando o funcionário público se vale da posse legítima do bem possibilitada por seu exercício de função, isto é, em nome da administração pública, considerando-se como dono deste. O peculato desvio é, como o próprio nome sugere, a conduta de desviar o bem público de seu destino apropriado mediante vantagens do cargo público ocupado para proveito próprio ou alheio, ainda que o benefício seja meramente político (ESTEFAM, 2019, p. 551). O peculato furto, previsto no artigo 312, § 1º do CP, ocorre quando o funcionário público não tem posse sobre o objeto material, mas o subtrai ou concorre para que outrem o subtraia em proveito próprio ou alheio mediante vantagens proporcionadas pelo cargo público (BITENCOURT, 2019, p. 48). O peculato culposo está previsto no artigo 312, § 2º do CP. Esta modalidade é uma forma de fazer com que o funcionário público atue com a diligência que lhe é exigida de acordo com o princípio da moralidade da administração pública, isto é, é suficiente para fundamentar o peculato culposo a mera inobservância do agente público que, em razão desta, concorrer para que terceiro se aproprie de um bem cujo cuidado lhe era conferido (GRECO, 2019, p. 745).
A última modalidade de peculato é o peculato mediante erro de outrem, também conhecida como peculato estelionato, existindo três elementos que a caracterizam: a conduta de apropriar-se de dinheiro ou qualquer utilidade; o fato do bem ter sido recebido por erro de outrem e o fato de haver vantagens conferidas pelo cargo público. Em geral, o bem apropriado erroneamente deve ter sido recebido pelo agente público mediante erro de outrem, conduta tipificada no art. 313 do CP (GRECO, 2019, p. 749).
No caso de peculato mediante erro de outrem a ação penal é pública incondicionada, isto é, não exige manifestação do ofendido; ademais, a pena é de um a quatro anos de reclusão e multa. Esta modalidade também admite a suspensão condicional do processo em virtude de a pena mínima não ser superior a um ano nos moldes do art. 89 da Lei nº 9.099/95 (BITENCOURT, 2019, p. 65).
O crime de concussão está tipificado no art. 316 do CP e se baseia em “exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida. Pode-se dizer que concussão e corrupção passiva são delitos irmãos, com a fundamental diferença constatada no modo em que são praticados (GRECO, 2019, p. 774). O núcleo exigir utilizado no texto legal é empregado no sentido de ordenar ou impor. Hungria (1959, p. 361) expõe:
“Formulada diretamente, a viso aperto ou facie ad faciem, sob a ameaça explícita ou implícita de represálias (imediatas ou futuras), ou indiretamente, servindo-se o agente de interposta pessoa, ou de velada pressão, ou fazendo supor, com maliciosas ou falsas interpretações, ou capciosas sugestões a legitimidade da exigência. Não se faz mister a promessa de infligir um mal determinado: basta o temor genérico que a autoridade inspira. Segundo advertia Carrara, sempre concorre a influir sobre a vítima o metus publicae protestatis. Para que o receio seja incutido, não é necessário que o agente se ache na atualidade de exercício de função: não deixará de ocorrer ainda quando o agente se encontre licenciado ou até mesmo quando, embora já nomeado, ainda não haja assumido a função ou tomado posse do cargo. O que se faz indispensável é que a exigência se formule em razão da função. Cumpre que o agente proceda, franca ou tacitamente, em função de autoridade, invocando ou insinuando a sua qualidade.”
O sujeito ativo neste tipo de crime é o funcionário público, ainda que esteja de licença, férias, ou não tenha tomado posse após nomeação. Neste tipo penal admite-se o concurso de pessoas, pois, apesar de a condição de funcionário público ser elementar para a efetuação do crime, o texto penal admite a modalidade indireta, isto é, mediante intermediação de terceiros. Já o sujeito passivo é a administração pública, uma vez que houve ofensa aos princípios elencados no art. 37 da Constituição Federal, principalmente o da moralidade (CAPEZ, 2019, p. 507-508).
A consumação do crime de concussão se dá pela simples exigência do sujeito ativo, isto é, configura-se quando o sujeito passivo toma conhecimento da imposição. Logo, para consumar o crime não é necessária a efetivação do recebimento da vantagem indevida, mas somente a combinação do seu recebimento; neste caso a tentativa é teoricamente inadmissível, visto esta modalidade ser de crime unissubsistente, ou seja, de ato único, com a única exceção de, por exemplo, a correspondência que solicita a vantagem indevida ser interceptada pela autoridade policial antes de chegar ao destinatário, caso em que se pode caracterizar a tentativa de concussão (BITENCOURT, 2019, p. 105).
