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A institucionalização de crianças e adolescentes e o direito à convivência familiar e comunitária

Resumo: A Constituição Federal (1988) e posteriormente o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, estabeleceram direitos materiais à infância e juventude, dispondo a convivência familiar e comunitária como um direito fundamental que deve ter na família, sociedade e Estado o respaldo para a sua efetividade. Este estudo, desenvolvido na cidade do Rio Grande, objetivou a investigação do processo de viabilização ao direito à convivência familiar e comunitária às crianças e/ou adolescentes institucionalizados, utilizando-se da realização de um protocolo para coleta de informações bem como uma entrevista semi-estruturada com os principais responsáveis por cada uma das instituições de abrigo existentes na cidade. Foram abordados questionamentos acerca dos dispositivos do artigo 92 do ECA, podendo-se concluir que há a necessidade de ações mais estruturadas advindas de todas as esferas, de forma a transformar o abrigo em medida provisória e excepcional, respeitando-se a condição peculiar, das crianças e/ou adolescentes, de serem sujeitos em desenvolvimento.


Palavraschave: Convivência Familiar e Comunitária, institucionalização, abrigo.


Abstract: The Federal Constitution (1988) and, subsequently, the Child and Adolescent Statute (ECA) in 1990, established rights materials to childhood and youth, guaranting the family and community inclusion as a fundamental right which must be in the family, society and state the backing for its effectiveness. This study aimed to research the guarantee of institutionalized children and adolescent the right to family and community inclusion. A protocol was used for collecting data about shelter and a semi-structured interview was conducted with those responsible for each shelter in the city. The questions covered the provisions of ECA article 92. The results pointed to the need for more structured actions in order to transform the shelter in temporary and exceptional measure that honors with the development peculiar condition of institutionalized child and adolescent.


 Key words: Family and Community inclusion, institutionalization, shelter.


Sumário: 1. Introdução. 2. O cenário nacional no direito à convivência familiar e comunitária. 3. Método. 3.1 Participantes, instrumentos e procedimentos. 4. Resultados e discussão. 4.1 A preservação dos vínculos com a família de origem. 4.2 A convivência comunitária dos abrigados e a participação da comunidade nos abrigos. 4.3 Os abrigos separados por sexo diante do não desmembramento do grupo de irmãos e das atividades em regime de co-educação. 4.4 A excepcionalidade e a provisoriedade da institucionalização. 4.5 A integração em família substituta. 4.6 Atendimento personalizado e em pequenos grupos. 4.7 A necessidade de se evitar a transferência do abrigado (a) para outras entidades e a preparação gradativa para o desligamento. 5. Conclusão 6. Referências


1. Introdução


As questões envolvendo crianças e adolescentes despertam a preocupação no momento em que se percebe o quanto foram desprezadas historicamente. Por longos períodos, observou-se o descaso com a infância como fase inicial e imprescindível ao desenvolvimento humano e o termo adolescência sequer existiu no vocabulário da sociedade. Por muito tempo não foram detentores de direitos, tornando-se seres movidos ao acaso e desprovidos de segurança pelo fato de sua proteção não ter fulcro na legislação. Essa realidade começou a se modificar significativamente a partir da década de 80, com o surgimento de questionamentos e novas trajetórias em relação ao tratamento dispensado a criança e ao adolescente. A Doutrina da Proteção Integral destacada na Carta Magna de 1988 reiterou um novo posicionamento do Estado, da família e da sociedade na proteção. .


“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (grifo nosso)


Assim, não mais somente a família se responsabilizaria, mas também o Estado e toda a sociedade. Crianças e adolescentes passaram de um quadro secundário a um primordial, sendo agora sujeitos de direitos, recebendo assim assistência advinda de todos os grupos existentes. Nesse ínterim, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no ano de 1990, estabeleceu medidas de proteção que devem ser aplicadas às crianças e adolescentes quando estes encontrarem-se com seus direitos ameaçados ou violados, seja por atitudes advindas da sociedade ou do Estado, por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável, ou em razão de sua própria conduta, como trata o artigo 98 deste regimento. Ante aos fatos, fica estabelecida a possibilidade da aplicação da medida protetiva de abrigo (ECA, art.101, VII).


    Os abrigos são instituições responsabilizadas com o cuidado de crianças e adolescentes, devendo primar pela excepcionalidade e provisoriedade em sua aplicação e suprir as necessidades imediatas e futuras, zelando pela integridade física e emocional do abrigado. Diante dos fatos expostos e da importância que envolve a temática da institucionalização de crianças e adolescentes, este estudo teve como objetivo investigar a aplicabilidade do direito à convivência familiar e comunitária nos abrigos, a partir da perspectiva das dirigentes dessas instituições.


2. O cenário nacional no direito à convivência familiar e comunitária 


A história das crianças no Brasil teve características marcantes a cada época vivenciada, pois a infância nem sempre foi vista como uma categoria social, relacionando-se diretamente com o modo de produção, organização e a política do momento.


Inicialmente, as crianças não eram tratadas como tais, e não havia, sequer, vínculos estreitos entre ela e sua família. Transformações paulatinas foram acontecendo até que, em 1988, a Constituição Federal inovou em várias concepções, inclusive trouxe no capítulo VII disposições acerca “Da família, da Criança, do Adolescente e do Idoso”, introduzindo questões importantes a esse respeito e necessárias à manutenção da cidadania. Esse documento apontou o conceito de entidade familiar como “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (art. 226, parágrafo 4), e, segue no já citado art. 227, confirmando o fato de que as crianças e adolescentes são detentoras, em caráter de prioridade absoluta, de direitos referentes a todas as esferas necessárias a sua proteção.


