A inteligência policial como ferramenta de Análise do Fenômeno: Roubo de cargas no Brasil

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Resumo – O objetivo desse artigo é demonstrar que a inteligência policial deve ser utilizada para a produção do conhecimento que possibilitará ao Estado realizar o enfrentamento do fenômeno criminal do roubo de cargas, comprovando que o setor vitimizado diretamente pelo crime, apesar de ser específico, possui uma profunda intercomunicação com outros setores da economia, o que torna o problema global, ocasionando a formação de obstáculos para o crescimento do Brasil. Faremos uma abordagem com dados sobre o fenômeno de fontes extra-oficiais disponíveis, além dos dados oficiais da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça.


1. Introdução


O crescente do fenômeno da violência no Brasil torna a vida cotidiana mais assustadora e cara. A sensação de insegurança que a sociedade brasileira é obrigada a enfrentar reflete suas mazelas no que os economistas chamam de “Custo Brasil” [i], prejudicando o desenvolvimento social e econômico do país.


Quando um empresário brasileiro do setor de produção realiza uma análise de riscos da sua atividade, em geral, consegue diagnosticar que o ponto mais sensível para seus produtos é o momento que a produção sai da sua fábrica em direção a rede de distribuição do atacado e do varejo. Nesse itinerário, as atuações das organizações criminosas especializadas em roubo de cargas são quase sempre cirúrgicas e implacáveis. 


O consumidor, por conseqüência, é obrigado a pagar preços exorbitantes nas aquisições de produtos que incorporam no preço final as pesadas despesas oriundas de fretes e seguros contra roubo de cargas. O que torna mais grave o problema é que os receptadores de cargas roubadas, elo mais forte dessa corrente criminosa, possuem a vantagem da legislação ser muito benevolente e pouco eficaz para reprimir essas práticas. Os prejuízos causados ao setor econômico brasileiro pelo fenômeno criminal ora estudado girou em torno de setecentos milhões de reais no ano de 2004 [ii]. Diante deste quadro, não podemos cair no erro de tratar o roubo de carga como simples crime contra o patrimônio particular.


As organizações criminosas que atuam no setor de transporte de cargas não o fazem baseados no princípio da oportunidade ou aproveitando descuidos casuais das vitimas. As estatísticas comprovam que as cargas mais visadas pelas Organizações criminosas são aquelas com alto valor agregado e na maioria das vezes com um mercado consumidor específico como no caso dos eletro/eletrônicos e medicamentos[iii].  


2. Desenvolvimento


2.1. Transportes rodoviários de cargas


Apesar de o Brasil ser um país continental e dos estudos estratégicos demonstrarem que o transporte de cargas é mais viável economicamente quando realizado por modais de transportes como as ferrovias ou navegação de cabotagem, os gestores públicos brasileiros na década de 50 começaram a deixar bem clara a preferência nacional pelo transporte de cargas realizado através das rodovias. Com a chegada das indústrias automobilísticas no Brasil na década de sessenta e com os programas de subsídios de combustíveis, a preferência pelo modal rodoviário tornou-se uma política pública defendida pelos gestores públicos e adotada pela iniciativa privada nacional.


Dados extra-oficiais indicam que o transporte rodoviário responde por aproximadamente 61 % das cargas transportadas no Brasil. [iv]


No caso do estado de São Paulo, membro mais rico da Federação, onde os percentuais estatísticos indicam que 33,4% do PIB nacional é oriundo da economia paulista, a matriz de transporte demonstra que 93,3% do total dessa riqueza é transportada pelas rodovias.[v] Fica claro que a concentração no modal rodoviário favorece o acumulo de problemas num setor que está no limite do seu esgotamento.


Dentre outros, podemos citar como principais problemas que atingem o setor:


A. Má conservação das estradas – O problema de infra-estrutura das rodovias aumentam os custos operacionais do transporte rodoviário e torna o setor suscetível às mazelas da “insegurança pública”.