A concussão muito se confunde com a extorsão, chegando alguns doutrinadores a considerá-la uma forma especial de extorsão; todavia, o código penal prevê uma pena específica para ambos os crimes, afastando a possibilidade de serem um mesmo tipo penal. Ademais, a concussão se caracteriza pela exigência baseada na promessa de uma vantagem indevida mediante vantagens inerentes ao funcionário público, sem necessidade de violência ou grave ameaça, sendo a coação fundamentada meramente no complexo de poderes associados ao cargo público do sujeito ativo. Por seu turno, a extorsão é feita mediante violência ou grave ameaça (MASSON, 2020, p. 609). Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou: “Não basta ser o agente funcionário público e haver apregoado essa condição, com intuito de intimidar a vítima, para converter, em concussão, o crime de extorsão, quando obtida a vantagem por meio de constrangimento, exercido mediante grave ameaça” (HC 72.936, rel. Min. Octavio Gallotti, 1.ª Turma, j. 22.08.1995).
Na concussão a pena varia de dois a oito anos, e multa, enquanto a ação penal é de iniciativa pública e incondicionada. O processo segue o rito dos crimes funcionais, com necessidade de notificação do servidor acusado para apresentar defesa preliminar com fulcro nos arts. 513 a 518 do Código de Processo Penal, aplicando-se também as regras do procedimento comum ordinário oriundas dos arts. 395 a 405 do CPP (ESTEFAM, 2019, p. 584).
No que se refere ao excesso de exação, o conceito da palavra exação deriva do sentido de “cobrança rigorosa de impostos ou dívidas; pontualidade; exigência ou exatidão”; todavia, o conceito jurídico do crime está previsto no art. 316, § 1º do CP: “Se o funcionário público exige tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido, ou quando devido, emprega na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza” (BRASIL, 1940). Trata-se, conforme a doutrina, da concussão em sua forma clássica, subtendendo-se o abuso de autoridade (CAPEZ, 2019. p. 510).
O objeto material do excesso de exação é o tributo ou contribuição social, isto é, conforme o art. 3º do Código Tributário Nacional, “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada” (BRASIL, 1966). Já os núcleos que compõem o crime são dois: o de exigir tributo ou contribuição social indevido e o de empregar meio vexatório ou gravoso na cobrança, desautorizado por lei. Meio vexatório é o que desonra e humilha, enquanto meio gravoso é o que acarreta maiores despesas ao contribuinte. (MASSON, 2020, p. 617)
O § 2º do art. 316 do Código Penal determina a modalidade qualificada, dispondo o seguinte texto: “Se o funcionário desvia, em proveito próprio ou de outrem, o que recebeu indevidamente para recolher aos cofres públicos” (BRASIL, 1940). A modalidade em questão não se confunde com o crime de concussão previsto no caput do art. 316 do CP; percebe-se que está mais ligada ao §1º do art. 316, neste sentido, o agente público obriga, exige ou impõe o pagamento de determinado tributo ou contribuição social que, possivelmente, seria destinado aos cofres públicos, mas é desviado para benefício próprio do agente (GRECO, 2019, p. 779).
O crime de excesso de exação consuma-se com a simples exigência ou com a exigência mediante meio vexatório ou gravoso, pois a lei menciona somente o fato de exigir indevidamente e não de receber o que é indevidamente exigido. Ademais, a modalidade tentada sofre com o fato de este ser um crime de ato único, isto é, fica afastada a forma tentada de excesso de exação. Por fim, para o crime de excesso de exação são cominadas as penas de reclusão de três a oito anos e multa de acordo com o determinado pela Lei nº 8.137/90 (BRASIL, 1990).
O art. 319 do Código Penal tipifica prevaricação como sendo: “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal” (BRASIL, 1940). Prevaricação é a infidelidade ao dever de ofício, à função exercida, isto é, o descumprimento pelo funcionário público de suas obrigações e deveres profissionais em detrimento de interesses e sentimentos próprios, ato que afronta o princípio da impessoalidade previsto no art. 37 da Constituição Federal, cujo significado implica na máxima de que o agente deve “mover-se por padrões objetivos, e não por interesses ou inclinações particulares próprias ou alheias” (MASSON, 2020, p. 639).
O sujeito ativo se resume somente no funcionário público, como ocorre no crime de corrupção passiva, sendo indispensável que o agente se encontre no exercício de sua função e para a satisfação de interesse ou sentimento pessoal. Todavia, é permissivo que o agente público se consorcie com um agente externo no decorrer da prática do crime. Neste caso, o art. 29 do Código Penal autoriza esta abrangência desde que o agente externo tenha ciência da condição do agente público consorciado; o artigo em questão também permite que um funcionário público, agindo como particular, participe da prevaricação nas mesmas condições de um agente externo (BITENCOURT, 2019, p. 136-137).
O sujeito passivo do crime obviamente é o Estado, enquanto que o objeto material é o ato de ofício do agente público, nos termos do art. 319 do CP. No que se refere ao elemento subjetivo da prevaricação, este é o dolo, pois para caracterizar o crime é necessária uma vontade livre e consciente de retardar ou deixar de praticar ato de ofício de forma indevida ou praticá-lo com ofensa à disposição expressa em lei; caso a consciência de que o ato ou omissão são indevidos não exista, o fato será atípico. Exige-se também o elemento subjetivo consistente no interesse em satisfazer sentimento pessoal (CAPEZ, 2019, p. 534).
