Sumário: “1. Introdução; 2. O regime democrático: sua lógica histórica e jurídica; 3. A inconstitucionalidade por fraude no exercício da representação popular. A “compra” de apoio político e o suborno; 4. A natureza da inconstitucionalidade: formal; 5. Requisitos e instrumentos para o controle de constitucionalidade; 6. Possibilidade de investigação de fatos no controle concentrado; 7. Conclusões.”
1. Introdução
Após a ampla divulgação do chamado “escândalo do mensalão” alguns setores da imprensa divulgaram opiniões a respeito da repercussão da prática de suborno ao Parlamento em relação à validade das normas jurídicas por ele aprovadas. Alguns falaram a respeito da inconstitucionalidade da tributação dos inativos do serviço público, entre outros assuntos aprovados pela legislatura envolvida no esquema nacionalmente divulgado e conhecimento[1].
O tema é bastante interessante e rico de repercussões práticas, mas numa pesquisa preliminar nenhum material aprofundado e específico sobre o assunto foi encontrado em nossos estudos. Também é evidente que o tema não se resume ao escândalo em questão, já que o Poder Legislativo como um todo e em todos os níveis tem sido citado como palco de denúncias de corrupção, além evidentemente dos demais Poderes.
Como, todavia, seria possível, em termos jurídicos e processuais, o controle de uma norma aprovada numa situação como essa? Qual seria o parâmetro constitucional para o controle? De que tipo de inconstitucionalidade se cuida: formal ou material? Como ficaria a investigação de fatos em sede de controle concentrado? Como enfrentar as questões processuais que as características extremamente objetivas do controle abstrato de constitucionalidade acarreta?
O sentimento do homem médio diante da constatação da aprovação de uma norma por Parlamento subornado induvidosamente é pela conclusão de que a norma é inválida. Os mecanismos processuais e base jurídica para declarar tal inconstitucionalidade é que não são objeto de grandes estudos na doutrina consultada.
Sentimos, pois, que o estudo da questão da partir do controle abstrato de constitucionalidade, sistema que reputamos mais hábil e seguro para a análise da tese da invalidade da norma na hipótese em questão, o paralelo com o processo penal e mesmo a simetria do problema nos âmbitos estaduais e municipais mereciam uma análise, que ora nos propomos a fazer.
2. O regime democrático: sua lógica histórica e jurídica.
A história da democracia mundial está associada à luta contra o controle da classe dominante sobre o aparelho do Estado, seja controle econômico, político, étnico ou social.
Assim ocorreu na Inglaterra, onde surgiu o Parlamento contra o absolutismo monárquico; na França, onde a Revolução tirou do poder a monarquia que se aparelhou do Estado; na África do Sul, que hoje vive uma democracia racial e em diversos outros países.
No Brasil, a independência declarada em 1822 não veio acompanhada de um legítimo e realista modelo democrático. As origens coloniais amarraram a independência e trazem repercussões até hoje.
Inexistiu entre nós, na raiz do processo histórico da formação da nossa democracia, um poder político realmente oriundo do povo. Não houve na colonização no Brasil uma reunião de grupos familiares para construção de um país. O fim dos nossos colonizadores – ou da grande massa deles – era eminentemente extrativista e exploratório, com vista à satisfação da metrópole e especialmente de seus patrimônios próprios.
No início, o território nacional foi dividido em porções (capitanias hereditárias) entre “amigos” (homens bons) do Reino de Portugal. A conseqüência foi pouco eficiente, como se sabe.
Em seguida, veio o sistema de nomeação de Governadores-Gerais, que pouco diferenciava do modelo de capitanias e que era, no fundo, a realização do sistema feudal, onde o senhor feudal (Governador-Geral) exercia naquela porção territorial poderes legislativo, executivo e judiciário. Nesse sistema, porções territoriais eram entregues a um Governador-Geral que administrava à base de puro personalismo administrativo, como se fora sua própria Fazenda. O poder era exercido em seu próprio nome e interesse.
Nem a independência e nem mesmo a própria proclamação da República resolveram o problema da relação povo-poder e da autêntica legitimidade do Estado enquanto representação do poder popular. A instauração do regime republicano sobre a égide de um golpe militar e as práticas seguintes viciaram toda a República Velha, onde o autoritarismo e a descentralização do poder através de nomeação de membros da Guarda Nacional deu origem ao pior dos sistemas de dominação política já verificados: o coronelismo.
O Coronel era nomeado membro da Guarda Nacional e representante do Governo Central em determinado Município ou região, sendo, na prática, “o senhor da vida e da morte dos munícipes”. Seu poder era total, fazia as vezes de Delegado, Prefeito e Legislador, convivendo apenas com o controle de um Judiciário disperso e com dificuldades estruturais extremas, especialmente no interior dos Estados.
O professor José Afonso da Silva[2], citando Edgar Carone (A Primeira República, p. 103) diz que “o poder dos governadores, por sua vez, sustenta-se no coronelismo, fenômeno em que se transmudaram a fragmentação e a disseminação do poder durante a colônia, contido no Império pelo Poder Moderador. ‘O fenômeno do coronelismo tem suas leis próprias e funciona na base da coerção da força e da lei oral, bem como de favores e obrigações. Esta interdependência é fundamental: o coronel é aquele que protege, socorre, homizia e sustenta materialmente os seus agregados; por sua vez, exige deles a vida, a obediência e a fidelidade. É por isso que o coronelismo significa força política e força militar’.”
Essas e outras razões levaram ao fim da República Velha com a Revolução de 1930, seguindo a história brasileira ao longo do século XX os reflexos das ideologias e movimentos mundiais, com períodos de agitações sociais e políticas, seguidos de repressão, períodos de exceção e ditadura, nova redemocratização e, finalmente, o golpe militar de 1964.
