Resumo: O presente artigo versa sobre da independência funcional do Ministério Público, longa manus, no oferecimento da denúncia designada pelo Procurador-Geral de justiça. O código de processo penal no seu artigo 28 estabelece que nos casos em que o promotor natural ao invés de apresentar a denúncia requerer seu arquivamento e considerando o juiz improcedente, remeterá as peças de informação ao Procurador-Geral de justiça, estando esse na atribuição de insistir no arquivamento, oferecer a denúncia ou designar outro promotor para que a ofereça, ficando esse último segundo a doutrina majoritária processualista de obrigado a oferecê-la. Entendimento diverso do que preza a Constituição Federal nos seu artigo 127 § 1º, que preconiza ser o Ministério Público uma instituição autônoma e independente, e essa autonomia e independência não pode ser desrespeitada por nenhuma norma infraconstitucional.[1]
Palavras-chave: Independência Funcional, Constituição, Arquivamento, Ministério Público.
Sumário: 1. Introdução. 2. Supremacia da constituição. 3. Ministério público na constituição de 1988. 4. A legitimidade do o ministério público no processo penal. 5. A independência funcional frente à designação do procurador-geral de justiça. 6. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho objetiva uma análise constitucional e doutrinária sobre a independência funcional do Ministério Público no oferecimento da denúncia designada pelo Procurador-Geral de justiça, possibilitando a esse promotor longa manus a autonomia na decisão de oferecê-la ou não.
Objetiva-se destacar a supremacia da Constituição frente à norma infraconstitucional, destacando ser a Carta Magna a lei soberana do povo, conjunto de normas e princípios que não admite atos contrários ao seu entendimento, prezando pelos princípios nela resguardados da independência funcional do Ministério Público no exercício de suas funções.
Essa análise nos levará a observar as situações conflitantes elucidando as teorias que coadunam com a obrigatoriedade do oferecimento da denúncia assim como a que defende a independência do parquet a luz da Constituição.
Buscaremos elucidar a legitimidade da teoria que confere ao promotor a autonomia nas suas decisões acreditando ser inviável ao Ministério Público estar submetido a acatar decisões superiores, pondo em risco a credibilidade e a segurança jurídica, sendo ele um defensor e fiscal da lei.
2. SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO
A Constituição deve ser contemplada como norma superior de um Estado, a lei soberana do povo, alusiva a organização do Estado, formação de governo, direitos e garantias fundamentais e sociais, dentre outros por ela recepcionada.
Também conhecida como Carta Magna, Lei Suprema, arquiteta um conjunto de preceitos, normas e princípios superiores, em que não se admite atos contrários as suas posições. Além de obter esse status de lei maior não admite conflitos com outras leis, e deve ser respeitada pelo próprio Estado, governantes e seu povo. Como bem destaca José Afonso da Silva:
“Nem o governo federal, nem os governos dos Estados, nem os dos Municípios ou do Distrito Federal são soberanos, porque todos são limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas positivas daquela lei fundamental, exercem suas atribuições nos termos nela estabelecidos.
Por outro lado, todas as normas que integram o ordenamento jurídico nacional só serão válidas se se conformarem com as normas da Constituição Federal.” (AFONSO, 2008, p. 46)
O que se ressalta nas palavras do doutrinador é a grandeza da norma constitucional, a sua soberania frente ao governo, Estado e todas as normas que integram o ordenamento jurídico, que a ela deve submeter-se, segundo seus preceitos e princípios, estando sempre com ela em conformidade.
Sua força deve ser encarada como absoluta, já que se encontra acima de todos os poderes. Em síntese, representa a base de sustentação de um Estado, a soberania de uma nação e as garantias aos direitos fundamentais da sociedade, a vontade suprema de um povo frente à organização de seu Estado.