Na modalidade omissiva a consumação deste crime se dá com o decurso do prazo legal para a prática do ato de dever do agente público. Quanto à modalidade comissiva a realização se dá quando o ato é contrário à lei expressa; todavia, em ambas as formas, não importa se o sentimento ou interesse pessoal foi atendido, por isso a prevaricação é um crime formal ou de consumação antecipada. Ademais, caso o funcionário público ocupe cargo de direção, comissionado ou de assessoramento, a pena pode aumentar em um terço, o que está previsto no art. 327, § 2º do CP (ESTEFAM, 2019, p. 609-610).
A pena para este crime é de três meses a um ano de detenção, e multa, podendo ser a pena aumentada de um terço conforme o §2º do art. 327 do CP; ademais, a ação penal é de iniciativa pública incondicionada, competindo incialmente ao juizado especial criminal o processo e julgamento do delito em questão, visto que a pena máxima para este crime não ultrapassa o limite de dois anos imposto pelo art. 61 da Lei nº 9.099/1995, conforme alteração determinada pela Lei nº 11.313/2006 (GRECO, 2019, p. 803).
4. Aspectos Sociais, Jurídicos e Criminológicos do Fenômeno da Corrupção
Já dizia Montesquieu (1979 p. 54) que “A corrupção de cada governo começa quase sempre pela corrupção de seus princípios”. Neste diapasão, “uma vez que os princípios do governo foram corrompidos, as melhores leis tomam-se más e se voltam contra o Estado; quando os princípios estão sãos, as más leis têm o efeito das boas; a força do princípio carrega tudo” (MONTESQUIEU, 1979, p. 57).
A corrupção é produto do ser humano e seus meios sempre evoluem conforme a complexidade da sociedade aumenta, mas o fator principal para o fomento da corrupção é a ambição, que torna os homens cada vez mais distantes dos princípios que administram o modelo político, pois estes passam a preferir os interesses individuais em detrimento dos interesses públicos (ALVES, 2017, p. 205).
Já para Batista (2000, p. 6):
“A corrupção ou inclinação para ser corrupto ou corruptor, é um dos ingredientes da natureza humana, acionado pelo egoísmo que por sua vez, aciona a ambição, ambos são muito dinâmicos. Logo, a corrupção e seus terríveis efeitos também o são. Aliás, tudo no universo é dinâmico, nada é estático; cujo comportamento pode aumentar ou diminuir, segsundo as instituições e as regras estatais; partindo do princípio de que o Estado representa as instituições de forma globalizada. Daí a importância do Estado ser forte. Haja vista que nos países em que o Estado é estruturado com elevados conceitos éticos e poder de polícia sempre vigilante, a corrupção é mínima e o espírito de cidadania desses povos é mais voltado CORRUPÇÃO NO BRASIL para o bem comum e para o saber. Por conseguinte, com a devida venia a Jean-Jacques Rousseau, a sociedade ou o Estado, quando bons, não corrompem o homem, ao contrário: o engrandece.”
De acordo com Rocha (2018, p. 38-39), a corrupção significa um “deslize moral de interesse público”, admitindo uma forma clássica e formas não clássicas de manifestação. A forma clássica se caracterizaria por uma relação binária entre os polos corruptor e corrupto. Já as formas não clássicas de corrupção apareceriam na corrupção espontânea e na corrupção difusa. Na primeira, corruptor e corrupto se situam na mesma pessoa, com o corrupto corrompendo-se a si próprio. Já a segunda refere-se à corrupção dos costumes, corrupção da sociedade ou corrupção dos valores.
A corrupção é fato no Brasil desde seus primórdios[3]. À época da colonização portuguesa, os valores egoístas da cultura cidadã da metrópole, fixados na imagem do rei e dos súditos da coroa, foram reproduzidos no cenário brasileiro[4]. Os valores monárquicos se resumiam na “aversão ao trabalho sistemático, o gosto pela luxúria, o desejo intenso pelo desfrute dos bens, a degradação dos costumes e a impunidade dos crimes”, o que levou a corrupção em solo brasileiro a tornar-se decorrente da “moral predatória dominante no Estado patrimonial, que, conscientemente ou não, formatou um conjunto de padrões sociopolíticos de comportamento ético adverso às formas racionais mais modernas de trato da república” (SILVA, 2016).
No trato da historicidade da tutela da administração pública pelo Direito Penal, eis que sua liberal clássica tinha como objetivo tutelar tão somente os bens jurídicos essenciais, quais sejam: vida, liberdade e segurança pessoal, dentre outros. Atualmente, a política criminal brasileira manifesta-se contrariamente a esse pensamento. Percebe-se uma expansão e administrativização das tutelas do Direito Penal. Tal administrativização não é uma novidade nos estudos da Ciência Criminal, pois cada vez mais o Direito Penal vem considerando os conflitos do mundo pós-moderno, trazendo ao seu bojo condutas que caberiam ser tuteladas por outras áreas do Direito, tais como o Direito Administrativo e o Direito Civil (SILVA, 2016).
