Resumo: A distribuição do encargo probatório continua a demandar o incessante estudo e aprofundamento por parte do operador do direito da atualidade, pois o resultado do processo se apresenta como elemento de interesse das partes litigantes bem como da própria administração da justiça que deve perseguir, constantemente, a obtenção de uma prestação jurisdicional efetivamente justa. O presente artigo objetiva tratar exatamente da influência da distribuição do encargo probatório na obtenção desta prestação jurisdicional justa. Visando atingir tal desiderato, o presente artigo tece, inicialmente, considerações sobre o ônus da prova (considerações preliminares, conceito e princípios norteadores). Em seguida, analisam-se algumas questões relevantes sobre o ônus da prova em nosso Código de Processo Civil; o aspecto subjetivo e objetivo do ônus da prova; o ônus da prova analisado como “regra de conduta” e “regra de julgamento” e, finalmente, a distribuição do encargo probatório como uma questão de cunho constitucional. Tenta-se promover, em todos os tópicos acima mencionados, uma releitura da distribuição do encargo probatório dentro do contexto constitucional da efetiva prestação jurisdicional justa.
Palavras-chaves: Encargo probatório – Distribuição – Ônus – Prestação jurisdicional – Processo Civil – Constituição.
Sumário: Introdução. 1. Ônus da prova. 1.1. Considerações preliminares. 1.2. Conceito e princípios norteadores. 1.3. Questões relevantes sobre o ônus da prova no código de processo civil. 2. Aspectos da distribuição do encargo probatório que apresentam relação com a obtenção da prestação jurisdicional justa. 2.1. Aspecto subjetivo e objetivo do ônus da prova. 2.2. O ônus da prova analisado como regra de conduta e regra de julgamento. 2.3. A distribuição do encargo probatório como uma questão de cunho constitucional. Conclusão.
Introdução
Novamente o tema da distribuição do encargo probatório volta a ser objeto de análise. Entretanto, no presente artigo, se buscará enfrentar a influência da distribuição do encargo probatório na obtenção de uma prestação jurisdicional efetivamente justa.
Tal questão apresenta-se, a nosso ver, como um dos grandes temas do direito probatório da atualidade, tendo em vista as modernas garantias constitucionais de acesso à justiça e à ordem jurídica justa, sendo, portanto, uma questão de extremada importância para as partes e também para o juiz.
Para a realização de tal análise, serão observados alguns princípios que norteiam o instituto do ônus da prova, a saber: o princípio da indeclinabilidade da jurisdição, pelo qual o juiz não pode deixar de proferir sua decisão de mérito, ainda que diante de casos em que não há conjunto probatório suficiente para a formação de sua convicção; o princípio dispositivo ou da iniciativa das partes, segundo o qual cabe às partes a iniciativa da ação e das provas; e o princípio da persuasão racional na apreciação da prova, pelo qual o juiz deve decidir mediante o que fora alegado e provado no processo e não baseado em suas convicções íntimas.
Em outra frente tem-se que, modernamente, a distribuição do encargo probatório é considerada como uma questão de cunho constitucional, tendo como principais nuances o acesso à justiça, a prova e a tutela entregue pelo Estado-Juiz, tutela esta que deve ser manifestada através da prestação jurisdicional efetivamente justa, pois nossa Constituição da República garante a todos o efetivo acesso a uma ordem jurídica efetivamente justa.
Ora, de nada adianta assegurar abstratamente o direito de ação, se este mesmo direito não for, na prática, exercido eficazmente no sentido de se alcançar uma prestação jurisdicional justa, que proporcione, de fato, a resolução do conflito de interesses apresentado pelas partes litigantes, garantindo, desta forma, a efetividade da prestação jurisdicional.
Exatamente por esta razão que os institutos jurídicos estão sendo analisados modernamente à luz dos princípios constitucionais, sendo que a questão da distribuição do encargo probatório não pode, em hipótese alguma, ser excluída deste contexto.
O presente trabalho não pretende encerrar a discussão acerca do tema proposto, pois outros pontos que envolvem o tema também desafiam a pesquisa, mas apenas analisar as idéias básicas que norteiam o assunto em exame, contribuindo, desta forma, para um melhor entendimento e manejo das regras processuais que disciplinam a distribuição do encargo probatório.
1. ÔNUS DA PROVA
1.1 Considerações preliminares
A distribuição do encargo probatório apresenta-se como um tema que possui estreita ligação com a prestação jurisdicional uma vez que o resultado do processo, que se apresenta como elemento de interesse das partes litigantes bem como da própria administração da justiça, sofre grande influência das regras e da forma como ocorre a distribuição do encargo probatório em um caso concreto.
Realmente, toda pretensão tem por fundamento um fato (ou alegação sobre a ocorrência de um fato). No processo o autor, inicialmente, afirma um fato, o qual, contudo, pode não corresponder à verdade. Por sua vez o réu pode opor afirmação contrária, ou negando a veracidade da afirmação do autor ou aduzindo fato diverso que extingue, modifica ou impede o exercício do direito deste, afirmação esta que também pode não condizer com a verdade.
Assim, proposta a demanda, as partes têm o interesse em oferecer ao julgador as provas possíveis para a prolação de um provimento legítimo, capaz de por fim ao conflito de interesses[1]. Nesse sentido, a lição de Robson Renault Godinho, para quem “a idéia básica sobre o ônus da prova é, em síntese, o aproveitamento que a parte pode ter ao produzir a prova que, em princípio, traga-lhe benefício, servindo ao juiz para o julgamento da causa quando houver dúvidas sobre fatos relevantes.” [2]
De forma bastante completa, Hernando Devis Echandía, discorrendo sobre a carga da prova, aduz que:
“Para saber con claridad qué debe entenderse por carga de la prueba es indispensable distinguir los dos aspectos de la noción: 1º) por una parte, es una regla para el juzgador o regla de juicio, porque le indica cómo debe fallar cuando no encuentre la prueba de los hechos sobre los cuales debe basar su decisión, permitiéndole hacerlo en el fondo y evitándole el proferir un ‘non liquet’, esto es, una sentencia inhibitoria por falta de prueba, de suerte que viene a ser un sucedáneo de la prueba de tales hechos; 2º) por otro aspecto, es una regla de conducta para las partes, porque indirectamente les señala cuáles son los hechos que a cada una le interesa probar (a falta de prueba aducida oficiosamente o por la parte contraria), para que sean considerados como ciertos por el juez y sirvan de fundamento a sus pretensiones o excepciones.” [3]
Em outra frente, Francesco Carnelutti pondera que:
“O problema está dominado pelo princípio segundo o qual, enquanto no processo atuam duas partes em contraste entre si, não só é possível, mas útil, privar o juiz de toda iniciativa em relação à busca das provas, na qual cada uma das partes deve pensar em seu interesse […] assim, não podendo contar com a iniciativa do juiz, cada parte se vê estimulada ao máximo na busca e o juiz, por sua vez, fica livre de uma tarefa que pode comprometer sua imparcialidade. Por isso a faculdade de cada uma das partes se acrescenta a cargo de propor as provas em apoio aos motivos adotados por elas […]”[4].
