A influência da vergonha no fenômeno da violência

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Resumo – Como o sentimento de vergonha ocasionado pela exclusão social fomenta a realização de atos violentos e conseqüentemente o aumento da violência na sociedade.


1.  Introdução


Toda violência possui um intuito, mesmo que subjetivo, de buscar ou manter um sentimento de justiça ou ainda evitar a injustiça que por ventura possa ocorrer. A violência familiar só pode ser compreendida quando considerada com uma estrutura de influências psicosociais que passa pela cultura e história da formação daquela sociedade, onde a família vitimizada está inserida. Para conseguirmos prevenir a violência é necessário um esforço muito grande voltado para entender o comportamento humano e diagnosticar as causas que originam os atos violentos.


2. Desenvolvimento


2.1  Teoria da Vergonha (Theory of Shame)


Na teoria da vergonha a violência é estudada como um fenômeno psíquico. O comportamento desviante que provoca os atos violentos ocorre porque os atores possuem a sensação de estarem mortos vivos e essa característica psíquica é uma epidemia nos sistemas prisionais. Por esse motivo os defensores da teoria da vergonha dizem que a pena de morte não influência psicologicamente nos atores do crime, já que via de regra, esses se sentem mortos. Se a pena de morte tivesse algum efeito prático nos crimes violentos os Estados Unidos da América não teriam índices de violência tão altos.


Um dos mais conceituados professores que defendem a teoria da vergonha é o Doutor James Gilligan que considera a pena capital psicologicamente muito mais encorajadora que repressora de atos violentos. Ele faz essa afirmação baseada na tese que os atores que sofrem essa pressão já se consideram mortos e encaram o tema como forma de alívio. Considera ainda que a violência é a expressão de um sentimento intolerável de vergonha e fúria, que cega o homem e se projeta através do corpo em atos e reações.


Kenneth Burke, filosofo e critico literário, ensina que para interpretar a literatura é preciso apreender a interpretar a linguagem e as ações simbólicas. Segundo o doutor James Gilligan nós devemos modificar o ensinamento de Kenneth e aprendermos a interpretar ações como linguagens simbólicas. Os atos de violentos estão sempre inseridos em um contexto psicosocial que deve ser considerado não só para preveni-lo, como também, para investigá-lo. Na verdade, entender violência, em última instância, pode ser considerado a arte de traduzir atos violentos em palavras. Atos violentos podem ser interpretados e essa interpretação ajudar na solução de investigações criminais.


Utilizando essa premissa e considerando a teoria da vergonha podemos notar que alguns homicidas perfuram os olhos, cortam a língua e algumas vezes decepam as orelhas de suas vitimas. Analisando esse comportamento psicologicamente e através da teoria citada, podemos dizer que nesses casos o autor para se prevenir da exposição, considerada vergonhosa, que sente diante da sociedade, elimina de forma direta os órgãos que considera vetores de transmissão para sociedade do seu próprio sentimento de vergonha por não estar inserido na sociedade. Essa constatação foi estudada empiricamente do sistema prisional norte americano pelo professor doutor Gilligan, que utilizou dentre outras técnicas de estudo a entrevista com os internos.


Segundo a teoria da vergonha (Theory of Shame) quando falamos no sentimento de vergonha incluímos a inveja e o ciúme como sentimentos considerados subespécies do gênero vergonha.


No meio da psiquiatria a violência é tratada como problema de saúde pública e deve ser considerada uma doença social facilitando um diagnostico e um efetivo trabalho de prevenção da patologia. Ao longo das décadas a sociedade vem tratando violência como um problema legal ou moral e realizando os atos ditos “preventivos” de duas formas: a primeira através de demonstrações de repúdio social, como por exemplo, as campanhas com slogans do tipo: “Sou da Paz” ou “Caminhada contra a violência”, ou então pela simples política da punição com os recursos disponíveis nos sistemas legais vigentes.


Nosso dia a dia comprova a ineficiência desses métodos ortodoxos de prevenção da violência. Baseado nessa constatação é que o doutor Gilligan propôs a reflexão da violência através das ciências humanas e do estudo do comportamento do homem. A teoria comumente utilizada para estudar a violência está balizada na premissa que todos que realizam atos violentos atuam com interesses próprios, além da característica de não quererem ir para prisão, muito menos sofrem a pena capital. Nesse diapasão esses indivíduos farão tudo para evitar as conseqüências legais dos atos e por isso a melhor forma de prevenir a violência é garantir a punição dos atores do ato violento.