A promulgação do ECA reforçou os preceitos elencados na Constituição e trouxe elementos de extrema importância para a construção de uma nova realidade para a infância e juventude, através da descentralização, da municipalização das funções e da participação obrigatória da família, da sociedade e do Estado no oferecimento dos direitos às crianças e aos adolescentes, principalmente o direito à convivência familiar e comunitária. Tais elementos são evidenciados no art. 4 do Estatuto e destacados no art. 19.


“Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.” (grifo nosso)


Nessa direção, traz em suas linhas a prioridade da criação em seio familiar, seja este relacionado à família de origem ou a substituta. O ECA inicia suas disposições apresentando o fato de que esta lei “dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente” (art.1º.) promovendo uma nova doutrina, onde não mais seriam analisadas as irregularidades, mas sim, “as medidas de caráter geral e preventivas […] sendo seu paradigma a erradicação das violações de direitos da criança e do adolescente através da proteção integral dos interesses dos mesmos” (MARTINS, 2005, p.52). Esta vem em substituição à doutrina da Situação Irregular[1] que regia no Código de Menores. A partir do momento que as crianças e adolescentes tornaram-se sujeitos de direito, a proteção passa a ser fator primordial. Todos os segmentos têm o dever de proporcionar e oferecer seus direitos, sem distinções ou preconceitos como ocorria em outras épocas, passando a inexistir a especificação de grupos a serem atendidos pelo ECA..


Segundo Amorim (2003), várias normativas internacionais contribuíram para essa nova concepção presente no Estatuto, tais como a Declaração Internacional dos Direitos Humanos, a Declaração Universal dos Direitos da Criança, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude – Regras de Beijing.


As crianças e adolescentes em situação de risco não são vistos mais como um problema a ser extirpado da sociedade, pois ao infanto-juvenilferas onde se inserem a populaç-se que hnte e diretamente de todos os ditames que a eles stituiç partir do momento que se tornam sujeitos de direito, carregam em si o fato de não serem mais meros indivíduos passivos entregues ao acaso e às decisões dos adultos, passando a gozar plenamente e diretamente de todos os ditames que a eles são ofertados, não mais dependendo de terceiros para o seu advento. De acordo com o art. 6º. do Estatuto da Criança e do Adolescente:


“Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.” (grifo nosso)


O fato de que as crianças e adolescentes encontram-se em “condição peculiar”, torna-se a razão maior para que todos possuam a responsabilidade pelo oferecimento dos direitos fundamentais e pela proteção  Segundo a Comissão Especial da Criança a Doutrina da Proteção Integral tem por fundamento a efetiva consideração do ser, referindo que toda a rede de apoio (família, sociedade e Estado) deve estimular e se empenhar ao oferecimento da melhor alternativa de formação e desenvolvimento das crianças e adolescentes, “protegendo-os contra a ameaça e violação dos seus direitos, evitando expô-los à situações de risco pessoal ou social.” (2004, p.132).


Este estatuto dispôs várias normativas, inclusive a respeito das medidas de proteção que devem ser aplicadas às crianças e adolescentes quando estes encontrarem-se com seus direitos violados ou ameaçados (art. 98): “I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; III – em razão de sua conduta”. Em qualquer dessas hipóteses pode-se aplicar a medida protetiva de abrigo (art.101, VII).


O abrigo por muito tempo foi visto como uma solução para a retirada de crianças e adolescentes das ruas. O abrigamento em instituição é uma medida de proteção, excepcional e provisória, que visa garantir os direitos de crianças e adolescentes estabelecidas no artigo 101 do ECA. No entanto, sua aplicação implica na suspensão do poder familiar sobre crianças e adolescentes em situação de risco e no seu afastamento temporário do convívio com a família.


Como é uma medida temporária, a partir do momento que a criança se encontra institucionalizada, o processo de reinserção familiar deve ser iniciado e fortalecido, e, caso se verifique a impossibilidade, inicia-se o processo de perda do poder familiar atentando-se para o seu pleno andamento a fim de tornar o indivíduo apto à adoção.


Vários estudos discutem as funções e as implicações das instituições de abrigo. Durante o período de abrigamento, essas instituições são responsáveis pelo cuidado e pela integridade física e emocional das crianças e dos adolescentes (SILVA, 2004). Embora essa tarefa seja assumida pelos abrigos, Rizzini e Rizzini (2004, p.79) lembram que o abrigo “não pode ser um fim em si, mas um recurso a ser utilizado quando necessário”. Isso significa que o afastamento da família só pode acontecer quando violados os direitos das crianças e dos adolescentes. No entanto, ao realizar um mapeamento nacional nas 589 instituições de abrigo do país no ano de 2004, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) identificou mais de 20 mil crianças e adolescentes abrigadas, sendo a carência de recursos materiais o motivo mais frequente para a internação. Embora a pobreza seja um fator que favoreça a vulnerabilidade pessoal e social, não pode ser motivo suficiente para o afastamento familiar. A pesquisa destacou, ainda, o tempo de permanência nos abrigos, revelando que 47,7% dos abrigados vivia nas instituições há mais de dois anos, enquanto 32,9% estavam por um período entre dois e cinco anos, 13,3%, entre seis e dez anos, e 6,4%, por mais de dez anos. Esse período de afastamento tem sido discutido constantemente, Fante e Cassab (2007) realizaram uma extensa revisão teórica sobre o direito a convivência familiar das crianças abrigadas e problematizaram a morosidade que envolvem os processos de reintegração familiar. Já Siqueira e Dell’Aglio (2006) destacaram que a vivência institucional pode trazer implicações negativas ou positivas dependendo da história pregressa e dos motivos que os levaram para o abrigamento.