A Constituição quanto a sua forma pode ser escrita, codificada em documento único e solene, e não escrita, baseada nos costumes e nas jurisprudências. Quanto a sua consistência ela pode ser semi-rígida, rígida e flexível, tais diferenças são vislumbradas quanto à modificação de seu texto constitucional, enquanto a Constituição flexível goza de prerrogativas mais brandas, processos menos intensos, podendo ser alteradas pelo processo legislativo ordinário, a Constituição rígida para ser modificada necessita de uma solenidade, um processo legislativo específico e formas especiais de transformação, mais dificultoso do que as demais espécies normativas.
O que se intenta com essa discussão é analisar supremacia da Constituição frente às normas infraconstitucionais, como é sabido a Constituição Federal do Brasil de 88, dentre outras, classifica-se como formal, escrita e rígida, ou seja, seu processo de alteração é bem mais complexo do que as demais espécies normativas. Como bem destacado por José Afonso da Silva:
“A rigidez constitucional decorre da maior dificuldade para sua modificação do que para a alteração das demais normas jurídicas da ordenação estatal. Da rigidez emana, como primordial conseqüência, o principio da supremacia da Constituição que, no dizer de Pinto Ferreira, “é reputada como uma pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político”.[…]
É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas.” (AFONSO, 2008, p.45)
Por fim, nos leva a conclusão que a norma Constitucional se sobrepõe a toda e qualquer norma infraconstitucional, confirmando assim a sua soberania frente ao conflito hierárquico normativo.
3. O MINISTÉRIO PÚBLICO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
O Ministério Público passou por grandes mudanças ao longo dos anos, sua história é fruto das diversas transformações democráticas do nosso país. Durante anos, o nosso ordenamento jurídico sofreu várias mutações, em que o Ministério Público quase nunca era referenciado. Só em 1832 com o Código de Processo Penal do Império que encontramos uma ínfima referencia ao parquet.
Contudo com o decreto 848/1890, lhe é atribuída uma maior atenção. Fazendo um estudo da sua recepção nas constituições do Brasil foi possível destacar mudanças significativas sofridas pelo paquet. A Constituição de 1824, faz pouca referência ao Ministério Público, assim como a de 1891. Apenas na Constituição de 1934, havia uma referência expressa “dos órgãos de cooperação nas atividades governamentais”. A Constituição de 1937, pouco o mencionou, fazendo referência apenas no artigo 99. A Constituição de 1946, faz alusão expressa, disponibilizando título próprio nos artigos 125 a 128, não fazendo nenhuma vinculação sua aos poderes Executivos, Legislativo e Judiciário. A Constituição de 1967, também dispensa uma grande atenção ao Ministério Público no capítulo referente ao Poder Judiciário, nos artigos 137 a 139, já a Constituição de 1969 faz alusão expressa no capítulo designado ao poder executivo.
No entanto é com a Constituição Federal do Brasil de 1988 que é dispensada ao Ministério Público um capítulo especial, referenciado no (capítulo IV das funções essências à justiça, secção I, do Ministério Público), adquiriu um apanhado de novas funções, sendo também reconhecido como instituição autônoma e independente, na defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais. Como bem elucida o artigo 27, § 1º da Constituição Federal:
“Art. 127, § 1º. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
§ 1º. São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional”.
A partir de então o Ministério Público passa a ser independente em suas atividades, dissociado dos três poderes, tendo autonomia para se auto-organizar, elaborar seu projeto de orçamento, assim como a independência nas suas funções. Nenhuma Constituição concedeu tantas prerrogativas ao Ministério Público como a Constituição de 1988, destacando-se com grande propriedade na organização estatal, tendo como função a proteção dos direito sociais e individuais indisponíveis.
4. A LEGITIMIDADE DO O MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO PENAL
Quando a ordem jurídica é afetada, surge para o Estado o dever de punir, que o faz por meio de um processo, em defesa da ordem jurídica e da boa convivência social. È através da ação penal que o Estado exerce o dever de punir, o jus puniendi, como manifestação da soberania estatal na relação jurídica social, no entanto, são necessários elementos mínimos probatórios que evidenciem a materialidade e a autoria desse crime.