Em linhas gerais, podemos dizer que o processo apresenta-se como a garantia que o jurisdicionado possui no sentido da satisfação efetiva dos direitos materiais que o mesmo entende possuir no campo abstrato da norma.
Esta garantia se manifesta hoje no chamado “direito constitucional de ação”.
Clássica é a idéia de que o processo civil tinha como uma de suas finalidades básicas a resolução do conflito de interesses visando a pacificação social, como observa Augusto M. Morello:
“Desde distinta mira (y acaso en drástica simplificación) se subraya que el proceso civil tiene una finalidad básica: resolver el conflicto o la controversia de las partes en nombre, eventualmente, del valor de la pacificación social, y em razón de que el derecho procesal que lo regula es consecuencia de la supresión de la justicia privada”. [5]
Através do processo, este mesmo jurisdicionado possui, desde o início de uma eventual demanda, conhecimento das regras que irão orientar o deslinde de sua ação, deslinde este compreendido desde o ajuizamento de sua peça vestibular (contendo o pedido inicial) até o momento da realização efetiva da prestação jurisdicional por parte do Estado – Juiz.
Durante todo o percurso deste processo, as partes envolvidas buscam a todo instante a satisfação de um desiderato principal, qual seja, formar o convencimento do magistrado a seu favor.
Para atingir tal desiderato, as partes utilizam um instrumento primordial denominado prova e, consequentemente, todas as regras referentes à distribuição de tal encargo entre as mesmas.
É através deste instrumento que as partes buscam, primordialmente, formar o convencimento do julgador a seu favor, de sorte a assegurarem o êxito de uma determinada demanda onde está em jogo, na maioria das vezes, um conflito de interesses (lide) [6].
Acerca da função e destinatário da prova, Carreira Alvim sustenta que:
“A prova cumpre também uma função que é formar a convicção (do juiz) sobre a veracidade ou não dos fatos alegados pelas partes. Primeiro, cria a certeza quanto à existência dos fatos e, depois, esta certeza, tornada inabalável pela exclusão de todos os motivos contrários, faz-se convicção. Então, diz-se que um fato está provado, ou seja, formou-se no espírito do juiz a certeza quanto à sua existência ou veracidade. Fala-se também em destinatário da prova, que pode ser: a) direto, o juiz, pois objetiva formar-lhe a convicção; e b) indireto, as partes, reciprocamente, que devem ser convencidas, a fim de acolher como justa a decisão.”[7]
Na verdade, o instrumento jurídico denominado prova apresenta-se como o meio capaz de trazer ao momento presente um fato que já faz parte do passado, destinado ao convencimento motivado do magistrado para que se chegue a uma tutela jurisdicional justa.
Alguns autores mencionam a existência de uma verdade formal e de uma verdade material, aduzindo que é impossível no processo civil chegar-se à verdade material, razão pela qual o direito se daria por satisfeito com a descoberta da verdade formal.
Entretanto, entendemos que esta dicotomia já está superada, pois, o que importa, de fato, é o convencimento motivado do julgador, convencimento este que se dá através da participação ativa das partes e do próprio juiz no sentido de investigar os fatos com o desiderato de compreender plenamente todos os elementos que terão importância para a decisão do conflito de interesses apresentado ao Estado-Juiz[8].
Neste sentido, o moderno posicionamento de Robson Renault Godinho:
“Vê-se, pois, que o problema da “verdade” no processo é extremamente complexo. O processo é formado pela argumentação jurídica dos sujeitos de que dele participam e, se normalmente depende da reconstrução de situações fáticas, não significa que sua finalidade seja a busca da “verdade” – mesmo a denominada “formal”, especialmente porque não há nenhuma validade ou vantagem na utilização da dicotomia formal/material nesse particular -, mas, sim, do convencimento motivado do julgador. Na realidade, tanto quanto possível, as partes e o juiz devem investigar os fatos do modo mais amplo permitido pelos naturais limites cognitivos de um processo judicial, a fim de estabelecer uma compreensão plena dos elementos relevantes para a decisão de uma causa […]. Nesse quadro, o conhecimento possível sobre os fatos pode não ser pleno e exauriente, mas suficiente para legitimar uma decisão judicial. Importa estabelecer que o necessário é que o julgador indique, na fundamentação, as razões de seu convencimento acerca dos fatos importantes para a resolução da causa.”[9]
De forma conclusiva e com a autoridade que lhe é reconhecida, Michele Taruffo sustenta que:
“La distinción entre verdad formal y verdad material es, sin embargo, inaceptable por varias razones que la doctrina menos superficial ha puesto en evidencia desde hace tiempo. En especial, parece insostenible la idea de una verdad judicial que sea completamente ‘distinta’ y autónoma de la vedad ‘tout court’ por el solo hecho de que es determinada en el proceso y por medio de las pruebas; la existencia de reglas jurídicas y de límites de distinta naturaleza sirve, como máximo, para excluir la posibilidad de obtener verdades absolutas, pero no es suficiente para diferenciar totalmente la verdad que se establece en el proceso de aquella de la que se habla fuera del mismo […] La expresión ‘verdad material’, y las otras expresiones sinónimas, resultan etiquetas sin significado si no vinculan al problema general de la verdad […]” [10].
