Resumo: O presente estudo visa à análise da legitimidade constitucional dada à Defensoria Pública para a propositura de Mandado de Segurança Coletivo ante as premissas democrático-constitucionais albergadas no art. 134 e sua remissão ao inciso LXXIV do art.5º., da Constituição Federal de 1988, a prescindir de autorização infralegal expressa para atuar na defesa de direito líquido e certo de todas as categorias de hipossuficientes, a abranger o cidadão hipossuficiente, o grupo vulnerável, a coletividade de pessoas cuja desorganização social, cultural ou econômica não consiga, por seus próprios meios, transpor obstáculos e limitações ao pleno acesso à justiça.
Palavras-chave: Defensoria Pública – Cidadania Ativa – Acesso à Justiça – Legitimidade – Necessitado – Coletividade – Mandado de Segurança Coletivo.
Sumário: 1. Introdução – 2. Acesso à Justiça e a Cidadania Ativa – 3. A Defensoria Pública na Constituição Federal de 1988 – 4. A Assistência Jurídica Integral e o Necessitado – 4.1. A Assistência Jurídica Integral, a Assistência Judiciária e a Gratuidade de Justiça – 4.2. O Necessitado – 5. Os Necessitados no Plano Coletivo – 6.A Legitimidade da Defensoria Pública para o Mandado de Segurança Coletivo – 7. Conclusão – 8. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Os paradigmas clássicos do direito nacional têm passado por mudanças sensíveis em virtude de um movimento proativo e silencioso de centenas de cidadãos brasileiros que procuram concretizar seus direitos outorgados pelo Estado Democrático.
Essa modificação de postura vem sendo sentida por todas as Defensorias Públicas do país, tanto no âmbito Estadual quanto Federal, quando da prestação da assistência jurídica integral para conduzir as pretensões individuais e coletivas dessa parcela significativa da população nacional à realização do acesso à justiça.
Por sua vez, a efetivação desse acesso à justiça está diretamente relacionada à renovação de um sistema pelo qual a Defensoria Pública realmente possa reivindicar os direitos e dar vazão a esse movimento ativo amparado no ideal de concretização de direitos.
Isso ocorre porque a prestação da assistência jurídica integral pela Defensoria Pública enfrenta, desde o seu nascedouro, entraves políticos e jurídicos embasados na ausência de previsão infralegal a (des)autorizar a legitimidade da Defensoria Pública à adoção de medidas jurisdicionais tendentes a conduzir problemas e gerir reivindicações daqueles interesses individuais e coletivos, não apenas dos pobres, mas do indivíduo ou grupos de pessoas vulneráveis, contra litigantes organizados.
A despeito da postura equivocada adotada por alguns segmentos políticos e instituições jurídicas contrárias à ampliação da legitimidade da Defensoria Pública para a defesa natural do seu objeto institucional, as linhas que se seguirão têm por fim demonstrar que o constituinte deferiu à Defensoria Pública uma legitimidade ativa ampla e irrestrita, então amparada em premissas democrático-constitucionais albergadas no art. 134 e sua remissão ao inciso LXXIV do art.5º. da Constituição Federal de 1988, hodiernamente corroboradas pelos incisos VII, VIII, IX, X e XI do art. 4º. da Lei Complementar 80, de 1994 (com alteração dada pela Lei Complementar 132, de 2009), a autorizar a defesa e orientação dos interesses e direitos de todas as categorias de hipossuficientes, o que inclui o cidadão hipossuficiente, o grupo vulnerável, a coletividade de pessoas cuja desorganização social, cultural ou econômica não consiga, por seus próprios meios, transpor obstáculos e limitações ao pleno acesso à justiça.
Aludida justificativa, que visa a assentar a legitimidade da Defensoria Pública para a propositura do Mandado de Segurança Coletivo em defesa do grupo vulnerável de pessoas e da coletividade, perpassa pelos fundamentos do Estado Democrático, além dos contornos históricos e legais da assistência jurídica integral e da Defensoria Pública, a formatar a base da prestação do serviço jurídico assistencial deferido pelo Estado à população mais vulnerável do segmento social por uma instituição pública criada justamente com essa finalidade.
Não se descura, outrossim, para a necessidade de uma análise interpretativa da norma jacente no art. 5º., LXX, da Constituição Federal e do art. 21 da Lei 12.016, de 2009, à luz daqueles postulados constitucionais e a finalidade de assentar as premissas institucionais de atuação da Defensoria Pública em favor de todas as categorias de hipossuficientes. Igualmente, propõe-se a releitura da rubrica necessitado no jargão jurídico-nacional diante da evolução do direito e do surgimento de interesses transindividuais dos cidadãos hipossuficientes, o que redunda, por si só, na premência de dotar a Defensoria Pública de instrumentos jurisdicionais aptos a sustentar a tutela coletiva daqueles interesses.
Para tanto, discute-se o uso desse instrumento processual coletivo e o propósito da inclusão da Defensoria Pública como legitimado ativo para o Mandado de Segurança Coletivo consoante Proposta de Emenda à Constituição número 74, de 2007, em trâmite no Senado Federal.
Essas considerações, além de perpassarem pelo tecido jurídico-constitucional, também representam a evolução por que tem cruzado o direito, o qual procura dotar os cidadãos vulneráveis de novos mecanismos de representatividade. E, como se verá ao final, essa questão traz à baila a quebra de toda uma cultura jurídica até então amparada na aplicação mecânica das regras jurídicas que sempre descurou para a possibilidade de uma postura ativa da sociedade, através de órgão próprio, notadamente a Defensoria Pública, na busca dos seus direitos constitucionalmente assegurados e do efetivo acesso à justiça.
De nada adiantaria a mera titularidade de direitos se ao cidadão vulnerável e coletivamente considerado não fosse garantida representatividade adequada quando da reivindicação dessas pretensões. De nada adiantaria, tampouco, deferir à Defensoria Pública a representatividade para a defesa e orientação dos necessitados, se não armá-la de mecanismos aptos à reivindicação processual de direitos individuais e transindividuais de todas as categorias de hipossuficientes.
2. ACESSO À JUSTIÇA E A CIDADANIA ATIVA
Voltada à modificação de uma cultura política e jurídica nacional, até então liberal e positivista, a Constituição Federal de 1988 impôs o ativismo social e jurídico, de modo que não deve surpreender a mobilização da sociedade pela concretização de direitos individuais ou coletivos e, por conseguinte, realizar a premissa do Estado Democrático e de Direito.
O cidadão está exigindo direitos em números cada vez maiores, não apenas para causas rotineiras, mas também para reivindicar direitos novos, não tradicionais, seja como autor ou como réu.[1]
Vive-se, hoje, a alteração de paradigmas. A movimentação proativa de uma sociedade em amadurecimento, quanto aos seus direitos, tem demandado respostas imediatas do Estado, a desestabilizar o antigo estado jurídico-cultural. Radicalismos desse movimento devem ser entendidos como produto de transformação de uma nova ordem jurídica.
Na conclusão de Gisele Cittadino:
“Uma cidadania ativa não pode, portanto, supor a ausência de uma vinculação normativa entre o Estado de Direito e democracia. Ao contrário, quando os cidadãos veem a si próprios não apenas como os destinatários, mas também como os autores do seu direito, eles se reconhecem como membros livres e iguais de uma comunidade jurídica.”[2]
Por conseguinte, a realização dos direitos corresponde ao incremento democrático-social dado pela Constituição Federal e está diretamente relacionada à transformação do acesso à justiça, ou seja, à renovação de um sistema pelo qual as pessoas efetivamente reivindicam seus direitos ou resolvem seus litígios.
Acesso à Justiça é requisito básico, portanto, de todo um sistema jurídico moderno que garanta direitos e proclame a sua efetividade. Logo, esse movimento, cujo foco está em concretizar a Constituição através da valoração de seus compromissos sociais, não deve encontrar barreiras na forma de reivindicação desses direitos, notadamente a falta de mecanismos de assistência jurídica ou a carência de representação adequada, sob pena de minar a evolução do processo democrático e o exercício de cidadania.