A teoria da Economia do Crime capitaneada pelo doutor Gary Becker, sociólogo e economista da Universidade de Chicago é a principal corrente de divergência com a teoria da vergonha. Doutor Becker considera a criminalidade como uma opção individual influenciada pelas variáveis sociais, como a disponibilidade de empregos, efetividade do sistema de justiça criminal e os investimentos do Estado nas políticas de segurança pública.


Segundo a teoria do Doutor Gilligan o enfoque dado ao problema através da teoria ortodoxa é simplória e totalmente equivocada, pois ela nos conduz ao abandono das causas reais da violência e nos leva a confundir a punição como ato de prevenção da violência, como se a coercitividade do sistema legal fosse capaz de evitar a violência.


Segundo James Gilligan a punição do crime, na forma que é implantada atualmente, é uma violência coletiva considerada legal, enquanto o crime é a violência individual que a sociedade predetermina como ilegal. Na sua análise o professor conclui que o atual sistema de punições estimula a violência e não é absolutamente uma forma de prevenção de violência. Quanto mais nossa sociedade se torna punitiva, mais o ódio e o fenômeno da violência se desenvolverá. Chega a afirmar que nada estimula mais o crime que as punições aplicadas para coibi-los.


As suas afirmações estão baseadas no que chamamos popularmente de “escola do crime” que está inserida no sistema prisional de todo mundo. As punições impostas pela sociedade aos seus delinqüentes não são educativas e na verdade possibilitam o agente a uma sofisticação dos métodos criminosos além de aumentar o sentimento de exclusão e revolta contra a sociedade.  


A teoria diz que tanto o crime quanto a punição, de formas semelhantes, em última instância, procuram restaurar o sentimento de justiça para o mundo. No crime o ator se sente injustiçado e procura compensar esse sentimento de vergonha por estar excluído da sociedade com um ato violento, como se fosse uma comprovação que ele não depende da sociedade e pode cuidar de si mesmo. Na punição a sociedade é que procura compensar a injustiça cometida contra o sistema imposto, cobrando o “preço” pelo ato praticado trazendo a tona na sociedade a sensação de justiça novamente no convívio social.


Segundo a teoria os atores de atos violentos com comportamento desviante possuem a sensação de estarem “sem alma”, como mortos vivos, nesse contexto eles são capazes de quaisquer atos que considerem possível para amenizar a angustia de estarem “sem alma”.


O professor James Gilligan diz estar convencido que atos de violência mesmo aparentemente sem sentido ou sem uma lógica racional definida, são na verdade, uma resposta a um conjunto complexo de condições, que são identificáveis, catalogáveis e compreensíveis. Em outras palavras, mesmo quando aparentemente os atos são motivados “racionalmente” e com interesses próprios, na verdade é um produto final de atos irracionais, com motivos inconscientes e de autodestruição que podem ser identificados, estudados e compreendidos. A violência é, portanto considerada uma patologia, apesar do estudioso alertar que o simples sentimento de vergonha não é capaz isoladamente de causar a violência.


Na teoria da vergonha os estudiosos consideram que o ator de atos violentos possui uma profunda vergonha de sua suposta, e muitas vezes real, situação a margem da sociedade e isso causa um desconforto constante, diretamente relacionado às reações violentas praticadas por esses agentes. Com relação a esses atores a violência é utilizada como último recurso. Na verdade, segundo a teoria a motivação central da violência é sempre relacionada ao sentimento de vergonha seja de forma direta ou indireta. Corroborando com essa tese os doutrinadores utilizam como uma das argumentações o fato de que todos os seres humanos em algum momento da vida são expostos ao sentimento de vergonha e nem por isso agem de forma violenta. A afirmação deixa claro que após a exposição do homem ao sentimento de vergonha a reação violenta ocorre por conseqüência de natureza psíquica e deve ser tratada como doença dessa natureza.  Pessoas normais não realizam atos violentos quando expostos ao sentimento de vergonha.     


 O antropólogo Julian Pitt-Rivers faz uma conexão entre o desrespeito e a vergonha, concluído que em todas as culturas conhecidas a falta de respeito causa desonra e, por conseguinte a vergonha. Qual a importância dessa afirmação? O homem é um ser social que sente necessidade de se inter-relacionar com seus semelhantes e os conflitos dessa convivência é algo comum na sociedade. Quando dizemos que todos devem respeitar os limites dos outros é exatamente para evitar, conforme ensinamentos do doutor Pitt-Rivers, que ocorra um desrespeito nas relações inter pessoais, aflorando o sentimento de vergonha que servirá de combustível para quebra da convivência pacifica ocasionando a violência.