Por outro lado, se considerássemos a possibilidade de realmente atingirmos, através do processo, a verdade dita absoluta, teríamos de reconhecer que todos os meios possíveis e imagináveis deveriam ser obrigatoriamente empregados, independentemente do longo tempo a ser despendido em tal situação, o que seria, por certo, inconcebível, razão pela qual Michele Taruffo sustenta que “parece absolutamente obvia la observación de que en el proceso no se trata de establecer verdades absolutas e inmutables sobre nada y que, por tanto, sólo tiene sentido hablar de verdades relativas […]” [11].
Para se evitar a demora exacerbada no trâmite do processo (ocasionada, neste contexto, pela produção ilimitada e desenfreada de provas visando a busca incessante e mesmo cega de uma verdade tida como absoluta), existem limitações quanto a este direito de produção de todo e qualquer tipo de prova, evitando-se assim a entrada no processo de provas que podem ser consideradas impuras, espúrias e principalmente protelatórias.
Sobre o assunto, Michele Taruffo aduz que:
“[…] el proceso debe desarrollarse en un tiempo limitado, dado que intereses tanto públicos como privados presionan para que la ‘finis litium’ se alcance rápidamente, y éste es un gran obstáculo para la búsqueda de la verdad. Además, existen limitaciones legales al uso de los medios judiciales de conocimiento y a los procedimientos con los que aquéllos pueden ser producidos y utilizados […]” [12].
Visando atingir este objetivo, a sistemática processualística instituiu o chamado “juízo de admissibilidade” que pode ser conceituado como sendo o poder exercido pelo juiz da causa no sentido de realizar uma valoração prévia do pedido das partes de produção de determinadas provas visando a reconstrução do fato que esta sendo investigado.
1.2 Conceito e princípios norteadores
A distribuição do ônus probatório[13] apresenta-se como um dos grandes temas do direito probatório da atualidade, tendo em vista as modernas garantias constitucionais de acesso à justiça e à ordem jurídica justa, sendo um instrumento de extremada importância para as partes e também para o juiz. Sobre tal importância, Leo Rosenberg aduz que “[…] las normas sobre la carga de la prueba son un complemento necesario de toda ley y de todo precepto jurídico, capaces de aplicarse por un juez en un litigio que debe resolver.” [14]
De fato, conforme discorre com propriedade Hernando Devis Echandía:
“La carga de la prueba determina lo que cada parte tiene interés en probar para obtener éxito en el proceso, es decir, cuáles hechos, entre los que forman el tema de la prueba en ese proceso necesita cada una que aparezcan probados para que sirvan de fundamento a sus pretensiones (incluyendo la punitiva del Estado) o excepciones o defensas, y le dice al juez cómo debe fallar en caso de que esas pruebas falten.”[15]
Quanto a sua importância no direito probatório da atualidade, digna de menção as ponderações de Augusto M. Morello:
“Seguramente que en punto a la distribución en concreto – y en cada controversia – de la carga de probar es en donde el interés y la preocupación de los estudiosos se han concertado con mayor entusiasmo por requerirlo la movilidad, complejidad y lo novedoso de los asuntos de la moderna litigación que, por causas múltiples, no poços de ellos se engloban como procesos de alta complejidad .” [16]
Para Cândido Rangel Dinamarco, no campo conceitual, “ônus da prova é o encargo, atribuído pela lei a cada uma das partes, de demonstrar a ocorrência dos fatos de seu próprio interesse para as decisões a serem proferidas no processo.” [17]
De fato, “às partes incumbe o ônus de provar suas alegações. Não se trata de obrigação, trata-se da carga que recai sobre elas, e assim agem visando seu próprio interesse.” [18]
Após várias considerações, Hernando Devis Echandía define a carga da prova da seguinte maneira:
“Carga de la prueba es una noción procesal, que contiene la regla de juicio por medio de la cual se le indica al juez cómo debe fallar, cuando no encuentra en el proceso pruebas que le den certeza sobre los hechos que deben fundamentar su decisión, e indirectamente establecer a cuál de las partes le interes ala prueba de tales hechos, para evitar las consecuencias desfavorables a ella o favorables a la outra parte).” [19]
Assim, pode-se dizer que é o agir de determinado modo visando a satisfação de um interesse próprio, ao mesmo tempo evitando-se uma situação de desvantagem.
Por outro lado, as regras de distribuição do ônus probatório ajudam o juiz a formar a sua convicção, inclusive nos casos em que as partes não forneceram plenamente os elementos necessários para o deslinde da questão, sendo que, nesta hipótese, a decisão será desfavorável para a parte que era responsável pelo ônus e dele não se desincumbiu[20].
Não se trata de uma obrigação de provar, mas uma necessidade de provar. Nos dizeres de Pontes de Miranda:
“Ônus da prova é o ônus que tem alguém de dar prova de algum enunciado de fato. Não se pode pensar em dever de provar, porque não existe tal dever, quer perante outra pessoa, quer perante o juiz; o que incumbe ao que tem o ônus da prova há exercer-se o seu próprio interesse.”[21]
No mesmo sentido e de forma extremamente didática, ensina Carreira Alvim que:
“O ônus probatório corresponde ao encargo que pesa sobre as partes, de ministrar provas sobre os fatos que constituem fundamento das pretensões deduzidas no processo. Ônus não é sinônimo de obrigação e ônus de provar não é o mesmo que obrigação de provar. O conceito de ônus (encargo), enquanto necessidade de prova para prevenir um prejuízo processual corresponde ao conceito de “obrigação”, mas pertence a área distinta do direito: o ônus, ao direito processual; a obrigação, ao direito material […]. O ônus não é o mesmo que “dever jurídico”, mas um “encargo”. O dever é sempre em relação a alguém; há uma relação jurídica entre dois sujeitos, em que um deve uma prestação ao outro; a satisfação da obrigação é do interesse do sujeito ativo. O ônus, por seu turno, é em relação a si mesmo; satisfazer o ônus é interesse do próprio onerado. Assim, o réu tem o ônus da contestação.”[22]
Há, pois, uma diferença entre ônus e obrigação no contexto processual, razão pela qual não significam a mesma coisa[23].
Ninguém possui o dever ou obrigação de provar os fatos alegados por si, mas sim o ônus de fazê-lo.
Trata-se de uma faculdade que a parte tem, e, caso não seja cumprido, poderá resultar em prejuízo[24]. E a questão da possibilidade de um prejuízo está diretamente ligada à regra de distribuição do ônus da prova no direito brasileiro.
