A liberdade de expressão e a marcha nazista: Brasil x Estados Unidos

Resumo: Esse artigo objetiva analisar a liberdade de expressão no Brasil e nos Estados Unidos passando por manifestações de cunho nazista. A fim de conseguir cumprir o proposto é usada como base a Constituição Federal de 1988 e dois tratados internacionais de Direitos Humanos que o Brasil faz parte a Declaração Universal de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos doutrina fatos históricos e o direito americano e sua jurisprudência de forma a realizar uma comparação entre os dois Estados Democráticos e a forma como lidam com a liberdade de expressão. Ao fim se objetiva refletir sobre como a liberdade de expressão é polêmica e essencial para uma sociedade democrática de direito.

Palavras chaves: liberdade de expressão. Marcha nazista. Brasil. Estados Unidos da América

Sumário: 1. Liberdade de Expressão. 1.1 Limites a liberdade de expressão no Brasil. 2. Liberdade de Expressão nos EUA. 2.1 Limites a liberdade de expressão nos EUA. 3. Brasil X Estados Unidos da América e a questão da marcha nazista. Conclusão.

1. LIBERDADE DE EXPRESSÃO

A liberdade de expressão é a base para uma sociedade democrática de direito, estando a mesma, inclusive, determinada no artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e no artigo 19, 2 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ambos assinados e ratificados pelo Brasil.

“Artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão.

Artigo 19 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos:

2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.”

A liberdade de expressão é tão significativa para organizações internacionais, que a Organização dos Estados Americanos (OEA) criou uma relatoria especial para a questão com o intuito de promover a liberdade de expressão e informação no continente.

O destaque a liberdade de expressão para qualquer sociedade democrática encontra sua primeira grande e significativa previsão já no século XVIII na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, artigos 10º e 11º.

“Art. 10º. Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.

Art. 11º. A livre comunicação das idéias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.”

Mas o que é a liberdade de expressão? Liberdade de expressão é o direito que todo indivíduo tem de se expressar, falar, escrever, desenhar, manifestar uma opinião, conforme palavras de Edilsom Pereira de Farias.[i]

“A liberdade de expressão e informação é atualmente entendida como um direito subjetivo fundamental assegurado a todo cidadão, consistindo na faculdade de manifestar livremente o próprio pensamento, ideias e opiniões através da palavra, escrito, imagem ou qualquer outro meio de difusão, bem como no direito de comunicar ou receber informação verdadeira, sem impedimentos nem discriminações”.

No Brasil, a liberdade de expressão faz parte do rol de direitos fundamentais da constituição federal, estando expressamente determinado no artigo 5º, IV e 220 da Carta Magna.

“Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”

A liberdade de expressão é um direito de todos e essencial para que outros direitos e liberdades possam ser garantidos; não se fala em liberdade de pensamento, opinião, artística, religiosa, de imprensa e de informação, reunião, em suma, de nenhuma liberdade, sem a liberdade de expressão que por vezes é a base e, outra tantas vezes é a exterioração das outras liberdades.

1.1. Limites a liberdade de expressão no Brasil

O primeiro esclarecimento sobre o tema é relacionado a limites, afinal existem limites a liberdade de expressão? E se existem quem os determina? Qual é a base para a determinação desses limites? Sobre a temática, Ronald Dworkin diz:

“A afirmação de que cidadãos têm direito a liberdade de expressão deve implicar que seria errado, por parte do governo, impedi-los de se expressarem, mesmo acreditando que o que vão dizer causará mais mal do que bem.”[ii]

 No Brasil, a Constituição Federal se alinha a pactos internacionais de forma a proteger a liberdade de expressão e a dignidade da pessoa humana, sendo sempre defendida a ideia de que não há qualquer direito absoluto.

Diante disso a jurisprudência do país defende que esse é o limite a liberdade de expressão: a dignidade da pessoa humana, de modo que discursos que atentem contra essa, proferindo injúrias raciais, religiosas, étnicas de qualquer natureza podem ser limitados.

Conquanto, como a professora Samantha Meyer-Pflug observa, o ordenamento jurídico brasileiro não traz qualquer proibição direta ao discurso de ódio, embora seja explícito ao proibir o preconceito e a discriminação, não faz menção ao discurso de ódio.[iii]

Todavia, a carta magna, já no próprio inciso IV do artigo 5º, além de apresentar a liberdade de expressão como um direito fundamental, já apresenta uma primeira limitação expressa sobre o tema, a vedação ao anonimato.

