Resumo: Este artigo se propõe a analisar a influência dos recentes movimentos sociais ocorridos no Brasil, uma vez que estes demonstraram total independência de qualquer influência político-partidária, representando, assim, a fiel vontade do povo, tendo como origem o pleito da redução das tarifas de transporte público, além de adentrar na esfera da concretização de políticas públicas de modo geral, o que de fato resultou em efeitos práticos, que serão oportunamente analisados.
Palavras – chave: Movimentos sociais. Políticas públicas. Reserva do possível.
Sumário: 1. Introdução. 2. Os movimentos sociais como alternativa da concretização de direitos. 3. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A sociedade brasileira vem sofrendo ao longo da história diversas afrontas estatais, uma vez que, conquanto pague seus impostos, não observa a realização de algumas políticas públicas, tendo em vista o problema da corrupção. Por muito tempo, nosso país se viu espectador de tais descasos, porém, recentemente, no segundo semestre de 2013, o povo brasileiro saiu às ruas em busca da concretização das políticas públicas essenciais asseguradas pela Carta Magna, iniciando-se pela reivindicação de um transporte público de qualidade com tarifas justas nos grandes centros urbanos e adentrando até mesmo na esfera do Poder Legislativo, com o clamor pela rejeição do Projeto de Emenda Constitucional nº 37, que visava abolir o poder investigatório do Ministério Público, que foi prontamente rejeitada na Câmara dos Deputados.
Por conta disso, evidenciamos que aludidas manifestações sociais possuem um enorme poder de transformação, tendo em vista que muitas das reivindicações foram atendidas pelo Poder Público, que se viu em uma situação inesperada e de proporções ainda maiores do que a mídia deixou transparecer, o que de fato demonstrou a influência do povo na concretização de ações por parte das autoridades públicas.
Porém, eventualmente, aludidos clamores sociais esbarram no que os juristas chamam de “reserva do possível”, que é o limite da possibilidade financeira que o Estado dispõe para efetuar as políticas públicas constitucionalmente asseguradas como fundamentais ao indivíduo, naturalmente proveniente do neoliberalismo, que disseminou a ideia da não intervenção estatal na economia e, por conseguinte, na desobrigação estatal de realizar os direitos sociais de forma absoluta.
2. OS MOVIMENTOS SOCIAIS COMO ALTERNATIVA DA CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS
Os movimentos sociais remontam à antiguidade, momento pelo qual as massas insurgiram-se contra alguns abusos dos detentores de poder, que se utilizavam da violência para o domínio dos povos bárbaros, além da busca pela inclusão social na Grécia, pois somente os nascidos nas cidades possuíam status social, bem como a luta contra escravidão por dívida, comumente utilizada nessa época, enfim essa união das massas impulsionou o advento da democracia, que por si só não extinguiu os anseios sociais, que ainda hoje são latentes e ensejadores de reivindicações em pleno século XXI.
Maria da Glória Gohn (1995, p. 44) conceitua os movimentos sociais da seguinte maneira:
“são ações coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores sociais pertencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles politizam suas demandas e criam um campo político de força social na sociedade civil”.
Angela Alonso (2009: 74) vai além dessa perspectiva, pois assevera que os movimentos sociais excedem o campo político, pois na medida em que provocam uma ação estatal também exercem uma força de democratização social, ultrapassando a esfera legal e adentrando no âmbito dos costumes, senão vejamos:
“Os movimentos sociais nasceriam na sociedade civil e, portadores de uma nova “imagem da sociedade”, tentariam mudar suas orientações valorativas. Os movimentos sociais aparecem, então, como o novo ator coletivo, portador de um projeto cultural. Em vez de demandar democratização política ao Estado, demandariam uma democratização social, a ser construída não no plano das leis, mas dos costumes; uma mudança cultural de longa duração gerida e sediada no âmbito da sociedade civil.”
Alonso (apud Habermas, 1981, p. 33)
“Os novos movimentos sociais seriam, então, formas de resistência à colonização do mundo da vida, reações à padronização e à racionalização das interações sociais e em favor da manutenção ou expansão de estruturas comunicativas, demandando qualidade de vida, equidade, realização pessoal, participação, direitos humanos.”
A busca incessante por políticas públicas caracteriza o desejo da efetivação dos direitos sociais, que são oriundos das desigualdades evidenciadas em todo o mundo no período pós-guerra. Acerca de referidos direitos MORAIS (2003, p. 202) preconiza o seguinte:
“Direitos sociais são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal.”