Este último, por sua duração, truculência e pela forte repressão às liberdades democráticas, deixou marcas profundas na história política do país e os excessos da repressão e os mecanismos anti-democráticos adotados durante tal regime, tais como os aberrantes Atos Institucionais, censura, perseguições e tortura, formaram a reação democrática da sociedade expressa na Constituição de 1988.
A Constituição Federal de 1988 é diferente das demais e possui sim uma sólida origem democrática, eis que é fruto de lutas democráticas pela restauração da normalidade institucional, de movimentos como as “Diretas Já” e pela luta incessante de vários militantes, uns através do caminho da negociação política com os militares, outros até mesmo pela via da luta armada.
Não há dúvida de que a queda da Constituição de 1967 e a promulgação da Carta de Outubro, ocorreram devido a pressões populares, de diversos setores da vida nacional que não mais suportavam o regime ditatorial instaurado em 1964.
A razão de ser hoje do Estado brasileiro, da chamada “Nova República”, é o povo, narrando a atual Constituição já no parágrafo único do art. 1.º que “todo o poder emana do povo, que os exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
Estudando as raízes do conceito de Poder Político, Paulo Bonavides[3] adverte que “uma fácil consulta aos fatos políticos nos mostrará, numa dimensão exclusivamente histórica, que a titularidade vem atribuída ora a Deus, ora a um príncipe ou monarca, bem como ao Povo, à Nação, a um Parlamento ou a uma Classe. A concepção política da Idade Média e da Reforma girava, segundo Schmitt, preponderantemente ao redor do poder constituinte de Deus, conforme o princípio omnis potestas a Deo. Com as monarquias absolutas a titularidade veio a recair no monarca, que a justificava mediante a invocação de um suposto direito. Durante a Revolução Francesa o mesmo poder coube nominalmente à Nação ou ao Povo, mas de modo efetivo, no exercício, a uma Classe – a burguesia – ou seja, aquela parte do Povo que toma ‘consciência política autônoma’ e entra a decidir acerca da forma de existência estatal, exercendo, por conseqüência, o poder constituinte.”
Todavia, no momento atual e sob o seio da Constituição Federal de 1988 as irradiações da origem popular do Poder sobre o ordenamento jurídico são diversas. José Afonso da Silva[4], fazendo um estudo comparado entre a Constituição Federal de 1988 e a Constituição Portuguesa, leciona que “A Constituição portuguesa instaura o Estado de Direito Democrático, com o ‘democrático’ qualificando o Direito e não o Estado. Essa é uma diferença formal entre as constituições. A nossa emprega a expressão mais adequada, cunhada pela doutrina, em que o ‘democrático’ qualifica o Estado, o que irradia valores da democracia sobre a ordem jurídica.”
Neste contexto, surge o Parlamento como uma técnica da democracia para realçar e fortalecer o vínculo entre o povo e o Poder Político.
O Poder Legislativo constitui-se na concretização da relação POVO-PODER, como uma técnica que viabiliza a participação do povo na formação da vontade do Estado, através da aprovação de Leis e da fiscalização do Poder Executivo, mediante eleições periódicas. Por outras palavras, não podendo o próprio povo diretamente votar todos os projetos de Lei e exercer todas as demais atribuições do Parlamento, delega-se essa missão a um corpo de cidadãos eleitos, para agirem em nome do mandante, ou seja, do povo.
Essa forma (ou técnica) surge, sobretudo diante da impossibilidade fática da implementação da tese da democracia direta ante a dimensão e complexidade das sociedades contemporâneas, cuja forma de democracia, ou seja, a direta, hoje é tida como objeto apenas de estudos históricos, onde, como exemplo na Grécia Antiga, pequenas comunidades se representavam diretamente – na praça pública – decidindo os rumos do governo.
Mas, como a história é feita de idas e vindas de sistemas e idéias, não será de se admirar se, no futuro, com a completa inclusão digital das sociedades, seja possível o retorno das democracias diretas, decidindo a população, pela internet, os projetos de lei de interesse do país, diminuindo-se, assim, radicalmente, as despesas com o tamanho do Estado e com os gastos do Poder Legislativo, que permaneceria apenas com alguns representantes, voltados especialmente para sua função fiscalizatória.
A par do sonho futurístico, a realidade atual aponta para uma relação problemática entre a representação parlamentar e o povo, enquanto titular do poder.
A cultura política ainda arraigada pela tradicional visão extrativista sobre Estado brasileiro, a forma de financiamento das campanhas políticas, a elitização do parlamento e os altos gastos que tal Poder no Brasil representa[5] e, por outro lado, os avanços dos instrumentos de fiscalização e transparência têm levado o Legislativo a uma crise sem precedentes, crise que é permanente e tem capítulos periódicos, em âmbito nacional, estadual e municipal.
De fato, são recorrentes as notícias e denúncias de corrupção no Legislativo, viciando a vontade popular e caindo, cada vez mais, tal Poder, no descrédito da opinião pública.
Infelizmente não percebem alguns membros de tal Poder que práticas do passado não mais têm cabimento numa sociedade pluralista, com imprensa livre e instituições democráticas funcionando.
O mandato parlamentar deveria – tal como em outros países – dar ao titular meramente a condição financeira de homem de classe média, com a dignidade necessária ao exercício do cargo. Nada mais. Mandato parlamentar não poderia ser fonte de enriquecimento, nem de realização de assistencialismo vazio (agora através de “ONGs” e “Fundações”), mas sim de atuação em prol da sociedade, impessoal e coletivizada, jamais a favor de A ou B.
O Legislativo que, por sinal, deveria ser o principal instrumento de fiscalização e de realização da vontade popular, tem caído em descrédito, sobretudo porque parte dos eleitos traem a fidúcia dos mandantes, seduzindo-se e entregando-se ao mundo das elites e dos “fatores reais de poder”, que na atualidade é composta pelos representantes do poder econômico.
