Aprovada recentemente, a Lei nº 11.694 (12 de junho de 2008) introduziu em nosso sistema jurídico modificações na Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95) e no Código de Processo Civil. Àquela foi acrescido o artigo 15-A, que estabelece a responsabilidade (civil, criminal e administrativa) somente do órgão partidário que tiver praticado determinado ato ilícito, excluindo-se “a solidariedade de outros órgãos de direção partidária”.
E, para melhor exprimir o conteúdo desta lei, foi modificado o Código de Processo Civil para, na parte que trata dos bens impenhoráveis e do bloqueio on line, exceções em relação aos recursos públicos do fundo partidário e às pessoas que participam da administração do Partido Político, de forma que somente o órgão por ele representado responda pelo débito.
Estranho que até o momento nada ou pouco se tenha falado a respeito do novo texto legal, ou que o Ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, não haja proferido algum juízo de valor a respeito desta matéria, como comumente tem feito, e a despeito das críticas que lhe são dirigidas. Somente não nos parece estranho que algum partido ainda não tenha ingressado perante o STF com a correspondente ação declaratória de inconstitucionalidade.
Para melhor situar o problema, vamos aos fatos. O Senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE), em dezembro de 2007, propôs o projeto de lei pelo qual o Congresso Nacional, em defesa de um direito privado daqueles que podem e devem ser responsabilizados por atos praticados em desvio de poder, instituiu, e em regime de urgência, uma autêntica blindagem daquele que atua à frente do partido.
Pelo que se pôde entender, a motivação do “legislador” foi a de evitar a solidariedade entre diretórios independentes entre si e que possuem administração e vida financeira autônomas.
Até aí, pode-se imaginar o que levou o Congresso Nacional a se ocupar desta matéria, mas impossível é concordar com o método utilizado. Se assim é, a solução já estava no sistema, e por essa razão cada partido deveria buscar, perante os Tribunais, por meio de assessoria jurídica especializada, a confirmação, consolidação e uniformização desta tese, ao invés de promover, de forma pouco escrupulosa, e com o uso da máquina do Estado, a alteração da lei em benefício próprio.
Todavia, há uma finalidade oculta na Lei nº 11.694/08, o que revela seu caráter pernicioso e inconstitucional, bem assim a tendência, latente e incontida no Brasil, de se governar mediante o uso e concessão de prerrogativas, corrompendo os institutos e semeando na sociedade o espírito da ilegalidade e da vantagem indevida.
Com efeito, o que o legislador pretendeu foi, sob pálio de se proteger a independência das unidades partidárias, redigir a lei de modo a que as pessoas físicas fossem protegidas de dívidas para as quais o partido pode não ter condições de pagar.
É por essa razão que do texto legal consta a expressão “exclusivamente”. Obviamente que o legislador não podia simplesmente ser expresso ao blindar o agente que abusa da pessoa jurídica, que age em fraude à lei, que burla o sistema e causa dano a terceiros.
Fez isso de forma velada. Disse que “A responsabilidade, inclusive civil, cabe exclusivamente ao órgão partidário municipal, estadual ou nacional que tiver dado causa ao não cumprimento da obrigação, à violação de direito, a dano a outrem ou a qualquer ato ilícito, excluída a solidariedade de outros órgãos de direção partidária.”
À nossa conclusão opõe-se nossa tradição jurídica, àquilo que a doutrina denomina por diregard of legal entity, ou seja, a desconsideração da personalidade jurídica prevista no artigo 50, do Código Civil de 2002.
Outro importante e curioso detalhe impõe-nos essa leitura, “menos fria”, da lei.
Em diversas decisões e resoluções, e isso já há bastante tempo, a Justiça Eleitoral consolidou o entendimento de que as cotas do fundo partidário são realmente impenhoráveis. Além disso, a imunização dos órgãos partidários entre si não é uma tendência, tampouco algo que a experiência demonstre ser controversa e ou necessária.
Aliás, por qual razão se deveria entender que o legislador necessitaria se ocupar, em sua atividade legislativa, e em pleno ano de eleições municipais, com matéria desse jaez, tendo como premissa dois fatos no mínimo bizarros: dívidas e insolvência do partido?
Nada mais sensato, pois o que o eleitor espera é justamente o contrário, não sendo de se conceber que a expectativa do povo seja que seus representantes devam, na vida interna corporis dos partidos, preocupar-se com dívidas e insolvência. E, se assim fosse, razão alguma existe para que aos partidos seja dado um tratamento diferente daquele que os empresários têm, com o risco, inerente à empresa, de “herdar” dívidas antes limitadas à pessoa jurídica.
Assim, quer parecer que o argumento da necessidade de proteção dos diretórios livres e independentes – o que nunca foi noticiado como sendo um ponto sensível aos partidos políticos – acabou por ser utilizado de molde a um outro fim, qual seja a proteção ilícita do agente que, de forma intencional, pratica ato ilícito.
A desconsideração da personalidade jurídica é uma doutrina já consolidada em nosso sistema e serve como forma de se vedar que o ente jurídico sirva como escudo às operações fraudulentas, sendo instituto já sistematizado e bem absorvido pela jurisprudência de nossos tribunais.
Cremos, a vigorar o texto ora sob análise, que o termo “exclusivamente” será utilizado pelos Partidos como forma de se brecar a aplicação da teoria do disregard¸ questão essa que será de extrema “utilidade” nos processos oriundos do escândalo do mensalão.
Em nosso sentir, parece-nos inquestionável que há quebra da isonomia e de um preceito social há muito arraigado em nosso sistema, que é a responsabilidade daquele que pratica um ato em abuso da personalidade jurídica, de modo que os Tribunais, quando instados a se pronunciar sobre o tema, e a quem cabe a última palavra em matéria de direito federal, devem interpretar o termo “exclusivamente” de forma sistemática e de acordo com o postulado da boa-fé.
Se a motivação do legislador é a preservação da vida financeira de cada unidade partidária, que assim seja. Esperamos que nossas Cortes não sejam partícipes deste processo legislativo que, se inadequadamente interpretado e aplicado, levará à impunidade e privilegiará aqueles que agiram de modo fraudulento e almejando o enriquecimento ilícito.
Advogado, sócio titular de FERREIRA ROSA ADVOGADOS, especialista em Arbitragem pela Fundação Getúlio Vargas/FGVLaw, mestrando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUCSP, onde é professor assistente nesta mesma disciplina e membro do Comitê Brasileiro de Arbitragem – CBar.
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