Sendo assim, quando é cometido um delito, iniciam-se as diligências investigatórias, denominado sistema inquisitivo, momento em que não são exercidos os princípios da ampla defesa e do contraditório, desempenhado pela polícia judiciária no âmbito de suas atividades, como preza o artigo 4º do código de processo penal: “A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria”. Com isso objetiva encontrar provas da materialidade e da autoria do crime para a elaboração do inquérito policial, o qual servirá como peça de informação para a elaboração da ação penal.
O Ministério Público é o órgão constitucionalmente encarregado de promover a ação penal pública, como reza o artigo 129, I da Constituição Federal: como sendo função institucional do Ministério Público promover, o controle exclusivo da ação penal pública, na forma da lei. Sendo de competência exclusiva do Ministério Público a ação penal, tem ele como preza o princípio da obrigatoriedade e da indisponibilidade o dever de propor a ação penal, com vistas a promover a ordem jurídica na defesa dos interesses indisponíveis socialmente relevantes. No entanto a obrigatoriedade da ação penal não pode ultrapassar os limites constitucionais da sua independência funcional, já que o parquet é autônomo no exercício de suas funções, não ficando subordinado a nenhuma pretensão arbitrária do Estado, orientando sua própria conduta nos processos onde tenha de intervir.
5. A INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL FRENTE À DESIGNAÇÃO DO PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA
O código de processo penal no seu artigo 28, caput, assim determina: “Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao Procurador-Geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.”
O referido artigo nos leva a observar algumas situações distintas e conflitantes. Na primeira, o magistrado acolhe o arquivamento por entender estar o Ministério Público com a razão e o inquérito não apresenta indícios de autoria ou materialidade suficientes para embasar a ação penal; na segunda situação, o promotor requer o arquivamento do inquérito, no entanto o magistrado discorda por crer que o mesmo contempla dados suficientes para a ação penal, remetendo-os para a avaliação do Procurador-Geral de Justiça, que nesse momento pode insistir no arquivamento entendendo estar o Promotor com a razão. Se do contrário, entendendo estar à razão com o magistrado, o mesmo pode: ou efetuar a denúncia ou designar outro promotor para oferecê-la. Diante da última proposição quanto à designação de outro promotor para a propositura da ação o Código de Processo Penal no seu artigo 28 torna-se impreciso, não explicitando se o referido Parquet torna-se obrigado ou não em propor a ação designada pelo Procurador-Geral, gerando dúvidas e insurgências.
Diante de tais questionamentos duas correntes divergem em suas opiniões e fundamentações. A primeira acredita ser o promotor designado obrigado oferecer a denúncia, posições defendias por grandes doutrinadores como: JULIO FABBRINI MIRABETE; TOURINHO FILHO; ROSMAR RODRIGUES ALENCAR; NORBERTO AVENA; GUILHERME DE SOUZA NUCCI. Como se percebe no parágrafo a seguir:
“Crendo, no entanto, que a razão se encontra com o magistrado, o procurador geral pode denunciar diretamente – o que não costuma fazer – ou designar outro promotor para oferecer, em seu nome, a denuncia – o que é mais comum. Trata-se de uma delegação e, por esse motivo, o promotor designado não poderá recusar-se a dar inicio à ação penal, sob a pena de falta funcional. Ele age em nome do Procurador-Geral, razão por que não há escusa para deixar de oferecer a denuncia”. (NUCCI, 2008, p.175)
E não menos obstante, a posição defendida por Mirabete, elucida com mais precisão essa corrente:
“O membro do Ministério Público designado pelo Procurador-Geral para oferecer a denuncia é obrigado a propor a ação penal, pois não age em nome próprio e sim no do chefe do Ministério Público, do qual é longa manus, por delegação interna de atribuição”. (MIRABETE, 2007 p.83)
A segunda corrente doutrinária, de antemão a mais coerente leva em apreço a garantia constitucional da independência funcional do Ministério Público, definida na Constituição no seu artigo 127, § 1º, como se percebe a seguir:
“Independência funcional: trata-se de autonomia de convicção, na medida em que os membros do Ministério Público não se submetem a qualquer poder hierárquico no exercício de seu mister, podendo agir, no processo, da maneira que melhor atenderem. A hierarquia existente restringe-se às questões de caráter administrativo, materializada pelo chefe da instituição, mas nunca, como dito, de caráter funcional. Tanto é que o art. 85, II, da CF/88 considera crime de responsabilidade qualquer ato do Presidente da República que atentar contra o livre exercício do Ministério Público”. (LENZA, 2008 p. 530)
E o ilustríssimo Gilmar Mendes complementa.