Essas constatações evidenciam a importância do abrigo na manutenção dos vínculos familiares. Por esse motivo, o próprio ECA esclarece no seu art. 92, os princípios da Lei 8069/90 que devem ser respeitados pelas instituições de abrigo:


Art.92. As entidades que desenvolvam programas de abrigo deverão adotar os seguintes princípios:


I – preservação dos vínculos familiares;


II – integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem;


III – atendimento personalizado e em pequenos grupos;


IV – desenvolvimento de atividades em regime de co-educação


V – não-desmembramento do grupo de irmãos;


VI – evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e adolescentes abrigados;


VII – participação na vida da comunidade local;


VIII – preparação gradativa para o desligamento;


IX – participação de pessoas da comunidade no processo educativo.


Parágrafo único. O dirigente de entidade de abrigo é equiparado ao guardião, para todos os efeitos de direito.”


Cabe ao abrigo e seus dirigentes o cumprimento desses princípios. Mello e Silva (2004) ressaltaram que o dirigente do abrigo tem diferentes atribuições que vão desde o cuidado e a prestação de assistência material, moral e educacional direta a criança e ao adolescente abrigado até as responsabilidades administrativas. Nessa direção, o presente estudo investigou a percepção dos dirigentes dos abrigos sobre o cumprimento dos principios expostos no artigo 92, em especial, aqueles que visam a convivência familiar e comunitária.


2. Método


2.2. Participantes, instrumentos e procedimento


Este estudo contou com a participação voluntária de cinco dirigentes das instituições de abrigo existentes no municipio investigado. O desenvolvimento desta pesquisa foi dividido em dois momentos. O primeiro contou com um levantamento quantitativo através de um protocolo fechado que buscou informações sobre o número de crianças e/ou adolescentes institucionalizados, suas faixas-etárias e tempo de institucionalização da população residente em cada uma das cinco instituições investigadas. O segundo momento envolveu a realização de uma entrevista semiestruturada individual com cada um dos dirigentes das instituições com vistas a avaliar a aplicabilidade e a efetividade dos princípios dispostos no artigo 92 do ECA. Todos os procedimentos éticos foram respeitados e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.


3. Resultados e Discussão


O município investigado possui cinco instituições responsáveis pela aplicação da medida de abrigo, sendo três não-governamentais que aceitam crianças até os dez anos de idade e duas governamentais vinculadas ao município e destinadas principalmente aos adolescentes. No momento da pesquisa, haviam 106 abrigados, dos quais aproximadamente 82% residem nos abrigos não-governamentais. Do total de crianças e adolescentes institucionalizados, 56 eram do sexo feminino e 50 do sexo masculino. A distribuição da faixa etária dos abrigados está apresentada na Figura 1.


     


Todas as dirigentes dos abrigos são do sexo feminino, sendo que 80% possuem ensino superior completo, com o desenvolvimento de curso de especialização ou mestrado, e 20% possuem ensino médio completo. Com relação à remuneração de sua função, 60% recebem um salário enquanto o restante atua de forma voluntária e não recebe nenhuma remuneração para executar o seu trabalho. A maioria das participantes, que perfazem 60%, encontram-se nessa função acima de sete anos, enquanto o restante está no máximo a um ano na representatividade do abrigo.


4.1 A preservação dos vínculos com a família de origem


A primazia pela família deve acompanhar todo o percurso realizado pela criança ou adolescente que é encaminhado a um abrigo, pois a convivência familiar é um direito de toda a criança. Sem dúvida a prioridade é a família de origem, mas a família substituta surge como uma alternativa importante quando esgotadas as possibilidades de reinserção familiar. Por esse motivo, a instituição tem que cumprir essa diretriz exposta no artigo 92 do ECA, possibilitando o contato das crianças e dos adolescentes com seus familiares através de visitas periódicas e assistência paralela de uma equipe técnica. Todos os dirigentes entrevistados reconhecem a importância da manutenção dos vínculos familiares e procuram constantemente proporcionar momentos de contato, estimulando esse intercâmbio pais e filhos. Porém, divergências são encontradas no tocante aos dias de visitação, pois, apesar do empenho em disponibilizar a convivência familiar, 40% dos abrigos possuem dia estabelecido para o contato no ambiente institucional. Cabe ressaltar que há a possibilidade de agendamento para outro dia, mas prevalece um dia semanalmente disponível a esse intercâmbio. Os outros 60% dos abrigos guiam-se embasados na conveniência das famílias e na necessidade individual de cada caso.


O abrigo é um ambiente em que se encontram várias crianças e/ou adolescentes em situação de vulnerabilidade, onde eles e suas famílias precisam de atendimento mais individualizado e específico para cada caso, de forma a se proceder aos encaminhamentos necessários à sua melhora psíquica bem como o possível ajustamento de sua situação jurídica. Para tal, não basta somente a ação advinda dos abrigos e da equipe técnica, e sim, de toda a rede de apoio, que se constitui inclusive, com a participação direta do município. Porém, ao questionar sobre a existência de programas municipais voltados à assistência às famílias e às crianças e/ou adolescentes abrigados, 40% disseram ser inexistentes, outros 40% apontaram um determinado programa, porém, o mesmo não é de origem municipal, e somente 20% apontaram a existência de programas de assistência provenientes do município. Sobre a temática da existência ou não de programas de cunho municipal, têm-se algumas opiniões apresentadas abaixo:


Abrigo 5: Olha, eu acho que eles podem vir, mas até hoje nós estamos ainda no discurso. Porque eu vejo que todas as reinserções que nós fizemos foi com o trabalho da instituição. […] o grande movimento ainda é feito pelos abrigos.