A vedação ao anonimato é vendida como essencial para garantir a democracia e o direito de todos. Afinal com o anonimato é impossível definir quem disse o quê e, dessa forma, impossível garantir o direito de resposta, também expresso em lei.

“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]

V. é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;”

O direito de resposta visa garantir que todos aqueles que sejam expostos ou tenha fatos de sua vida expostos possuam o direito de restabelecer a verdade de modo a protegerem sua reputação, como dito por José Cretella Jr. “Manifestar’ é ‘revelar’, ‘projetar’, ‘denunciar’, ‘declarar’. (…) Pensamento manifestado é o declarado, o que se projeta no mundo, tornando-se conhecido e, pois, gerando conseqüências jurídicas e sociais (…).” [iv]

O direito de resposta está ligado a inviolabilidade da imagem e honra, que objetiva garantir indenizações na esfera cível e punições na esfera penal, pois se a liberdade de expressão é direito fundamental previsto na Constituição, esses direitos também o são.

“Art. 5º, X da CF: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”

Sobre essa temática, usando a diferenciação dada por José Silva, enquanto a honra trata do conjunto de qualidades que caracterizam a dignidade da pessoa e o seu bom nome, a imagem está relacionada ao aspecto físico do indivíduo e ambos os aspectos estão diretamente relacionados a dignidade da pessoa humana, devendo sempre ser respeitados.[v]

Além dessa restrição, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos também determina algumas restrições ao que pode ser dito:

“Artigo 19 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos:

3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:

a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;

b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.”

Como se observa, o artigo supracitado traz limitações ainda maiores que a Constituição Brasileira, determinando que a liberdade de expressão pode vir a ser restringida a fim de assegurar, entre outros pontos, a moral pública.

Mas, ora, o que é a moral pública se não a vontade da maioria que se encontra com poderes para censurar tudo aquilo que considera imoral?

Tal forma de censura por parte do Estado não é correta, pois, considerando o pensamento de Ronald Dworkin, não cabe a qualquer lei ou governo determinar o que um alguém pode ou não dizer, o que cabe é garantir que todo indivíduo tenha condições educacionais, éticas e políticas para pensar, refletir e formar suas próprias convicções.

Outro ponto é que, por vezes, mídias variadas e até decisões judiciais determinam que algumas coisas que não podem ser ditas por supostamente fazerem apologia a um crime, mas neste caso deve-se manter o cuidado para, novamente, não confundir o que é apologia ao crime e o que é falar de assuntos considerados ilegais.

 Exemplo do citado acima é a questão da “Marcha da Maconha” que por vezes foi pauta de ações judiciais que objetivavam impedir sua realização, usando como fundamento o artigo 287 do Código Penal que proíbe a apologia ao crime.

“MANDADO DE SEGURANÇA. "Marcha da Maconha" – Pedido de liminar para a não realização do evento. Apologia ao Crime. Conflito de direitos fundamentais garantidos constitucionalmente. Não existência de direitos constitucionais ilimitados. Interpretação harmônica da Constituição Federal. Liminar concedida. Prejudicada a análise do mérito do recurso”. (TJSP – MS 990102355438 SP. 5ª Câmara de Direito Criminal. Relator: Sergio Ribas. Julgamento: 15/07/2010. Publicação: 22/07/2010)

Com essa polêmica cada vez maior, o Supremo Tribunal Federal julgou a questão na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187 em 2011 e por unanimidade decidiu que a marcha poderia ocorrer, pois não visa incitar qualquer crime ou violação ao código penal, mas, sim, promover uma discussão democrática acerca da questão.

 Ao proferir tal decisão o relator, Celso de Mello, defendeu o direito de se discutir e defender ideias, ainda que imorais ou até ilegais. [vi]

“Tenho sempre enfatizado, nesta Corte, Senhor Presidente, que nada se revela mais nocivo e mais perigoso do que a pretensão do Estado de reprimir a liberdade de expressão, mesmo que se objetive, com apoio nesse direito fundamental, exp2or idéias ou formular propostas que a maioria da coletividade repudie, pois, nesse tema, guardo a convicção de que o pensamento há de ser livre, sempre livre, permanentemente livre, essencialmente livre”.