No que se refere ao Brasil, o país alcançou no ano de 2019 o pior patamar histórico do Índice de percepção da corrupção, com somente 35 pontos. Esta nota reflete o valor mais baixo desde 2012, ano em que o índice passou por alteração em sua metodologia, adotando a leitura em série histórica. A escala do índice de percepção da corrupção vai de 0 a 100; quanto mais próximo de zero é a média do país, significa que este é percebido como altamente corrupto, enquanto mais próxima de 100 a média, significa que o país é percebido como altamente íntegro. Com este resultado, o país desceu uma posição em um ranking de 180 países e territórios, caindo para a 106º colocação. Este é o quinto decréscimo consecutivo do Brasil no IPC, o que fez com que o país atingisse sua pior colocação na série histórica do índice; somente em 2018 o Brasil já havia perdido dois pontos e caído nove posições (CORRUPTION PERCEPTION INDEX, 2019).
“Não há, no âmbito do pensamento social e político brasileiro, uma teoria da corrupção no Brasil. Pode-se dizer, grosso modo, que esse tema foi deixado de lado nas reflexões acadêmicas e teóricas sobre o Brasil, não havendo, nesse sentido, uma abordagem que dê conta do problema da corrupção no âmbito da política, da economia, da sociedade e da cultura de forma abrangente. Os estudos sobre corrupção no Brasil são recentes, realizados a partir de abordagens comparativas e institucionalistas, sem a pretensão de uma teoria geral, de cunho interpretativo.” (FILGUEIRAS, 2008, p. 3).
Percebe-se no Brasil uma relativa cultura de tolerância à corrupção[5], “uma cultura que vê com olhos lenientes a trapaça em favor do interesse próprio e a inobservância das regras em qualquer plano, e que provavelmente se articula com nossa herança do escravismo, elitismo e desigualdade” (REIS, 2008, p. 329). Neste sentido, Miranda (2016, p. 2) aponta que:
“É possível verificar o limite entre a política e a economia em estudos de corrupção pode ser es, pois a corrupção causa efeitos em ambas as áreas. Estudos como os de Mauro (1995; 1998) demonstram que altos níveis de corrupção estão associados com baixos níveis de investimento e mesmo onde a corrupção e o crescimento econômico coexistem, as propinas introduzem custos e distorções. A corrupção reduz o investimento total e limita o Foreing Direct Investment (FDI), mas encoraja o investimento público excessivo em infraestrutura.”
No que se refere às ações de combate à corrupção no Brasil, as medidas a serem deliberadas no Congresso Nacional que instituem reformas estruturais anticorrupção devem abordar, de acordo com especialistas, os seguintes temas estratégicos elencados no Corruption perception index: o Poder Judiciário e o Ministério Público devem explorar medidas de combate à ineficiência administrativa de suas próprias instituições, de forma a promover em maior grau a responsabilização de seus membros por mau desempenho e corrupção; também é alvo de crítica pelos especialistas o excesso de privilégios, como férias abusivas e remunerações exorbitantes, o que pode resultar na prestação jurisdicional ineficiente, morosa e seletiva (CORRUPTION PERCEPTION INDEX, 2019).
A Justiça Eleitoral e os órgãos de controle devem atuar em coordenação nas eleições municipais de 2020, buscando enfrentar o financiamento ilícito de campanhas, compra de votos, o desvio de fundos partidários, a inclusão de candidaturas laranjas e modalidades de manipulação virtual, como o uso de robôs e disseminação de fakenews. Ademais, os especialistas também recomendam medidas que visem o afastamento de membros do Governo Federal investigados por corrupção (CORRUPTION PERCEPTION INDEX, 2019).
Quanto ao setor privado, recomendam os especialistas a promoção de ações coletivas para “o estabelecimento de códigos de conduta setoriais, pactos de integridade, inserção de valores éticos nos processos de capacitação de mão-de-obra e fomento ao compliance nas cadeias de suprimento, incluindo pequenas e médias empresas.” (CORRUPTION PERCEPTION INDEX, 2019).
5. A (In)Constitucionalidade da Vedação à Progressão de Regime nos Crimes Contra a Administração Pública
O art. 33, §4º do Código Penal institui que aqueles que cumprem pena privativa de liberdade por crime contra a administração pública terão por direito a progressão de regime somente quando repararem em sua totalidade os danos causados ao erário com os devidos acréscimos legais incidentes; ademais, para obter a progressão de regime o indivíduo deve estar em crédito com os requisitos gerais descritos no artigo 112 da Lei de Execuções Penais (ESTEFAM, 2019, p. 539).
