Nome: Renata Costa do Egyto – Acadêmica de Direito no Centro Universitário Católica do Tocantins – UniCátolica. E-mail: renataegyto@gmail.com.
Orientador: Igor de Andrade Barbosa – Defensor Público Federal de 1º categoria na Defensoria Pública da União do Tocantins e professor de graduação e pós-graduação do curso de Direito do Centro Universitário Católica do Tocantins – UniCatólica. E-mail: igor.barbosa@catolica-to.edu.br.
Resumo: O presente artigo aborda sobre a possibilidade de aplicação das Medidas Protetivas de Urgência (MPUs) pela autoridade policial. Para tanto, apresenta aspectos do sistema brasileiro de proteção à mulher; explica a introdução da Lei Maria da Penha (LMP) no ordenamento jurídico brasileiro; e reúne os argumentos favoráveis e contrários à aplicação das medidas no âmbito policial. Como metodologia, foi realizada revisão bibliográfica em livros e legislações com o objetivo de conhecer os posicionamentos doutrinários sobre a efetividade das MPUs no enfrentamento à violência doméstica, que apesar das proteções legais tem atingido altos índices. Ao final do estudo, apresenta-se a conclusão sobre a aplicação das MPUs pela autoridade policial em casos de violência doméstica contra a mulher, que viola o princípio da reserva da jurisdição, uma vez que transfere para a Polícia atribuições de competência do Judiciário, revelando o não atendimento às demandas específicas das vítimas e ingerência nos direitos fundamentais do acusado.
Palavras-chave: Autoridade Policial. Medidas Protetivas de Urgência. Mulher. Violência Doméstica.
Abstract: The present article addresses the possibility of the application of Emergency Protective Measures (MPUs) by the police authority. To this end, it presents aspects of the Brazilian system for the protection of women; explains the introduction of the Maria da Penha Law (LMP) in the Brazilian legal system; and gathers the arguments in favor and against the application of measures in the police sphere. As a methodology, a bibliographic review was carried out in books and legislation in order to know the doctrinal positions on the effectiveness of MPUs in the fight against domestic violence, which despite the legal protections has reached high rates. At the end of the study, the conclusion is presented on the application of MPUs by the police authority in cases of domestic violence against women, which violates the principle of reserve of jurisdiction, since it transfers to the Police powers of jurisdiction of the Judiciary, revealing failure to meet the specific demands of the victims and interference with the fundamental rights of the accused.
Keywords: Police Authority. Protective Urgent Measures. Woman. Domestic Violence.
Sumário: Introdução. 1. Aspectos do Sistema brasileiro de proteção a mulher e a introdução da lei maria da penha no ordenamento jurídico brasileiro. 2. Argumentos favoráveis ás alterações da lei nº 13.827/2019. 3. Argumentos contrários á lei nº 13.827/2019. Conclusão. Referências.
Introdução
Nos últimos trinta anos, a violência contra a mulher começou a ser encarada como questão de interesse e de saúde públicos. O seu combate sob a perspectiva de Direitos Humanos passou a ganhar visibilidade, sendo foco de políticas públicas.
Na década de 1980, as reivindicações dos movimentos sociais, em particular dos movimentos feministas, foram centradas na necessidade de enfrentamento mais efetivo dessa espécie de crime com a criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), responsáveis pelo registro e apuração de casos de violência de gênero. Desta forma, a polícia foi a primeira instituição que passou a enfrentar e, com isso, expor a problemática da violência contra a mulher ao longo da história.
A percepção das relações sociais de poder sobre o prisma do gênero permitiu a identificação de desigualdades, discriminação e violência contra as mulheres, sendo ainda nos dias atuais relativizadas.
A Lei nº 11.340, de 07/08/2006, denominada de “Lei Maria da Penha” é vista no Brasil como um marco na prevenção e no combate à violência doméstica contra a mulher, com penas mais rigorosas, trazendo a expectativa de efetiva punição para os agressores, com medidas protetivas e de assistência às vítimas.
Entretanto, as estatísticas da violência doméstica e familiar no Brasil continuam sendo um desafio para os especialistas. Com quase quinze anos da sua vigência, os registros evidenciam significativa elevação ano após ano em todo país.
Na busca por maior efetividade no combate à violência doméstica, editou-se a Lei nº 13.827/2019, que, entre outras disposições, trouxe a possibilidade de aplicação das Medidas Protetivas de Urgência pela autoridade policial, apoiada por grande parte da doutrina, porém contando com posicionamentos contrários.