A ilação decorre da lição de Mauro Cappelletti e Bryant Garth[3], os quais assentam as três ondas renovatórias para a resolução do problema de acesso à justiça, assim sintetizadas:
“a) primeira onda renovatória: Assistência Judiciária para os pobres;
b) segunda onda: representação jurídica para os interesses difusos e;
c) terceira onda: relacionada ao enfoque de acesso à justiça ou modo de ser do processo.”
Dos mesmos autores anota-se que:
“Não é surpreendente, portanto, que o direito ao acesso efetivo à justiça tenha ganho particular atenção na medida em que as reformas do welfare state têm procurado armar os indivíduos de novos direitos substantivos em sua qualidade de consumidores, locatários, empregados e, mesmo, cidadãos. De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente, reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação.”[4]
A história, por sua vez, revela uma sucessão de sistemas de assistência jurídica gratuita para garantir a efetividade dos direitos, dentre os quais cito:
– sistema judicare: a assistência é estabelecida como um direito para todas as pessoas que se enquadrem nos termos da lei e é prestada por advogado pago pelo Estado. Esse sistema confia aos assistidos a tarefa de reconhecer as causas e procurar auxílio; não encoraja, nem permite que o profissional o auxilie a compreender seus direitos e identificar as áreas em que se podem valer de remédios jurídicos. Auxilia apenas a identificação de problemas familiares aos assistidos;[5]
– representação por advogado particular indicado e remunerados pelo Estado: a assistência é outorgada a advogados particulares remunerados pelo Estado, que prestam um serviço tipicamente público, em prol de parcela hipossuficiente da população. Esse sistema compromete a assistência prestada, já que vincula o patrono à causa com viés paternalista. É bem possível que os indivíduos sejam ignorados ou recebam ajuda de segunda classe;[6]
– representação por Defensor Público: a assistência judiciária é estabelecida como um direito e é custeado pelo Estado em sua integralidade. Trata-se de um misto do sistema judicare, mas prestado por servidores especialistas do próprio Estado. O indivíduo é tratado como objeto da prestação jurisdicional e é criada uma categoria de profissionais hábeis para atuar por aqueles que não suportam os encargos judiciários. Não privilegia apenas disputas individuais, pois identifica os interesses e problemas da comunidade, inclusive aportando soluções transindividuais. Esse sistema é comprometido com o aporte publico, de modo que a restrição de recursos e o número reduzido de representantes prejudica a prestação da assistência buscada pelo cidadão, então sujeito a instabilidades da política pública.
Esse último sistema de assistência é bastante simétrico àquele proposto por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, quando assentam que a instituição do advogado público melhor representaria os interesses que, até agora, têm sido descuidados. Isso por que:
“Há um desequilíbrio na advocacia, que em muitos casos só pode ser corrigido por advogados pagos pelo governo, para defender os interesses não representados dos consumidores, do meio ambiente, dos idosos e de outros interesses não organizados. É preciso que um advogado público fale por esses interesses se pretendermos que eles sejam ouvidos.”[7]
Essa mesma proposta unifica uma solução quando da representação judiciária dos interesses coletivos, para dar azo à segunda onda renovatória do Acesso à Justiça.
Sem embargo da possibilidade de impulso individual, a resolução de questões coletivas apresenta-se, na atualidade, como melhor resposta aos direitos de massa, via tutela difusa ou coletiva, o que, de certo modo, diante de sua força transindividual, traveste o caráter regulatório da medida judicial buscada.
Essa tutela difusa ou coletiva – então representada processualmente pela Lei da Ação Popular (Lei 4.717, de 1965), pela Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347, de 1985), pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 1990), pelo Mandado de Segurança (Lei 12.016, de 07 de agosto de 2009, e inciso LXX do art. 5° da Constituição Federal de 1988), – a despeito de não vincular diretamente um grupo específico da sociedade, edita um padrão de conduta para guiar um comportamento futuro.[8]
Questões de política judiciária, então aliada à possibilidade de explosão da litigiosidade, favorecem o encaminhamento dos conflitos via tutela coletiva de direitos. Do mesmo modo, como adverte Aluísio Gonçalves de Castro Mendes, essas ações coletivas implicam:
“(a) ampliação do acesso à justiça, de modo que os interesses da coletividade, como meio ambiente, não fiquem relegados ao esquecimento; ou que causas de valor individual menos significantes, mas que reunidas representam vultosas quantias, como os direitos dos consumidores, possam ser apreciadas pelo Judiciário; (…) (d) que as ações coletivas possam ser instrumento efetivo para o equilíbrio das partes no processo, atenuando as desigualdades e combatendo as injustiças em todos os nossos países ibero-americanos.”[9]
Nesse ínterim, as tutelas coletivas, especialmente representadas no cenário nacional pela utilização, em escala, das Ações Civis Públicas, trazem ínsito ao instrumento processual a ampliação do acesso à justiça; logo, expressão da cidadania ativa.
Essa questão, até então sem espaço na concepção tradicional de processo civil, segundo Mauro Cappelletti e Bryant Garth, está se fundindo com uma concepção social, coletiva. Apenas tal transformação poderá assegurar a realização dos “direitos públicos” relativos a interesses difusos. E concluem ainda que, entre outras coisas, nós aprendemos, agora, que esses novos direitos frequentemente exigem novos mecanismos procedimentais que os tornem exequíveis.[10]
Em face disso, as tutelas coletivas surgem como propostas hábeis a dar vazão a esse movimento ativo amparado no ideal de efetivação dos novos direitos, agora à disposição das pessoas que antes os desconheciam e, assim, não os reclamavam diante de empecilhos das demandas individuais.
Mesmo assim, direitos que envolvem grupos de pessoas vulneráveis demandam uma representatividade adequada[11] para agir no benefício da coletividade, a exigir uma ação governamental positiva através de instituições que melhor representem aqueles interesses.
A institucionalização específica do serviço público de assistência judiciária, a cargo de órgão público, notadamente a Defensoria Pública, especializado em conduzir problemas e gerir reivindicações de interesses individuais e coletivos, não apenas dos pobres, mas do indivíduo ou grupos de pessoas vulneráveis, contra litigantes organizados, ratifica, sob o pálio do Estado, a realização do Estado Democrático, ante a defesa dos direitos revindicáveis pelos cidadãos, garantindo o efetivo acesso à justiça.
3. A DEFENSORIA PÚBLICA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
A Defensoria Pública inseriu-se na Constituição Federal de 1988 junto ao capítulo IV, das Funções Essenciais à Justiça. Do mesmo modo que o Ministério Público (Seção I), a Advocacia Pública (Seção II) e a Advocacia (Seção III), a Defensoria Pública constitui instituição que contribui para o regular funcionamento da Justiça.
Conforme dita o art. 134 da Constituição Federal:
“A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”.
Logo, o constituinte originário deferiu grau de relevância à Defensoria Pública tendo-a, à semelhança do Ministério Público, instituição fundamental à Justiça e, ainda, essencial à função jurisdicional do Estado.
Cumpre observar que a Constituição de 1988, ao organizar o Poder Estatal, não se limitou, como o fizeram as anteriores, às descentralizações tradicionais entre os complexos orgânicos denominados de Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário, instituindo um quarto complexo orgânico que, embora não conformando um quarto Poder, recebeu a seu cargo a função essencial de provedoria da justiça perante todos os demais Poderes de Estado.[12]
Desse modo, o texto constitucional assentou o múnus público histórico a ser exercido pela Defensoria Pública, notadamente a assistência jurídica, dando azo ao dever do Estado em prestar orientação jurídica e a defesa daqueles cujos recursos são insuficientes para afastar obstáculos inerentes à proteção de direitos.
Consoante dita Ana Rita V. Albuquerque:
“Frise-se que a instituição da Defensoria Pública ao receber a atribuição constitucional de instituição essencial à função jurisdicional do Estado, não desempenha função “auxiliar” no sentido orgânico, mas sim que sua função é essencial no sentido de ser tão imprescindível à existência do Estado Democrático de Direito quanto qualquer das demais do título IV, e por isso a expressão constitucional se refere a “todos os Poderes do Estado, enquanto diga respeito à realização do valor da Justiça por qualquer deles”[13]
Veja-se que a Defensoria Pública exerce uma função estatal que decorre do art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal de 1988; portanto, o dever de prestar a assistência judiciária integral e gratuita será exercida em todos os graus, do que decorre a orientação jurídica (judiciária ou extrajudiciária).