Existe uma polêmica referente à hipótese de aplicação do princípio da insignificância ou bagatela em crimes contra a administração pública, entendendo-se que a possibilidade de aplicação do mencionado princípio a este tipo penal versa sobre a ausência de razoabilidade no caso concreto, pois, “se um funcionário público subtrair algo de pouco valor como uma caixa de clips, ou mesmo algumas folhas de papel para rascunho não seria razoável puni-lo com uma pena de peculato-furto” isto é, uma pena que varia entre dois a doze anos de reclusão (GRECO, 2019, p. 733).
Ocorre que a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial 765.216/RS, de relatoria do Ministro Joel Ilan Paciornick, entendeu que: “É pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de não ser possível a aplicação do princípio da insignificância aos delitos contra a Administração Pública, pois o bem jurídico tutelado pelo tipo penal incriminador é a moralidade administrativa, insuscetível de valoração econômica” (GRECO, 2019, p. 733). Ou seja, o STJ afasta a possibilidade de reconhecimento do princípio da insignificância nos crimes contra a administração pública.
Todavia, no julgamento do Habeas Corpus 137.595, de relatoria do Ministro Roberto Barroso, em parecer datado de 22/05/2018, a 1ª Turma entendeu que:
“Em matéria de aplicação do princípio da insignificância ao delito de descaminho, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) adota como fundamento para avaliar a tipicidade da conduta o quantum objetivamente estipulado como parâmetro para atuação do Estado em matéria de execução fiscal: o valor do tributo devido. Precedentes. Para aferição do requisito objetivo, assim como estabelecido na legislação fiscal, o STF considera a soma dos débitos consolidados. Nessas condições, a ausência de comprovação inequívoca de que o paciente possui outros débitos fiscais inviabiliza, neste habeas corpus, o pronto reconhecimento da atipicidade penal (HC 114.675, Rel Min. Ricardo Lewandowski; e HC 115.331, Rel. Min. Gilmar Mendes). Ainda que fosse possível reconhecer o princípio da insignificância penal quanto ao tributo de que tratam estes autos, as peças que instruem o processo não permitem aferir eventual habitualidade delitiva ou mesmo possível acúmulo de débitos que superem o parâmetro descrito na Lei nº 10.522/2002. Precedentes” (STF, HC 137.595 AgR/SP, Rel. Min Roberto Barroso, 1ª T., DJe 22/05/2018).”
Demonstrando entendimento diverso do votado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial 765.216/RS, de relatoria do Ministro Joel Ilan Paciornick, o Supremo Tribunal Federal entendeu pela possibilidade da aplicação do princípio da insignificância com fulcro na Lei citada na ementa acima:
“No crime de descaminho, o princípio da insignificância deve ser aplicado quando o valor do tributo sonegado for inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), limite estabelecido pelo art. 20 da Lei nº 10.522/2002, na redação conferida pela Lei nº 11.033/2004, para o arquivamento de execuções fiscais. Todavia, ainda que o quantum do tributo não recolhido aos cofres públicos seja inferior a este patamar, a contumácia na prática delitiva obsta aplicação daquele princípio.” (STF, HC 115.154/ RS, Rel. Min Luiz Fux, 1ª T., DJe 25/06/2013).”
Em semelhante decisão proferida no ano de 2018, o STF entendeu pela manutenção do princípio da insignificância no crime de descaminho, emanando a seguinte tese:
“No crime de descaminho, o Supremo Tribunal Federal tem considerado para a avaliação da insignificância, o patamar de R$20.000,00, previsto no art. 20 da Lei nº 10.522/2002 e atualizado pelas Portarias nº 75 e nº 130/2012 do Ministério da Fazenda. Na espécie, como a soma dos tributos que deixaram de ser recolhidos perfaz a quantia de R$ 19.750,41 e o paciente, segundo os autos, não responde a outros procedimentos administrativos fiscais ou processos criminais, é de se afastar a tipicidade material do delito de descaminho com base no princípio da insignificância. (STF, HC 137595 AgR/SP Rel. Min. Dias Toffoli 2ª T., DJe 07/05/2018).”
Portanto, a tese defendida pelo Superior Tribunal de Justiça, ainda vigente desde o julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial 765.216/RS (relatoria do Ministro Joel Ilan Paciornick), de “não ser possível a aplicação do princípio da insignificância aos delitos contra a Administração Pública, pois o bem jurídico tutelado pelo tipo penal incriminador é a moralidade administrativa, insuscetível de valoração econômica”, foi totalmente vergastada pelas jurisprudências do STF colacionadas acima, haja vista que os ministros votaram pela manutenção do princípio da insignificância mediante valoração econômica em crime que atenta contra a moralidade administrativa, isto é, o crime de descaminho.