O esforço num trabalho dessa magnitude deve advir dos dois pólos da relação: da rede de atendimento e da família. Esta, antes de tudo, disposta e aberta a participar, compreender e se esforçar, e aquela, empenhada à aplicar medidas que atinjam o problema, livres de pré-conceitos e padronizações.


4.2 A convivência comunitária dos abrigados e a participação da comunidade nos abrigos


Tão importante quanto a convivência familiar, o direito à convivência comunitária deve se fazer presente também durante a vivência institucional, pois jamais devem encontrar nos abrigos um meio de privação de liberdade, como muito foi feito no passado. Diante disso, 100% das participantes afirmam disponibilizar esse direito, de forma a inserir as crianças e/ou adolescentes abrigados nas atividades da comunidade, participando de forma ativa como cidadãos. Para tal, há a vinculação através da prática de esportes (ex. futsal, atletismo, ginástica olímpica), aulas de música, artes e cursos de aperfeiçoamento.


Abrigo 4: As crianças tem total participação ne, de todas as formas. Eles vão na casa dos amigos […] eles vão nos aniversários, nas festas…normal. Vão na FEARG, na mateada. Todos os lugares que a gente pode eles estão sempre inseridos na comunidade.


Abrigo 3: […] elas saem, vão pro colégio, fazem serviço de banco, correio, pagar conta[…] lógico que são as que tem condições. Pra irem se adaptando e verem como é a vida lá fora.


O direito de ir e vir ocorre, mas, claro, com as limitações inerentes ao fato de serem crianças e adolescentes. Dessa forma não há o enclausuramento como há muitos anos foi aplicado em grandes instituições nacionais antes do advento do ECA. Importante também se faz a inserção da comunidade no ambiente institucional, e, diante disso, as participantes foram questionadas a respeito da existência de trabalho voluntário nos abrigos. Verificou-se que em 60% das instituições existe o trabalho voluntário, seja intermediado por programas ou apenas advindos do desejo de contribuir para o bem estar dos abrigados. Já os 40% restantes encontram-se sem essa forma de participação, sendo que a metade desse montante fecha totalmente as portas para esse tipo de envolvimento.


Abrigo 5: […] nós entramos na comunidade e a comunidade entra na instituição.


Abrigo 2: Não, e nem aceito. Acho que o voluntário ele não tem, ele não assume, ele não veste a camiseta e ele passa isso pros residentes.


Abrigo 3: O trabalho voluntário a gente deixa pra pessoa escolher, que a pessoa escolha aquilo que gostaria de fazer, porque o voluntário é uma hora ou duas horas por semana, não é mais do que isso. […] Coisas assim que dão, que não seja, que tu não conte certo com… porque infelizmente o voluntariado não…


O trabalho voluntário foi apresentado como um caso um pouco difícil de trabalhar, inclusive dito pelas próprias instituições que aderem a tal. A maioria das participantes alegam a faltam de comprometimento dos voluntários que, justamente por assim o ser, não assumem sua participação de forma constante, podendo assim vir a causar frustrações nas crianças e/ou adolescentes que depositaram nele expectativas.


4.3 Os abrigos separados por sexo diante do não desmembramento do grupo de irmãos e das atividades em regime de co-educação


Dos abrigos investigados, 60% possuem crianças e/ou adolescentes separados por sexo, sendo dois abrigos voltados para meninas e um para meninos. A existência desse tipo de atendimento faz com que surjam questionamentos diante do fato de que a convivência de ambos os sexos é estabelecido como uma das diretrizes que devem ser cumpridas pelas instituições de abrigo. Segundo Silva e Mello (2004, p.86) as atividades em regime de co-educação tratam-se do “atendimento misto quanto ao sexo da criança ou do adolescente abrigado”, sendo necessária a sua aplicação, visto a importância da convivência entre meninos e meninas. Tal conceito mostrou-se desconhecido por 100% das participantes, que interpretaram a palavra co-educação como atividades extracurriculares, porém, em outro momento da entrevista, quando questionadas de forma direta a respeito dos abrigos separados por sexo, obteve-se a resposta desejada sobre essa temática.


Apesar da importância do regime de co-educação, somente 20% das participantes defendem a necessidade do envolvimento recíproco entre meninos e meninas, enquanto o restante defende a impossibilidade dessa conjunção quando os abrigados forem adolescentes devido à sexualidade aflorada, porém, apesar dessa diferença de opiniões, todas as representantes das entidades apresentam o fato como um grande problema à se enfrentar.


Abrigo 3: […] Nos fugimos…estamos fugindo da regra porque a gente atende aqui só meninas e o certo seria misto. Acontece assim ó, que, no meu ver, pra ser misto eu teria que ter núcleos especiais.


Abrigo 4: eu entendo que se tu for analisar o abrigo que atende uma faixa etária acima, vamos dizer, de 12 a 18 anos, eu acho que ele tem que ser separado mesmo, se não fica complicado demais. Aqui em Rio Grande a gente já teve exemplos ne, já teve o CEMCA que tentou administrar essa questão de não separar por sexo mas não deu certo.


Abrigo 1: eu não vejo essa mistura de idades como uma coisa sadia.[…] eu vejo a necessidade de ser separado por sexo. Acho correto porque é complicado ter as meninas junto com os meninos quando eles vão chegando na adolescência.