Nesse ponto, conforme asseverou Ada Pellegrini Grinover:
“O art. 134 da CF não coloca limites às atribuições da Defensoria Pública. O legislador constitucional não usou o termo exclusivamente, como fez, por exemplo, quando atribuiu ao Ministério Público a função institucional de promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei” (art. 129, I). Desse modo, as atribuições da Defensoria Pública podem ser ampliadas por lei, como, aliás, já ocorreu com o exercício da curadoria especial, mesmo em relação a pessoas não economicamente necessitados, e não sua tarefa exclusiva.”[14]
Essas conclusões derivam da própria formação do Estado Liberal consolidada pela Revolução Francesa de 1789. A garantia de defesa passou a incorporar em definitivo os direitos essenciais do cidadão, com fundamento básico no Estado[15], motivo pelo qual o art. 134 da Constituição Federal de 1988 confere à Defensoria Pública a função típica de defesa e proteção de direitos dos necessitados, cuja legitimação judicial e extrajudicial ampla visa a garantir a efetividade da proteção.[16]
À evidência, as premissas escorreitas no art. 134 da Constituição Federal de 1988 expressam as primeiras linhas para dar efetividade ao Estado Democrático e de Direito, ante a existência de um órgão público cuja atribuição cinge-se à defesa lato sensu dos interesses e direitos dos necessitados.
Consoante adverte Paulo Galliez:
“(…) a Defensoria Pública se impõe como instituição essencial do Estado de Direito, a fim de enfrentar o desenvolvimento desigual entre as classes sociais, valendo a advertência de Octávio Ianni de que o desenvolvimento desigual e combinado não é uma teoria do acaso, mas um modo particular de funcionamento das leis do capitalismo nas sociedades atrasadas e dependentes.”[17]
Por essas razões, a legitimação constitucional deferida pelo Estado à Defensoria Pública constitui a essência do mandato processual, diferentemente do mandado privado firmado à advocacia privada para o qual é imprescindível a participação individual do outorgante. Denota-se, de plano, que a função da Defensoria Pública é diversa daquela desempenhada pela Advocacia.
Segue essa premissa o artigo 44, inciso XI Lei Complementar 80/94, o qual dita que é prerrogativa do membro da Defensoria Pública da União representar a parte, em feito administrativo ou judicial, independentemente de mandato, ressalvados os casos para os quais a lei exija poderes especiais. A legislação complementar assenta o múnus público para a orientação jurídica e defesa dos interesses (coletivos e individuais) dos cidadãos necessitados independentemente de mandato.
Não surpreende tenha o constituinte autorizado à Defensoria Pública a orientação dos necessitados quanto à análise de pretensões e possibilidade efetiva de prevenção à realização de litígios, de modo a favorecer a administração da justiça. E um dos grandes benefícios que isto acarreta é justamente desafogar o aparelho judiciário, evitando a propositura de inúmeras ações judiciais, por meio da celebração de acordos firmados sob a intervenção do Defensor Público, depois de esclarecidas as partes de seus direitos e deveres e das prováveis consequências da demanda judicial.[18]
Na mesma medida, o acompanhamento jurídico, seja no âmbito individual ou coletivo, ratifica a participação efetiva da Defensoria Pública como função jurisdicional do Estado, já que atua como instrumento efetivo a realização de uma resposta social àqueles que comumentemente deixam de recorre ao Poder Judiciário em face da sua complexidade. É de fundamental importância o acompanhamento, sem desconsiderar, portanto, a imprescindibilidade de orientação para prevenir litígios e encaminhar problemas[19], autorizando, finalmente, a participação democrática do cidadão através da Defensoria Pública.
A atividade consultiva realizada pela Defensoria Pública apresenta um caráter preventivo e colima a evitar a injuricidade decorrente da eclosão ou da permanência de qualquer agressão à ordem jurídica, seja em razão de ação, seja de omissão verificada em âmbito público ou privado. Por outro lado, a atividade postulatória consiste na provocação da atuação de qualquer dos poderes do Estado, em especial o Judiciário, com vistas à correção de injuricidades.[20]
Segundo dita Maria Beatriz Bogado Bastos de Oliveira:
“Assim, está claro que as funções da Defensoria Pública não se limitam à assistência judicial (representação do assistido em juízo), mas, como já era entendido desde o advento da nossa Lei Maior, também, engloba a assistência jurídica integral, o que obviamente alarga de maneira notável o âmbito da assistência, que também passou a compreender, além da defesa judicial, o aconselhamento, a consultoria, a informação jurídica e a assistência aos carentes em matéria de atos jurídicos extrajudiciais (…).”[21]
É possível, diante disso, depreender a orientação jurídica integral sob o pálio da atribuição da Defensoria Pública, o que compreende atuação nas esferas judicial e extrajudicial, nos mesmos moldes do art.179 da Constituição Estadual do Rio de Janeiro:
“Art. 179 – A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica integral e gratuita, a postulação e a defesa, em todos os graus e instâncias, judicial e extrajudicialmente, dos direitos e interesses individuais e coletivos dos necessitados, na forma da lei”.
Por conseguinte, esse âmago de funções e atribuições democráticas está diretamente relacionado à defesa da ordem jurídica e social, bem como do regime democrático do Estado de Direito e dos interesses sociais, dentre esses, individuais e coletivos.
4. A ASSISTÊNCIA JURÍDICA INTEGRAL E O NECESSITADO
4.1. A Assistência Jurídica Integral, a Assistência Judiciária e a Gratuidade de Justiça
A sociedade civil sempre aceitou o fato de muitas pessoas necessitadas não recorrem ao Poder Judiciário, pois, por se tratar de algo dispendioso, nem todos teriam condições econômico-financeiras para contratar um advogado e suportar o custo de uma demanda.[22] Trata-se, em verdade, de uma falácia, pois justificaria uma omissão estatal com base na ausência de suporte financeiro, como se o Direito à Justiça tivesse de depender exclusivamente das possibilidades econômicas de cada um.
À evidência, é dever do Estado garantir a todos o Direito à Justiça. Trata-se de um direito fundamental que exsurge da leitura do art. 5º da Constituição Federal de 1988, notadamente do caput (liberdade) e incisos XXXV, LIII, LIV, LV, LVII, LXXIV, LXXVIII, dentre outros. Da leitura desse aparato constitucional, tem-se, ademais, que o acesso à justiça será pleno se o Estado garantir a paridade de armas entre os contendores; logo, a busca da realização de um direito constitucionalmente garantido perpassa pelo equilíbrio da relação jurídica processual e pela representação adequada da parte em lide.
Consoante adverte Araken de Assis:
“É natural que, evitando tornar a garantia judiciária inútil à maioria da população, e ao menos para os desprovidos de fortuna e recurso, a ordem jurídica estabeleça mecanismos de apoio e socorro aos menos favorecidos. Antes de colocar os necessitados em situação material de igualdade, no processo, urge fornecer-lhes meios mínimos para ingressar na Justiça, sem embargo da ulterior necessidade de recurso e armas técnicas, promovendo o equilíbrio concreto.”[23]
É nesse sentido que a carta constitucional de 1988 assegura a assistência jurídica integral, conforme previsto no art.5º., LXXIV, verbis:
“o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.”
A norma constitucional traz ínsito o resultado de um ciclo tendente a reverter a visão estritamente econômica para o processo, uma vez que resume a evolução dos institutos da assistência judiciária e da gratuidade de justiça como mecanismos de defesa e orientação em prol do cidadão necessitado.
Mais ampla que a assistência judiciária, que envolve a prestação de serviços de assessoria jurídica e defesa judicial, e mais abrangente que a gratuidade de justiça, a qual isenta o beneficiário do pagamento de custas e taxas judiciárias, a Assistência Jurídica Integral envolve uma gama maior de garantias a ser prestada pelo Estado, inclusive extrajudiciárias, cujo mote está em assegurar o equilíbrio das relações jurídicas, a paridade de armas, garantindo o pleno acesso do hipossuficiente ao Judiciário e o exercício de seus direitos constitucionais. A relação entre essas dimensões de assistência (assistência jurídica integral, assistência judiciária, justiça gratuita) está diretamente relacionada ao dever de o Estado democratizar o acesso à justiça e dar tratamento isonômico aos cidadãos.