Diante desse cenário, o presente estudo busca reunir os argumentos favoráveis e contrários à aplicação das MPUs pela autoridade policial.
A escolha do tema foi influenciada pelas crescentes violações e desrespeitos aos direitos fundamentais das mulheres, além da progressiva incidência de ocorrência de casos de violência de gênero que resultam muitas vezes no óbito das mulheres somente em razão do gênero, fazendo com que este seja um problema que aflige a sociedade como um todo. O estudo se justifica, ainda, por ser um tema atual e amplamente discutido nos campos da literatura sociológica e jurídica.
Como metodologia, a revisão bibliográfica foi realizada em livros e legislações com o objetivo de conhecer as ideias e analisar os posicionamentos de estudiosos sobre a efetividade das Medidas Protetivas no enfrentamento à violência doméstica.
Como dito inicialmente, a Lei Maria da Penha, estabeleceu mecanismos para prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher. O nome da lei se deu em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes, cearense, biofarmacêutica, que sofreu violência física e psicológica de seu cônjuge, Marco Antônio Heredia Viveiros. Após sofrer duas tentativas de homicídio em 1983, Maria da Penha levou a conhecimento público a violência que sofreu, resultando na condenação do agressor em 1996 pela justiça brasileira, tendo, porém, o primeiro julgamento sido anulado em 1991.
Em 1998, mesmo com o trânsito em julgado, a execução da pena imposta ao, agora, seu ex-marido, não havia sido iniciada. Em razão disso, Maria da Penha apresentou petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) com o apoio do Centro para Justiça e Direito Internacional (CEJIL) e do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM).
Em agosto daquele ano, a CEJIL recebeu a denúncia que evidenciava a inércia do Estado brasileiro perante as violências sofridas por Maria da Penha, pois, passados 15 anos dos fatos que culminaram na condenação do agressor, medidas efetivas para processá-lo e puni-lo ainda não haviam sido tomadas.
A Comissão, reconhecendo a negligência praticada pelo Brasil sobre a violência sofrida por Maria da Penha, o notificou e, por fim, recomendou, entre outras medidas, a adoção de providências com a finalidade de determinar ao país que disponibilizasse às demais vítimas de violência doméstica meios mais céleres para processar as denúncias e punir os agressores.
Embora o relatório contivesse algumas medidas necessárias a serem tomadas pelo Estado Brasileiro, não houve de sua parte resposta à Comissão e em razão disso, no ano de 2001, foi emitido Relatório nº 54/2001, responsabilizando o Brasil por sua negligência e omissão no combate à violência contra as mulheres.
Por fim, a Comissão condenou o Estado do Ceará (Estado onde ocorreu o crime) ao pagamento de indenização no valor de R$20.000,00 (vinte mil reais) por não ter punido o réu, o qual foi pago devidamente corrigido. Além disso, o marido de Maria da Penha foi preso um ano após a decisão da CIDH em 2002, para cumprir a pena de 10 (dez) anos de prisão, que ocorreu somente após 19 anos e 6 meses da ocorrência do crime e 6 meses antes de sua prescrição.
O relatório da CIDH, expôs a posição omissa do Estado-parte, rentando configurada violação à Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Brasil em 1984, tendo sido o primeiro país a ser condenado em âmbito internacional pela violação à proteção dos direitos humanos.
A LMP, portando foi um avanço, levando em consideração que o Brasil previa em sua legislação termos como “mulher honesta” e tolerava situações de agressão em defesa da honra masculina.
A intervenção do Estado na violência doméstica assume fases distintas, podendo se dar mediante intervenção preventiva primária ou pós-conflitual. A primeira hipótese busca prevenir casos de violência, objetivando evitar a sua concretização. Exerce papel fundamental no enfrentamento do problema, pois, conforme ensina Beccaria (1998, p. 130), “é melhor prevenir os delitos do que puni-los”, e aloca-se no domínio privilegiado da educação, do esclarecimento e da sensibilização para o respeito e a proteção dos direitos fundamentais.
Assumindo sua função preventiva e assistencial (CUNHA; PINTO, 2007), a LMP determina que as políticas públicas coíbam a violência doméstica ou familiar contra as mulheres por meio de ações articuladas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios e de ações não governamentais, tendo como diretriz “a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação” (artigo 8º, I).