B. Idade da frota dos veículos de transporte – Segundo dados das empresas do setor, a frota nacional possui aproximadamente 1.850.000 veículos e, dentre esses, cerca de 800.000 caminhões com mais de 20 anos de uso. A média de idade dos veículos do setor no Brasil gira em torno de 18 anos, o que é um índice considerado muito alto em relação a outros paises.  


C. Carga tributária elevada – Segundo dados das empresas do setor, a carga tributária consome 30% do faturamento das empresas de transporte. Se analisarmos os números de outros setores como, por exemplo, o sistema financeiro, nós podemos notar que esse setor paga cerca de 55% menos impostos que o setor de cargas, o que demonstra um desequilíbrio da incidência de tributos no setor de transportes de cargas em relação a outros setores da economia. 


D. Roubo de cargas – Esse fenômeno criminal é indiscutivelmente o fator responsável pelo maior aumento dos custos operacionais das empresas do setor, conforme será abordado nesse artigo.


E. Preço dos seguros elevados – Esse item possui relação direta com o anterior, já que o gerenciamento de risco das empresas passou de 5% para 15% da receita bruta do setor, o que corresponde um valor de aproximadamente R$ 1,5 bilhões por ano. Segundo dados da FENASEG (Federação Nacional de Empresas de Seguros e Resseguros do Brasil), o mercado de seguros, que em um passado próximo possuía 15 empresas de seguros atuando no setor de transporte de cargas, com o aumento da incidência do roubo, hoje só opera no setor com praticamente 4 empresas seguradoras, o que ocasionou um aumento astronômico no preço de seguros. Para algumas cargas específicas de alto risco as seguradoras simplesmente não realizam a cobertura.  


F. Tempo elevado de espera para operacionalização do procedimento de carga e descarga – O Brasil vem batendo todos os seus recordes de produção, principalmente na agroindústria. A produção para exportação do país está cada fez mais incentivada pelas políticas públicas, mas o Brasil possui um problema sério que é o gargalo do escoamento da produção para o exterior, ocasionado pelo sistema precário dos nossos portos.  As cargas chegam dos locais de produção e ficam aguardando em filas quilométricas o momento de descarga no porto. Esse fenômeno é denominado pelos especialistas do setor como a silagem móvel. A falta de estrutura de armazenamento no Brasil obriga as empresas a colocarem suas mercadorias nos caminhões para aguardar o escoamento pelos portos, aumentando o índice de roubo de cargas, já que as rodovias não possuem estrutura de vigilância para inibir a ação criminosa.    


2.2. Inteligência policial e análise criminal, aplicadas ao roubo de cargas.


Nesse item, realizaremos uma rápida abordagem conceitual sobre o tema inteligência policial, passando a explicar a ferramenta da análise criminal, para demonstrar ao final do artigo que as duas vertentes podem ser uma excelente solução para o combate e prevenção dos roubos de cargas no Brasil. 


Atualmente, a palavra inteligência vem sendo utilizada com várias interpretações no mundo. Na língua portuguesa, segundo o dicionário do professor Dr. Soares Amora: “Inteligência é – Faculdade de entender, de conhecer;”.


Para os ingleses, Intelligence é um serviço de produção de conhecimento sensível de interesse do Estado.


Legalmente, no Brasil, “inteligência” está conceituada no artigo 1º, parágrafo 2º, da lei 9.883 de 07 de dezembro de 1999.


Lei – nº 9.883/1999


Art. 1oFica instituído o Sistema Brasileiro de Inteligência, que integra as ações de planejamento e execução das atividades de inteligência do País, com a finalidade de fornecer subsídios ao Presidente da República nos assuntos de interesse nacional.


§ 1o -…


§ 2o – Para os efeitos de aplicação desta Lei, entende-se como inteligência a atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de conhecimentos dentro e fora do território nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado.


Se a palavra inteligência possui esses significados citados, o que seria “Inteligência policial”?


Considerando que a palavra inteligência é a faculdade de entender algo, aliada à idéia inglesa de um serviço de produção de conhecimento sensível, incluída a base legal brasileira, podemos concluir que inteligência policial é:


–  Uma atividade de Estado que visa obter, produzir e analisar conhecimentos relacionados de forma direta ou indireta às atividades de segurança pública e defesa social.