Nota-se, portanto, uma marcante insegurança jurídica, já que o princípio da insignificância é adotado por uma Corte, mas não por outra Corte, ou é adotado para determinado crime contra a administração pública, mas não para outro crime do mesmo título. De fato, verifica-se a necessidade de legislação acerca da possibilidade de aplicação do princípio da insignificância a crimes contra a administração pública, ainda que isto se resuma a um teto de dano ao erário público, variável de acordo com a modalidade de crime cometido. Com efeito, a jurisprudência pátria externa algumas contradições ao não aplicar este princípio a certos casos, cerceando inclusive a possibilidade de progressão de regime aos que cometeram crimes contra a administração pública e, muitas vezes, não amparados pelo princípio da insignificância, quando o próprio Supremo Tribunal Federal considera inconstitucional a vedação do direito de progressão de regime no âmbito dos crimes hediondos, conforme se verificou na decisão do HC 82.959 proferida pelo STF:
“O Tribunal, por maioria, deferiu o pedido de habeas corpus e declarou, “incidenter tantum”, a inconstitucionalidade do § 1º do artigo 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, nos termos do voto do relator, vencidos os Senhores Ministros Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie, Celso de Mello e Presidente (Ministro Nelson Jobim). O Tribunal, por votação unânime, explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará consequências jurídicas com relação às penas já extintas nesta data, pois esta decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão. Votou o Presidente. Plenário, 23.02.2006.”
Vale ressaltar que as jurisprudências colacionadas tratam de controvérsias relativas ao artigo 33, §4º do Código Penal, pois apesar de o citado artigo se referir à impossibilidade de progressão de regime consoante os crimes cometidos contra a Administração Pública, este instituto está intimamente ligado ao princípio da insignificância. Conforme se verifica nos informativos do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Alexandre de Moraes defendeu em dois julgados a tese de que o princípio da insignificância influi (quando não couber possibilidade de afastamento da tipicidade material, em virtude da habitualidade do agente na prática de crimes), na produção de efeitos em relação à fixação do regime inicial aberto ou à admissão da substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
Neste sentido, o informativo 938 traz o seguinte julgado:
“A Primeira Turma, por maioria, concedeu, de ofício, a ordem de habeas corpus para fixar o regime inicial aberto em favor de condenado pelo furto de duas peças de roupa avaliadas em R$ 130,00. Após ter sido absolvido pelo juízo de primeiro grau ante o princípio da insignificância, o paciente foi condenado pelo tribunal de justiça à pena de um ano e nove meses de reclusão em regime inicial semiaberto. A corte de origem levou em consideração os maus antecedentes, como circunstância judicial desfavorável, e a reincidência para afastar a aplicação do princípio da insignificância. A Turma rememorou que o Plenário, ao reconhecer a possibilidade de afastamento do princípio da insignificância ante a reincidência, aquiesceu não haver impedimento para a fixação do regime aberto na hipótese de aplicação do referido princípio. Ressaltou que, no caso concreto, houve até mesmo a pronta recuperação da mercadoria furtada. Vencido o ministro Marco Aurélio (relator), que indeferiu a ordem. Pontuou que os maus antecedentes e a reincidência afastam a fixação do regime aberto, a teor do art. 155, § 2º, do Código Penal (CP) (1). Vencida, também, a ministra Rosa Weber, que concedeu a ordem de ofício para reconhecer a atipicidade da conduta em face do princípio da insignificância. (1) CP: “Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa. (…) § 2º Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.” (HC 135164/MT, rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ ac. Min. Alexandre de Moraes, julgamento em 23.4.2019. (HC-135164)”
Outra tese corrobora para a relação entre o princípio da insignificância e o instituto da progressão de regime, julgada pelo STF no HC 137217/MG, conforme se verifica no informativo 913 da Suprema Corte:
“A Primeira Turma, por maioria e de ofício, concedeu a ordem de “habeas corpus” para determinar a substituição da pena de condenado por crime de furto simples por medida restritiva de direito a serem fixadas pelo juízo de origem. O paciente foi absolvido da prática do delito previsto no art. 155, “caput” (1), do Código Penal (CP) — furto simples —, combinado com o art. 14, II (2), CP — tentativa. Foi considerada a atipicidade material da conduta em razão do ínfimo valor da coisa subtraída — quatro frascos de xampu, no valor de R$ 31,20 — e a restituição dos bens à vítima. Provida a apelação interposta pelo Ministério Público, o paciente foi condenado a oito meses de reclusão, em regime semiaberto, e ao pagamento de seis dias-multa. A defesa pleiteou a aplicação do princípio da insignificância, tendo em vista a inexpressividade da lesão e o pequeno valor da coisa, a demonstrar a atipicidade material. Prevaleceu o voto médio proferido pelo ministro Alexandre de Moraes no sentido da inaplicabilidade do referido princípio. No entanto, concedeu a ordem de ofício, para que seja substituída a pena aplicada por medida restritiva de direito. Registrou que, em pequenas comunidades, a substituição da pena privativa de liberdade por medida restritiva de direito, a permitir que as pessoas vejam onde está sendo cumprida, tem valor simbólico e pedagógico maior do que a fixação do regime semiaberto ou aberto. Vencido o ministro Marco Aurélio, que denegou a ordem, por entender que não há ilegalidade na decisão do órgão revisor em substituir a absolvição pela pena de oito meses de reclusão em regime semiaberto. Vencidos, também, o ministro Roberto Barroso e a ministra Rosa Weber, os quais concederam a ordem para reestabelecer a sentença absolutória de primeiro grau. Vencido, em parte, o ministro Luiz Fux, que concedeu a ordem para fixar o regime aberto ao cumprimento de dois meses de pena. (1) CP: “Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.” (2) CP: “Art. 14. Diz-se o crime: (…) II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.” HC 137217/MG, rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ ac. Min. Alexandre de Moraes, julgamento em 28.8.2018. (HC-137217)”
Percebe-se, portanto, que se houver uma inconstitucionalidade relativa ao artigo 33, §4º por não permitir a progressão de regime aos que cometem crimes contra a Administração Pública, esta estaria também atrelada à impossibilidade do princípio da insignificância nesta modalidade; portanto, para Greco (2019, p. 733), o agente público vê-se prejudicado por não ser agraciado por uma jurisdição que entoe o princípio da razoabilidade ante os crimes cometidos contra a Administração Pública em detrimento do artigo supracitado do Código Penal.