 A liberdade de expressão deve ser defendida e controles de ordem moral devem ser evitados. De certo algumas limitações podem ser admitidas, mas a título de exceção e a fim de preservar o bem comum, a limitação a liberdade de expressão não deve ser regra e nem meio de se controlar o que é dito.

2. Liberdade de expressão nos Estados Unidos da América

Os Estados Unidos da América, país essencialmente democrático desde sua independência, quando promulgou sua constituição em 1789 vivia um período de euforia, mas também em que as diferenças entre as regiões Norte e Sul estavam muito evidentes.

Devido a essas diferenças eram frequentes as disputas entre as regiões e o meio termo sobre o que a constituição nacional deveria conter, quais liberdades deveriam ser garantidas e o tamanho e influência que o Estado deveria ter na vida dos cidadãos.

Em tal cenário, com a disputa entre a região Norte que queria apenas a Constituição e a região Sul do país que temia uma constituição muito restrita, foi estabelecida a Carta de Direito dos Estados Unidos, documento anexo a Constituição que continha 10 emendas que garantiriam direitos básicos dos cidadãos frente ao poder do Estado.

Tais emendas até hoje vigoram e a primeira emenda trata exatamente da liberdade de expressão, de forma a garantir que o congresso do país não aceite qualquer lei que proíba a liberdade de expressão.

“Emenda I

O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos”.[vii]

Os EUA são notadamente um dos países que mais defende a liberdade de expressão, a Suprema Corte estadunidense já discutiu os mais diversos temas referentes a liberdade de expressão e repetidamente a defendeu, em sua forma mais ampla e irrestrita.

As decisões emitidas nos casos relacionados a liberdade de expressão partem da ideia de que o Estado é neutro e deve assim deve permanecer, não podendo regular qualquer discurso baseado em um ponto de vista. Afinal o Estado não tem lado e nem ponto de vista, devendo no máximo poder restringir onde algumas coisas podem ser ditas, mas não o que pode ser dito.

Em suma questão da liberdade de expressão nos Estados Unidos pode ser entendida como uma forma de garantir aos seus cidadãos o poder de governar, não de serem governados, seguindo o defendido por Dworkin "a liberdade de expressão é necessária para que o povo governe o governo e não vice-versa".[viii]

2.1. Limites a liberdade de expressão nos Estados Unidos

Mesmo com a ampla proteção garantida pela legislação nos Estados Unidos, são admitidos alguns limites a liberdade de expressão. Decisões dos tribunais do país definições dadas por juristas, reconhecem esses limites como sendo três: [ix]

a) Obscenidade:

A proibição relativa a obscenidade foi determinada no julgamento do caso Roth vs United States que se deu quando o comerciante Samuel Roth, proprietário de uma empresa de publicação e venda de obras literárias e fotográficas, em Nova Iorque, foi preso acusado de violar a lei que proibia o envio de circulares e propagandas de material obsceno pelo correio. A defesa de Roth alegou que proibir a circulação de tais publicações seria uma violação clara a primeira emenda. [x]

O caso chegou a Suprema Corte e, embora a decisão não tenha sido unânime, ficou determinada que a obscenidade seria um elemento limitador da liberdade de expressão.

Não sendo suficiente que exista a simples e mera obscenidade no material veiculado, a obscenidade digna de limitar a liberdade de expressão do indivíduo se caracteriza por ser qualquer forma de disseminar ideias que em seu todo apelem para o interesse lascivo ao sexo, o conteúdo deve ser considerado ofensivo para o homem médio, pela maneira como o sexo foi descrito no material e se o mesmo não contiver qualquer valor social.

b) Pornografia Infantil:

A proibição a pornografia infantil foi reconhecida como um novo elemento limitador a liberdade de expressão em 2008, quando a Suprema Corte determinou que qualquer lei que proíba a solicitação e divulgação de pornografia infantil não viola a liberdade prevista na primeira emenda.

A discussão sobre a questão se deu a partir do caso United States vs Williams que trata do ocorrido com Michael Williams, um residente da Flórida que em 2004 foi preso após oferecer fotos de sua filha de 04 (quatro) anos em salas de bate papo da internet.