Para o professor Celso Ferro:


“A inteligência policial é a atividade que objetiva a obtenção, análise e produção de conhecimentos de interesse da segurança pública no território nacional, sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência da criminalidade, atuação de organizações criminosas, controle de delitos sociais, assessorando as ações de polícia judiciária e ostensiva por intermédio da análise, compartilhamento e difusão de informações.” [vi]


Verificamos que no Brasil o conceito de Inteligência Policial ou de Inteligência de Segurança Pública (ISP) é relativamente novo. Tanto é assim que atualmente a Coordenação-Geral de Inteligência da Secretaria Nacional de Segurança Pública está, através de um grupo de estudos composto por representantes dos Chefes de Inteligência de todas a Regiões do país, além dos consultores da SENASP: Dr. George Felipe de Lima Dantas e a professora Dra. Priscila Antunes, elaborando em um texto consensual da Doutrina Nacional de Inteligência de Segurança Pública e Defesa Social, documento que deverá até julho de 2006 ser apresentado ao  conselho do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública (SISP).[vii] O SISP é coordenado pela SENASP e faz parte do Sistema Brasileiro de Inteligência que é dirigido pela Agencia Brasileira de Inteligência – ABIN.


Decreto 3.695 de 21 de dezembro de 2000


Art. 1º Fica criado, no âmbito do Sistema Brasileiro de Inteligência, instituído pela Lei no 9.883, de 7 de dezembro de 1999, o Subsistema de Inteligência de Segurança Pública, com a finalidade de coordenar e integrar as atividades de inteligência de segurança pública em todo o País, bem como suprir os governos federal e estaduais de informações que subsidiem a tomada de decisões neste campo.


Art. 2º Integram o Subsistema de Inteligência de Segurança Pública os Ministérios da Justiça, da Fazenda, da Defesa e da Integração Nacional e o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.


§ 1º O órgão central do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública é a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça.


A análise criminal é uma ferramenta moderna que possibilita os operadores de segurança pública entenderem o fenômeno da criminalidade, estudando seus efeitos e conseqüências, possibilitando um diagnóstico preciso, capaz de produzir um conhecimento necessário e indispensável aos gestores de segurança pública.


Para o professor Christopher W. Bruce: Análise Criminal é:


“The individual or unit in a police department charged with processing data and providing information that the agency can use to reduce, prevent, and solve crime, disorder, and quality of life issues.”[viii]


Quem teve a brilhante idéia de criar o que chamamos de Análise criminal?


Segundo o professor Dr. George Felipe de Lima Dantas, por volta do ano de 1920, a Associação Internacional de Chefes de Polícia (International Association of Chiefs of Police – IACP), através de seus associados, criou bases administrativas de dados para agregar de forma nacional as informações acerca da criminalidade norte-americana.  A operacionalização dessa idéia ficou conhecida nos Estados Unidos como: “Uniform Crime Report System” – Sistema de Relatórios Padronizados da Criminalidade (UCRS). [ix]


Ainda segundo o professor Felipe Dantas, Análise Criminal pode ser entendida como: “É um processo analítico e sistemático de produção de conhecimento, orientado segundo os princípios da pertinência e da oportunidade, sendo realizado a partir do estabelecimento de correlações entre conjuntos de fatos delituosos ocorridos (“ocorrências policiais”) e os padrões e tendências da “história” da criminalidade de um determinado local ou região. Sempre que possível, as atividades de análise devem buscar englobar, territorialmente, locais ou regiões dos quais estejam disponíveis, também, indicadores demográficos e sócio-econômicos, de tal sorte que a criminalidade possa ser contextualizada. No caso brasileiro, é importante ter em conta a produção de dados locais disponibilizada pelo “Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística” (IBGE).”[x]


Dentro da análise criminal “lato sensu”, podemos encontrar as técnicas de análise: Análise e Inteligência da Segurança Pública; Análise de vínculos; Análise investigativa visual e mapeamento de eventos temporais; Análise e fluxograma de registros de chamadas telefônicas; Análise de fenômenos da segurança pública; Estatística aplicada ao estudo dos fenômenos da segurança pública; Análise de fenômenos da segurança pública através dos chamados “Sistemas Geográficos de Informação” (GIS).