Claras são, portanto, as contradições no cenário jurisprudencial brasileiro no que se refere à tríplice relação entre moralidade da Administração Pública, princípio da insignificância e progressão de regime, pois crimes hediondos que não permitem aplicação do princípio da insignificância permitem, no entanto, a progressão de regime, conforme se verifica no julgado do STF no HC 82.959, enquanto que crimes que ferem a Administração Pública quando cometidos por particulares, como o de descaminho, permitem a aplicação do princípio da insignificância, conforme o julgado do STF no HC 137595, que inclusive contraria a tese do STJ no Agravo Regimental no Recurso Especial 765.216/RS, o que coloca o agente público em severa desvantagem.
Reside, em igual medida, polêmica doutrinária relativa ao artigo 33, §4 do Código Penal. De acordo com Masson (2020, p. 622), o princípio da insignificância não é aplicável aos crimes contra a administração pública, inclusive na corrupção passiva. Neste sentido, a Súmula 599 do Superior Tribunal de Justiça dispõe: “o princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a administração pública”. Todavia, Greco (2019, p. 792) manifesta que ao delito de corrupção passiva “poderá ser aplicado o raciocínio correspondente ao princípio da insignificância, excluindo-se da figura típica constante do art. 317 do CP aquelas vantagens de valor irrisório”. Está-se, neste caso, diante de posição doutrinária em desacordo com a citada jurisprudência.
A tese de Greco revela-se plausível ante os julgados colacionados do Supremo Tribunal Federal, sustentando haver controvérsias quanto à possibilidade de aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra a Administração Pública, de tal modo a consagrar-se o princípio da razoabilidade. De acordo com o citado autor: “com a devida vênia não podemos fechar as portas do princípio simplesmente por estarmos diante de crimes dessa natureza”, (GRECO, 2019, p. 733).
Por fim, o princípio da insignificância possui preponderante papel na jurisdição de um país. Roxin (2002, p. 73-74), em sua obra, Politica criminal y sistema del derecho penal, sustenta que o princípio supracitado, além de permitir a exclusão de crimes de pouca importância, também “se lograria una mejor interpretación, una importante aportación para reducir la criminalidade en nuestro país”, estando intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, preconizado no artigo 1º, III da Constituição Federal.
Considerações Finais
Com fulcro nas doutrinas e jurisprudências discorridas, percebem-se controvérsias no tocante à possibilidade de progressão de regime em crimes contra a administração pública. A jurisprudência muitas vezes contraria a tese do STF verificada no julgamento do HC 115.154, que possibilitou ao crime de descaminho a aplicação do princípio da insignificância, não se aplicando a mesma tese aos crimes contra a Administração Pública quando praticados por agentes públicos.
A contradição também restou evidente ante o princípio que veste o Código Penal como ultima ratio, pois até em crimes hediondos há a possibilidade de progressão de regime, conforme confere o julgado do STF no HC 82.959, enquanto que para crimes de natureza hedionda não há sequer a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância; todavia, o agente público que lesa o erário de maneira ínfima, além de pagar sua pena, não tem possibilidade de desfrutar da progressão de regime, como se não fosse igual aos demais perante a lei, conforme preconiza o artigo 5º, caput, pelo simples fato de ser agente público.
Logo, percebe-se que não há relação entre o princípio da insignificância e o princípio da moralidade pública, bem como com a possibilidade de progressão de regime, pois tanto aqueles que ferem a Administração Pública na condição de particulares quanto aqueles que cometem crimes hediondos usufruem respectivamente dos institutos do princípio da insignificância e da progressão de regime, conforme se verifica nas decisões dos Habeas Corpus supracitados e transcritas no capítulo anterior. Portanto, se a moralidade da administração pública e a natureza gravosa do crime hediondo não são suficientes para impedir o benefício do agente particular ante o princípio da insignificância ou da progressão de regime, a única razão para a tratativa diferente do agente público é o fato de este ser revestido de confiança e ser extensão da própria administração.