Por outro lado, o Brasil não possui um sistema de revogabilidade de mandatos parlamentares, o chamado “recall” de outros países. Mais por esse motivo é que há necessidade de outros instrumentos de controle das deliberações do Legislativo, entre os quais, o que ora se estuda, consistente na declaração de inconstitucionalidade da norma ou qualquer outra deliberação aprovada por Parlamento comprovadamente subornado.
Portanto, as razões lógicas, teleológicas e axiológicas da delegação da soberania popular a um grupo parlamentar é a realização de ações em proveito do bem-comum, não em favor de grupos, facções ou corporações, mas sim da coletividade impessoalmente considerada.
3. A inconstitucionalidade por fraude no exercício da representação popular. A “compra” de apoio político e o suborno.
O vício decorrente da corrupção em qualquer atividade pública e em especial para o presente estudo, no Legislativo, decorre de vários fatores da psicologia humana, desde a ambição, vaidade e projetos pessoais que transcendem o interesse da coletividade, que se disseminam facilmente em pessoas sem valores éticos e morais.
De fato, poucos são os homens públicos que prezam pela honestidade como princípio a sobrepor qualquer ambição ou projeto pessoal. No Legislativo não são incomuns os “alpinistas” que ocupam o cargo sem a verdadeira vocação e na realidade tendo como objetivo apenas a projeção para outros cargos, em especial no Poder Executivo, sob a avaliação de que o mandato parlamentar traz pouca vantagem.
A lógica deveria apontar para que o múnus de legislador, antes de tudo deveria ser visto como uma honraria, o privilégio de corporificar o desejo de muitos outros cidadãos, de ser o voto e a voz do povo no Parlamento. O cargo, na maioria dos Municípios, deveria ser honorífico e, em âmbito da representação do Congresso Nacional, dever-se-ia receber tão-somente a retribuição necessária a uma subsistência digna, inerente à classe média brasileira e para fazer frente aos deslocamentos para a Capital Federal, apenas.
Com efeito, projetos de enriquecimento de patrimônio pessoal e familiar deveriam passar longe da nobilíssima função legislativa.
No entanto, a prática brasileira demonstra o contrário, sendo, em muitos casos, o exercício de mandato legislativo uma plataforma para usurpação de poder, aparelhamentos de grupos sobre o Estado, corrupção e impunidade.
Ainda em termos práticos, são noticiados casos de corrupção no Legislativo que envolvem duas formas básicas (i) a corrupção em bloco promovida pelo Poder Executivo ou outro grupo ou órgão, para que o parlamentar dê constante “apoio” aos projetos e pretensões do pagante e (ii) a corrupção pontual, promovida pelo próprio Executivo ou por outros interessados em determinada postura do parlamentar frente a um projeto de lei ou a uma outra atuação legislativa.
Tanto uma forma como outra, do ponto de vista penal, caracterizam o crime de corrupção passiva, previsto no art. 317 do Código Penal, que prevê “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.”
O crime é considerado pela doutrina como próprio, ou seja, somente pode ser praticado por funcionário público, no amplo conceito do art. 327 do Código Penal, no qual se inclui induvidosamente o Parlamentar.
Lecionando sobre o tema Damásio E. de Jesus[6] afirma que “a corrupção pode ser considerada uma forma de ‘mercancia’ de atos de ofício que devem ser realizados pelo funcionário. Por essa razão, desde há muito criou-se a prática repressiva nas diversas legislações penais, punindo-se com severidade a corrupção daqueles que têm certa autoridade e poder dentro do exercício da função pública. É um delito que apresenta um conteúdo torpe, atingindo o Estado no que diz respeito à Administração Pública.”
No caso da corrupção parlamentar que classificamos como de bloco, a compra do apoio político é feita de forma prévia (corrupção antecedente), mediante remunerações mensais, com outra periodicidade ou mesmo através de troca de favores, como nomeação de parentes do parlamentar para cargos, realização de contratos administrativos em benefício direto ou indireto do parlamentar, etc. Todas essas formas de “vantagem” representam atos de corrupção para os fins do art. 317 do Código Penal[7].
Por outras palavras, a captação de apoio político que não seja pautada em discussão dos interesses da sociedade ou de um programa de governo, mas sim baseada na troca de favores para gozo pessoal ou de pessoas ligadas ao Parlamentar caracteriza corrupção, dado que o Parlamentar recebe “vantagem” totalmente indevida para tal fim.
E toda e qualquer forma de corrupção, seja de bloco, seja pontual, seja antecedente, seja subseqüente, quando praticada por Parlamentar acarreta inconstitucionalidade da deliberação, a ser atacada pela via judicial.
É relevante compreender que a Constituição não se viola apenas diretamente, ou seja, a Constituição diz A e se aprova uma Lei dizendo B, em suma, uma norma infraconstitucional com conteúdo diametralmente oposto.
A doutrina aponta uma série de formas de se fraudar o conteúdo e a supremacia da Constituição.
Pela definição clássica de inconstitucionalidade, a colisão entre normas é a base conceitual, narrando André Ramos Tavares[8] que “a inconstitucionalidade das leis exprime ‘(…) uma relação de conformidade/ desconformidade entre a lei e a Constituição, em que o ato legislativo é o objeto enquanto a Constituição é o parâmetro’.”
Sobre fraude à Constituição vale citar a doutrina de Marcos Bernardes de Mello[9], que ao tratar das formas de infração às normas jurídicas, destaca duas possibilidades: “(a) Diretamente, quando se infringe norma jurídica cogente, proibitiva ou impositiva, contrariando frontalmente, sem rebuços ou artifícios, as suas disposições./ (b) Indiretamente, quando, por meio que aparenta licitude, se obtém resultado proibido pela lei ou se impede que fim por ela imposto se realize. A essa espécie a doutrina, usual e universalmente, denomina fraude à lei”.