Consoante adverte Barbosa Moreira:
“A grande novidade trazida pela Carta de 1988 consiste em que, para ambas as ordens de providências, o campo de atuação já não se delimita em função do atributo “judiciário”, mas passa a compreender tudo que seja “jurídico”. A mudança do adjetivo qualificador da “assistência”, reforçada pelo acréscimo do “integral”, importa notável ampliação do universo que se quer cobrir. Os necessitados fazem jus agora à dispensa de pagamentos e à prestação de serviços não apenas na esfera judicial, mas em todo o campo dos atos jurídicos.”[24]
Para tanto, o Estado, inicialmente, abriu mão de parcela de recursos financeiros provenientes de custas de taxas judiciárias. Instituiu o benefício da justiça gratuita, isentando de pagamento o cidadão que não detenha recursos para fazer frente a um processo judicial. Posteriormente, criou núcleos de Assistência Judiciária e a Defensoria Pública para prestarem serviços jurídicos gratuitos, concedendo, assim, a assistência judiciária gratuita em favor daquele que não tivesse condições de custear o pagamento dos encargos com advogado.
Logo, o Estado deferiu ao cidadão vulnerável mecanismos para garantir o acesso judiciário integral, amparado em institutos de origem comuns, assimétricos[25], mas complementares, tendentes a remover ou atenuar os obstáculos habitualmente encontrados pelas pessoas vulneráveis para garantir o Direito ao Acesso à Justiça.
4.2. O Necessitado
A prestação dessa assistência integral restou inicialmente cunhada, segundo art. 113, n. 32 da Constituição Federal de 1934 e art. 141, §35, da Constituição Federal de 1946, em prol dos cidadãos ditos necessitados, figura presumidamente desprovida de armas para o embate equilibrado no processo.
Mas os textos constitucionais de então[26] não definiram o que seria necessitado. Somente com o advento do art. 68 do Código de Processo Civil de 1939 pode-se aferir, na letra da lei, o titular do benefício da assistência jurídica, qual seja, a parte que não estiver em condições de pagar as custas do processo, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.
A conceituação de necessitado, no âmbito de um estatuto processual, dirige a assistência jurídica para dentro do processo, na mesma medida em que delimita a extensão do benefício e da assistência, nada referindo quanto às necessidades extrajudiciárias relacionadas à defesa de direitos.
Disso pouco destoou posteriormente a Lei 1.060/50, haja vista que, no art. 2º, entendeu tratar-se de necessitado, para o benefício da justiça gratuita, os nacionais ou estrangeiros residentes no país, cuja situação econômica não lhes permitiria pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.
O acréscimo, por seu turno, deu-se quanto à referência à isenção de pagamento dos honorários advocatícios, fortalecendo a dispensabilidade de encargos para o processo, além de regulamentar a assistência em uma legislação própria. Assim, não surpreende a inexistência de alterações substanciais nos textos ordinários e constitucionais que se sucederam, mantendo a titularidade do benefício em favor do cidadão objeto da Lei 1.060/50, que ainda vige.
Portanto, a redação dada pelo inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal de 1988 inova quando acolhe a evolução das dimensões de assistência jurídica e compromete o Estado com a assistência jurídica integral e gratuita em favor do cidadão que comprovar insuficiência de recursos, qual seja, o necessitado, segundo o texto recepcionado da Lei 1.060/50[27].
Por outro lado, a Constituição Cidadã deu nova roupagem ao titular dessa assistência, abandonando a expressão necessitado, até então referida nas Constituições Federais anteriores, para adotar um fator de referência (insuficiência de recursos) para qualificar a pessoa hipossuficiente objeto da assistência jurídica integral, sem se descurar, porém, para a definição acolhida pela Lei 1.060/50.
Dúvidas, por outro lado, cingem-se à necessidade de demonstração documental ou não da falta de recursos para o fim de enquadrar-se como sujeito necessitado e titular da assistência judiciária, situação aliás responsável por deturpar a titularidade do benefício, até então focada, pelos termos da lei, em favor do cidadão hipossuficiente para o processo, e não apenas à pessoa economicamente pobre ou miserável.[28]
Esse viés, ademais, não subverte a leitura do artigo 2.º, da Lei n.° 1.060/50, cujo mote sempre esteve dirigido em prol do necessitado para o processo e não necessariamente para o assistido carente e humilde.
Nada obstante, a mera indicação da carência de recursos para o processo ou insuficiência financeira sempre foi a regra; demonstrar documentalmente a necessidade, a exceção.
Sob o auspício do Código de Processo Civil de 1939, o candidato ao benefício da Justiça Gratuita deveria mencionar, na petição, o rendimento ou vencimentos que percebia e os seus encargos pessoais e de família (art. 72), sendo punida a declaração falsa. De outro giro, caso o pedido de assistência fosse formulado no curso da lide, suspendia-se o feito, podendo o juiz, à vista das circunstâncias, conceder, de plano, a isenção, oportunidade em que a petição era autuada em apartado, apensando-se os respectivos autos aos da causa principal, instaurando-se um incidente (art. 73). Neste último caso, a solicitação seria apresentada ao juiz competente para a causa, com o atestado de pobreza expedido, independentemente de selos ou emolumentos, pelo serviço de assistência social, onde houvesse, ou pela autoridade policial do distrito ou circunscrição em que residisse o solicitante (art. 74).
Nesse mesmo sentido laborou a redação original do art. 4º da Lei 1.060/50, até ulterior modificação pela Lei 7.510/1986, a qual afastou a necessidade de indicação dos rendimentos do requerente, autorizando a simples afirmação, na própria petição inicial, de que a parte não estaria em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família. Como alhures, a impugnação do direito à assistência judiciária é dada em autos apartados (§2º, com redação dada pela Lei nº 7.510/1986), valendo como prova da necessidade a apresentação da carteira de trabalho e previdência social (§ 3º, incluído pela Lei nº 6.654, de 1979).
Ademais, a lógica da desnecessidade da demonstração documental da hipossuficiência para o processo, pelos termos da Lei 1.060/50, decorre do próprio Direito à Justiça. Como mencionado anteriormente, a garantia de dirigir-se ao Poder Judiciário de forma plena não está condicionada à capacidade econômica do cidadão, tampouco decorre de suas posses, pois é dever do Estado assegurar a todos o livre Acesso à Justiça.
Dessa feita, a assistência que dimana da Lei 1.060/50 visa a assegurar ao indivíduo uma prerrogativa que lhe é inerente pelo fato de ser cidadão. Ocorre que a leitura desmedida do texto de 1950 pode levar a entender que, de regra, o acesso à justiça é oneroso, quando, em verdade, aquele que se julgar sem recursos para o exercício desse direito deverá solicitar ao Estado a dispensa de encargos para poder acessar à justiça. O mesmo diga-se quanto à necessidade de prover o cidadão de armas técnicas para o processo, o que se dá hoje através da Defensoria Pública, evitando-se desequilíbrios que a insuficiência de recursos poderia repercutir na resolução da pretensão jurídica (judicial ou extrajudicial).
Veja-se que o Estado assumiu o dever de prestar a jurisdição e, com isso, incorporou o ônus de atender o seu cidadão, de modo que aqueles que dispõem de recursos para sustentar os encargos do processo e custear advogado, o farão como forma de justiça social e compensação histórica. Nesse sentido refere Rogério Tucci:
“(…) ideal seria a plena gratuidade das atividades públicas, pois o pagamento por tais serviços, na verdade, já representa um duplo encargo, haja vista o adimplemento obrigatório dos tributos. No entanto, como esse estágio ainda se mostra longe de ser atingido, outra alternativa não resta senão consolidar a citada isenção para aqueles que não dispõem de suficientes recursos e que se sintam lesados em seus direitos.”[29]
Disso decorre que a mera afirmação presume o necessitado, garante a assistência jurídica integral e gratuita (art. 5º, LXXIV) e o acesso à justiça.