Através dessas técnicas, é possível realizar um diagnóstico preciso da criminalidade no tempo e no espaço, possibilitado uma polícia investigativa competente e uma polícia preventiva ágil e eficiente. O mais importante é conscientizar a sociedade que não existe fórmula mágica para o combate a criminalidade, e que instrumentos como as bolas de cristal, só nos filmes de Hollywood. A única fórmula que possibilita uma atuação eficiente dos operadores de segurança pública é a correta produção do conhecimento para nutrir as decisões estratégicas, táticas e operacionais.


No Brasil, um passo importante para a operacionalização dessa ciência é a introdução, no país, de uma ferramenta que está sendo implantada pela SENASP, em conjunto com a FENASEG, cognominado Projeto Fronteiras.


O Projeto Fronteiras já está possibilitando a análise e monitoramento das principais rodovias do Brasil, produzindo um conhecimento estratégico e tático acerca da movimentação de veículos com irregularidades administrativas ou registro de ocorrência de roubo ou furto. Após a total implantação do sistema, esperamos que a capacidade de resposta do poder público ao combate do roubo de cargas se torne mais efetivo. O projeto prevê o monitoramento constante das principais vias de escoamento da produção brasileira, além das rodovias que dão acesso aos países fronteiriços com o Brasil. A ferramenta possibilita também uma análise da conjuntura, viabilizando o conhecimento, tanto para ser utilizado a favor da realização do policiamento preventivo e do policiamento repressivo/investigativo.


2.3. Análise do Fenômeno Criminal do Roubo de Cargas


2.3.1. Dados Gráficos Analisados:



Tabela 01


Tabela 02


Tabela 03[xi]


Tabela 04[xii]

2.3.2. Análise do objeto-alvo / Localidade:


As cargas mais visadas pelas organizações criminosas são aquelas com alto valor agregado e de fácil distribuição no mercado ilícito da receptação. A afirmação é comprovada através dos dados extra-oficiais que realizaram o diagnóstico das empresas do setor de cargas. (Tabela 01). 


Conforme demonstram os registros do Sindicato das Empresas de Transporte de Cargas de São Paulo e Região (SETCESP), o objeto-alvo mais comum são os produtos eletro/eletrônicos com o percentual de 26% das ocorrências registradas entre os meses de janeiro e junho de 2005. Nos mesmos parâmetros, em segundo lugar aparecem os medicamentos com o percentual de 16,40%.


Analisando os dados contidos na Tabela 01 e as informações da Tabela 04, podemos traçar uma correlação entre as prioridades das organizações criminosas por produto e o comportamento do mercado varejista nacional.


A lógica do crime ensina que as mercadorias objetos-alvo das organizações criminosas já possuem destino certo e receptadores predefinidos. Quanto mais rápida a distribuição das mercadorias roubadas para os receptadores e desses para os consumidores finais (normalmente terceiros de boa-fé), mais eficiente e segura será a operação criminosa.


Quando fazemos o comparativo entre o mercado lícito de produtos e os produtos que são objetos-alvo das organizações, a leitura lógica é tendente a comprovar que as mercadorias que obtiveram um maior crescimento nas vendas no ano de 2005 comparado com o ano anterior são também as mais visadas pelas organizações criminosas. Conforme já explicado, considerando a necessidade operacional dos criminosos de efetuarem uma rápida distribuição dos produtos roubados, podemos afirmar que quanto mais capilarizada a distribuição do produto maior será o risco dos produtos serem interceptados no seu trajeto até o consumidor final.