A manutenção dos grupos de irmãos é um fator relevante no contexto da institucionalização, no entanto, a separação por sexo implica diretamente em seu desmembramento. Quando crianças e/ou adolescentes são encaminhados aos abrigos pelas mais variadas razões, há, mesmo que parcialmente, o enfraquecimento dos vínculos familiares e nesta situação a presença dos irmãos agirá como um ponto de manutenção desses laços, assim, “proporcionando uma possibilidade maior de segurança e consequentemente o equilíbrio emocional, ao se traçar uma linha de união, não os colocando de maneira tão isolada e solitária no contexto das instituições (SILVA, 2004)[2]”. De acordo com o Silva e Mello (2004, p.88) é importante que os abrigos proporcionem o convívio de institucionalizados de faixas etárias e sexos diferenciados, pois, além de favorecer “o estímulo mútuo e o melhor aproveitamento das atividades educacionais”, também facilitaria a manutenção dos grupos de irmãos.


4.4 A excepcionalidade e a provisoriedade da institucionalização


Há várias razões que contribuem para a necessidade da provisoriedade da medida protetiva de abrigo. A criança e/ou adolescente quando levado à instituição, insere-se num mundo aleatório as suas vivências e afinidades. Por conseguinte, administra seus sentimentos e emoções de forma adversa do habitual, sendo que todas essas transformações refletem em seu desenvolvimento. De acordo com a pesquisa realizada com as dirigentes das instituições, 100% apontam a vivência em abrigo como uma vida de insatisfação, onde constantemente a tristeza faz-se presente no cotidiano dos abrigados, devido a ausência de núcleo familiar. Por outro lado, 80% ressaltam que o abrigo cumpre o seu papel no tocante à proteção e oferecimento das necessidades básicas, assim, tornando-se um ambiente adequado na medida de suas limitações afetivas, sociológicas e estruturais.


Destes 80% apresentados, a metade faz questão de ressaltar o fato de que, mesmo não sendo o melhor lugar para se viver, por vezes é a única alternativa de se encontrar em um local de maior proteção. Assim, sabe-se que para muitos casos o abrigo é a melhor opção naquele instante, porém não há duvidas de que deve ser por pouco tempo, pois, por mais acolhedor que possa ser, a partir do momento que se torna efetivamente o lar daquele indivíduo, rompe com a sua função.


Abrigo 4: […] Eles tem uma vida normal, como todas as crianças ne. Com momentos de insatisfação, com momentos de alegria. Mas claro, acho que uma criança numa família a coisa é mais restrita. Eu vejo que por momento tem criança que a gente não tem outra opção pra ela, nem que se queira..   


Segundo Motta (2002), a institucionalização não é a melhor solução pois priva a criança de um convívio afetuoso mais personalizado e individualizado, que só poderia ser encontrado na relação familiar[3] . A esse respeito as dirigentes tem a consciência de que o abrigo nunca se constituirá como a família da criança e/ou adolescente.


Abrigo 5: Então, é algo  muito ambivalente, porque é uma vida com uma certa qualidade, com todas as necessidades, não só físicas, mas a questão da subjetividade, da afetividade, nós tentamos contemplar, mas nós sabemos…nós temos um impedimento: nós nunca vamos ser a família deles!


Abrigo 2: […] é uma vida de tristeza, de procura, sempre em busca de afeto e carinho. É uma vida de questionamento: […] porque a situação…sempre descontentes, não valorizando.


Abrigo 1: Não vejo uma coisa saudável. Todos nós aqui tentamos suprir, cuidar,sei lá…


 Todas as entrevistadas concordaram com a necessidade da efetivação da provisoriedade e excepcionalidade da medida de abrigo, porém, deixaram claro que a situação é bem diferente na prática. Por conseguinte, entram em cena os longos períodos de institucionalização, que só intensificam a tristeza, a insatisfação, e a insegurança quanto ao futuro. Sobre esse assunto, a representante do abrigo 2 diz que “vão ser crianças na casa pro resto da vida, rotuladas, sem conhecer o mundo.” Segundo Beghin e Peliano (2004, p.231) há estudos que comprovam o fato de que crianças e/ou adolescentes que sofrem longos períodos de institucionalização podem adquirir estigmas que os acompanharão por toda a vida, como o fato de “não adquirirem sentimento de pertencimento e enfrentarem sérias dificuldades para adaptação e convívio em família e na comunidade” tornando assim um meio violador de direitos.


 


Através dos dados apresentados, nota-se que a provisoriedade da medida de abrigo ainda não se concretizou no município, surgindo de imediato o questionamento acerca das maiores dificuldades encontradas para o retorno das crianças e/ou adolescentes às suas famílias de origem. Na prática, percebe-se que as dificuldades presentes para o retorno do abrigado vão além da sua situação sócio-econômica. Nesse contexto, 60% das representantes apontaram a falta de estrutura familiar como o principal ponto negativo no momento de se buscar a reinserção. Elas acreditam que, apesar do ambiente familiar ser o mais apropriado ao desenvolvimento das crianças e adolescentes, em certos casos torna-se um local de desproteção, acarretando, dessa forma, a permanência dos abrigados nas instituições. Desse montante, dois terços fazem questão de apontar a falta de motivação dos pais em reinserir a criança e/ou adolescente ao lar e construir vínculos afetivos mais fortes.