“O principio da independência funcional torna cada membro do parquet vinculado apenas à sua consciência jurídica, quando se trata de assuntos relacionados com a sua atividade funcional”. (MENDES, 2008 p. 996)
Com o advento da Constituição da República de 1988, ao Ministério Público foi atribuída a autonomia funcional, da qual se estabelece na redação do artigo 127, §§ 1º e 2º, da referida Carta, que assim preconizam:
“Art. 127, § 2º – O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
§ 1o São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.
§ 2o Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no artigo 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento“.
A nossa Carta Magna vem tratar de uma garantia constitucional que preza pela autonomia do Ministério Público no desempenho de suas funções institucionais e jurídicas, assim como assegurar a sociedade uma imparcial e justa representatividade.
No entanto, se estando o Ministério Público condicionado de forma impositiva a oferecer a denúncia, irá inviabilizar o exercício de sua função ou mesmo desrespeitar o princípio estabelecido. Não há como se pensar em autonomia funcional quando há uma obrigatoriedade estabelecida. Quando ao Ministério Público é deflagrada uma condição da qual não se pode recusar, põe-se em risco a credibilidade jurídica, assim como fazendo uma análise mais impetuosa, põe em risco a imparcialidade do parquet o que se tornaria uma aberrante situação sendo ele defensor dos interesses sociais e da ordem jurídica. Como bem esclarece Paulo Rangel:
“Ora, de que adianta a Constituição Federal estabelecer como guardião da ordem jurídica o Ministério Público (cf. art. 127, caput, da CRFB) se, quando e, sempre que a ordem jurídica for violada, não puder o mesmo adotar as providências de seu mister dentro e com respeito ao devido processo legal? De que adianta dar ao cidadão a certeza de que terá um Ministério Público forte e independente funcionalmente se, quando for adotada uma providência em favor do mesmo pelo Ministério Público, tal decisão puder ser revista pelo Procurador Geral de Justiça, nos termos do art. 28 do CPP, inclusive obrigando o promotor de justiça delegado a fazer o que não foi feito por se entender que não deveria sê-lo?
Assim, dá-se o direito, mas não se garante seu exercício. De nada adianta uma Constituição assim. É o que Lessalle chamava de um “pedaço de papel” (a essência da Constituição, Editora Lumen Juris, 4 ed., p. 37). Deve haver uma perfeita compatibilidade entre a Constituição real e a Constituição jurídica.
Destarte, podemos asseverar que a persecução penal do Ministério Público é uma exigência constitucional em nome do pleno exercício dos direitos e garantias fundamentais, a fim de coibir os abusos no exercício dos mesmos direitos pelos que se divorciam da ordem jurídica. […]
É o garantismo penal incidindo sobre a decisão de arquivamento do inquérito policial, a fim de evitar que a independência funcional do membro do Ministério Público seja burlada e o mesmo seja obrigado a fazer o que não entende cabível, colocando em risco a dignidade da pessoa humana com eventual e temerária ação penal.
Não se trata de revogarmos a parte final do art. 28 do CPP (designar outro órgão do Ministério Público para oferecê-la), mas, sim, de interpretá-la em sintonia com a garantia constitucional da independência funcional do Ministério Público assegurada a todo e qualquer cidadão.[…]
Por conclusão, entendemos que o promotor de justiça indicado pelo Procurador Geral “para oferecer denúncia” não está obrigado a fazê-lo, sob pena de ofendermos sua independência funcional, consagrada na Constituição da República Federativa do Brasil (cf. art. 127, § 1º)”. (RANGEL, 2007, p. 185-187)
Sendo assim, fundamentado em quais princípios a sociedade terá garantia da imparcialidade de um Ministério Público que em determinados atos da atividade jurídica é obrigado a seguir as ordens de seu chefe?.