Os dados oficiais e extra-oficiais do ano de 2005 comprovam essa tese, os indicadores de desempenho do comércio varejista apontam que o ramo que obteve o maior crescimento no volume de vendas no ano 2005 foi o setor de móveis e eletrodomésticos com taxas de 26,24% de aumento no volume de vendas. Coincidentemente, quando verificamos os índices que indicam o objeto-alvo predileto das Organizações Criminosas, no mesmo período, verificamos que o setor é contemplado com 26% de todas as ocorrências de roubo de cargas. Além da mera coincidência numérica dos índices de  26%, na verdade o que ocorre nesse caso é um conjunto de fatores que transformam os eletrodomésticos nos produtos mais visados do crime organizado, senão vejamos:


1. A primeira característica é a fácil distribuição dos eletrodomésticos roubados em diversos estabelecimentos varejistas de pequeno, médio e grande porte, já que os produtos são encontrados em lojas dos mais variados modelos de comércio formal e informal;


2. A segunda característica é a grande procura pelos consumidores por esse tipo de produto e o crescimento estável desse setor do comércio.


3. A terceira característica que consideramos importante no setor de eletrodomésticos, e que torna o setor atraente para as organizações criminosas,  são as facilidades que as financeiras e consórcios nacionais apresentam ao consumidor para a aquisição financiada desses produtos.


Ressalta-se que, segundo o que comprovou a CPMI do Roubo de Cargas (2000) o crime no Brasil possui a peculiaridade de realizar a distribuição dos produtos roubados através de uma rede de receptadores com envolvimento de células-componentes de grandes lojas atacadistas e varejistas do país.[xiii]


Quanto ao segundo colocado no ranking dos objetos-alvo, os medicamentos, nós podemos afirmar que o cunho da preferência está baseado em duas características do mercado farmacêutico. A primeira consideração seria os pequenos volumes desse tipo de carga com valores muito elevados. A segunda consideração está no foco do consumidor final que, via de regra, está em uma situação fragilizada pela presença de uma doença em si ou em um ente querido, fato esse, que obriga o consumidor a buscar soluções alternativas “mais rentáveis”, alimentando o mercado ilícito dos produtos. Os consumidores finais dos medicamentos, quase que cobertos pelo manto do estado de necessidade, muitas vezes não exigem, nem se preocupam com a origem dos medicamentos que estão adquirindo, fato que facilita a atuação do crime organizado. 


Apesar de o setor de medicamentos ter crescido em percentuais bem mais baixos que o de eletrodomésticos, com o valor de 0,26% em relação ao ano de 2004, em volume de vendas, podemos afirmar que as necessidades extremas do consumidor final na aquisição dos produtos medicamentosos tornam o mercado tentador para as organizações criminosas. Para os economistas, “demanda” (compra ou procura) é um reflexo do consumo. Esse reflexo, em regra, possui um nexo causal com enfermidades que precisam de tratamentos urgentes. Isso transforma o consumidor final do setor em um ser fiel à necessidade de suas demandas. Não é caso, por exemplo, do que ocorre como o setor de hortifrutigranjeiros, onde o consumidor final substitui um produto por outro quando o preço está muito elevado.  O consumidor final do setor de medicamentos  apresenta uma relativa garantia de demanda, importante para a rápida distribuição dos produtos roubados. Uma carga de antibióticos roubados será facilmente dissolvida no mercado ilícito que distribuirá os produtos com descontos tentadores para as farmácias e drogarias.   


Realizando uma análise dos dados extra-oficiais da Compsur/NTC (Tabela 2), que traça as características do fenômeno com relação às localidades afetadas podemos notar que a maior concentração do roubo de cargas está instalada no eixo Rio / São Paulo. De posse dessa informação, quando confrontada com os dados oficiais da Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP /MJ, (Tabela 3), baseada nas ocorrências das polícias civis de todo país, verificamos que são praticamente coincidentes, tendo uma pequena variação, dentro do limite de margem de erro estatístico. Portanto, tanto os dados oficiais quanto os extra-oficiais produzem o mesmo conhecimento, que demonstra o fenômeno do roubo de cargas como uma situação endêmica na região Sudeste.