Abrigo 5: […] são pessoas que tiveram sua vida pregressa com poucos ícones, e eles não conseguem estabelecer vínculos reais, vínculos fortes com as crianças, né. Então eles vão na instituição, abraçam, beijam, mas em compensação passam…passam 20 dias sem aparecer, então isso vai nos falando que a criança, se retornar para aquele lar, e muitas vezes nós levamos a criança até a família, mas, nós vimos que na verdade não está existindo interesse muito forte em ter aquela criança de volta.


 Os 40% restantes alertam serem as atitudes desarticuladas do Conselho Tutelar o principal inviabilizador do retorno às famílias. Este órgão, segundo relatos, acaba realizando muitos abrigamentos sem a prévia analise da situação, bem como não dá a continuidade ao seu trabalho após a colocação das crianças e/ou adolescentes nas instituições. Assim, o desinteresse no acompanhamento das famílias e os abrigamentos indevidos são apontados como ponto de irregularidade da atuação desses profissionais.


Abrigo 2:[…] é o descaso do conselho tutelar quando faz a abrigagem. Ele esquece de quem ele abrigou enquanto era papel dele procurar essa família.


Abrigo 1: […] são os abrigamentos que são feitos de uma forma que não é correta, através do Conselho Tutelar. Só quem pode desabrigar é o Conselho Tutelar, até junto com a gente, com a equipe quem tem essa autoridade mesmo…[…] então assim ó, a dificuldade que eu vejo é essa ai…  


4.5 A integração em família substituta


As instituições que aplicam a medida protetiva de abrigo devem adotar o princípio da “integração em família substituta quando esgotados os recursos de manutenção da família de origem”, de acordo com o inciso II, do art 92, citado anteriormente. Quando as participantes foram questionadas a respeito deste princípio, 100% expuseram que não é possível tal medida devido ao fato de que todos os abrigados encontram-se vinculados as suas famílias de origem, com exceção dos pouquíssimos casos de crianças e/ou adolescentes que não possuem mais consangüíneos.


Abrigo 4: isso não é papel do abrigo…nós não fazemos esse trabalho.


Abrigo 1: não, não seria o caso, pois não temos nenhum destituído aqui.


No momento da investigação, não haviam crianças e/ou adolescentes destituídos do poder familiar nos abrigos e isso se torna um grande problema quando tal situação é colocada lado a lado com a disposição relativa à provisoriedade da medida de abrigo. Nota-se que nem ao menos os institucionalizados que não possuem mais a família de origem encontram-se envolvidos com o aspecto da inserção em família substituta. Porém, apesar de tal dificuldade, a destituição torna-se necessária quando há a ausência de chances de retorno familiar, que às vezes não é declarada por se tratar de uma decisão muito significativa e que trará reflexos para a criança ou o adolescente em questão. Por outro lado, a não decisão também afeta o melhor interesse da criança e do adolescentes.


Abrigo 5: […] Então, eu acho que nós estamos caminhando para que as crianças não permaneçam por muito tempo, mas ma prática é muito difícil, porque as famílias, muitas vezes, elas tem diferentes momentos...elas tem momentos que elas procuram e a gente: ah, vamos investir! E outros momentos que depois cai tudo por água abaixo, e a gente vê que estamos perdendo tempo e essa criança está passando o tempo e tá ficando.


A respeito da ausência de crianças e/ou adolescentes destituídas do poder familiar, tem-se as seguintes opiniões:


Tem crianças destituídas? Há crianças para adoção?


Abrigo 3: Não, esse é um caso que aqui em Rio Grande a gente não viu ainda. […] eu não concordo com isso, porque no momento que isso acontece ela nunca vai poder entrar numa lista de adoção, ou do Estado, ou do Exterior, porque ela vai tá sempre vinculada.


Abrigo 4: Olha, eu não saberia te dizer porque isso fica muito… É, a gente não tem isso muito claro pois isso é uma questão do poder judiciário.[…] se a gente tem aqui uma criança aqui que vai ser colocada em adoção, quem trabalha com isso é o judiciário. Quando a gente fica sabendo eles já escolheram, já tão mandando  a pessoa aqui pra visitar a criança, entendesse? Não é muito um trabalho do abrigo.


Abrigo 2: Não, também não porque a idade… o processo jurídico é muito lento, assim, o jurídico é muito lento.


4.6 Atendimento personalizado e em pequenos grupos


O ser humano precisa de tratamento individualizado e vínculos afetivos concretos para constituir-se de forma digna, visto que precisa crescer sentindo-se seguro e não na incerteza constante de qual direção tomará. Todos esses fatores somam-se negativamente quando se pensa no oferecimento dos direitos da criança e do adolescente de forma realmente eficaz. Nesse contexto todas as participantes acreditaram ser o tratamento personalizado uma questão difícil de lidar no dia-a-dia.


Abrigo 4:  […] É tudo muito coletivo. Isso é uma das coisas que eu acho mais grave num abrigo é justamente ser tudo tão coletivo.) […] A gente tenta individualizar dentro daquilo que a gente pode, material escolar é de cada um… mas tem coisas ainda que são coletivas.


Abrigo 5: […] Então a gente tenta que cada um tenha a sua parte no armário, que cada um tenha, que possa ter as suas coisas, mas é algo que não é fácil […] nós temos reuniões com as equipes e a gente sempre pondera isso que seja dez minutos, mas que trata aquela criança como única.


Abrigo 2: Acho que tem que ser personalizado, bem e somente individual. O grupal são dinâmicas. Mas o atendimento pra mim, dentro do abrigo, temq ue ser individual. Assim ó, eu tenho 9 cuidadores, divididos por turnos e só eu: coordenadora, assistente social, psicóloga, mãe e tudo o que você pode imaginar.