A imprecisão se estabelece em assegurar a autonomia funcional ao promotor que dar início ao arquivamento e negá-lo ao promotor longa manus. Questiona-se então: a garantia constitucional da independência funcional é assegurada a pessoa do promotor ou a função que o mesmo exerce? Respondendo a esse questionamento, trago o entendimento de Rômulo de Andrade Moreira:
“Entendemos que a recusa é legítima e justificamos nosso posicionamento à luz de dois princípios basilares da Instituição: a independência e a autonomia funcionais, ambos consagrados no art. 127, §§ 1º. e 2º. da Constituição Federal, advertindo-se, desde logo, que a “autonomia funcional atinge o Ministério Público enquanto instituição, e a cada um dos seus membros, enquanto agentes políticos.”[…]
Este nosso entendimento procura conciliar os interesses da Instituição, que induvidosamente é hierarquizada, com os princípios constitucionais garantidos aos seus membros, lembrando-nos da lição de Paulo Cláudio Tovo, segundo a qual “a independência do Ministério Público deve ser preservada como algo precioso à segurança de todos” , inclusive, acrescentamos nós, a independência de cada um de seus integrantes.[…]
Assim pensando, procuramos consagrar a independência funcional do respectivo membro do Ministério Público sem haver afronta à figura do chefe da Instituição. Roberto Lyra já afirmava que “nem o Procurador-Geral, investido de ascendência hierárquica, tem o direito de violentar, por qualquer forma, a consciência do Promotor Público, impondo os seus pontos de vista e as suas opiniões, além do terreno técnico ou administrativo.” Para este autor (que dedicou toda a sua vida ao estudo do Direito Criminal e ao Ministério Público, a ponto de ser chamado por Evandro Lins e Silva de o “Príncipe dos Promotores Públicos brasileiros”) “quanto ao elemento intrínseco, subjetivo, dos atos oficiais, na complexidade, na sutileza, na variedade de seus desdobramentos, como a apreciação da prova, para a denúncia, a pronúncia, o pedido de condenação, a apelação, a liberdade provisória ou a prisão preventiva, é na sua consciência livre e esclarecida, elevada a um plano inacessível a quaisquer injunções ou tendências, que o Promotor Público encontra inspiração”, concluindo “que a disciplina do Ministério Público está afeta ao Procurador-Geral. No entanto, esse não intervem na consciência do subordinado.”
Desde há muito, Esmeraldino Bandeira já escrevia que o Promotor de Justiça na “sua palavra é absolutamente livre e independente, e em suas requisições não atende senão à sua consciência.” (MOREIRA, 2009)
Conclui-se então que não se pode haver distinção entre o promotor natural, aquele que requer o arquivamento, e o promotor longa manus, designado pelo Procurador-Geral de Justiça para oferecer a denúncia, ao garantir o referido princípio, já que ambos no exercício de suas funções são regidos pelas mesmas normas e princípios constitucionais e infraconstitucionais.
Contudo se entendermos ser o princípio da autonomia funcional do Ministério Público um princípio de caráter absoluto, ou seja, alcança todos os seus membros no desempenho de suas funções, não há que se questionarem quando esse recusar de oferecer a denúncia quando designado pelo Procurador-Geral de Justiça, nem tão pouco incorrer em falta funcional como bem estabelece Guilherme de Souza Nucci. (NUCCI, 2008, p.175).
Corroborando com esse entendimento e elevando o princípio da autonomia funcional à condição de cláusula pétrea, o que fortalece ainda mais o seu caráter absoluto, o professor Erlon Leal Martins assim preconiza.