Não obstante, essa questão (desnecessidade de demonstração da necessidade) ainda demanda embates no cenário jurídico, haja vista existirem entendimentos jurisprudenciais e doutrinários que defendem a necessidade da comprovação documental da necessidade, muito embora partam de pressuposto falso como visto alhures.
Equivocam-se, ainda, aqueles que preferem o deferimento de assistência jurídica integral, tão somente, em prol da pessoa pobre[30] ou miserável, pois, além de pronunciar menos do que diz a legislação específica, corrompe uma garantia constitucional que visa salvaguardar os cidadãos que encontram obstáculos para prover as despesas de processos relacionados à defesa de seus direitos.
Ademais, consoante adverte Barbosa Moreira:
“Nada faz crer que o legislador constituinte, ao elaborar um diploma profundamente marcado pela preocupação com o social, haja querido dar marcha-a-ré em processo evolutivo como o de que se cuida. De qualquer maneira, a supor-se que a lei houvesse concedido um plus aos necessitados, nem por isso se teria de concluir por sua incompatibilidade com a Constituição, que não estaria sendo contrariada, como seria, por exemplo, se a lei negasse a assistência, em alguns casos, apesar da comprovação.”[31]
É nesse contexto que se insere o Estado, que se obriga, através da atuação da Defensoria Pública, a prestar a assistência jurídica integral e gratuita em favor do cidadão, cuja insuficiência de recursos não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.
Assim, o verdadeiro alcance da expressão assistência jurídica integral e gratuita, deferida pela Constituição Federal, dá ao cidadão mais que o benefício de gratuidade previsto na Lei 1.060/50.[32]
Faz-se mister reverter a crença de que a Assistência Jurídica é uma caridade oficial, um favor público ou uma condescendência do Estado, já que o direito à igualdade não se reduz ao texto legal e nem pode ser concebido como um favor legal, mas, sim, como expressão do processo de libertação humana, sendo oponível ao próprio Estado.[33]
Tem-se, portanto, um dever de assistência jurídica, integral e gratuita reservada à Defensoria Pública, em prol do necessitado custeada e fornecida pelo Estado (art. 3º.- A, II, e § 5º do art. 4º., ambos da Lei Complementar 80/1964, com redação dada pela Lei Complementar 132, de 2009) para o fim de franquear o Acesso à Justiça à luz do art. 5º, LXXIV, e art. 134 da Constituição Federal de 1988.
Enfim, a prestação gratuita dos serviços jurídicos aos necessitados através da Defensoria Pública é uma das garantias reconhecidas à efetividade dos princípios ou normas constitucionais de Acesso à Justiça e de igualdade entre as partes, constituindo-se, pois, em um direito subjetivo do cidadão.[34]
5. OS NECESSITADOS NO PLANO COLETIVO
Nas linhas já lançadas, observou-se a visão tradicional da rubrica necessitado no cenário jurídico nacional, então objeto da garantia constitucional da assistência jurídica integral.
Essa visão clássica, por seu turno, não tolhe a visão macro da proteção que visa o Estado a assegurar quando da sua aplicação à tutela de direitos ou interesses difusos e coletivos, de modo a conferir nova roupagem ao conceito, por intermédio de uma releitura aberta e flexível, que propicie a adequada proteção dos interesses transindividuais.
Os textos constitucionais anteriores à Constituição Federal de 1988 não definiram o que seria necessitado, tendo, de outro lado, o art. 68 do CPC de 1939 dado os primeiros sinais do titular do beneficiário da assistência jurídica.
Essa visão individualizada do conflito influenciou os estatutos processuais que se seguiram, apartada da dimensão transindividual aferível a partir da litigiosidade de massa e dos direitos metaindividuais e individuais homogêneos, então objeto da Ação Civil Pública, do Código de Defesa do Consumidor e da Ação Popular.
Nesse passo, é natural o rumo inicialmente acolhido pela legislação nacional, notadamente através da Lei 1.060/50, a qual dirige a extensão da assistência à defesa de direitos e pretensões exclusivamente individuais.
Essa, aliás, a nota do art. 2º da Lei 1.060/50, quando delimita a figura de necessitado, para o benefício da Justiça Gratuita, como sendo os nacionais ou estrangeiros residentes no país, cuja situação econômica não lhes permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.
Ainda em vigor, a Lei 1.060/50 guarda silogismo bastante diverso daquele aferido pelo inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal de 1988, o qual, muito embora possibilite a menção direta àquela legislação, no sentido de dar complementaridade à sua garantia, conferiu amplitude à assistência, haja vista não delimitar em seu texto o titular da garantia de assistência jurídica integral.
Logo, a Constituição Federal de 1988, além de acolher a evolução das dimensões de assistência jurídica do Estado, quando se compromete com a assistência jurídica integral e gratuita em favor do cidadão necessitado, segundo o texto recepcionado da Lei 1.060/50, possibilita o redimensionamento da cobertura e da abrangência daquela garantia, de modo a estender a proteção aos direitos individuais e coletivos dos necessitados.
Nesse sentido, a rubrica necessitado – dada pela Lei 1.060/50 –, e a prescrição aos que comprovarem insuficiência de recursos – informada pelo inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal de 1988 – compreende um microssistema de proteção integral, cujo alcance não se limita à garantia de direitos individuais, mas também abarca a proteção de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos em favor de todos aqueles socialmente vulneráveis.
Essas circunstâncias têm por objeto realizar o Acesso à Justiça, o que se revela, hodiernamente, através da assistência jurídica integral, de modo que a leitura do termo necessitado abrange, no ponto, não apenas a pessoa física economicamente fragilizada, mas, também, aqueles necessitados no plano coletivo, então considerada a vulnerabilidade de defesa de direitos transindividuais e a fragilidade organizacional na defesa das pretensões coletivas.
É certo que existem necessitados no plano econômico, mas também existem necessitados do ponto de vista organizacional. Consoante adverte Ada Pellegrini Grinover:
“Ou seja, todos aqueles que são socialmente vulneráveis: os consumidores, os usuários de serviços públicos, os usuários de planos de saúde, os que queiram implementar ou contestar políticas públicas, como as atinentes à saúde, à moradia, ao saneamento básico, ao meio ambiente etc.”[35]
A questão, à evidência, segundo a mesma autora, está vinculada à própria estruturação da sociedade de massa. Identificável uma nova categoria de hipossuficientes, qual seja, a dos carentes organizacionais, ligada à vulnerabilidade das pessoas em face das relações sócio-jurídicas existentes na sociedade contemporânea.[36]
Em face desse postulado, a exegese do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal abrange o grupo ou uma coletividade de pessoas cuja desorganização social, cultural ou econômica não consiga, por seus próprios meios, transpor obstáculos e limitações ao pleno Acesso à Justiça. A Constituição Federal traz ínsita a leitura suso mencionado, haja vista não caber ao Estado indagar se há ricos ou pobres, mas garantir a defesa dos necessitados no plano individual, bem como na dimensão coletiva, não sendo crível deixar-se à margem do direito a defesa de lesões transindividuais que afetam a coletividade mesmo que não individualmente identificáveis.
Outrossim, a necessidade coletiva, nessas ações coletivas, resulta do próprio objeto da demanda, bastando que haja indícios de que parte ou boa parte dos assistidos sejam necessitados.[37]
Rodolfo Camargo Mancuso segue esse mesmo postulado quando afirma que o conceito de necessitado não pode, em pleno século XXI, prender-se a mesma leitura reducionista da era da Lei 1.060/50, cujo texto reporta-se a uma época e sociedade distante da realidade atual. Verbis:
“Necessitado, por sua vez, não pode mais ser compreendido unicamente como o hipossuficiente econômico. Esta visão míope, obsoleta, é baseada na ordem constitucional anterior e no modelo praticado pela advocacia, absolutamente impróprio para a Defensoria Pública.”[38]
Não se diga que essa adequação imprescinde da comprovação da hipossuficiência. À evidência, a necessidade coletiva é o próprio objeto da pretensão coletiva, de modo que não seria pertinente exigir-se demonstração cabal da necessidade de recursos, sob pena, inclusive, de vetar o Acesso à Justiça dessa parcela da população.