Por mais estruturado que se encontre o ambiente de um abrigo, o desenvolvimento de quem se encontra a anos institucionalizado, acaba por ser prejudicado devido a falta de individualização e de atendimento direto. Esse fato ocorre porque são várias crianças sob a responsabilidade de poucos cuidadores, que mesmo estando empenhados, não podem viabilizar exclusividade e construção de laços afetivos permanentes. Percebeu-se ser inviável apresentar a média de cuidadores por criança, pois, durante a pesquisa, obtiveram-se percepções diferentes a respeito. Das participantes, 60% enquadraram todos os funcionários da instituição como cuidadores, desde os monitores propriamente ditos até o pessoal responsável pela limpeza, o restante fez questão de frisar que cada um tem a suas funções e somente os monitores olham pelos abrigados.


4.7 A necessidade de se evitar a transferência do abrigado (a) para outras entidades e a preparação gradativa para o desligamento


A preparação para o desligamento (art.92, VIII, ECA) deve ser executada de forma cautelosa e, é imprescindível, que se dê a tal momento a atenção necessária. Para tanto, faz-se mister que o jovem encontre vínculos e referências no abrigo em que se encontra. Diante disso o questionamento às representantes dos abrigos acerca da não-transferência de abrigados para outras instituições, geraram respostas adversas onde cada participantes mostrou um ponto de vista a respeito. No tocante à manutenção da criança e/ou adolescente no mesmo abrigo, 80% concorda ser importante, porém:


a- 20% não realiza transferência devido a preservação dos vínculos afetivos;


Abrigo 5: […] nós não transferiríamos as crianças que estavam conosco, porque a gente estabelece um vínculo afetivo e depois, por necessidade de vaga que tu vai embora, então isso não ocorre.


b- 20% procura preservar os vínculos, porém é contra a manutenção de indivíduos de faixas-etárias diferentes, juntos, portanto, fazendo-se mais apropriada a transferência, se possível, quando tal fato acontecer;


Abrigo 1: […] mas assim ó, teria que ser evitado por causa dos vínculos, mas daí ocorre aquilo que estava te dizendo que sou contra à mistura das idades, porque, até 12 anos deveria ficar num abrigo e dos 12 aos 18 deveria ir pra outro, porque estão na adolescência e é toda uma transformação que eles passam que eles deveriam se separar das crianças.


c- 20% procura manter mas acata a vontade de alguns abrigados em trocar de instituição;


Abrigo 4: […] é uma coisa que a gente procura nunca fazer, não vou te dizer que nunca tenha sido feito. […] mas os adolescentes, sabe, chega uma hora que querem tomar um rumo na vida deles né […] bom, quando é vontade do adolescente a gente faz a transferência, agora partindo da gente assim a gente procura não transferir.


d- 20% tenta fazer a transferência se acredita que o abrigado vem a trazer alguma forma de desproteção aos outros;


Abrigo 3: […] Nós chegamos a pedir transferência dela pra outro abrigo onde tinham menos crianças […] é mais  fácil estar com sete e trabalhar uma com problema do que tá com 30 e trabalhar uma com problema fora da faixa de idade. Então esse é um problema que a gente tá sentindo ainda […] se tivesse um lugar específico pra eles ficarem por um determinado momento, e depois retornarem pro abrigo, eu acho que seria o ideal. É que as vezes nos força a isso porque a gente entra no momento que não tem o que fazer, e eu não tenho o que fazer com essa menina.


e- 20% não vê razão para problemas em transferir o abrigado.


Abrigo 2: Não vejo isso assim como uma grande preocupação. Porque se, ele…o mundo lá fora vai ser isso pra ele e acho que são coisas que ele já vai aprendendo. Daqui a pouco ele tá num lugar e sair daquele e ir pra outro lugar. Não adianta eu criar uma raiz e dizer:ah, mas tá aqui desde os oito anos, porque aos dezoito ele vai ter que sair. Eu acho assim, que dá pra ser transferido, eu não vejo que vá causar problema.


A preparação gradativa para o desligamento vem sendo trabalhada por 80% dos abrigos do município. Afirma-se a existência de práticas que julgam ser capazes de preparar paulatinamente os institucionalizados para a vida pós entidade, bem como expõe que há a consciência, por parte dos adolescentes, sobre a chegada do momento de transição. Assim, ações como cursos profissionalizantes e pequenos serviços do dia-a-dia são aplicados aos jovens que estão atingindo a maioridade. Os 20% restantes apontam que ainda não ocorreu a necessidade de prepará-los, visto não haver crianças e/ou adolescentes que se aproximam da maioridade, o que demostra o descumprimento de parte do inciso que determina que a preparação deva ser gradativa, significando que deve advir de um processo de longo prazo que seja capaz de estruturar o adolescente.


A institucionalização deve objetivar a provisoriedade, porém, tal ditame não deve gerar como conseqüência relações efêmeras dentro dos abrigos. O afeto e a formação de vínculos devem se fazer presentes, pois, além de vital ao desenvolvimento das crianças e adolescentes, age como fortalecedor da auto-estima, da educação e da compreensão. O jovem deve encontrar no abrigo bases fortes para a sua caminhada quando chegada a maioridade. Sabe-se que não é adequado ter o abrigo como lar definitivo, mas há muitos casos de longos períodos de institucionalização onde a criança e/ou adolescente tem neste ambiente seu próprio lar. Assim, a referência de afeto e segurança deve vincular-se ao abrigo, visto serem sentimentos necessários ao ser humano.