Adiante, o mesmo autor, consigna: “Temos, no entanto, a convicção de que não há como negar a aplicação da teoria da infração indireta às normas jurídicas às espécies em que o legislador ‘contorna’ norma cogente constitucional através de normas aparentemente compatíveis com a Constituição”.
Também Aldemário Araújo Castro[10], leciona “na fraude, reprimida pela ordem jurídica, temos a burla, o engano, o logro, a ação de má-fé. Observe-se que atingir, mediante artifícios e ilusões, um fim vedado pela norma jurídica é o âmago do instituto da fraude à lei (destaques inexistentes nos originais): ‘Já na fraude à lei, a intenção toda se volta para o fim de agredir o comando de um preceito cogente de ordem pública.’ (Humberto Theodoro Júnior. Fraude contra Credores. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 63). ‘Age em fraude à lei, quem exercendo uma seqüência de atos lícitos obtém resultado contrário ao preceito jurídico.’ (STJ. 1a. Turma. Resp n. 207.484. Relator Ministro Humberto Gomes de Barros).”
Em resumo, a fraude é uma forma de violação com a mesma relevância da violação direta, só que feita com desvio de finalidade, mediante ardil ou qualquer outra forma engenhosa que a criatividade criminosa do ser humano possa encontrar, a fim de dar aparente legalidade à farsa.
A fraude à Constituição na hipótese ora tratada e especificamente na elaboração das leis, configura-se quando a aprovação de uma lei formal e extrinsecamente segue todos os ritos e requisitos necessários, todavia o fim visado pelo legislador e mesmo a origem da deliberação não objetiva a satisfação da razão do mandato (o bem da coletividade / mandante), mas sim a realização dos interesses do corruptor.
O parâmetro da violação é o parágrafo único do art. 1.º da Constituição e a sanção a inconstitucionalidade, sem prejuízo, é óbvio, das repercussões criminais e cíveis cabíveis.
4. Natureza da inconstitucionalidade: formal
Fundamental para a compreensão exata do tema ora em estudo é verificar o tipo de inconstitucionalidade gerado pela corrupção do Parlamento, em se tratando de aprovação de ato normativo (emendas constitucionais, leis, etc).
Seria o vício de inconstitucionalidade formal ou material?
É certo que já se consignou que a violação seria ao art. 1.º, parágrafo único da Constituição Federal.
Segundo a doutrina, o conceito de inconstitucionalidade formal e sua distinção em relação à inconstitucionalidade material reside no processo de formação da norma, no procedimento, que na inconstitucionalidade formal teria sido viciado, já a incompatibilidade material da norma verifica-se a partir do conteúdo e do cotejo entre a norma aprovada e a Constituição.
Na conformidade do magistério do Ministro Gilmar Ferreira Mendes[11], “costuma-se proceder à distinção entre inconstitucionalidade material e formal, tendo em vista a origem do defeito que macula o ato questionado. Os vícios formais afetam o ato normativo singularmente considerado, independentemente de seu conteúdo, referindo-se, fundamentalmente, aos pressupostos e procedimentos relativos à sua formação. Os vícios materiais dizem respeito ao próprio conteúdo do ato, originando-se de um conflito com princípios estabelecidos na Constituição”.
Sobre o tema da inconstitucionalidade formal leciona o mesmo autor que “os vícios formais traduzem defeito de formação do ato normativo, pela inobservância de princípio de ordem técnica ou procedimental ou pela violação de regras de competência. Nesses casos, viciado é o ato nos seus pressupostos, no seu procedimento de formação, na sua forma final[12]”.
Evidentemente nada impede que uma norma ao mesmo tempo seja formal e material inconstitucional.
Na hipótese ora estudada – corrupção do Parlamento – o vício não atinge o mérito da deliberação parlamentar que, em tese, pode ser constitucional, ou seja, pode ter perfeita compatibilidade vertical com o conteúdo da Constituição e até ser de interesse público (cumulado com particular interesse do corruptor), sempre partindo de um estudo em tese.
O principal argumento que nos convence de que o vício em estudo é FORMAL é o de que se não estivesse corrompido o corpo Legislativo, a deliberação poderia, ao menos teoricamente, ser válida.
Ou seja, o só fato da corrupção do Parlamento não afeta o plano da constitucionalidade material da norma, isto porque o tema de fundo poderá versar sobre questão perfeitamente compatível com a Constituição. Se houver incompatibilidade material, aí a questão é outra.
Exemplificando o problema, imagine-se uma hipótese na qual o Executivo encaminhasse um projeto de lei concedendo aumento a uma categoria profissional de servidores públicos, cujo projeto atendesse a todos os requisitos orçamentários e constitucionais para a sua aprovação. Imagine-se ainda que o Sindicato respectivo temendo a não aprovação, corrompesse porção relevante do Parlamento.
Na hipótese, se não houvesse a corrupção, o processo legislativo seria perfeitamente válido.
Diante do exemplo, pode-se afirmar ainda que uma vez declarado no Judiciário a inconstitucionalidade formal do processo legislativo de aprovação, o tema deveria ser retomado e reapreciado pelo Legislativo, a nosso sentir, com o impedimento dos Parlamentares envolvidos, a ser determinado em ação própria (ação de improbidade ou penal) ou deliberação do próprio Parlamento (cassação por falta de decoro), já que a ação de inconstitucionalidade serve-se ao julgamento abstrato da validade da norma e não tem fim punitivo-pessoal.
E, em nova votação, uma vez submetido a regular e normal aprovação, a norma seria válida.
Mas, indagaria-se: que vício houve no processo legislativo no caso de corrupção? E se todos os requisitos (iniciativa, pareceres das comissões pertinentes, quórum, etc) forem observados?