A exemplo, cita-se o artigo 9º, da Lei nº 11.340, que prevê as normas de assistência (recorrentes aos princípios e diretrizes previstos na LOAS, no Sistema Único de Saúde – SUS – e no Sistema Único de Segurança Pública – SUSP), tratando a inclusão da mulher no cadastro de programas assistenciais; remoção de servidora pública; manutenção de vínculo trabalhista.
Ao ingressar no campo das ações efetivas, o legislador faz referência à LOAS (Lei 8.742/1993), cujas diretrizes principais estão em seu artigo 2º[1], aonde passa a dispor de forma mais genérica, deixando de indicar, objetivamente, as fontes de recursos e instrumentos disponíveis para viabilizar a “política pública” citada no artigo 8º, referindo-se apenas que a assistência “[…] será prestada de forma articulada e conforme os princípios e diretrizes” previstos em leis que já estão em vigor, mas, que não têm sido eficazes na redução dos problemas sociais que afligem a sociedade, mormente aqueles decorrentes da pobreza.
O SUS e o SUSP têm sua parcela de contribuição a oferecer, porém, já estão demasiadamente sobrecarregados e, principalmente o último, que praticamente não saiu do papel e não vem cumprindo as suas funções. O SUS deve ser aperfeiçoado para cumprir o seu papel na política de combate à violência doméstica e familiar e de apoio à vítima, enquanto o SUSP precisa se firmar como órgão articulador das ações a serem desenvolvidas nas esferas federal, estadual e municipal na área da segurança pública.
A LMP impõe como dever do Estado-Juiz a determinação de proteger a mulher, por meio de programas assistenciais. Contudo, para que isso surta seus efeitos, é importante que os poderes legislativo e executivo cumpram com os seus deveres em todas as esferas do poder, instituindo tais programas e viabilizando verbas orçamentárias necessárias para seu pleno funcionamento, sob pena da prestação jurisdicional ser ineficaz (SOUZA, 2019).
Atualmente, mulheres de todas as camadas sociais podem contar com Delegacias Especializadas, Casas-Abrigo, Centros de Apoio e outros programas governamentais voltados para a garantia de seus direitos e defesa de sua segurança e integridade. Entretanto, ainda há problemas no cumprimento das leis, refletindo numa baixa efetividade das ações oferecidas para proteção, reabilitação e inclusão, demonstrando resquícios da cultura patriarcal, machista e misógina presente na sociedade (BIGLIARDI; ANTUNES, 2018).
Como a violência doméstica requer medidas urgentes, repressivas e preventivas, compatíveis com cada uma das situações que envolvem as relações domésticas ou familiares, há multiplicidade de medidas específicas previstas no artigo 22 e, ainda, um extenso rol de medidas não especificadas, autorizando a Vara competente a deferi-las de acordo com o caso concreto.
Situações complexas que se apresentem como desafiadoras à criatividade do aplicador, são, por exemplo, aquelas em que a vítima e o suposto agressor trabalham no mesmo local, frequentam o mesmo templo religioso ou viva no local ou próximo onde exerça suas atividades profissionais. O juiz deverá verificar se há risco para vítima, suficiente para justificar a necessidade da imposição de medida que inviabilize o agressor de continuar trabalhando, decidindo a qual dos dois cabe impor o afastamento, mormente porque poderá resultar na demissão ou na redução dos seus ganhos, em prejuízo do sustento da própria família (SOUZA, 2019).
O artigo 22 apresenta rol exemplificativo de Medidas Protetivas de Urgência (MPU), as quais possuem características e naturezas próprias, a maioria delas podendo, inclusive, ser aplicadas tanto no âmbito criminal quanto no cível e, até mesmo, no juízo de família, quando a matéria não for da competência do juizado especializado previsto no artigo 14, ou da vara criminal mencionada no artigo 33. As medidas protetivas podem, inclusive, serem aplicadas em conjunto com as medidas cautelares inseridas nos artigos 319 e 320 do Código de Processo Penal (CPP) alterados pela Lei nº 12.403/2011, quando estiverem presentes os requisitos necessários.
Uma das medidas mais impostas é o afastamento do lar, consistindo na imposição da retirada do acusado do local que convive com a ofendida, uma vez que tal medida, se mostra necessária para evitar que a vítima seja submetida a violência psicológica, principalmente nos casos de relação conjugal (CUNHA; PINTO, 2007).