2.2 Influências culturais


Nenhuma teoria sobre violência pode ser considerada adequada se não contemplar os aspectos sócio-culturais, econômicos e históricos. Uma teoria efetiva sobre violência não pode se ater apenas à criminologia, psiquiatria forense ou clinica. Da mesma sorte a violência não pode ser tratada unicamente pelo foco da teoria da psiquiatria clinica, porque não são todos os atos de violência que são cometidos por pessoas mentalmente doentes. Na verdade a teoria deve ser multidisciplinar e abordar todos os temas.


Os aspectos culturais são grandes catalisadoras do comportamento humano. Na época dos samurais a cultura japonesa considerava um ato normal o cerimonial suicida, através do qual o guerreiro utilizando uma espada cortava o próprio abdômen (HARAKIRI). Esse ritual era utilizado para redimir o guerreiro do sentimento de vergonha sentido por algum ato ou exposição vexatória que ele teria sido submetido. É a purificação da honra através do sangue. Atos de violência no sertão nordestino são praticados baseados na mesma premissa. O homem nordestino, mesmo nos dias atuais, lava sua honra com sangue, utilizando forma distorcida dos ensinamentos bíblicos do Velho Testamento que pregam o “olho por olho e dente por dente”. A “defesa da honra masculina” possui forte influência no comportamento violento. O temor do homem em ser considerado um covarde é uma das principais causas de comportamentos violentos. No Nordeste brasileiro esse fenômeno é facilmente comprovado. Naquela região ser considerado um “cabra frouxo” principalmente no sertão é uma humilhação inaceitável para os homens e sua família.  Essa cobrança pelo comportamento machista é representada inclusive nos ditos populares como na frase: “O cabra tem que ser macho ou se mudar do sertão”.


Há alguns anos foi veiculado na mídia um caso relacionado a essa tese que nos chamou a atenção. Um homem de meia idade foi traído por sua esposa e resolveu “lavar sua honra”, fabricando dois ferros de marcação de gado com as siglas “MG” (Mulher Gaiêra – traidora) e “SM” (Só Morta), posteriormente, marcou o rosto da esposa com os ferros quentes. Quando o autor do crime foi preso por lesões corporais tinha a absoluta convicção que cometeu um grande favor para sua esposa, já que acreditava possuir o direito de matar a traidora e não efetivou a execução do homicídio, e que além de poupar a vida da esposa só aplicou um castigo leve por ter marcado a esposa como gado. A alegação do autor para o ato violento foi que realizou o ato para que a esposa traidora carregasse a mesma humilhação ao qual ele foi submetido. Esse caso possui um forte enfoque cultural do culto ao machismo existente naquela região.


Na trilogia da subcultura da violência criada por Wolfgang e Ferracuti os pilares de sustentação da tese são:


1. A facilidade na posse e uso de armas;


2. A glamurização do machismo;


3. E a incapacidade cognitiva de resolução pacifica de conflitos.


Os defensores da teoria da vergonha utilizam o segundo pilar de Wolfgang e Ferracuti para defender que só é possível entender o fenômeno da violência, quando levado em consideração na análise o machismo e as culturas particularmente estudadas. É fundamental para uma boa compreensão do fenômeno, conhecer as particularidades da cultura, para diagnosticar a violência num aspecto amplo.


2.3 A exclusão social


O psicanalista Edith Jacobson diz que as pessoas sentem vergonha da influencia que os fatores financeiros, sociais e raciais causam em suas vidas. Se o Estado der atenção aos “excluídos sociais” estará produzindo um poderoso antídoto contra o mau da violência. 


O próprio Marx defendia que a pobreza, por si só, não tem o poder de humilhar as pessoas, entretanto, morar em uma favela ao lado de verdadeiros palácios, causa um sentimento de vergonha que se baseia na situação de exclusão social. Marx então concluía que a vergonha é um sentimento de revolucionários causado pelo desejo da quebra do paradigma da exclusão social.


As estatísticas mostram claramente uma relação quase que direta entre o status social e a tendência de cometer homicídios e suicídios. Quanto maior o status social, maior a tendência de cometer suicídio e quanto menor o status social maior a tendência de cometer homicídios.