5. Conclusão


Este trabalho evidencia um amadurecimento no tratamento oferecido a criança e ao adolescente, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 e, por conseguinte, o ECA. Nesse contexto, finalmente são tratados como sujeitos de direito e não mais desconsiderados em relação à sua situação peculiar de indivíduos em desenvolvimento. Para tanto, existiu um longo caminho percorrido de transformação das concepções da sociedade e construções de normativas. Com a apresentação de informações acerca da história da infância e juventude, notou-se o grande avanço em que se encontra essa temática nos dias de hoje, porém, apesar do ECA estar completando 19 anos, muito do que está disposto em suas linhas ainda não ocorre.


A convivência familiar e comunitária trata-se de um direito fundamental destinado às crianças e adolescentes, e, dessa forma, o estudo visou a investigação da aplicabilidade de tal ditame em relação à população institucionalizada do município. Os resultados revelaram transformações positivas em relação à aplicação da medida protetiva de abrigo, porém, destacou também que a instituição nunca será o ambiente mais apropriado ao desenvolvimento saudável de crianças e/ou adolescentes. A permanência de um grande número de abrigados com idades consideradas críticas, somada a falta de definição juridica, implica diretamente na maior dificuldade de reinserção dessas crianças tanto nas famílias de origem como em famílias substitutas, enfraquecendo o direito a convivência familiar.  As entrevistas mostraram que as crianças e os adolescentes  permanecem por anos nos abrigos, vinculadas as suas famílias que não apresentam motivação em recebê-los novamente ou são julgadas como desestruturadas, no entanto, nenhum programa de atendimento é proposto para a reorganização dessas famílias e para o fortalecimento dos vínculos afetivos.


Algumas opiniões, atitudes e regras apresentam-se controversas no tocante às diretrizes que regem a convivência familiar gerando uma reflexão sobre o papel da instituição na promoção e no resgate desse laço afetivo. A formação de vínculos necessários a todos os seres humanos parece não ser alvo de algumas instituições que dificultam o contato e a convivência comunitária. O fato de possuir a maioria de seus abrigos separados por sexo descumpre o princípio da atividade em regime de co-habitação, bem como o não desmembramento de irmãos.


Muitos questionamentos acerca de funções imprescindíveis ao funcionamento da rede de institucionalização encontram obstáculos para sua efetivação, como a falta de comprometimento do município em instituir programas vinculados ao atendimento das famílias dos abrigados e a desarticulação de ações do Conselho Tutelar.


O município está caminhando em busca da efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes abrigados através da aplicação de programas de atendimento e da tentativa de transformação da situação atual, porém, fica nítida a desestruturação existente na rede de apoio, tanto por parte do município, do judiciário, dos órgãos de assistência e dos próprios abrigos. Há a necessidade de ações mais estruturadas advindas de todas as esferas, de forma a transformar o abrigo em medida provisória e excepcional, respeitando-se a condição peculiar, das crianças e dos adolescentes, de sujeitos em desenvolvimento. Deve haver o esforço mútuo dos órgãos para não deixar que a situação hodierna mantenha-se na forma de violência institucional, pois, apesar do crescente progresso no campo legislativo, este em muito, mantendo-se inalterado em suas práticas, ou presente de forma tão sutil que se torna quase imperceptível.


Os números indicam, as argumentações explicam, as entrevistas refletem que muitas irregularidades fazem-se presentes no dia-a-dia das crianças e/ou adolescentes institucionalizados no município. Dessa forma, os resultados desta pesquisa só corroboram vários estudos de níveis nacional e regional, mostrando o quanto essa temática é complexa, sendo necessária a compreensão e atenção dos profissionais forenses sobre essa temática, pois por vezes parecem esquecer que as crianças e adolescentes bem estruturados serão a principal máquina de aplicação devida da lei e da justiça, tão prezados pelos operadores do Direito. Precisa-se de mais sensibilidade, determinação e humanismo para tratar com mais empenho das causas envolvendo crianças e adolescentes, inclusive a respeito da institucionalização destes que tornam-se indivíduos penalizados inocentemente.


 


Referências

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SIQUEIRA, Aline Cardoso; DELL’AGLIO, Débora. Dalbosco. O Impacto da Institucionalização na Infância e na Adolescência: Uma Revisão de Literatura. Psicologia e Sociedade, Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 71-80, 2006.


Notas:

[1] Cavallieri (1986, p.06) define situação irregular como um “um estado de patologia (doença) social, de forma ampla”. Pensa ser esse verbete mais abrangente do que as palavras: delinqüente e abandonado, usadas no código anterior (1986, p.07), bem como acredita que dessa forma não traria “rótulos traumáticos.”

[2] Disponível em: <http://www.observatoriobaixada.org.br/perfil_familiar.html>. Acesso em: 27 de julho de 2008

[3] Trecho de texto apresentado por Maria Antonieta Pisano Motta, no III Cilclo de Palestras: TODA CRIANÇA EM FAMÍLIA, denominado: Abrigos – As marcas do abandono em crianças e adolescentes. 23 de novembro de 2002,  SP –  organizado pelo CECif.

Informações Sobre os Autores

Rita de Cássia Aparecida Girão Borba

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande. Colaboradora do Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua (CEP-RUA/FURG).Experiência na área do Direito da Criança e do Adolescente, atuando nos seguintes temas: institucionalização e apadrinhamento afetivo

Simone dos Santos Paludo

psicóloga, Doutora e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professora adjunta da Universidade Federal do Riio Grande (FURG), vice-coordenadora do Centro de Estudos Psicologicos sobre meninos e meninas de rua da FURG (CEP-RUA/FURG)


Equipe Âmbito Jurídico

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