Após tal oferta a polícia começou a investigá-lo e, durante uma operação policial, foi descoberto que Williams não possuía qualquer foto de natureza sexual de sua filha, em contrapartida possuía 22 fotos de conteúdo sexual explícito envolvendo crianças. [xi]

Ante tais descobertas, Williams foi preso e se declarou culpado pela posse e distribuição de pornografia infantil, mas recorreu a Suprema Corte alegando que a lei que restringia a veiculação de pornografia infantil era inconstitucional, uma vez que violava o seu direito a liberdade de expressão. 

Porém a Suprema Corte por 07 votos contra 02 decidiu que pornografia infantil estava excluída do rol protegido pela primeira emenda, todavia determinou que pornografia simulada com atores de aparência extremamente jovem não é proibida e continua protegida.

Nesse sentido foi a decisão da Suprema Corte no caso Ashcroft v. Free Speech Coalition quando uma associação formada por profissionais do entretenimento pornográfico entrou com uma ação judicial alegando que a lei que proibia a veiculação de pornografia infantil não poderia ser aplicada contra qualquer imagem além das reais. Por 06 votos contra 03 a Corte decidiu que a associação tinha razão e a lei era vaga, assim seria proibida a veiculação de imagens com crianças reais, mas não as imagens manipuladas para se assemelharem a ideia de sexo com menores de idade.

Por tais decisões estabeleceram-se dois parâmetros interessantes acerca da temática: o indivíduo não pode distribuir ou solicitar imagens reais de menores de idade praticando atos de natureza sexual, mas publicações literárias e cinematográficas podem veicular imagens que simulem crianças praticando atos sexuais.

c) Discursos que contenham “fighting words”

A expressão "Fighting Words" pode ser definida como discursos que contenham real e iminente potencial de gerar violência e desrespeito a lei. Para ser considerado discurso que contenha tais expressões é imprescindível que o discurso objetive gerar tal violência e desrespeito a lei, além de ter real potencial de causar reações violentas.

Não obstante tal limitação, no sentido de garantir a máxima proteção a liberdade de expressão e garantir que as limitações sejam usadas como exceção e não como regra, como meio de se censurar e limitar o que pode ou não ser dito, alguns limites as limitações também já foram determinados:

c.1) A liberdade de expressão deve ser limitada a fim de proteger um indivíduo

Os limites a primeira emenda devem ser usados com a única finalidade de se proteger um indivíduo ou um grupo de indivíduos, a finalidade desses limites não deve ser a defesa de ideias.

Em 1992, ao julgar o caso R.A.V vs City of St. Paul que ocorreu no estado americano de Minnesota quando um grupo de adolescentes foi preso e condenado após queimar uma cruz no jardim de uma família negra, a Suprema Corte decidiu que a lei estadual que criminalizava a exibição de símbolos que pudessem gerar ódio, ressentimento ou alarmar os outros indivíduos por questões de raça, sexo, cor ou religião era inconstitucional.[xii] [xiii]

A maioria da Corte considerou a lei inconstitucional uma vez que a mesma pretendia determinar o que poderia ou não ser dito, o que era ou não ódio; o objetivo não era proteger um indivíduo, mas, sim, uma ideia considerada pelos legisladores odiosa.

c.2) Ameaça real capaz de causar algum mal ou dano a outrem 

A ameaça em questão não pode ser vazia e não basta que a vítima ouça o discurso, a vítima tem que acreditar no discurso e quem discursa tem que ter meios reais de causar o mal sobre o qual discursou.

O critério foi estabelecido em 1969, quando Robert Watts foi investigado e processado criminalmente após afirmar durante um discurso para um pequeno grupo de pessoas, em Washington DC, que se tivesse um rifle em suas mãos a primeira pessoa que gostaria de ver era o então Presidente americano, Lyndon Johnson. [xiv]

Mesmo com nenhuma reação dos ouvintes, que apenas riram da afirmação de Watts, ele acabou sendo investigado e eventualmente condenado por ameaçar a vida do presidente. Porém, após apelação a Suprema Corte, Watts conseguiu reverter a condenação, tendo sido entendido que tal discurso não oferecia um risco real a vida do Presidente e nem a vida de ninguém, tal discurso era simplesmente uma “hipérbole política”.