Tal entendimento é corroborado pelo ensinamento de Luiz Rodrigues Wambier:
“O ônus difere de dever, pois este pressupõe sanção. Melhor dizendo, sempre que a norma jurídica impõe um dever a alguém, em verdade está obrigando ao cumprimento, o que gera ao pólo oposto da relação jurídica o direito – correlato e em sentido contrário – de exigir o comportamento do obrigado. Nada disso ocorre com o ônus, que implica, tão-somente, no caso de descumprimento, em uma conseqüência processual. Há interesse no cumprimento do ônus da prova. Com ‘interesse’ se quer dizer que a prática do ato processual favorece à parte. Há interesse em praticá-lo porque se tirará algum proveito processual com a atividade” [25].
A regra geral prevista no CPC é que o ônus da prova incumbe a quem alega. Isto quer dizer que a própria parte que alega o fato tem o interesse de que seja reconhecida a verdade por ele invocada.
A obrigação tem um aspecto diferente, deixa de ser uma faculdade para ser uma imposição de um comportamento e não cumpri-lo gera um ilícito jurídico. Nas palavras de Caio Mário a obrigação “é o vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa pode exigir de outra uma prestação economicamente apreciável.” [26]
Discorrendo sobre a noção de ônus, Eduardo Cambi esclarece que essa situação jurídica está no mesmo grupo dos poderes e das faculdades, pois o sujeito tem liberdade para realizar o ato, cujo resultado será revertido em seu próprio benefício, sendo que a não realização do ato pode acarretar-lhe, apenas e tão somente, conseqüências desfavoráveis. No entanto, assevera que:
“O mesmo não ocorre com as ‘obrigações’ e com os ‘deveres’, porque, nesses casos, o sujeito passivo se encontra submetido a uma ‘sujeição jurídica’ ou a um vínculo, uma vez que não tem liberdade de conduta, a qual pode ser coercitivamente exigida pelo outro sujeito, cujo não-cumprimento implica a violação da lei (ilicitude)”[27].
De fato, no ônus há a ideia de carga[28], e não a ideia de obrigação ou dever. É pacífico o entendimento de que o ônus da prova é uma conduta que se espera da parte incumbida de provar. Ao autor incumbe provar os fatos alegados na sua inicial, constitutivos de seu direito, e ao demandado cabe provar os fatos presentes em sua defesa.
Os princípios que norteiam o instituto do ônus da prova são: o princípio da indeclinabilidade da jurisdição, pelo qual o juiz não pode deixar de proferir sua decisão de mérito; o princípio dispositivo ou da iniciativa das partes, segundo o qual cabe às partes a iniciativa da ação e das provas; e o princípio da persuasão racional na apreciação da prova, por onde o juiz deve decidir-se mediante o que fora alegado e provado no processo e não baseado em suas convicções íntimas.
Sobre o princípio dispositivo, Sandra Aparecida Sá dos Santos observa que:
“A teoria clássica do ônus da prova relaciona-se com o princípio dispositivo, que confere fundamentalmente às partes a iniciativa e a responsabilidade no trabalho de escolha, indicação e demonstração dos fatos sobre os quais terá o juiz de fundar-se no julgar a causa.”[29]
Discorrendo sobre o princípio dispositivo e o ônus da prova, João Batista Lopes aduz que:
“O princípio dispositivo está intimamente relacionado com as regras sobre o ônus da prova. Com efeito, ao atribuir às partes o ônus da prova das alegações, está o legislador a consagrar a essência do princípio dispositivo, ou seja, a iniciativa conferida àquelas. Entretanto, as regras sobre o ônus da prova previstas no art. 333 do CPC não podem ser interpretadas literalmente, mas de acordo com o sistema processual.”[30]
Já no aspecto da distribuição do ônus da prova, Cândido Rangel Dinamarco, ao discorrer sobre o interesse, entende que este se apresenta também como princípio, ao sustentar que:
“O princípio do interesse é que leva a lei a distribuir o ônus da prova pelo modo que está no art. 333 do Código de Processo Civil, porque o reconhecimento dos fatos constitutivos aproveitará ao autor e o dos demais, ao réu; sem prova daqueles, a demanda inicial é julgada improcedente e, sem prova dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos, provavelmente a defesa do réu não obterá sucesso”[31].
Desta forma, a indicação das provas é ato de iniciativa das partes interessadas na demonstração da verdade dos fatos articulados na inicial e na contestação[32]. Neste sentido, José Carlos Barbosa Moreira aduz que “conforme anteriormente observado, é na fase postulatória que as partes, em princípio, hão de produzir prova documental: o autor, com a inicial; o réu, com a contestação (arts. 283 e 396)” [33].
No entanto, esta iniciativa não é exclusiva, pois concomitantemente se aplicam os princípios da autoridade e o da iniciativa oficial. O primeiro confere ao juiz o comando do processo (art. 125 do CPC). O segundo prevê o chamado “impulso oficial” em diversas situações.
1.3 Questões relevantes sobre o ônus da prova no código de processo civil
No aspecto probatório dito comum, isto é, aquele não disciplinado por legislação especial que cuide do tema, temos que a matéria referente a distribuição do encargo probatório, inspirado no princípio dispositivo, está prevista no art. 333 do Código de Processo Civil.
Pelo dispositivo em exame, verificamos que ao autor e ao réu são direcionadas normas objetivas, quanto ao ônus da prova e a sua conseqüente produção.
A cerca da igualdade das partes no processo de conhecimento, pondera Rodolfo de Camargo Mancuso que:
“É no processo de conhecimento que a igualdade das partes pode ter ampla e irrestrita aplicação, e o legislador processual cuida de preservá-la, tendo por base, primeiramente, o fato de que o autor é que tomou a iniciativa de acionar o aparelho jurisdicional do Estado, sendo, pois, razoável a incidência da norma onus probandi incumbit ei qui agit – o ônus da prova incumbe àquele que age -, razão pela qual o ônus da prova do fato constitutivo do pedido cabe ao autor (CPC, art. 333, I); esse mesmo critério explica que o réu, quando tome alguma iniciativa, ou seja, quando não se restrinja à mera resistência (v.g., quando reconvém ou oferece alguma exceção substancial), fica igualmente com o ônus da prova do fato alegado: “reus in exceptio fit actor” ( o réu, quando excepciona, recebe tratamento processual como se fora o autor – CPC, art. 333, II)”[34].