A vexata quaestio reside em estudar quais são os requisitos FORMAIS da norma, isto é, os que dizem respeito ao seu processo de formação.
E o primeiro deles é a competência do Órgão Legislativo.
Sobre o tema, diz Alfredo Buzaid[13] que “os requisitos formais concernem, do ponto de vista subjetivo, ao órgão competente, de onde emana a lei; e, do ponto de vista objetivo, à observância da forma, prazo e rito prescritos para sua elaboração.”
Dentro da competência, invocando a primeira parte deste trabalho, defendemos que o corpo legislativo possui mandato para representar o todo social, que não pode diretamente exercitar o poder, fazendo-o pelos representantes eleitos.
Assim, a competência do Órgão Legislativo será uma competência válida e proba se agir – como qualquer procurador – nos limites do mandato e no interesse do mandante. Comprovada a corrupção, evidentemente houve fraude e perfídia em relação ao mandante (povo) e a deliberação é inconstitucional.
Sobre os deveres do mandatário, invocando como parâmetro a doutrina civilista do contrato de mandato, vale citar que “atuando no interesse alheio, o mandatário deve empregar toda sua diligência habitual na execução do mandato. Utiliza-se o padrão do bonus pater familias. Ou, mais modernamente, analisa-se a boa-fé objetiva na condução do contrato.[14]”
Logicamente a corrupção, a traição do mandatário, que deixa de agir no interesse do mandante, passando a usurpá-lo e a submeter-se ao poder econômico do corruptor, é uma forma gravíssima de inobservância dos deveres básicos da representação popular. A contrariedade é à essência da democracia, à razão de ser do Parlamento, que é representar o povo e não as oligarquias econômicas ou políticas.
A idéia central do nosso entendimento quando conclui pela inconstitucionalidade formal é o de que ao comprar o voto de um Parlamentar, a figura do corruptor passa, ele próprio, a integrar o processo legislativo como, nas palavras de Lassalle[15], “fator real de poder”, agindo por interposta pessoa, que é exatamente o Parlamentar corrupto, que na hipótese não cumpre sua verdadeira função, cuidando-se de um instrumento para a usurpação do poder democrático, que não viria do povo, mas da força do patrimônio do corruptor, de quem o Parlamentar seria a longa manu. Em não sendo o corruptor parte legítima para a função, vicia-se a deliberação.
Cuida-se de uma forma de violação indireta (fraudada) ao requisito da competência do Órgão. Aqui ao invés de se retirar à força os Parlamentares de sua função (golpe de estado), o corruptor o alicia e o sevicia moralmente pelo poder econômico. A conseqüência é a mesma.
De regra, a corrupção parlamentar não acarreta inconstitucionalidade da norma por violação por desvio de finalidade stricto sensu, como se poderia pensar, isto porque, ainda em tese, a finalidade da deliberação legislativa como um todo pode ter finalidade pública, como no exemplo acima. O que pode ocorrer em caso concreto é a dupla violação, qual seja, à competência do Legislativo e ainda existir a presença de desvio de finalidade.
Portanto, o vício é de inconstitucionalidade formal por fraude à competência regular e proba do Parlamento.
Em resumo, antes de todos os demais requisitos do processo legislativo (iniciativa, deliberação, etc) surge a competência regular e proba do Órgão Legislativo como um primeiro requisito, de fundamental relevância para a validade da norma, dada a forte densidade normativa do disposto no parágrafo único do art. 1.º da Constituição Federal, enquanto vetor da própria razão de ser do Parlamento, cuja competência é fraudada na hipótese ora estudada.
5. Requisitos e instrumentos processuais para o controle de constitucionalidade
Em caso de norma aprovada por Parlamento subornado, alguns requisitos, obviamente, seriam necessários para a procedência da demanda, que poderia ter como objeto a anulação de uma sessão ou deliberação ou até mesmo a declaração de inconstitucionalidade de uma norma aprovada por maioria subornada.
Os requisitos variam de acordo com a situação fática, contudo, em termos básicos, a primeira necessidade é a demonstração da relevância causal da corrupção para o resultado da deliberação.
Imagine-se caso de projeto aprovado ou rejeitado por unanimidade ou ampla maioria e após viesse a ser comprovada a corrupção de um Parlamentar ou de número insuficiente a anular a vontade da maioria. Nesta hipótese – sem prejuízo da responsabilização do corrupto e corruptor, é lógico – é forçoso reconhecer que a deliberação permaneceria válida, dada a adesão da maioria à mesma, mesmo com a exclusão do voto corrompido.
Por outras palavras, há necessidade de comprovar-se a corrupção de um número relevante de parlamentares, número apto a comprometer a deliberação.
Quanto aos mecanismos processuais, temos que no caso de uma deliberação que não implique em aprovação de uma Lei, como p. ex., REJEIÇÃO de um projeto de Lei ou aprovação de atos de efeito concreto (sem conteúdo normativo), como votação para aprovação determinada pessoa para ocupar cargo público, decisão de CPI, etc, entre outros casos de competência do Poder Legislativo, o caminho seria uma ação popular ou civil pública para anular o ato, instruindo-a com prova ou ao menos início relevante de prova da corrupção, determinando o Judiciário a anulação do ato legislativo e nos termos do art. 40 do Código de Processo Penal[16] remessa de cópia dos autos ao Ministério Público para apuração de crime, caso tal apuração já não esteja em curso.
Já na hipótese da APROVAÇÃO de uma Lei ou outro ato normativo, o mecanismo que temos como viável para a invalidação da norma seria uma ação direta de inconstitucionalidade (ADIN) ou, em determinados casos, a argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), isto porque a ação civil pública não é admitida como sucedânea de controle abstrato e, na hipótese especifica, o efeito da ação coletiva realmente seria geral (erga omnes)[17].