Trata-se, portanto, de medida similar já existente no ordenamento jurídico, inserida no trecho final do parágrafo único do artigo 69 da Lei nº 9.099/1995, inserido pela Lei nº 10.455/2002, além de guardar semelhança com o “[…] afastamento temporário de um dos cônjuges da morada do casal” (BRASIL, 1995, s.p).
Cabe destacar que a Lei nº 13.827/2019, vigendo desde 14/05/2019, possibilitou a imposição do afastamento do agressor pelo delegado de polícia e até por policiais civis e militares, em caráter pré-cautelar quando preenchidos os requisitos que estabelecidos pelo artigo 12-C, devendo o juiz competente ser comunicado “[…] no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas […]” que deverá decidir “[…] em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente” (BRASIL, 2006, s.p).
Já o artigo 23 traz em seu escopo quatro[2] distintas medidas protetivas, cuja lei objetivou salvaguardar seus objetivos, especialmente no que se refere à garantia da integridade moral, física, psicológica e material da mulher vitimada pela violência doméstica e familiar.
Por fim, o artigo 24 possibilita que o juiz do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher conceda medidas protetivas de natureza eminentemente patrimonial em favor da vítima, voltadas a proteger o patrimônio comum do casal.
Em sede conclusiva, é possível afirmar que a LMP representou grande avanço no enfrentamento da criminalidade doméstica contra as mulheres no Brasil, reforçando a tutela penal e trazendo instrumentos protetivos de grande importância para as ofendidas, a ponto de gerar maior sensação de segurança às vítimas (MONTENEGRO, 2015).
No entanto, a lei não foi suficiente para reduzir de forma significativa os índices deste tipo de violência doméstica.
Inicialmente, importa destacar que a LMP não surgiu somente com o objetivo de enfrentar a violência doméstica e familiar contra a mulher, mas também como instrumento de prevenção à violência doméstica de gênero e de assistência, e para acelerar e aprimorar os efeitos das medidas de proteção, foi editada a Lei nº 13.827/2019 (BONFIM, 2021).
Segundo Leitão e Oliveira (2019), a inovação legislativa que permitiu a aplicação das MPUs pelo delegado de polícia e por policiais civis e militares foi um avanço na proteção às mulheres. Isto porque os agressores eram beneficiados pela liberdade provisória, resultando em mais agressões, muitas delas tendo por consequência a morte da vítima. Assim, no entendimento dos autores, se a medida se mostrar eficaz, a tendência é que os óbitos e eventos de violência contra a mulher sejam reduzidos.
Os mesmos autores argumentam que, ao ampliar o rol de agentes públicos autorizados a conferir essa medida, a nova lei prestigia e assegura maior segurança às vítimas de violência doméstica, trazendo a possibilidade de maior economia ao erário público (LEITÃO; OLIVEIRA, 2019).
Santos (2019) também reputa que a inovação foi positiva, pois a mudança beneficiará municípios que não são sedes de Comarcas e Delegacias em que no momento da denúncia, o delegado não estiver presente.
Garcia (2019), referindo-se à ADIN nº 6138 ajuizada no STF, que questiona a competência do Delegado ou a dos policiais para aplicar a medida de afastamento do agressor, entende que a tese utilizada não pode prosperar, pois passou a prever a possibilidade administrativa para a concessão de MPU – a exemplo de como já é feito com a lavratura do auto de prisão em flagrante e com o relaxamento do flagrante pelo Delegado de Polícia, não sendo retirada a palavra final do magistrado. A MPU é apenas antecipada, como já é feito no caso de flagrante, onde se permite que qualquer pessoa dê voz de prisão a quem estiver cometendo ou delito.
No mesmo sentindo é o entendimento de Cunha (2019), que afirma que os agentes policiais praticam em seu dia a dia atos que limitam direitos fundamentais dos cidadãos e que isto não pode servir de justificativa para se cogitar que seja arguida a inconstitucionalidade desta prática, até porque a decisão tomada pelo Delegado de Polícia ou por outros agentes da segurança não é soberana, devendo ser submetida a um juiz em 24h para que possa conceder ou não o seu aval.
Percebe-se, pois, que o que realmente se quis privilegiar foi a dignidade da pessoa humana, sendo este o mais relevante princípio dentre todos os demais. Ademais, o Delegado de Polícia detém os conhecimentos necessários para avaliar se a medida protetiva é ou não necessária.