Neste sentido, é possível que a legislação brasileira permita a progressão de regime para um indivíduo que cometeu estupro, mas não a permita para um agente público que cometeu peculato, ainda que tenha lesado infimamente a Administração Pública; bem como permite que o particular que tenha cometido o crime de descaminho contra a Administração Pública usufrua do princípio da insignificância, enquanto que o agente público não usufrui do mesmo princípio, ainda que tenha lesado o erário público em grau muito menor que o agente particular nos moldes do julgado pelo STF no HC 115.154.
Resta evidente que o único fator que afasta o agente público do princípio da insignificância e da moralidade poderia ser somente o fato de este ser uma extensão da Administração Pública e revestido, por consequência, da confiança desta. Todavia, ainda não há relação entre a confiança atribuída ao agente público e tratativa severa em seu julgamento, pois nos crimes contra a Administração Pública a majorante da pena é sempre enfatizada pela condição de confiança ao cargo do agente, o que reflete apenas no aumento da pena, mas não justifica o afastamento do princípio da insignificância e do benefício da progressão de regime. Portanto, não há na lei penal e constitucional norma que legitime a tratativa demasiadamente severa aos que cometem crimes tipificados no título XI, capítulo I do Código Penal brasileiro.
A posição jurisdicional vergastada atenta contra o princípio da razoabilidade, previsto no artigo 59 do Código Penal; contra o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal; bem como contra direitos e garantias fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição Federal.
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[1] Bacharel do Curso de Direito da Universidade Federal do Tocantins. E-mail: jpclaret1994@gmail.com.
[2] Doutor e Mestre em Direito UFBA. Prof. Associado Direito Penal – UFT. Prof. Adjunto Direito Penal – Unitins. Prof. Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humano UFT/ESMAT. Membro do Comitê Internacional de Penalistas Francófonos e da Associação Internacional de Direito Penal. E-mail: tarsisbarreto@uft.edu.br.
[3] Tal afirmação é explorada por Oliveira (2019, p. 83-84), evidenciando que: “Bien qu’il s’agisse d’une affirmation sujette à caution, l’on a attribué à la colonisation portugaise l’origine de cette corruption accentuée au Brésil. L’évidence en résiderait dans la structure pyramidale qui a assuré les fondements de la société brésilienne pendant plus de 3 siècles, dont le modèle colonial a correspondu à la dénommée société du sucre. Au sommet de cette pyramide se trouvait l’aristocratie, formée par les planteurs (producteurs de sucre), qui exerçaient de fait, le pouvoir absolu sur le plan des décisions administratives et politiques du Brésil colonial. Au centre de la pyramide se trouvaient les travailleurs libres (artisans, commerçants, petits agriculteurs, etc.), et, à la base de la pyramide les esclaves. D’après ce que certains historiens ont mis en évidence, c’est dans cette situation pratiquement immuable de stratification sociale que les Brésiliens ont commencé à développer, sur le plan des relations sociales, ce que l’on a coutume d’appeler le « jeitinho brasileiro » [système de brésilien]. Ce jeitinho brasileiro correspondrait à des manières de contourner les règles sociales de sorte à garantir, face à une situation bloquée et immutable d’exclusion sociale, le succès et l’obtention d’avantages personnels sur le plan des rapports avec les autres individus et dans la conduite de la vie publique, donnant ainsi origine à de menus actes de corruption”.
[4] A este respeito, Oliveira (2018a, p. 7) aponta que “sob o viés histórico e sociológico a estrutura legada aos brasileiros no processo português de colonização teria repercutido em nosso modo de vida formas disfarçadas de corrupção, representando comportamentos sociais desviantes de pretendidos valores éticos, traduzíveis no famigerado jeitinho brasileiro”.
[5] Consoante dispõe Oliveira (2018b, p. 9), “aliada a isso estaria a dificuldade histórica do brasileiro de separação entre o público e o privado, pela indissociável visão do Estado como um prolongamento natural das relações familiares (herdadas da sociedade colonial), bem como a busca da vida pública desprovida do sentido de missão para com a coletividade, mas, do contrário, como oportunidade para o enriquecimento pessoal e aumento dos privilégios. Essas características estariam ainda visíveis no particular modo de vida brasileiro, marcado pelo isolacionismo e pela relativização dos valores em uma sociedade que nutre a ética da conveniência, em que se critica a corrupção do outro, enquanto se procurar legitimar ou justificar a própria, numa tentativa de normalização das violações éticas no convívio social”. Para maior conhecimento do tema, recomenda-se fortemente a leitura da obra Raízes do Brasil, de historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda.
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