A medida, aliás, é demanda da realização do pleno acesso à justiça e meio de tutela de direitos de uma potencial massa de necessitados, cujas pretensões transindividuais, prejudicadas ou oriundas de relações massificadas, deixariam de ser resguardadas coletivamente pelo Estado, caso excluídas do conceito de necessitado e da abrangência da assistência jurídica integral.
A necessidade de criação de instrumentos para tutela de um número maior de pessoas não destoa da necessidade de reinterpretação ou releitura de institutos já concebidos pela legislação, situação recrudescida pelo fato de tratar-se de normas que criam direitos e sintetizam garantias.
Assim sendo, a tônica da assistência jurídica integral e do necessitado não se subsume à visão individualista. A evolução da sociedade e suas relações interpessoais, atualmente, exigem do aplicador do direito ater-se à existência da visão macro da assistência jurídica integral e gratuita, abarcando a proteção de bens e direitos coletivos, notadamente, o meio ambiente, as relações de consumo, as relações econômicas etc., em favor do necessitado, então considerado tanto na sua dimensão individual como coletiva.
Importa concluir que necessitado, objeto da assistência jurídica integral, não são apenas os economicamente pobres, mas todos aqueles que necessitam de tutela jurídica e que podem emergir em nossas rápidas transformações sociais.[39]
É o que se observa da análise do anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos do Instituto Brasileiro de Direito Processual, notadamente o art. 20, que trata da legitimação para a ação coletiva ativa quando refere no inciso IV, que:
“Art. 20. Legitimação. São legitimados concorrentemente à ação coletiva ativa: (…)
IV – a Defensoria Pública, para a defesa dos interesses ou direitos difusos e coletivos, quando a coletividade ou os membros do grupo, categoria ou classe forem necessitados do ponto de vista organizacional, e dos individuais homogêneos, quando os membros do grupo, categoria ou classe forem, ao menos em parte, hipossuficientes;”
Não surpreende a preocupação ditada pelo anteprojeto para ratificar a figura da hipossuficiência coletiva, representada pelos necessitados do ponto de vista organizacional e/ou presumidamente hipossuficientes. Nesse sentido insere-se a tônica do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal. Garante-se a proteção individual e coletiva dos hipossuficientes, assim considerados aqueles que apresentam notória vulnerabilidade jurídica para o processo.
Em voga, ademais, a imputação da representatividade dos interesses desses necessitados pela Defensoria Pública, a denotar a legitimidade adequada dos interesses dessa parcela do grupo, categoria ou classe de pessoas a figurar como interessados na relação jurídica processual coletiva.
Sob esse aspecto, a assistência jurídica integral consubstancia os necessitados do ponto de vista organizacional e/ou presumidamente hipossuficientes, cuja orientação jurídica de massa e defesa coletivizada, em todos os graus, incumbe à Defensoria Pública, nos termos do art. 134 da Constituição Federal.
6. A LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA O MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO
Diante do grau de relevância atribuído à Defensoria Pública pelo art. 134 da Constituição Federal de 1988, cumpre-lhe, como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, o mister da orientação jurídica e defesa dos interesses, em todos os graus, daqueles reconhecidamente necessitados, na forma do art. 5º., LXXIV, da CF.
Ao contrário do que é previsto para o Ministério Público, pelo art. 129 da Constituição Federal de 1988, aludida Carta não delimitou as funções institucionais da Defensoria Pública, tampouco estabeleceu expressamente as hipóteses de atuação, de modo que a sua legitimação pode ser ampliada por lei[40] e/ou derivar da legitimação constitucional ventilada no art. 134 da Carta.
Logo, uma situação de fato, amparada na necessidade de defesa, em concreto, dos interesses ou direitos individuais, difusos e coletivos dos necessitados, por si, defere a situação legitimante apta a motivar a atuação da Defensoria Pública, ante o suporte constitucional. A ideia de situação legitimante surge a partir de direitos e/ou interesses jurídicos lesionados ou ameaçados de lesão, considerando a representatividade adequada àqueles que possam empreender a defesa do interesse jurídico tutelado.
Nesse contexto insere-se a legitimidade da Defensoria Pública (art. 134 da Constituição Federal), cujo mote está em garantir a defesa jurisdicional, em todos os graus, dos necessitados (art. 5º, LXXIV) e a efetivação do seu Acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, CF/1988).
A Constituição Federal, no ponto, não delimita a legitimidade da Defensoria Pública à tutela individual dos necessitados; ao contrário, revela o âmbito e objeto de atuação, cujos contornos constitucionais autorizam a adoção de uma postura ativa diante de direitos e interesses individuais e coletivos, amparados em uma situação legitimante à defesa dessas tutelas.
As recentes inovações legislativas, notadamente o art. 21 da Lei 12.016, de 2009,[41] muito embora não tenha incluído a Defensoria Pública no seu quadro de legitimados para o Mandado de Segurança Coletivo, não obsta a legitimação já deferida pelo texto constitucional de 1988, pois, à evidência, muito embora represente uma evolução significativa da Lei do Mandado de Segurança, nada mais fez do que ratificar a previsão já escorreita no art. 5º., LXX, alíneas a e b, da Constituição Federal.
Obviamente, o reconhecimento legislativo da legitimidade das Defensorias Públicas para a propositura do Mandado de Segurança Coletivo representaria medida imprescindível à solidificação de uma postura institucional que decorre da defesa da ordem social.
Nada obstante, essa leitura, eminentemente legiferante, não restringe a premissa constitucional, tão somente, para autorizar a atuação ativa da Defensoria Pública calcada exclusivamente em prévia e expressa autorização.
Essa ilação afronta o texto constitucional, o qual não delimitou os contornos de atuação jurisdicional da Defensoria Pública, mas, em verdade, outorgou a legitimação diante da ocorrência de uma situação legitimante.
Assim sendo, mesmo persistindo a omissão na Lei 12.016, de 2009, e sua sintonia ao art. 5º., LXX, alíneas a e b, da Constituição Federal, tal não representa, por si só, a denegação da admissibilidade da ação pelo órgão ante sua legitimação constitucional.
Veja-se, ademais, que o direito moderno, de matriz constitucional e processual, vem apontando na direção do Acesso à Justiça e da instrumentalidade do processo.
Eventual limitação à legitimação da Defensoria Pública, ante questões estritamente legislativas, implica flagrante retrocesso ao serviço jurisdicional e afronta direta à Constituição Federal que, ante a outorga da legitimação constitucional à Defensoria Pública, visou a impulsionar o acesso qualificado dos necessitados ao Poder Judiciário, a representatividade adequada e a redução quantitativa de demandas.
Assim sendo, a denegação da legitimidade constitucional da Defensoria Pública para a o Mandado de Segurança Coletivo equivaleria à denegação absoluta da justiça.
Em face dessas considerações, a situação legitimante, embora, como regra geral, esteja associada à titularidade do direito material, pode ser norteada também por outros critérios.[42] Isso porque responder interesses coletivos com base em esquemas de processo civil clássico, criados para resolver tutelas individuais, não seria bastante para a resolução da litigiosidade de massa.
Consoante adverte Ada Pellegrini Grinover:
“Mas a tendência é sem dúvida no sentido da abertura dos esquemas da legitimação a amplos segmentos da sociedade e a seus representantes: a pessoa física, as formações sociais, os entes públicos vocacionados para a defesa dos direitos transindividuais, outros entes públicos a quem compete a tutela dos mais diversos bens referíveis à qualidade de vida – incluindo as pessoas jurídicas de direito coletivo. (…) Mais uma vez reportamo-nos à lição de Mauro Cappelletti, que considerou insuficiente para a efetiva tutela dos direitos transindividuais a escolha de um único legitimado (pessoa física, associações, Ministério Público, agências públicas) e que já indicava, com base nas experiências então existentes, a via mais eficaz, como sendo a de ‘soluzioni composte, articolate, flessibili’, sempre sob o controle de órgãos públicos.”[43]
À evidência, a legitimação dada pela Constituição Federal à Defensoria Pública remete à representação adequada (aferível, via de regra, para o caso, ante critérios de relevância social[44]) do interesse a ser tutelado. As premissas democráticos albergadas no art. 134 e sua remissão ao inciso LXXIV do art.5º., da Constituição Federal de 1988, asseguram o Acesso à Justiça qualificado em favor dos necessitados por via de representação de pertinência à atuação institucional, uma vez violado um direito difuso, coletivo ou individual homogêneo.