Desta forma, o ônus da prova estará a cargo do autor, quando este necessitar provar fato constitutivo de seu direito.
Para Eduardo Cambi, “podem ser considerados ‘fatos constitutivos’ aqueles que integram a ‘fattispecie’ jurídica, da qual se extrai o direito substancial deduzido em juízo, isto é, a ‘pretensão do autor’. Destarte, são fatos que ‘constituem’ a relação jurídica de direito material ou dão vida a uma vontade concreta da lei.” [35]
Para este tipo de situação, o ônus da prova estará a cargo do autor uma vez que é este que possui, em tese, os elementos necessários para a demonstração e conseqüente caracterização dos fatos que constituem o seu direito.
Não há nesta hipótese condição de transferir o ônus probatório ao réu, pois o principal interessado em demonstrar e provar a sua pretensão em juízo é o autor além de ser este a parte que detém, em tese, os elementos probatórios capazes de demonstrar tal desiderato.
Se o autor não conseguir produzir prova neste sentido, o seu pedido será, em linhas gerais e salvo situações especiais, julgado improcedente.
A seu turno, o ônus da prova estará a cargo do réu, todas as vezes que este necessitar provar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor (fatos negativos).
Chamamos a atenção para o fato de que o simples cumprimento ou descumprimento destas regras por parte do autor ou do réu, não enseja, por si só, o julgamento favorável ou desfavorável da demanda, conforme observa Robson Renault Godinho:
“O descumprimento do ônus da prova não implica julgamento desfavorável – assim como seu cumprimento não significa necessariamente o acolhimento da pretensão -, já que a prova suficiente pode ser trazida pelo processo pela outra parte, pelo próprio juiz ou pelo Ministério Público, mas pode significar o aumento do risco de uma decisão desfavorável, razão pela qual as partes devem estar cientes das regras de distribuição.”[36]
Entretanto, Eduardo Cambi acertadamente adverte que:
“Isso, em contrapartida, não retira a importância do ônus da prova, porque, se o seu cumprimento não garante automaticamente a obtenção da tutela jurisdicional favorável, com certeza a sua não-observância ‘aumenta o risco’ de uma decisão desfavorável. Com efeito, a conseqüência negativa que pode derivar da inércia da parte, a quem incumbe o ônus da prova, não é ‘necessária’, mas, em geral, ‘mais provável’, já que quem produz a prova tem mais chance de influir no convencimento do juiz. Logo, o cumprimento do ônus da prova é somente um ‘instrumento’ para a obtenção de uma decisão favorável, mas que não retira a possibilidade de o juiz, dentro do seu livre convencimento motivado, dar razão à parte contrária”[37].
Veja-se que numa relação processual, onde se busca a tutela jurisdicional do Estado – Juiz para se por fim a um conflito de interesses (lide), temos que as partes envolvidas nesta mesma relação buscam, a todo instante, convencer o Juiz da veracidade de suas alegações.
Outro ponto digno de menção é que pela sistemática adotada pelo Código de Processo Civil, verificamos que as partes poderão convencionar a distribuição do ônus probatório de maneira diversa daquela disposta nos incisos do art. 333 deste mesmo Código.
No entanto, o parágrafo único do mesmo dispositivo prevê expressamente duas exceções existentes a esta convenção, são elas:
I – recair sobre direito indisponível da parte; e
II – tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
No caso da primeira exceção, o legislador taxou de nula qualquer convenção das partes que distribua de maneira diversa o ônus da prova todas as vezes que este recair sobre direito indisponível da parte.
Ora, se estamos tratando de direitos indisponíveis, estes não se encontram na esfera de negociação das partes, nem mesmo daquela que, em tese, detém tal direito.
Para estes direitos, ditos indisponíveis pela legislação, devem incidir, no campo do ônus probatório, todas as regras previstas nos incisos do art. 333, sem qualquer modificação dos moldes de distribuição dos ônus ali previstos.
Quando a distribuição do ônus da prova recair sobre direito disponível da parte, esta será livre, desde que tal distribuição não torne excessivamente difícil a uma parte o exercício de seu direito, sendo exatamente esta a segunda exceção prevista pelo legislador, exceção esta que nos ocuparemos nos parágrafos abaixo.
No caso da segunda exceção, o legislador também taxou de nula qualquer convenção das partes que distribua de maneira diversa o ônus da prova todas as vezes que esta distribuição tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
Nesta hipótese, verificamos que o legislador interfere diretamente na distribuição do ônus probatório pelas partes naquelas situações onde tal ônus recaia sobre direito disponível de qualquer uma delas.
Já vimos que em se tratando de direitos indisponíveis as convenções realizadas são nulas.
Em se tratando de direitos disponíveis, a distribuição do ônus probatório poderá ocorrer desde que não torne excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito, pois, se isto ocorrer, tal convenção será nula.
Por fim, ressalte-se que as normas do CPC restam vigentes inclusive para outras relações jurídicas, como ocorre, por exemplo, nas relações de consumo, mesmo que aplicadas de forma subsidiária, mas com a ressalva de que é permitida a inversão do ônus da prova para facilitar a defesa dos consumidores quando verificadas as condições para sua admissibilidade.
2. ASPECTOS DA DISTRIBUIÇÃO DO ENCARGO PROBATÓRIO QUE APRESENTAM RELAÇÃO COM A OBTENÇÃO DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL JUSTA
2.1 Aspecto subjetivo e objetivo do ônus da prova
A doutrina costuma tratar a distribuição do encargo probatório através da análise de dois prismas distintos: o subjetivo e o objetivo[38]. Neste sentido Eduardo Cambi ensina que:
“Estruturalmente, o ônus da prova pode ser compreendido em uma dupla perspectiva, tratando-se, simultaneamente, de uma noção subjetiva e outra objetiva: i) ‘subjetiva’, porque contempla a situação de cada uma das partes perante os fatos, que estão na base de suas pretensões ou exceções, e sobre os quais geralmente se requer a realização de provas; ii) ‘objetiva’, porque também constitui uma regra de julgamento, permitindo que o juiz decida, quando falte a prova”[39].
O aspecto subjetivo está vinculado à atividade probatória que será desenvolvida pelas partes no transcorrer do processo, sendo que cada parte assume o risco da conseqüência da não produção (ou da produção ineficiente) da prova necessária ao deslinde do caso.