“A Constituição da República de 1988 elevou o Ministério Público a uma condição nunca vista, atribuindo novas funções, inclusive, a defesa da ordem jurídica e das instituições democráticas, e cercando-lhe de garantias para o bom desempenho de seu novo mister, elencando algumas destas à categoria de princípios, tais como a independência funcional, a unidade e a indivisibilidade, previstos no artigo 127, § 1º, da Carta Magna, que sequer podem ser suprimidos pelo Poder Constituinte Derivado, pois se assim fosse estar-se-ia a burlar as cláusulas pétreas. Por adquirir a natureza jurídica de princípio constitucional explícito, a independência funcional há de ser preservada e respeitada por todas as normas infraconstitucionais, para que não haja qualquer subordinação funcional em relação aos Procuradores e Promotores de Justiça.” (ERLON, 2009)
Se entendermos de forma contrária, estabelecendo ser o princípio da autonomia funcional de caráter relativo, estaremos não só indo de encontro a sua autonomia, mas a todos os princípios constitucionais fundamentais garantidos à sociedade, já que o parquet encontra-se submisso as imposições arbitrárias do Estado. O que irá implicar no desrespeito as nossas garantias constitucionais da liberdade de expressão, julgamento justo, dentre outros, dando plenas condições à arbitrariedade do estatal.
Não se alcança diante de tal propositura um julgamento justo, já que esse promotor longa manus não age com livre convencimento.
Ao Ministério Público, como preconiza a Constituição no seu artigo 127, lhe é incumbido à defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis. A sua imparcialidade é a segurança da sociedade em detrimento das atividades arbitrárias do Estado. E na mesma linha Rômulo de Andrade Moreira citando um antigo Promotor de justiça do Distrito Federal assim destaca:
“No exercício das suas elevadas funções, o Ministério Público ‘só recebe instruções da sua consciência e da lei’ (Sentença do saudoso Magistrado Raul Martins, D. Oficial de 10 de outubro de 1914, p. 10.844) e ‘as ordens que o Chefe do Ministério Público tem o direito de impor aos seus inferiores são ordens que não afetem à consciência dos mesmos. E o Promotor, que fugindo aos impulsos da sua convicção, deixar-se sugestionar pelas imposições extrínsecas, é um que homem ultraja à sua consciência e um Magistrado que prostitui a lei. Vê, pois, V. Exª., que nas funções em que entra a convicção do Promotor, como elemento principal, a ordem do Chefe do Ministério Público não pode ter o caráter de preceito imperativo obrigatório’ (Auto Fontes, Questões Criminais p. 75-6).” (…) “Todas essas explanações evidenciam que nas hipóteses em que o Ministério Público tem que opinar da sua conduta no caso que lhe for concluso, quer de oportunidade ou cabimento de recurso legal a interpor, quer de apreciação sobre elementos para denúncias ou arquivamento de processos, só deve receber instruções da sua íntima convicção, de sua consciência. Nessa esfera, as instruções do Chefe do Ministério Público não podem penetrar, porque é a própria lei em vigor que o diz quando terminantemente dispõe que incumbe aos Promotores Públicos oferecer denúncia quando se convençam da existência de crimes de sua competência.”
6. CONCLUSÃO
Por fim, concluímos que o Procurador-Geral não pode de forma arbitrária impor ao promotor o oferecimento da denúncia, mesmo esse agindo em seu nome por delegação, como longa manus, já que, o membro do Ministério Público não está submetido hierarquicamente a nenhum poder no exercício de suas funções, essa hierarquia se reduz apenas a questões administrativas, mas nunca de maneira funcional.
O princípio da independência funcional do Ministério Público, entendemos ser de caráter absoluto, sendo necessário analisarmos a luz da Constituição, não deixando margem a nenhuma subordinação às normas infraconstitucionais.
Como bem define Pedro Lenza: “a independência funcional trata-se de autonomia de convicção não se submetendo a qualquer poder hierárquico no exercício de seu mister, podendo agir no processo da maneira que melhor atender”. Sendo respeitada as suas garantias constitucionais, como preza o artigo 127, § 1º o parquet no desempenho de suas atividades deve ser respeitada a sua indivisibilidade e a independência funcional.
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