No ano de 2004, a Região Norte acumulou um prejuízo aproximado em torno de 43 milhões de reais; a Região Nordeste, 61 milhões de reais; o Centro-Oeste, 46 milhões de reais; na Região Sul, os prejuízos ficaram em torno 83 milhões de reais; já na Região Sudeste, esses números são astronômicos, com um prejuízo calculado em 467 milhões de reais, ou seja, 77,52% do total de prejuízos do setor provenientes do roubo de cargas ocorreram nessa região econômica. 


2.3.3. Análise da Legislação Brasileira:


No Brasil, a legislação penal que trata do roubo de cargas não possibilita uma “coercitividade mais contundente” contra os receptadores de cargas roubadas. O enquadramento do tipo penal fica restrito ao artigo 180 do Código Penal Brasileiro e seus parágrafos. Vale ressaltar que esse diagnóstico no Brasil é antigo. No próprio relatório final da CPMI do roubo de cargas do ano de 2003, sob a presidência do Senador Romeu Tuma, no seu título: RECOMENDAÇÕES, item 07, o problema da receptação já era tratado como o ápice da estrutura criminosa do setor. [xiv] 


“Receptação  – CPB


Art. 180 – Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 24.12.1996)


Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 24.12.1996)


Receptação qualificada


§ 1º – Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 24.12.1996.”


Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 24.12.1996)


O que chamaríamos de “coercitividade mais contundente”? É unanimidade no setor de que a forma mais eficiente de se combater o fenômeno é focar esforços nos principais coordenadores dessas organizações criminosas, atacando o que eles possuem de mais importante, o lucro fácil.  As estruturas criminosas estão voltadas para viabilizar a vantagem de colocar no mercado produtos com um alto retorno lucrativo, aliado a um baixo risco de obter prejuízos oriundos da repressão policial e fiscal.


Outros países, incluindo nossos vizinhos argentinos, perceberam que o caminho correto para a repressão é inviabilizar o lucro final da operação ilegal comprometendo assim toda a estrutura criminosa.


A Argentina aprovou legislação que trata o receptador de forma dura. O diploma legal vizinho reza que no caso das autoridades encontrarem nos depósitos de uma empresa algum produto fruto de roubo, automaticamente todas as mercadorias são consideradas contaminadas e confiscadas. Os prejuízos advindos dessa determinação legal para os receptadores são significativos. Estudos recentes naquele país indicam que os índices do setor tiveram uma redução impressionante. Essa redução é explicada porque ficou muito arriscado para um comerciante/receptador ilegal manter, em seus estoques legais, produtos de receptação, já que um simples lote ilegal pode viabilizar o confisco de toda mercadoria existente nos seus depósitos, uma troca certamente não muito lucrativa.


No Brasil, em Janeiro desse ano (2006), foi aprovado no Senado Federal o Projeto de Lei da Câmara nº 141 de 2005 que cria o Sistema Nacional de Prevenção, Fiscalização e Repressão ao Furto e Roubo de Veículos e Cargas, aguardando agora a sanção presidencial. Infelizmente, a legislação brasileira não trata o receptador com o mesmo rigor dos argentinos, entretanto, temos que considerar que a Constituição Brasileira no seu artigo 150, IV – CF/(88), adota o princípio do não-confisco. Segundo Doutor Ives Gandra: “Não é fácil definir o que seja confisco. Entendo eu que sempre que a tributação agregada retire a capacidade de o contribuinte se sustentar e se desenvolver (ganhos para suas necessidades essenciais e ganhos a mais do que estas necessidades para reinvestir ou se desenvolver), estaremos diante do confisco”.Baseado nessa tese é que os doutrinadores pátrios entendem que qualquer ato ou norma com caráter confiscatório no Brasil é inconstitucional. Esperamos que a criatividade dos juristas e operadores de segurança pública do Brasil possibilite encontrar uma solução tão repressiva quanto à utilizada contra os receptadores na Argentina, sem ter o caráter de confisco vedado no Brasil. 


3. Conclusões


Infelizmente, no Brasil, temos de admitir que a inoperância dos sistemas públicos relacionados, direta ou indiretamente, com a segurança nas rodovias é cristalina.