Entendemos que seria viável mandado de segurança se os fatos pudessem ser comprovados durante o processo legislativo (antes da finalização do processo de formação da norma), hipótese teoricamente possível, arrimando-se a impetração no entendimento que admite a impetração de writ por parlamentar para a defesa do dues process of law da tramitação legislativa[18].
Em se tratando de ato normativo municipal, além da ação de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça, tendo como parâmetro norma da Constituição Estadual similar ao parágrafo único do art. 1.º da Constituição Federal[19], temos como viável o ajuizamento de argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) perante o STF.
Isto porque a ADPF é uma forma de controle concentrado de constitucionalidade que permite ao STF o julgamento da impugnação de normas municipais[20] em face de preceito fundamental da Constituição Federal e, ademais, o parágrafo único do art. 1.º da Constituição da República é, induvidosamente um preceito fundamental.
Pode-se conceituar como “preceito fundamental” as vigas mestras do Texto Constitucional, que são os comandos com conteúdo principiológico que emanam conseqüências várias para o ordenamento jurídico, são, assim, aquelas disposições que não se encerram em si mesmo (meras regras), mas que originam conseqüências na atuação do Estado, seja enquanto Administrador Público, enquanto Juiz, ou enquanto agente repressor da violência, entre as diversas formas de atuação do Estado.
A esta altura, algumas indagações são perfeitamente cabíveis: (i) o que seria prova ou início de prova da corrupção? (ii) exigiria-se uma sentença penal transitada em julgado condenatória?
Uma primeira conclusão seria de que não há sentido jurídico em se exigir uma sentença penal condenatória transitada em julgado atestando a corrupção para a procedência da declaração de inconstitucionalidade.
Isto porque no sistema jurídico pátrio inexiste hierarquia entre a jurisdição penal e as demais.
A nosso sentir, a questão é resolvida pela aplicação do Código de Processo Penal, que estabelece:
“Art. 65. Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
Art. 66. Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.
Art. 67. Não impedirão igualmente a propositura da ação civil:
I – o despacho de arquivamento do inquérito ou das peças de informação;
II – a decisão que julgar extinta a punibilidade;
III – a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime.”
Assim, o Juízo responsável pelo julgamento da ação de inconstitucionalidade teria total independência, de regra, para analisar a prova que instruiria a ação e julgá-la à luz do princípio do livre convencimento motivado, salvo a ocorrência no Juízo Penal de quaisquer das situações acima expostas.
De regra, o Juízo competente para analisar a argüição de inconstitucionalidade teria total independência para julgar a questão, sem vinculação à instância penal.
É lógico que se existisse uma sentença penal transitada em julgado condenando os Parlamentares corruptos evidentemente a ação teria um trâmite mais ágil e cairia por terra qualquer “jurisprudência defensiva” e restritiva quanto ao conhecimento da ação direta de inconstitucionalidade fundada em fatos com alguma controvérsia.
Agora, a falta de uma sentença penal condenatória – possivelmente imputável à própria demora do aparelho Judiciário – impossibilitaria o conhecimento de uma ação direta e obrigaria a sociedade a conviver e ser regida por uma norma viciada?
A resposta, à luz do próprio princípio de que “todo o poder emana do povo” e de que em seu interesse é exercido, só pode ser negativa.
Vale consignar, de toda sorte, que em que pese dispensável uma sentença transita em julgado, evidentemente seria preciso anexar-se alguma prova, tais como peças de investigação policial ou do Ministério Público ou ainda transcrição de interceptação telefônica, depoimentos testemunhais, delações, confissões, dados de sigilo bancário, etc, mas admitimos, inclusive, a possibilidade de alguma instrução processual na ação de inconstitucionalidade, tese que passamos a detalhar em seguida.
O que não se admitiria, isto sim, seria o ajuizamento da ação sem qualquer prova anexada, transferindo para o Julgador o ônus de uma apuração sem sequer início de linha apuratória.
6. Possibilidade de investigação de fatos no controle concentrado
A doutrina e jurisprudência mais tradicional apontam para a impossibilidade de investigação de fatos em ação direta de inconstitucionalidade[21]. Esse tema era praticamente um dogma antes da Lei n.º 9.868, de 10 de novembro de 1999.
Pela tradicional corrente, criada e desenvolvida no STF e que temos como mais uma jurisprudência defensiva da Corte, a ação direta de inconstitucionalidade é um instrumento processual para o debate tão-somente de teses jurídicas e para a verificação vertical de compatibilidade entre a norma objeto e a parâmetro.
Em acórdão anterior à Lei n.º 9.868/99, chegou-se a afirmar que:
“O controle direto de constitucionalidade das leis pressupõe a exata compreensão do sentido e do alcance das normas questionadas, a qual há de ser possível de obter-se no procedimento sumário e documental da ação direta. Se, ao contrario, a pré-compreensão do significado da lei impugnada pende da solução de intrincada controvérsia acerca da antecedente situação de fato e de direito sobre a qual pretende incidir, não e a ação direta de inconstitucionalidade a via adequada ao deslinde da quizilia.”[22]
Todavia, desde há muito verifica-se na história do controle de constitucionalidade das normas uma forte e irreversível tendência pela ampliação da cognição do Judiciário na missão de guardião da Constituição.
Na Suprema Corte Americana o famoso julgado “Muller versus Oregon” (1908), no qual se discutia a validade de uma norma que impunha jornada de trabalho excessiva às mulheres, é sempre citado como leading case na matéria.
Na sessão de julgamento do citado caso, o advogado Louis D. Brandeis, que defendia os interesses das mulheres, apresentou um memorial que causou perplexidade aos Ministros, com 02 laudas dedicadas à questão da compatibilidade entre a Lei e a Constituição e outras 110 laudas dedicadas ao plano dos fatos, a um completo estudo acerca dos maléficos efeitos suportados pelas mulheres em razão da jornada excessiva de trabalho.