2.4 Influências biológicas


Outro ponto de vista sobre a matéria são as teorias que estudam as influências biológicas no fenômeno da violência. Ao longo da história em várias passagens a crença na inferioridade biológica entre grupos étnicos foi utilizado com base de justificativa para realização de atos violentos contra esses grupos tratados como inferiores. Talvez o maior exemplo dessa atrocidade tenha sido a praticada pelo regime nazista da Alemanha ou o Regime de Apartheid na África do Sul.


Sigmund Freud ensinava que os impulsos que caracterizam o comportamento violento são parte de uma herança psíquica dos animais antecessores do homem, que podemos classificar como instintos primitivos. Os instintos, segundo Freud, são uma pré-programação dos padrões de comportamento humano.


Com a mesmo linha de raciocínio podemos citar o sociólogo E. O . Wilson´s que defende que o comportamento violento é determinado por instintos preexistentes. Já o antropólogo R. G. Sipes utilizando a premissa da preexistência do comportamento violento e defende que o homem deve ser periodicamente submetido ao que podemos chamar de “válvulas de escape” para evitar o acumulo do “ícone” do comportamento violento, impedindo dessa forma uma explosão de atos violentos. É como se o homem fosse uma bomba relógio da violência pronto para explodir a qualquer momento.


Ainda na linha do raciocínio biológico é importante ressaltar que até o momento não existe comprovação de que lesões cerebrais anormais ou síndromes sejam causa de comportamentos violentos ou que a simples utilização de álcool ou drogas sejam diretamente responsáveis pelo aumento da violência. Essas correntes teóricas relativas à biologia atualmente não possuem muita aceitação no mundo acadêmico.


O próprio doutor James Gilligan critica a tese ligada a corrente dos aspectos biológicos, alegando que considerar que a violência é proveniente de instintos preexistentes nos leva a um pessimismo sobre um possível método de prevenção do fenômeno da violência. Doutor Gilligan revela que se a violência é um produto humano de escopo social com decisões individualizadas, é, portanto, completamente susceptíveis a mudanças. O que nós precisamos é atuar de forma correta na prevenção do fenômeno.


3. Conclusões


No estudo do fenômeno os doutrinadores do tema apontam, dentre outros, alguns aspectos importantes que ocasionam a escalada da violência:


1. A falta de uma política efetiva de distribuição de renda;


2. A falta de acesso das classes de baixa renda aos sistemas educacionais. EDUCAÇÃO é a pior inimiga da violência;


3. A divisão da sociedade em castas que inviabilizam na prática a ascensão de classes e expõem os mais pobres a exclusão social, e toda sorte de humilhações que ocasionam a vergonha propulsora da violência;


4. A valorização da violência, através da exposição pública nos meios de entretenimento que apresentam a violência como algo honroso e típico da auto-estima masculina;


5. A fácil acessibilidade às armas letais;


6. A homofobia;


7. A super valorização do machismo pela sociedade;


8. A falta de uma regulação da economia que viabilize uma margem de empregos disponíveis na sociedade.


No plano das comprovações através de fatos e fenômenos que influenciam a violência, o abuso sexual praticado contra crianças possui um comprovado condão de produzir pessoas com comportamento violento, tanto contra terceiros, quanto contra si próprios, através da prática de autolesões.


Catedráticos que comungam das idéias da teoria da vergonha afirmam que qualquer política pública voltada para diminuição da violência, deve atacar os fenômenos que proporcionam no homem o sentimento de vergonha perante a sociedade, reduzindo essas motivações à política pública estará atacando a raiz do problema da violência.


O homem deve estar, não só inserido no meio social, mas também se considerar parte dele, caso contrário, a vergonha de ser um excluído irá motivar atos de violência e revolta contra as estruturas sociais.


 


Referencias

Violence: Reflections on a Nacional Epidemic – James Gilligan.

The subculture of violence: Towards an integreted theory in crinology – Marvin E. Wolfgang & Ferracuti, F.

A economia do crime: Correlações entre crime, desigualdade e desemprego (Burdett, Lagos e Wright) – George Felipe de Lima Dantas

A economia do Crime e o Apartheid do Brasil e de Outros Países Mais… – George Felipe de Lima Dantas

Informações Sobre o Autor

Luiz Carlos Magalhães

Agente de Polícia Federal, lotado na SR/DPF/DF – Especialista em Gestão da Segurança Pública e Defesa Social, Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos em Defesa Segurança e Ordem Pública do Centro Universitário do Distrito Federal (UNIDF).


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Equipe Âmbito Jurídico

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