Não obstante os argumentos favoráveis ao afastamento do agressor do lar pela autoridade policial, há também argumentos contrários à nova legislação, igualmente abalizados e que serão detalhados a seguir.
A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP, 2016), durante as discussões do projeto de Lei nº 13.827/2019 emitiu nota técnica dispondo sobre o fato da Carta Magna de 1988 ter estabelecido um sistema de garantia de direitos fundamentais, através do qual algumas restrições de direitos precisavam ser submetidas à prévia decisão judicial.
Segundo o parecer, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem, de forma reiterada, denominado de princípio da reserva de jurisdição[3], aplicável a todas as restrições impostas aos direitos sensíveis, a exemplo da limitação à liberdade e outras medidas de natureza cautelar ou investigativas.
O CONAMP (2016) concluiu pela inconstitucionalidade da transferência, mesmo que provisória, do poder de limitar os direitos fundamentais afetos à esfera judicial para a esfera policial, levando-se em conta que a opção pela aplicação das MPUs se consubstancia em ingerência grave nos direitos fundamentais do acusado.
Müller (2019), por sua vez argumenta que a concessão de MPUs pela autoridade policial pode ser entendida como um dispositivo pertencente ao direito penal, vez que o autor a enxerga como uma forma a mais de assegurar proteção à mulher. Desta forma, o autor a contempla como uma forma de impelir o Estado a formular políticas públicas para prevenir e erradicar a violência doméstica de gênero no Brasil. A violência contra a mulher, contudo, demanda tratamento realista e não um que vise apenas atender aos clamores sociais, imputando à autoridade policial um poder decisório que até então era jurisdicional.
Outra contradição, segundo Carvalho e Maia (2020), está na ineficiência da aplicação da decisão, por razões operacionais, já que no Brasil, existem delegacias de polícia que sofrem com a falta de estrutura e recursos humanos para fazer frente às demandas atuais. Desta forma, a atribuição adicional de cumprir as MPUs, até então dos Oficiais de Justiça, torna os serviços prestados pela Polícia ainda mais deficientes. Assim, se o objetivo é conferir maior efetividade à LMP, bastaria que fosse disponibilizada ao Judiciário melhor estrutura e um número maior de servidores, pois a mera transferência de determinadas prerrogativas às Delegacias de Polícia exige que a estrutura seja também necessária no órgão policial.
Dessa forma, a Lei 13.827/2019 está intencionalmente direcionada a atender às demandas sociais, já que não traz modificações significativas no campo jurídico, pois a aplicabilidade das MPUs é a mesma, alterando-se somente os órgãos competentes para deferir e cumprir as medidas.
Outro argumento importante citado por Müller (2019) é que antes de ser aprovada, não foi realizado estudo estatístico que relacionasse o controle da violência doméstica com o deferimento de MPUs pela autoridade policial, o que permitiria que a inconstitucionalidade desta legislação fosse suscitada pela ausência de prognose legislativa.
O que se observa nesse caso é um déficit na análise prognóstica de efetividade da alteração legislativa. Havendo também uma deficiência nos estudos dos impactos da alteração sobre a violação a direitos fundamentais e reserva de jurisdição e da inafastabilidade do controle jurisdicional.
Já Young (2016) questiona o interesse político dos Delegados de Polícia na aprovação das MPUs, já que a função de Delegado já foi considerada uma carreira jurídica, o que abre margens para discutir a isonomia salarial dessa classe profissional em comparação com as demais carreiras da área, tendo em vista que a busca por atribuições de natureza jurídica-decisória seria um passo a mais para alavancar a carreira de Delegado de Polícia.
Também, há que se destacar que as mesmas dificuldades que assolam o Judiciário no Brasil assolam também as Delegacias. Assim, da mesma forma que há carência de estrutura e recursos humanos no Judiciário, estas carências também são encontradas nas delegacias de polícia. De qualquer forma, tanto os Oficiais de Justiça, como os agentes de polícia enfrentam as mesmas dificuldades, especialmente em se tratando de localizar e citar o acusado (MÜLLER, 2019).
Por derradeiro, tem-se que não obstante a capacidade técnica e teórica dos Delegados de Polícia, como bem expõe Müller (2019), não se pode pactuar com a ideia de tornar os juízes meros homologadores de decisões proferidas por delegados. Os papéis se inverteram, deslocando-se a competência para analisar a necessidade de conceder a MPUs do Judiciário para a esfera policial, mesmo que em casos específicos e de forma residual.