O governo vem anunciando investimentos na recuperação da malha rodoviária brasileira, ato que irá repercutir diretamente na segurança das estradas. Os técnicos do Ministério da Justiça estão, em conjunto com os técnicos do Ministério dos Transportes, procurando soluções para o problema, inclusive com a elaboração do tão sonhado banco de dados de roubo de cargas, pela via REDE INFOSEG, [xv] o que já nos autoriza dizer que o tema está definitivamente na pauta do poder público atual.


Contudo, o mais importante é conseguir um nível de consciência que possibilite transformar o tema, que atualmente é tratado como um problema de Governo, em um problema de Estado. Os Operadores de Segurança Pública precisam se conscientizar que os efeitos do roubo de cargas não são apenas os prejuízos econômicos dos empresários do setor e que o combate deve ser sistêmico e constante. 


Nos dias 05 e 06 de julho de 2005, ocorreu o I Encontro Nacional do Transporte Rodoviário de Cargas, evento que dentre os diversos assuntos discutidos contemplou um painel específico para o tema: Aumento da Segurança. Naquela ocasião, o senhor José da Fonseca Lopes, Presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros (ABICAM), com intuito de rebater os argumentos dos representantes do poder público que estavam tentando amenizar o problema da segurança nas rodovias, apresentou um folheto originário da Associação que representa, datado do ano de 1985, onde informava aos seus integrantes que a classe trabalhadora do setor, naquele momento histórico, aprovara em assembléia geral um indicativo de greve e, entre outras reivindicações constantes no folheto, estava o AUMENTO DA SEGURANÇA NAS RODOVIAS.[xvi]


Esse fato, ocorrido no I Encontro Nacional do Transporte Rodoviário de Cargas, e ora narrado, comprova de forma inconteste que o problema do roubo de cargas está afetando o setor há pelo menos 20 anos.


 Com uma análise correta do fenômeno, aliada a vontade política de resolver o problema da insegurança nas rodovias, o poder público poderá reescrever a história do desenvolvimento brasileiro no que tange a viabilização estratégica e econômica do setor de transporte de cargas. Conscientizar a sociedade que as repercussões multidisciplinares dos prejuízos causados pelo fenômeno do roubo de cargas afetam diretamente a credibilidade da Nação é um primeiro passo para a mudança de comportamento. Ressalta-se que esse movimento já está ganhando muito espaço na mídia e está na agenda permanente dos operadores de segurança pública.  A realização de uma série de seminários por todo território nacional nos anos de 2004 e 2005, eventos organizados pela Confederação Nacional do Transporte em parceria com Departamento de Polícia Federal, comprova a preocupação dos operadores de segurança pública com o tema.


 Os gestores públicos que operam a segurança pública no Brasil precisam sair da esfera estratégica e utilizar a produção de conhecimento integralizado, que já existe disponível, para incrementar os planos táticos e operacionais de combate ao Fenômeno do Roubo de Cargas.


As soluções passam pelo aumento do efetivo das polícias especializadas, o que já está ocorrendo, no caso da Divisão de Combate ao Crime do DPRF e seus setores descentralizados, bem como a viabilização de monitoramentos tecnológicos dos principais canais de fluxo de produção que são alvos dos criminosos, matéria tratada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) em convênio com a Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados e de Capitalização (FENASEG). 


Ressaltamos ainda que, tanto o Departamento de Polícia Federal (DPF) quanto o Departamento de Polícia Rodoviária Federal (DPRF) estão realizando atualmente a estruturação de um combate sistêmico, entretanto, falta a intercomunicação e interoperabilidade com os integrantes das Policiais Estaduais que atuam de forma concorrente na repressão ao roubo de cargas. A repressão ao fenômeno precisa ser integralizada, homogênea, contínua e ininterrupta.   Os Gestores Públicos Brasileiros precisam viabilizar o combate antes que o crime organizado consiga inviabilizar o setor de transportes, a ponto de transformá-lo em mera lembrança de um passado recente.


 


Bibliografia

BRUCE, Christopher W. – What is crime Analysis? – President, Massachusetts Association of Crime Analysts.