As mobilizações sociais por muitas vezes alcançaram a produção de efeitos práticos por meio do Estado ao longo da história, como se observa, por exemplo, nas conquistas trabalhistas perpetradas mediante a greve de trabalhadores a partir da Revolução Industrial, ou mesmo nas manifestações sociais capazes de mudar o chefe de um governo e as diretrizes de uma nação, como se deu na chamada “primavera árabe”.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 evidenciou-se no Brasil a criação de inúmeros direitos fundamentais, considerados essenciais para o indivíduo, como por exemplo, saúde, educação, lazer, moradia, salário mínimo, que são direitos de segunda geração, entendidos como o mínimo existencial para que se alcance a concretude do primado da dignidade da pessoa humana. Todavia, referidos direitos possuem caráter programático, ou seja, representam metas estatais, que por muitas vezes não são efetivadas. Além do mais, nesse contexto, quando o Estado é confrontado acerca da efetivação de algumas políticas públicas, acoberta-se da chamada “reserva do possível”, que é o limite da reserva orçamentária de que o Estado dispõe.
Verificamos, assim, um impasse entre o direito que o indivíduo possui em ter as políticas públicas concretizadas, pois que asseguradas constitucionalmente, e o limite da capacidade econômico-financeira do Estado em realizar o mínimo devido ao cidadão. Nessa esteira, é necessário precisarmos até que ponto o Estado pode se esquivar do seu dever em detrimento das necessidades sociais, bem como quais os mecanismos que a sociedade possui para fazer valer suas prerrogativas essenciais.
Desse modo, para que o Estado proporcione os direitos sociais aos cidadãos é necessária a existência de uma reserva orçamentária, conhecida como reserva do possível, um instituto proveniente do direito alemão que, contudo, somente deve ser aplicado em países que ofereçam o mínimo existencial, ou seja, condições mínimas de existência digna proporcionada pela efetivação de direitos fundamentais.
Assim, entendemos perfeitamente cabível a aplicação da reversa do possível em países desenvolvidos, que asseguram direitos fundamentais aos seus cidadãos, porém, a aplicação indiscriminada deste instituto no Brasil não nos parece justificada, uma vez que ainda não temos disponível o mínimo existencial necessário para viver com dignidade. Nesse sentido, GOMES (2005, p. 53):
“A teoria da "reserva do possível" – muitas vezes utilizada para justificar a escassez de recursos financeiros – é aplicável e aceita nos países europeus já amparados pela política social do Welfare State, que bem asseguram o mínimo existencial compatível com a dignidade humana. Não é o caso do Brasil, onde, há poucos mais de cem anos, ainda dominava o regime da escravidão, institucionalmente garantido”.
O Supremo Tribunal Federal prolatou decisão determinando ao Poder Público o cumprimento de políticas públicas de saúde no caso concreto, consoante transcrição do julgado:
“Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. REPERCUSSÃO GERAL PRESUMIDA. SISTEMA PÚBLICO DE SAÚDE LOCAL. PODER JUDICIÁRIO. DETERMINAÇÃO DE ADOÇÃO DE MEDIDAS PARA A MELHORIA DO SISTEMA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIOS DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DA RESERVA DO POSSÍVEL. VIOLAÇÃO. INOCORRÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. A repercussão geral é presumida quando o recurso versar questão cuja repercussão já houver sido reconhecida pelo Tribunal, ou quando impugnar decisão contrária a súmula ou a jurisprudência dominante desta Corte (artigo 323, § 1º, do RISTF ). 2. A controvérsia objeto destes autos – possibilidade, ou não, de o Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo a adoção de providências administrativas visando a melhoria da qualidade da prestação do serviço de saúde por hospital da rede pública – foi submetida à apreciação do Pleno do Supremo Tribunal Federal na SL 47-AgR, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJ de 30.4.10. 3. Naquele julgamento, esta Corte, ponderando os princípios do “mínimo existencial” e da “reserva do possível”, decidiu que, em se tratando de direito à saúde, a intervenção judicial é possível em hipóteses como a dos autos, nas quais o Poder Judiciário não está inovando na ordem jurídica, mas apenas determinando que o Poder Executivo cumpra políticas públicas previamente estabelecidas. 4. Agravo regimental a que se nega provimento”.
Nossos Tribunais vêm enfrentando a questão da reserva do possível frente à efetivação de políticas públicas, porém esse tema ainda não é pacífico, pois hora se decide pela obrigatoriedade do Estado em realizar os direitos sociais pleiteados, hora pela impossibilidade em razão da discricionariedade da Administração, do princípio da separação dos poderes e da legalidade das leis orçamentárias, com base no primado da reserva do possível.
3. CONCLUSÃO
Os movimentos sociais têm se mostrado de grande relevância para a efetivação de políticas públicas na atual conjuntura política brasileira, o que somente foi possível com o avanço do envolvimento do povo nas questões governamentais, outrora indiferentes à população. De fato, referidas pressões sociais mobilizaram a nação para os reais problemas enfrentados pelo país, que sejam oriundos da má gestão de recursos públicos ou mesmo fruto de corrupção.
Advogada, Pós-graduada em Direito do Estado pela Universidade Anhanguera-Uniderp, Mestranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e docente do curso de Direito da Faculdade de Tecnologia do Piauí (FATEPI)
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