Ademais, sabe-se que as MPUs possuem efeitos eminentemente penais ou civis, e, normalmente, restringem garantias fundamentais do cidadão, a exemplo do direito de ir e vir. Então, as MPUs, especialmente as previstas no artigo 22, inc. III, da Lei nº 11.340/2006, só podem ser vistas como medidas válidas e idôneas se forem adequadamente fundamentadas em razões de fato e de direito e após se proceder à análise do caso concreto (CARVALHO; MAIA, 2020). Nessas hipóteses, o Judiciário atua como instância revisora.
No entanto, segundo Souza (2019), na prática o que ocorre é o desvio da função principal da Polícia, que poderá ter que deixar de se dedicar a investigações criminais, para dedicar-se a cumprir mandados de intimação referentes à concessão de MPUs. Dessa forma, transfere-se a atribuição dos Oficiais de Justiça para agentes policiais, sem que estes últimos contem com a estrutura adequada e treinamento para assumirem esta nova função.
Por fim, cita-se a ausência de preparo e de estrutura da Polícia Civil para atender as mulheres vítimas de violência, já que os agentes policiais não têm conhecimento sobre o desenvolvimento feminista da criminologia crítica, sendo possível observar o tratamento machista e patriarcal muitas vezes dispensado à vítima de violência doméstica.
Do exposto, com relação aos argumentos contrários, depreende-se que a concessão de MPUs pela Polícia não só é um meio ineficaz para proteger as mulheres contra a violência doméstica, como também majora a violência exercida contra elas, sendo assim, uma estratégia excludente.
Conclusão
A violência doméstica contra a mulher é um mal presente na sociedade mundial, com consequências graves, que, por muito tempo, foi subestimada. No entanto, foi visto que a LMP tirou da invisibilidade os crimes praticados com violência contra a mulher, prevendo mecanismos preventivos e repressivos, que empoderaram as mulheres, estimulando-as a denunciar seus agressores, rompendo, dessa forma, com o ciclo da violência.
Como visto nesse artigo, um dos mecanismos foram as medidas protetivas de urgência, meios protetivos voltados ao combate repressivo para fins de coibi-los a praticar a violência doméstica contra as mulheres.
Porém, apesar deste esforço legislativo, as pesquisas demonstram que os casos de violência doméstica têm aumentado. Neste contexto é que foi editada a Lei nº 13.827/2019, que dentre outras disposições, trouxe a possibilidade de a autoridade policial conceder MPUs, mais especificamente, o afastamento do agressor do âmbito doméstico.
Sabe-se que a defesa da mulher vítima de violência demanda a real efetividade da LMP no que se refere ao atendimento e encaminhamento dos pedidos judiciais, desde as primeiras ameaças realizadas. Assim entende-se que a simples mudança da esfera na qual serão concedidas as MPUs não resolverá as dificuldades advindas da não aplicação dessas políticas.
Razão se dá, pois são insuficientes as DEAMs, refletindo na ausência de estrutura das Delegacias de Polícia e das equipes interdisciplinares responsáveis pelo atendimento à mulher agredida. Desta forma, a mudança legislativa que concedeu poderes judiciais ás autoridades policiais darão maior poder de decisão aos agentes, onde não estarão, porém, auxiliados por equipes técnica, comprometendo a efetividade do atendimento no caso concreto.
Do exposto, conclui-se que a aplicação das MPUs pela autoridade policial em casos de violência doméstica contra a mulher viola o princípio da reserva da jurisdição, tendo em vista que transfere para a Polícia atribuições que são do Judiciário, revelando, adicionalmente, o não atendimento a demandas específicas das mulheres vitimadas e ingerência nos direitos fundamentais do acusado.
Referências
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YOUNG, Pedro. A possibilidade do Delegado conceder medidas protetivas e o Direito de Defesa. JusBrasil, junho de 2016. Disponível em: https://ppyoung.jus brasil.com.br/artigos/358114778/a-possibilidade-do-delegado-conceder-medidas-pro tetivas-e-o-direito-de-defesa. Acesso em: 15 abril 2021.
[1] Art. 2º da Lei 8.742/1993 – A assistência social tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes; III – a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V – a garantia de 1 (um) salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.
[2] Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas: I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; II – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; III – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; IV – determinar a separação de corpos.
[3] RE 593.727/MG; HC 107644/SP; MS 23,452/RJ.
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