BUENO, Francisco da Silveira Dicionário Escolar da Língua Portuguesa – FENAME – 9ª Edição.

CAIXETA-FILHO, Jose Vicente, Gestão Logística do Transporte de Cargas, Editora: Atlas.

DANTAS, George Felipe de Lima – A economia do crime: Correlações entre crime, desigualdade e desemprego (Burdett, Lagos e Wright).

DANTAS, George Felipe de Lima – A economia do Crime e o Apartheid do Brasil e de Outros Países Mais…

GILLIGAN, James – Violence: Reflections on a Nacional Epidemic, 1st Vintage Books ed., New York 1996.

SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo –– 17ª edição.

WOLFGANG, Marvin E. & Ferracuti, F. – The subculture of violence: Towards an integreted theory in crinology.

Anais do I Encontro Nacional do Transporte Rodoviário de Cargas – 2005.


Notas:

[i] Segundo o professor Otaviano Canuto da pós-graduação do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas -Unicamp. “Custo Brasil” tem-se constituído uma expressão genérica para alguns fatores desfavoráveis à competitividade de setores ou empresas da economia brasileira que não dependem das próprias empresas, ou seja, da qualidade de seus produtos, de seus custos etc.

[ii] Segundo dados da Associação Nacional do Transporte de Cargas & Logística – NTC&Logística apresentados no III Seminário de Roubo Cargas, Pirataria da PMERJ pelo Assessor de Segurança do  SETCESP/ FETCESP – Cel. Paulo Roberto de Souza.

[iii] Dados da Assessoria de Segurança do SETCESP/ FETCESP comprovam a afirmação. – Tabela: Roubo de Cargas – Jan a Jun / 2005 Tipos de Carga mais visadas. (Tabela 1)

[iv] Dados referentes ao ano 2004 – Boletim estatístico – CNT de 05/12/2005.

[v] Dados da Tigerlog Consultoria, Hunting e Treinamento em Logística Ltda – Artigo: Panorama do Transporte Rodoviário de Cargas no Brasil

[vi] Arquivo PDF – Atividade de Inteligência policial – Professor Celso Ferro – MBA Gestão Seg Pública e Defesa Social – UPIS/DF.

[vii] Decreto 3.695 de 21 de dezembro de 2000.

[viii] What is crime Analysis? – Christopher W. Bruce, President, Massachusetts Association of Crime Analysts.

[ix] Artigo: Algumas considerações básicas acerca da moderna “análise criminal” – George Felipe de Lima Dantas

[x] Artigo: Algumas considerações básicas acerca da moderna “análise criminal” – George Felipe de Lima Dantas

[xi] Fonte: Departamento de Pesquisa, Análise de Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça.

[xii] Fonte: Pesquisa mensal do Comércio – Indicadores – fevereiro 2005 – IBGE/Diretoria de Pesquisas/Coordenação de Serviços e Comércio.

[xiii] Relatório Final da CPMI do Roubo de Cargas, 2000

[xiv]Texto: Rel final CPMI – VII- Recomendações, item 7: – Prioridade absoluta ‘a investigação e ao combate à receptação, o que, segundo entendemos, requer uma “força-tarefa” que integre os diferentes organismos (Polícia Federal, Polícias Estaduais, Fiscais Fazendários, Ministério público, outros órgãos públicos estaduais e municipais, etc.), conforme suas competências e as necessidades de cada operação.

[xv] A Rede INFOSEG congrega, atualmente, informações de Segurança Pública, Justiça e dos órgãos de fiscalização em todo o País, através do emprego da tecnologia da Informação e comunicação. Endereço eletrônico: www.infoseg.gov.br

[xvi] Anais do I Encontro Nacional do Transporte Rodoviário de Cargas – 2005

Informações Sobre o Autor

Luiz Carlos Magalhães

Agente de Polícia Federal, lotado na SR/DPF/DF – Especialista em Gestão da Segurança Pública e Defesa Social, Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos em Defesa Segurança e Ordem Pública do Centro Universitário do Distrito Federal (UNIDF).


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Equipe Âmbito Jurídico

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