No final, concluiu-se que era perfeitamente válido ao Judiciário, a fim de aquilatar a constitucionalidade da norma, investigar os fatos que lhe deram origem e as repercussões da norma sobre a realidade social.
Sobre tal abertura, versa o Ministro Gilmar Mendes[23]:
“É verdade que, às vezes, uma leitura do modelo hermenêutico-clássico manifesta-se de forma radical, sugerindo que o controle de normas há de se fazer com o simples contraste entre a norma questionada e a norma constitucional superior. Essa abordagem simplificadora tem levado o Supremo Tribunal Federal a afirmar, às vezes, que fatos controvertidos ou que demandam dilação probatória não podem ser apreciados em ação direta de inconstitucionalidade.
Essa abordagem confere, equivocadamente, maior importância a uma pré-compreensão do instrumento processual do que à própria decisão do constituinte de lhe atribuir a competência para dirimir a controvérsia constitucional. (…)
Hoje, não há como negar a ‘comunicação entre norma e fato’ (Kommunikation zwischen Norm und Sachverhalt) que, como ressaltado, constitui condição da própria interpretação constitucional. É que o processo de conhecimento aqui envolve a investigação integrada de elementos fáticos e jurídicos.”
Adiante, na mesma obra, adverte o Ministro do Supremo Tribunal Federal que “não é preciso ressaltar também que uma negativa do Tribunal de examinar, com todos os elementos disponíveis, a correção dos fatos e prognoses estabelecidos pelo legislador pode corresponder a uma vinculação, ainda que não estritamente consciente, aos fatos legislativos pressupostos ou fixados pelo legislador. Em outras palavras, tal postura poderá significar, em verdade, uma renúncia à possibilidade de controle de legitimidade da lei propriamente dita.”[24]
A tese que há quase cem anos atrás surpreendeu a Suprema Corte Americana, foi positivada no Direito brasileiro, já que a Lei n.º 9.868/99 – que dispõe sobre o processo de julgamento das ADINs – estabelece em seu art. 9.º, §1.º:
“Art. 9.º (…)
§1.º Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria.”[25]
Veja-se que a norma permite abertura ao Julgador para investigar a repercussão da norma sobre fatos, analisando o acerto ou desacerto do Legislador ante a posição adotada na norma impugnada.
A interpretação, pois, deixa de ser um mero exercício de verificação de palavras ou de subsunção, mas a concretização do ideal de Justiça ante a apuração da real e efetiva validade da norma para os fins constitucionais aos quais se destina ou deveria destinar, fiscalizando o Julgador, além da subsunção, a existência de relação de logicidade entre o regramento e os fatos disciplinados.
Por outro lado, é importante a percepção de que no caso de ação baseada em alegação de inconstitucionalidade formal, a investigação sobre determinados fatos é mais fundamental ainda para se chegar à procedência, ou não da impugnação.
Imagine-se a hipótese de falsificação de assinaturas pericialmente comprovadas ou de outra espécie de fraude que esteja comprovada ou que tenha início relevante de prova. Caberia ao Judiciário apenas “fechar os olhos” a tal fato?
Ora, assim como é viável ao Poder Judiciário investigar fatos e chegar à conclusão de que o Legislador errou ao prevê norma em contrariedade aos fatos sociais ou históricos ou até que houve deficit da norma em relação aos fatos que pretendia disciplinar, defendemos que é sim plenamente possível ao mesmo Judiciário investigar fatos que apontem para uma grave violação à Constituição Federal ocorrido no bojo de um processo legislativo.
Não se cuida de apuração criminal, nem de processo condenatório para responsabilização pessoal, mas de cumprimento fiel e determinado da missão constitucional de Guarda da Constituição, no sistema objetivo de controle.
Vale registrar, ainda mais, que em nada desnatura o caráter abstrato do controle de constitucionalidade na via direta, posto que não se estará, repita-se, julgando pessoas ou aplicando-se sanções condenatórias às mesmas (que dependeriam de outras vias), mas sim evitando-se uma terrível abstenção jurisdicional, já que não haveria outra via para a sociedade ver a norma retirada do ordenamento jurídico.
De fato, tendo em vista a inconstitucionalidade em razão da corrupção do Parlamento, como já dito acima, não caberia ação civil pública, dado o efeito erga omnes que a procedência da mesma teria no caso, de modo que restaria apenas como únicas possibilidades a ADIN ou a ADPF, a depender do caso, ambas como instrumentos de controle abstrato de constitucionalidade, voltadas, na hipótese ora em estudo, para o cumprimento da supremacia da vontade popular, mantendo-se incólume o caríssimo princípio insculpido no parágrafo único do art. 1.º da Constituição Federal.
Nesse caso em estudo, não haveria que se falar em impropriedade da “via eleita”, pois não há outra via para tal controle, de sorte que a negativa de conhecimento da ação representaria uma odiosa abstenção jurisdicional e infração ao princípio da inevitabilidade do controle jurisdicional, já que negaria ao autor (sociedade) o direito de acesso ao Judiciário, já que a sociedade, repita-se, não possui outro instrumento, a não ser a própria ação direta, para questionar a grave inconstitucionalidade da corrupção do Parlamento em Juízo.
Vale notar, ainda mais, que quando se fala em improbidade da “via eleita”, pressupõe-se que o autor tenha outra via para ver sanada a ilegalidade delatada na ação, como por exemplo, quando não se conhece um mandado de segurança, mas se abre espaço às vias ordinárias.
No caso em análise, todavia, para o fim de invalidar norma jurídica aprovada por Parlamento corrompido a sociedade não tem “outra via” para retirar a norma do mundo jurídico, pois, como já dito e repetido, a via ordinária (ação civil pública) não cabe para a declaração em tese e com efeitos erga omnes de inconstitucionalidade de Lei.