Em outra vertente, o ônus da prova em sentido subjetivo estabelece a divisão do ônus probatório entre as partes litigantes, determinando que cabe ao autor provar os fatos constitutivos da sua demanda, cabendo ao réu a prova dos fatos sobre os quais a sua exceção estará fundada. Verifica-se que este critério tem por base o interesse na afirmação do fato, sendo que a parte que alega é que deve tentar buscar os meios necessários para poder influir no convencimento do juiz a seu favor. [40]
Por esta razão, Eduardo Cambi conclui que:
“O ônus da prova, em sentido subjetivo, determina quais dos fatos, que integram o ‘thema probandi’, cada parte deve provar para obter êxito no processo. O critério de distribuição da prova, adotado no art. 333 do CPC, leva em consideração a ‘posição das partes no processo’ e a ‘natureza dos fatos’ que fundam as suas pretensões e exceções, atribuindo ao autor a prova dos ‘fatos constitutivos’, e ao réu, a dos ‘impeditivos, extintivos e modificativos’”[41].
Já o ônus da prova em sentido objetivo tem estrita ligação com a vedação imposta ao juiz de pronunciamento non liquet. Por meio de tal vedação, o juiz está obrigado a julgar todas as demandas que lhe são apresentadas, inclusive aquelas em que há material probatório inexistente ou incompleto, sendo que, para estas últimas, o risco é suportado pela parte que não cumpriu adequadamente o ônus imposto previamente pela lei processual.
Neste caso, o ônus da prova em sentido objetivo funciona como verdadeira regra de julgamento tendo em vista a existência de dúvida por parte do julgador da demanda. Se a dúvida do julgador está relacionada ao fato constitutivo da demanda, o autor será “penalizado”; se a dúvida do julgador estiver relacionada com os demais fatos previstos na lei processual, o réu é que será “penalizado”.
Sobre a necessidade da existência do ônus da prova em sentido objetivo, Eduardo Cambi conclui que:
“Conseqüentemente, o ônus da prova em sentido objetivo é uma ‘exigência prática’, visto que, não sendo possível a pronúncia judicial ‘non liquet’, se não existisse esse mecanismo de resolução de dúvidas, dar-se-ia ensejo à ‘denegação de justiça’, contrariando a regra constitucional, contida no art. 5º., inc. XXXV, CF, que prevê a garantia do acesso à justiça”[42].
Ainda sobre a carga objetiva (material) da prova, Leo Rosenberg observa que:
“En cambio, la carga de la certeza prescinde de toda actividad de las partes emprendida con el fin de hacer constar los hechos discutidos; con respecto a esta carga, sólo interesa saber cuáles son los hechos que deben constar para que se consiga la finalidad anhelada del proceso; además, aquélla determina las consecuencias de la incertidumbre acerca de un hecho, sin que importe la circunstancia de que una u outra de las partes, o las dos, o el tribunal, se han preocupado en el sentido de hacerlo constar. Por eso, tiene lugar en todo procedimiento en el cual se trata de aplicar normas jurídcias abstractas a una situación de hecho concreta, sea que en el procedimiento domina el principio de inquisición o el principio de disposición o una estructura intermediaria entre estos dos”. [43]
Por fim, deve observar-se que existe uma estreita relação entre o ônus subjetivo e o objetivo.
De fato, o juiz só se utiliza do ônus da prova em sentido objetivo quando a parte não produz adequadamente as provas que lhe competiam (suporte fático), conforme acentua Eduardo Cambi:
“Consequentemente, a falta de certeza, que determina ao juiz aplicar o ônus da prova em sentido objetivo, é inseparável do risco que pesa sobre a parte que não produz os fatos necessários para a aplicação da norma jurídica invocada e dependente da verificação concreta desses fatos duvidosos. Com efeito, o juiz, na impossibilidade de resolver essa dúvida e ter elementos suficientes para formar a sua convicção, não tem outra saída senão contrariar os interesses da parte que, desde o início do processo, era responsável pela demonstração desse suporte fático. Portanto, o aspecto objetivo do ônus da prova está ligado, intrinsecamente, ao subjetivo, não podendo ser desprezado”[44].
Leo Rosenberg, discorrendo também sobre a relação existente entre a carga objetiva e subjetiva da prova, sustenta que:
“[…] no existe una carga objetiva sin relación subjetiva, esto es, sin una persona encargada de la prueba, y que es simplesmente absurdo imarginarse una ‘carga’ sin un ‘portador’ de ésta. No se ha sostenido tal cosa. Se entiende que la carga objetiva de la prueba es soportada por una parte, pues, la justificación y la importancia de la doctrina pertinente consiste, precisamente – tal como lo hemos subrayado repetidas veces -, en que las normas relativas a la carga de la prueba hacen sucumbir a la parte cargada en caso de incertidumbre acerca de la situación de hecho. Por eso, es completamente acertada la opinión de que ‘no se puede imaginar (la carga de la prueba) sin la característica de que grave sobre alguien.”[45]
Pelo exposto, constatamos que é extremamente importante o entendimento e o correto manejo prático do aspecto subjetivo e objetivo do ônus da prova, pois estes influem também diretamente na obtenção de uma prestação jurisdicional efetivamente justa.
2.2 O ônus da prova analisado como regra de conduta e regra de julgamento
Ainda visando a efetividade da prestação jurisdicional justa, temos que o ônus da prova deve ser estudado também considerando-se dois prismas diversos: quando funciona como “regra de conduta” e quando funciona como “regra de julgamento” [46].
Para início de entendimento, podemos dizer que o ônus da prova apresenta-se como “regra de conduta” no sentido de orientar e determinar às partes quais são os ônus probatórios que cada uma terá ao longo da relação processual.
Apresenta-se como um aspecto imprescindível no sentido de já esclarecer às partes quais as regras serão utilizadas, além de determinar abstratamente quais os fatos cada parte deve provar para influir no convencimento do julgador, fornecendo a este os elementos necessários para a prolação de uma decisão que analise e decida adequadamente o mérito da demanda, alcançando assim a obtenção de uma prestação jurisdicional efetivamente justa.
Por outro lado, o ônus da prova apresenta-se como “regra de julgamento”, quando a demanda chega ao momento da prolação da sentença e o juiz constata que não há provas e elementos suficientes para se analisar e decidir adequadamente o mérito da demanda.