Consoante adverte Luiz Guilherme Marinoni:
“(…) a extensão da legitimação para agir no âmbito da ação popular, da ação de inconstitucionalidade e das ações coletivas está inextrincavelmente ligada à intensidade da participação popular, através da jurisdição, no poder estatal. A relação se dá, portanto, entre legitimidade de agir e democracia participativa.”[45]
Por sua vez, Nelson Nery Jr., quando trata do Código de Defesa do Consumidor assinala:
“A regra ordinária do Direito Processual, de que se devem interpretar restritivamente os casos de legitimação extraordinária e de substituição processual, à evidência não pode ser aplicada na tratativa processual dos direitos e interesses difusos e coletivos.”[46]
Sendo certo que a Constituição Federal prevê diversas formas de defesa de garantias, não se mostra democrático excluir-se a participação da Defensoria Pública da utilização do Mandado de Segurança Coletivo e, por conseguinte, a participação popular através de aludido instrumento.
A despeito da alusão estreita dada pelo art. 5º., LXX, da Constituição Federal[47], então replicada no art. 21 da Lei 12.016/2009 (Lei do Mandado de Segurança), não há de se excluir a legitimidade constitucional da Defensoria Pública para o Mandado de Segurança Coletivo, na defesa de direitos líquidos e certos de um fato legitimante, na forma das suas finalidades institucionais, na defesa de parcela vulnerável da população brasileira.
Essa questão, em verdade, transborda a legitimação constitucional dada pela Constituição Federal, pelos termos do art. 134 e 5º., XLLIV, já que também diz respeito à opção que fez o Estado Brasileiro pela democracia participativa, e o Mandado de Segurança Coletivo é instrumento de acesso à justiça.
Nesse ponto advertem Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco:
“Por outro lado, é preciso reconhecer que o regime de substituição processual conferido ao mandado de segurança para a tutela coletiva de direito líquido e certo deu novas dimensões ao writ, transformando-o em verdadeira ação coletiva. Por isso, ao mandado de segurança coletivo serão aplicadas também as normas relativas às ações coletivas.”[48]
Nesse ínterim, o constituinte dirigiu o Mandado de Segurança Coletivo à correção da ilegalidade de autoridade pública, nas mãos da sociedade civil, em uma postura de fortalecimento da participação democrática e da educação para a cidadania.[49]
Seguindo-se essa premissa, como a legitimação constitucional confiada à Defensoria Pública está ligada à sua finalidade essencial, poderá ela (a Defensoria Pública) ajuizar qualquer ação para tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos que tenham repercussão em interesses tutelados, do que se colhe a legitimidade para o Mandado de Segurança Coletivo, ante a conjugação dos arts. 134 e 5º., LXXIV, da Constituição Federal, à luz, ainda, do viés impingido pelas alterações dadas ao art. 4º. da Lei Complementar 80, de 1994, pela Lei Complementar 132, de 2009, in verbis:
“Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:(…)
VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
VIII – exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos e dos direitos do consumidor, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
IX – impetrar habeas corpus, mandado de injunção, habeas data e mandado de segurança ou qualquer outra ação em defesa das funções institucionais e prerrogativas de seus órgãos de execução; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).”
Trata-se, à evidência, de um microssistema acolhido pelo legislador, em especial no inciso VII de aludido artigo, para dotar a Defensoria Pública de todos os instrumentos processuais e espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes, de forma a deferir a necessidade de releitura do art. 5º. LXX, no âmbito do sistema Constitucional de 1988 e do art. 21 da Lei 12.016/2009.
Paradigma desse postulado está no fato de que, mesmo antes da edição da Lei 11.488/2007, que deferiu legitimidade da Defensoria Pública da União para a Ação Civil Pública, a Defensoria Pública já vinha ajuizando demandas coletivas com substrato, tanto no art. 82, III, do Código de Defesa do Consumidor em combinação com o art. 21 da Lei da Ação Civil Pública, quanto diante de uma situação legitimante decorrente da representatividade adequada dada pela Constituição Federal à Defensoria Pública na defesa dos interesses coletivos dos necessitados. O Poder Judiciário reconheceu a legitimidade da Defensoria Pública mesmo inexistindo previsão legislativa na Lei da Ação Civil Pública, o que é bastante para expressar que a atuação institucional da Defensoria Pública, na defesa de interesses coletivos, teve por substrato uma situação legitimante garantidora da ampliação do Acesso à Justiça de parcela vulnerável da população. É, ainda, reflexo da efetividade das normas constitucionais.[50]
A necessidade de aferir a legitimidade da Defensoria Pública para a gama de tutelas coletivas encontra, pois, corolário lógico na ruptura de um modelo individualista-liberalista-normativo, para autorizar, definitivamente, a legitimidade da Defensoria Pública para propor as ações coletivas em favor de outras tutelas cuja repercussão coletiva não derivaria estritamente de disposição legal.
Trata-se, portanto, de faceta da assistência jurídica integral albergada pelo inciso LXXIV do art. 5º. da Constituição Federal de 1988, sob abrigo da Defensoria Pública, ante os termos do art. 134 da mesma Carta Constitucional.
Parte-se, pois, de uma interpretação sistemática e teleológica de normas diversas do ordenamento jurídico, constitucional e infraconstitucional, princípios e regras, para autorizar a defesa da tutela dos necessitados no plano coletivo pela Defensoria Pública. Essa vertente interpretativa tem na Constituição Federal a força normativa própria para dar vazão à referência anterior, a despeito de qualquer previsão regulamentar. Trata-se, nas palavras de J.J. Gomes Canotilho, da aplicação direta de normas constitucionais de direito, liberdades e garantias:
“Aplicabilidade directa significa, desde logo, nesta sede – direitos, liberdades e garantias – a rejeição da ideia “criacionista” conducente ao desprezo dos direitos fundamentais enquanto não forem positivados a nível legal. Neste sentido, escreveu sugestivamente um autor (K. Krüger) que, na época actual, se assistia à deslocação da doutrina dos “direitos fundamentais dentro da reserva de lei” para a doutrina da reserva de lei dentro dos direitos fundamentais”.
Logo, conclui o constitucionalista:
“Aplicação directa não significa apenas que os direitos, liberdades e garantias se aplicam independentemente da intervenção legislativa (cfr. arts.17º. e 18º./1). Significa também que eles valem directamente contra a lei, quando esta estabelece restrições em desconformidade com a constituição (cfr. CRP, art.18º./3).”[51]
Em se tratando de garantia constitucional, a conjugação do art. 4º., VII, VIII, IX, X e XI, da Lei Complementar 80, de 1994 (e alteração dada pela Lei Complementar 132, de 2009), com o art. 134, caput, e o art. 5º., XXLIV, da Constituição Federal constituem direitos imediatamente aplicáveis e vinculam diretamente os Tribunais e a Administração Pública.
Canotilho arrola os princípios de como realizar essa interpretação constitucional:
– Princípio da unidade da Constituição: com ele se quer significar que a Constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições. Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios;
– Princípio do efeito integrador: significa que, na resolução dos problemas jurídico-constitucionais, deve-se dar primazia aos critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política. Conduz a solução pluralisticamente integradora;
– Princípio da máxima efetividade (da eficiência): a uma norma deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais;
– Princípio da força normativa da Constituição: na solução dos problemas jurídico-constitucionais deve-se dar prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da constituição (normativa), contribuem para uma eficácia plena da lei fundamental. Consequentemente, deve-se dar primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais, possibilitam a “actualização” normativa, garantido a sua eficácia e permanência.[52]
Essa lógica interpretativa corrobora a legitimação da Defensoria Pública para o Mandado de Segurança Coletivo, à necessidade de tutela dos direitos dos vulneráveis coletivos e à indivisibilidade dos interesses de grupos de necessitados desprovidos de recursos organizacionais, ante a força normativa dos arts. 134 e 5º., inciso XXLVI, da Constituição Federal, a autorizar a propositura de pleito coletivo (direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos), de toda à espécie, e em todos os graus de jurisdição.