Imaginando-se uma norma aprovada nestas condições que diga respeito a direitos difusos (meio ambiente, p. ex.), não teria o autor da ação direta qualquer outra opção a não ser o próprio sistema de controle abstrato de constitucionalidade para fazer prevalecer a autoridade da Constituição.
Em suma, especificamente no caso da inconstitucionalidade ora estudada, em não existindo outra via para a retirada do mundo jurídico de uma norma aprovada contra a soberania popular, temos que é perfeitamente cabível o conhecimento de ação direta com a finalidade ora narrada.
7.Conclusões
As principais conclusões deste trabalho dizem respeito à defesa da possibilidade de ampliação do leque de atuação do Judiciário na missão de analisar e julgar os mecanismos de controle concentrado de constitucionalidade.
Também a questão da interpretação do conteúdo e da densidade normativa da democracia sob a batuta da máxima efetiva possível é outra vertente que não se pode abrir mão.
E sobre a legitimidade do poder democrático e da necessidade de cumprir e realizar uma autêntica relação POVO-PODER, vale realçar a relevância da doutrina da máxima efetividade das normas da Constituição.
O texto da Constituição e sua efetividade, no Brasil, foram confundidos durante anos com uma mera carta de intenções, como se toda a Constituição tivesse mero caráter programático.
A densidade normativa parecia igualar-se às promessas de campanha dos parlamentares que a votaram.
Um exemplo dessa apatia é notado já na primeira Constituição, a do Império, de 1824, que consagrava o princípio da igualdade de todos perante a Lei[26], mas o sistema convivia, sem qualquer constrangimento, com um hediondo regime escravocrata.
A frustração constitucional integrava o conteúdo da decepção política-eleitoral, empolgada pelo populismo, pelo coronelismo e pela manipulação eleitoral.
Todavia, já durante a constituinte os esforços para se dar efetividade à Lex Mater se fizeram presentes (com p. ex., a previsão de ADIN por omissão, o mandado de injunção, etc). E, especialmente após a sua promulgação desenvolveu fortemente a doutrina brasileira da efetividade.
Sobre o tema, discorre com maestria o Prof. Luís Roberto Barroso[27]:
“A doutrina da efetividade se desenvolveu e foi sistematizada no período que antecedeu a convocação da Assembléia Constituinte que viria a elaborar a Constituição de 1988. Partindo da constatação ideológica de que o constituinte é, como regra geral, mais progressista do que o legislador ordinário, forneceu substrato teórico para a consolidação e aprofundamento do processo de democratização do Estado e da sociedade no Brasil.
Para realizar esse objetivo, o momento pela efetividade promoveu, com sucesso, três mudanças de paradigma na teoria e na prática do direito constitucional no país. No plano jurídico, atribuiu normatividade plena à Constituição, que passou a ter aplicabilidade direta e imediata, tornando-se fonte de direitos e obrigações. Do ponto de vista científico ou dogmático, reconheceu ao direito constitucional um objeto próprio e autônomo, estremando-o do discurso puramente político ou sociológico. E, por fim, sob o aspecto institucional, contribuiu para a ascensão do Poder Judiciário no Brasil, dando-lhe um papel mais destacado na concretização dos valores e dos direitos constitucionais.”
No momento histórico atual, a sociedade é em capítulos periódicos surpreendida com notícias de corrupção no Parlamento, levando alguns, desinformadamente, até a questionar a democracia como sistema.
Sobre o assunto, são válidas as sábias palavras de Emerson Garcia[28]:
“O sistema brasileiro, como não poderia deixar de ser, não foge à regra. Os intoleráveis índices de corrupção hoje verificados em todas as searas do poder são meros desdobramentos de práticas que remontam a séculos, principiando-se pela colonização e estendendo-se pelos longos períodos ditatoriais com os quais convivemos. A democracia, longe de ser delineada pela norma, é o reflexo de lenta evolução cultural, exigindo uma contínua maturação da consciência popular. O Brasil, no entanto, nos cinco séculos que se seguiram ao seu descobrimento pelo ‘velho mundo’, por poucas décadas conviveu com práticas democráticas.
Como desdobramento dessas breves reflexões, é possível afirmar, com certa tristeza, que a ordem natural das coisas está a indicar que ainda temos um longo e tortuoso caminho a percorrer. O combate à corrupção não haverá de ser fruto de mera produção normativa, mas, sim, o resultado da aquisição de uma consciência democrática e de uma lenta e paulatina participação popular, o que permitirá uma contínua fiscalização das instituições públicas, reduzirá a conivência e, pouco e pouco, depurará as idéias daqueles que pretendem ascender ao poder. Com isto, a corrupção poderá ser atenuada, pois eliminada nunca o será.
Essa observação se faz necessária na medida em que a maior participação popular, inclusive com um sensível aumento do acesso aos meios de comunicação, poder conduzir à equivocada conclusão de que, não obstante os ventos democráticos que atualmente arejam o país, a corrupção tem aumentado. A corrupção, em verdade, sempre existiu. Em regimes autoritários, no entanto, poucos se atreviam a retirar o véu que a encobria, mostrando-lhe a face. Os motivos, aliás, são de todos conhecidos. Assim, é preciso não confundir inexistência de corrupção com desconhecimento da corrupção.”
Por fim, não se deve olvidar que o uso do controle concentrado de constitucional para a retirada do mundo jurídico de ato normativo oriundo de deliberação viciada pela corrupção é um instrumento rico, ágil e efetivo para a defesa da Constituição, no caso ora em estudo, para a defesa de um dos seus mais caros princípios: a origem democrática do poder.
Promotor de Justiça no Estado do Rio Grande do Norte
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