Como o juiz é obrigado a decidir em todos os casos, pois lhe é vedado o pronunciamento non liquet, o sistema processual lhe permite a utilização do ônus da prova como “regra de julgamento” exatamente com o fim de propiciar a existência de uma decisão, mesmo na ausência de provas e elementos suficientes.
Realizando a análise da estruturação do ônus da prova, Eduardo Cambi sustenta que:
“Consequentemente, o ônus da prova é, ao mesmo tempo, uma ‘regra de conduta’ para as partes, uma vez que determina indiretamente quais são os fatos que cada um dos litigantes deve provar para serem considerados certos pelo juiz e para servirem de fundamento para as suas respectivas pretensões ou exceções, e uma ‘regra de julgamento’, para o julgador, pois permite ao magistrado decidir mesmo não existindo provas suficientes”[47].
Em nosso sistema processual, a regra basilar utilizada ora como “regra de conduta”, ora como “regra de julgamento”, é exatamente a regra constante no já tratado art. 333 do CPC.
Desta forma, todas as vezes que o juiz estiver em dúvida, por exemplo, quanto à existência do fato constitutivo do direito alegado pelo autor, a regra do art. 333 do CPC será utilizada como “regra de julgamento”, resultando em uma decisão que será desfavorável ao autor, pois o mesmo não cumpriu adequadamente o seu ônus de prova previsto no art. 333, I do CPC.
Para este tipo de situação, e conforme já discorremos no item anterior, o ônus da prova em sentido objetivo funcionará como “regra de julgamento”, penalizando o autor pelo não cumprimento do ônus que estava a seu encargo. Tal regra vale também para o réu, no caso de descumprimento do ônus previsto no art. 333, II do CPC.
Discorrendo sobre a utilização do disposto no art. 333 do CPC como “regra de julgamento”, Eduardo Cambi observa que:
“Assim, havendo dúvidas quanto à existência dos fatos que servem de pressupostos concretos à aplicação da norma abstrata, o juiz deve valer-se da art. 333 do CPC como ‘regra de julgamento’, pesando as conseqüências desfavoráveis, peculiares ao ‘onus probandi’, sobre a parte que se beneficiaria com a aplicação dessa norma.
O ônus da prova, em sentido objetivo, serve como uma ‘regra de julgamento’, porque o juiz deve considerar sucumbente a parte que não demonstre os fatos preestabelecidos nas normas jurídicas, as quais deveriam ser aplicadas para que a tutela jurisdicional fosse assegurada.
O conteúdo genérico do ônus da prova, como ‘regra de julgamento’, consiste, pois, na impossibilidade de o juiz considerar um fato existente quando pairam razoáveis dúvidas sobre a sua existência, já que não lhe foram fornecidas as provas suficientes. Afinal, o fato não alegado, bem como o fato alegado, mas não provado, devem ser reputados ‘inexistentes’” [48].
Entretanto, duras são as críticas feitas pela doutrina à utilização desenfreada e irresponsável do ônus da prova como “regra de julgamento”.
De fato, a decisão proferida utilizando-se o ônus da prova como “regra de julgamento” não observa e nem atinge o postulado moderno que busca a obtenção de uma prestação jurisdicional justa, ao passo que o conflito de interesses existente entre o autor e o réu não é verdadeiramente resolvido e as incertezas continuam a existir.
Tal situação é muito bem trabalhada por Marcelo Abelha Rodrigues e Eduardo Cambi. Para Marcelo Abelha Rodrigues:
“A adoção do art. 333 como regra de julgamento é, nesse passo, o reconhecimento de que um caráter privado da prova penaliza aquele que não se “desincumbiu” do seu “ônus”. Não há o menor compromisso com a verdade (justiça) e com a ordem jurídica justa a adoção da regra de julgamento do art. 333 em caso de ‘non liquet’. Essa solução, vista “como última” saída para o juiz, é na verdade uma troca de incerteza, ou seja, na falta de firmeza e decisão acerca da pertinência do direito para uma das partes, esquece-se tudo o que viu, se ouviu e sentiu ao longo da produção de provas, para então buscar a solução ainda menos “certa” e com certeza “mais fria” do que a dúvida que antes se tinha.”[49]
Mais duras ainda são as críticas de Eduardo Cambi. Este doutrinador assevera que:
“Ademais, a exacerbação do ônus da prova, como regra de julgamento, contribui com a burocracia das decisões, estimulando o comodismo, próprio da visão conservadora do imobilismo judicial, que, por estar sustentado na inércia e na apatia do julgador, dá ampla margem às injustiças, pois as partes ficam sujeitas à sua própria sorte, como se o processo fosse um mero jogo, no qual restaria ao Estado o papel de legitimação da barbárie, ratificando o poder do litigante mais astuto ou mais esperto. Consequentemente, o ônus da prova, como regra de julgamento, deve ser utilizado apenas excepcionalmente, quando frustradas as tentativas de trazerem-se aos autos elementos suficientes de convencimento”[50].
Por todo o exposto, concluímos que o ônus da prova como “regra de conduta” deve ser sempre observado e seguido atentamente pelas partes, em conjunto com os princípios da boa-fé e da mútua cooperação no sentido da obtenção de uma prestação jurisdicional que seja efetivamente justa.
Já o ônus da prova como “regra de julgamento” deve ser utilizado apenas e tão somente em caráter de exceção, devendo ter sua aplicação extremamente limitada aos casos em que, de fato, se apresentarem como frustradas todas tentativas (das partes e mesmo do juiz) de obtenção do material probatório necessário ao deslinde efetivo da demanda.
2.3 A distribuição do encargo probatório como uma questão de cunho constitucional
Considerando a sua importância, a distribuição do encargo probatório é modernamente tida como uma questão constitucional [51], tendo como nuances a prova, o acesso à justiça e a tutela efetiva manifestada através da prestação jurisdicional justa.