Não surpreende a anotação dada ao art. 42 do capítulo IV do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos quando trata do Mandado de Segurança Coletivo, verbis:
“Art. 42. Legitimação ativa – O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:
I – Ministério Público;
II – Defensoria Pública;
III – partido político com representação no Congresso Nacional;
IV – entidade sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados, dispensada a autorização assemblar.”
Segue esse viés a Proposta de Emenda à Constituição número 74, de 2007, e respectivas emendas, atualmente em trâmite no Senado Federal, que acrescenta as alíneas c e d ao inciso LXX da Constituição Federal, a fim de legitimar a Defensoria Pública, juntamente com o Ministério Público, para a impetração do Mandado de Segurança Coletivo. Consoante adverte o Parecer 1.400, de 2009, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, sobre a proposta de Emenda à Constituição 74, de 2007, estender a legitimidade para a impetração do Mandado de Segurança Coletivo à Defensoria Pública defere-lhe meio processual para atingir as finalidades acometidas pelo texto constitucional, além de racionalizar a prestação jurisdicional.[53]
Manifesta está a ampliação da legitimação para o mandamus coletivo para abranger não somente a Defensoria Pública, mas também o Ministério Público.[54] Nesse ponto, mister a premissa adotada pela doutrina de Cassio Scarpinella Bueno quando assenta a legitimidade do Ministério Público para o Mandado de Segurança Coletivo, in verbis:
“O silêncio do art. 21, caput, da Lei nº 12.016/2009 não afasta a legitimidade ativa do Ministério Público para a impetração do Mandado de Segurança Coletivo. Ela, embora não seja prevista expressamente pelo inciso LXX do art. 5º. da Constituição Federal, decorre imediatamente das finalidades institucionais daquele órgão tais quais definidas pelos arts. 127 e 129, III, da mesma Carta e, infraconstitucionalmente, pelo art. 6º., VI, da Lei Complementar nº 75/1993, para o Ministério Público da União, e no art. 32, I, da Lei nº 8.625/1993, para o Ministério Público dos Estados.”[55]
Portanto, nada obsta que seja ampliada a legitimação para o Mandado de Segurança Coletivo, haja vista que o catálogo de direitos, liberdades e garantias estatuído pela Constituição Federal não se limita à relação do art. 5º., como prescreve a norma do seu parágrafo segundo[56], quando anota que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados.
Seria, à evidência, mera ampliação legal do bloco de constitucionalidade, haja vista que a Constituição Federal atribui à Defensoria Pública pertinência para pleitear judicialmente uma postura ativa em favor daqueles interesses e, por conseguinte, em benefício da democracia participativa e do pleno Acesso à Justiça.
A contrário sensu, sujeitos indeterminados, necessitados organizacionais e vulneráveis de toda espécie ficariam desatendidos face ao não acatamento da legitimidade propugnada, em nome de um interpretação formalista e impeditiva da contemplação de pleito que visa a realização material de uma pretensão.[57]
Percebe-se claramente a oportunidade perdida pelo legislador nacional quando preferiu, com o advento da Lei 12.016/2009, adotar posição contida e reducionista quanto à legitimação para o Mandado de Segurança Coletivo. Além de limitar sobremaneira a instrumentalidade do Mandado de Segurança Coletivo para a defesa de direito líquido e certo ligado a interesses ou direitos difusos.
Assim sendo, restringir a legitimidade da Defensoria Pública na defesa dos direitos ou interesses transindividuais através do instrumento do Mandado de Segurança Coletivo parece inconcebível em um sistema jurídico que prima pela democracia participativa.
À evidência, a regra inserida pelo art. 4º., VII, VIII, IX, X e XI, da Lei Complementar 80, de 1994 (e alteração dada pela Lei Complementar 132, de 2009), conjugada aos arts. 134 e 5º., inciso XXLVI, da Constituição Federal consagram a legitimidade da Defensoria Pública para o Mandado de Segurança Coletivo em favor da defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos de grupo de pessoas então necessitadas sob o ponto de vista organizacional, e que abarca a necessidade de tutela dos vulneráveis coletivos e da indivisibilidade dos interesses de grupos de necessitados desprovidos de recursos organizacionais.
7. CONCLUSÃO
As linhas até aqui traçadas denotam a preocupação do Estado em armar juridicamente os cidadãos por meio de uma instituição pública apta a garantir a representatividade adequada de seus direitos individuais e coletivos. A garantia decorre do primado democrático que emana da história republicana, e, também, do desenvolvimento de uma consciência cidadã através da qual aos cidadãos é garantida a participação igualitária no processo jurisdicional.
Isso porque a mera titularidade de direitos é destituída de sentido. Dotar os indivíduos de mecanismos jurídicos de reivindicação de direitos, sob o pálio do Estado, é sinônimo de realização do Estado Democrático e efetiva-se através do acesso igualitário à justiça.
Acesso justo à ordem judiciária dá-se garantida a adequada representatividade dos direitos através da prestação de um serviço público de assistência judiciária e gratuita, por meio de órgão público institucionalizado e especializado em conduzir problemas e gerir reivindicações de interesses individuais e coletivos, não apenas dos pobres, mas de indivíduo ou grupos de pessoas vulneráveis, contra litigantes organizados.
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 atribuiu à Defensoria Pública predicados essenciais à realização daqueles postulados, notadamente a orientação e defesa dos interesses, em todos os graus, daqueles reconhecidamente necessitados, na forma do art. 134 e 5º., LXXIV, da Carta Cidadã.
Atentando-se para aquilo que constitucionalmente denominou-se função jurisdicional do Estado, a Defensoria Pública acolhe um múnus público essencial, quando dá azo ao dever do Estado em prestar a orientação jurídica integral, o que compreende atuação na esfera judicial e extrajudicial.
Sob esse aspecto, a tônica da assistência jurídica integral não se subsume a visão individualista, tampouco ao hipossuficiente economicamente considerado. À evidência, a assistência jurídica integral dada pela Defensoria Pública, nos termos da exegese do art. 4º., VII, VIII, IX, X e XI, da Lei Complementar 80, de 1994 (e alteração dada pela Lei Complementar 132, de 2009), e do art. 134 e inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal abarcam a necessidade individual e coletiva dos cidadãos à proteção dos interesses individuais e coletivos na relação jurídica processual individual ou coletiva.
Essa questão molda os contornos jurídicos da legitimidade da Defensoria Pública para o Mandado de Segurança Coletivo na defesa de interesses e direitos de todas as categorias de hipossuficientes, a abranger o cidadão hipossuficiente, o grupo vulnerável, a coletividade de pessoas cuja desorganização social, cultural ou econômica não consiga, por seus próprios meios, transpor obstáculos e limitações ao pleno Acesso à Justiça.
Enfim, a prestação desses serviços jurídicos e gratuitos pela Defensoria Pública trata de garantias reconhecidas pelo Estado para efetivar princípios ou normas constitucionais de acesso à justiça e de igualdade entre as partes, constituindo-se, pois, num direito subjetivo do cidadão e fomento à ordem jurídico-social.
Portanto, a força normativa da Constituição Federal defere à Defensoria Pública legitimidade para representar adequadamente esses interesses e direitos e demandar a tutela coletiva dos necessitados, motivo pelo qual as recentes inovações legislativas (art. 21 da Lei 12.016, de 2009) não desnaturam aquele mote constitucional.
À evidência, as premissas democrático-constitucionais albergadas no art. 134 e sua remissão ao inciso LXXVIII do art.5º., da Constituição Federal de 1988, asseguram a propositura do Mandado de Segurança Coletivo pela Defensoria Pública e, por conseguinte, o acesso qualificado à justiça em favor dos necessitados por via de representação de pertinência à atuação institucional da Defensoria Pública, uma vez violado um direito difuso, coletivo ou individual homogêneo; logo, a atuação da Instituição não pode ser limitada ante interpretações e visões de uma ordem jurídica individualistas, quando preponderante o interesse coletivo dos necessitados, objeto da assistência prestada pela instituição.
Defensor Público Federal de Primeira Categoria, especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto de Direito Público de Brasília.
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