Neste sentido, Augusto Mario Morello observa que “importa no dejar de consignar que es realmente espectacular la subida de atención y los replanteos que experimenta el derecho probatorio desde la perspectiva ‘constitucional de la tutela efectiva’.” [52]
De fato, como adverte José Roberto dos Santos Bedaque, “muito mais do que assegurar a mera formulação de pedido ao Poder Judiciário, a Constituição da República garante a todos o efetivo acesso à ordem jurídica justa, ou seja, proporciona a satisfação do direito não cumprido espontaneamente.” [53]
De nada adianta assegurar abstratamente o direito de ação, se este mesmo direito não for, na prática, exercido eficazmente no sentido de se alcançar uma prestação jurisdicional efetivamente justa, que proporcione, de fato, a resolução do conflito de interesses apresentado pelas partes litigantes, garantindo, desta forma, a efetividade da prestação jurisdicional.
Isto se dá, pois a Constituição estabelece um sistema jurídico fundamental que traça princípios que devem obrigatoriamente ser seguidos por todo o nosso sistema legal. Neste sentido, Aclibes Burgarelli observa que:
“No Brasil, o sistema jurídico fundamental está traçado na Constituição Federal, cuja função não é de agrupar, meramente, normas justapostas ou sobrepostas, mas é de revelar princípios que se firmam e se harmonizam no sistema como um todo, e dos quais poderão emanar conjuntos normativos específicos para cada situação das relações humanas.”[54]
Em outra frente, o Mestre Gregório Assagra de Almeida sustenta que:
“Modernamente a concepção constitucionalista do processo é fundamental e deve instigar o espírito dos profissionais do direito, no sentido de se estudar o direito processual sempre atentando para o texto constitucional. Somente com uma interpretação legítima dos valores constitucionais fundamentais é que o direito processual irá trilhar o seu verdadeiro caminho, como instrumento constitucional fundamental para a efetivação dos direitos e realização de Justiça.”[55]
Exatamente por esta razão que os institutos jurídicos estão sendo analisados modernamente à luz dos princípios constitucionais, sendo que a questão da distribuição do ônus probatório não pode, em hipótese alguma, ser excluída deste contexto.
Ora, a prova (e conseqüentemente a distribuição do ônus probatório) apresenta íntima relação com a obtenção de uma prestação jurisdicional efetivamente justa.
Entretanto, não basta simplesmente assegurar o mero direito das partes em produzir as provas de suas alegações.
É necessário muito mais. É necessário assegurar a igualdade plena das partes na relação processual. É necessário que o julgador utilize com técnica e responsabilidade todos os instrumentos existentes para garantir a efetividade da prestação jurisdicional. É necessário que o juiz observe e faça cumprir na relação processual todas as garantias constitucionais direcionadas tanto ao autor como ao réu. É necessário, enfim, que se observe “o devido processo constitucional”.
Desta forma, a chamada “garantia constitucional de ação” deve ser interpretada como efetiva garantia ao “devido processo constitucional”, isto é, ao instrumento estatal de solução de conflitos. Garantia, neste contexto, implica proteção, ou seja, predisposição de meios para assegurá-la efetivamente em concreto. [56]
De fato, como muito bem observado por José Roberto dos Santos Bedaque, “a Constituição procura estabelecer, pois, o processo justo, ou seja, o instrumento que a sociedade politicamente organizada entende necessário para assegurar adequada via de acesso à solução jurisdicional dos litígios.” [57]
Sem a efetivação do mencionado processo justo (perseguido incessantemente pela ordem constitucional vigente), não há como se falar em pacificação de conflitos e consequentemente efetiva prestação jurisdicional justa.
CONCLUSÃO
Ao Estado cabe garantir a efetividade do princípio da igualdade bem como assegurar os meios para que os direitos do indivíduo e da coletividade se tornem efetivos.
Neste contexto encontra-se a questão envolvendo a distribuição do encargo probatório, como uma questão atualmente considerada de cunho constitucional, e a influência da mesma na obtenção de uma prestação jurisdicional efetivamente justa.
Tal relação se apresenta modernamente como de grande relevância, uma vez que de nada adianta assegurar abstratamente o direito de ação, se este mesmo direito não for, na prática, exercido eficazmente no sentido de se alcançar uma prestação jurisdicional justa, que proporcione, de fato, a resolução do conflito de interesses apresentado pelas partes litigantes, garantindo, desta forma, a efetividade da prestação jurisdicional.
Verificamos, através da análise empreendida ao longo do presente artigo, que a problemática envolvendo a distribuição do encargo probatório apresenta inúmeros aspectos que possuem estreita relação com a obtenção da prestação jurisdicional efetivamente justa.
O correto entendimento e manejo prático dos temas envolvendo o aspecto “subjetivo” e “objetivo” do ônus da prova; o ônus da prova analisado como “regra de conduta” e “regra de julgamento” e a correta interpretação da distribuição do encargo probatório como uma questão de cunho constitucional são fundamentais, pois todos estes temas influem diretamente na obtenção de uma prestação jurisdicional efetivamente justa.
Sustentamos novamente que não basta simplesmente assegurar o mero direito das partes em produzir as provas de suas alegações.
É necessário muito mais. É necessário assegurar a igualdade plena das partes na relação processual. É necessário que o julgador utilize com técnica e responsabilidade todos os instrumentos existentes para garantir a efetividade da prestação jurisdicional. É necessário que o juiz observe e faça cumprir na relação processual todas as garantias constitucionais direcionadas tanto ao autor como ao réu. É necessário, enfim, que se observe “o devido processo constitucional”.
Sem a efetivação do mencionado processo justo (perseguido incessantemente pela ordem constitucional vigente), não há como se falar em pacificação de conflitos e, consequentemente, prestação jurisdicional que seja efetivamente justa.
Advogado. Mestre em Direito pela Universidade de Itaúna/MG – Especialista em Direito Público pelo Centro Universitário Newton Paiva/MG – Professor de Direito do Consumidor, Direito Processual Civil, Direito Civil e Direito Empresarial em Cursos de Graduação e Pós-graduação no Estado de Minas Gerais – Coordenador do Curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC – Unidade Mariana/MG – Professor de Direito do Consumidor, Direito Civil e Direito Empresarial no Curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC – Unidade Mariana/MG – Professor de Direito Processual Civil II e III na Universidade Católica de Minas Gerais – PUC MINAS – Núcleo Universitário Betim – Professor Convidado da Universidade Estadual de Montes Claros/MG – UNIMONTES (Pós-Graduação) – Professor de Direito Civil e Direito do Consumidor na Faculdade da Cidade de Santa Luzia/MG – FACSAL. Professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/MG. Membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG.
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