Outro ponto argumentado sobre essa limitação, é que não basta que sejam usadas expressões que remetam a violência, é preciso que a violência seja diretamente incitada. A limitação não ocorrerá pela simples defesa do uso da violência, mas, sim, quando a violência for de fato incitada.

Um caso que representa todos os pontos acima detalhados, permitindo a limitação da liberdade contida na Primeira Emenda é o caso Winsconsin vs Mitchell, que se deu quando o jovem negro Todd Mitchell instigou outros jovens a atacarem um jovem branco, exclusivamente pelo fato dele ser branco. [xv]

Durante o julgamento, Mitchell foi acusado de agressão e condenado baseado na legislação anticrime de ódio. Após a sentença ele apelou a Suprema Corte alegando seu direito a liberdade de expressão, porém não obteve sucesso com a Corte que, por unanimidade, entendeu que o direito a liberdade de expressão não lhe dava o direito de incitar a violência contra qualquer um que seja; entendeu-se que as palavras de Mitchell continham violência extrema, ódio e uma incitação real e iminente capazes de, como ocorrido, levarem a agressão física.

c.3) Discurso que provoque reação violenta 

A liberdade de expressão digna de limitação deve ter real possibilidade de provocar uma reação violenta ao homem médio que a se destine.

Assim, o discurso deve ser odioso e atentar diretamente contra um indivíduo, conquanto esse indivíduo não pode ser alguém que possua qualquer forma de treinamento para não reagir emocionalmente a algumas situações, como por exemplo policiais e psiquiatras.

Essa restrição foi determinada quando a Suprema Corte decidiu o caso Chaplinsky vs New Hampshire que se formou quando uma testemunha de Jeová discursava em uma rua contra outras religiões. O discurso foi causando aglomeração popular e Walter Chaplinsky, responsável pelo discurso, foi levado a delegacia onde acabou por ofender diretamente o delegado, chamando-o, entre outras coisas, de fascista. [xvi]

Pelas ofensas, Chaplinsky acabou por ser preso, porém a Suprema Corte decidiu, unanimemente, pela soltura dele uma vez que as palavras dirigidas ao Delegado não poderiam causar qualquer dano iminente e nem representavam um risco real de violência, até porquê o Delegado possuía treinamento específico para lidar com o público e situações estressantes, não existindo, assim, espaço para uma reação violenta.

c.4) Discurso que difame ou cause danos a reputação de outrem – “difamação grupal”

Esse precedente da Suprema Corte determinou que quando o discurso odioso for direcionado a algum grupo que historicamente sofreu discriminação e for um discurso com potencial de perturbar a paz e ordem, poderá ser limitado.

A decisão se deu após o caso Beauharnais vs Illinois, quando um indivíduo distribuiu panfletos em uma vizinhança, majoritariamente negra, clamando pela união da raça branca contra os negros, visto que seriam os responsáveis por roubos, mortes e estupros.

A prisão e condenação de Joseph Beauharnais ocorreram baseadas em uma lei específica, a lei sobre crimes de ódio, que, entre outras coisas, proíbe a distribuição de qualquer publicação que ilustre depravação, criminalidade, falta de virtude em face de um grupo de cidadãos de qualquer raça, etnia, sexo ou religião historicamente reprimidas.[xvii]

Beauharnais recorreu da decisão alegando que tal proibição prevista em lei infringe a primeira emenda e, por consequência, o seu direito a liberdade de expressão. A Corte negou o recurso, garantindo a constitucionalidade da lei, pois fora alegado pelos juízes que tal lei era específica o suficiente e baseada na história e em fatos concretos, assim, sua aplicação não corre o risco de violar a primeira emenda.

Aliás, a lei que condenou Beauharnais é a base para a ideia sobre o que é considerado discurso de ódio no país. Tal lei surgiu com a ideia de classificar e diferenciar condutas criminosas motivadas por questões raciais, étnicas, religiosas, de nacionalidade, sexo, identidade de gênero e deficiência.

Crimes motivados por esses aspectos são catalogados como “Crimes de ódio”, de forma que, mesmo com a variação das leis estaduais, tais crimes são passíveis de investigação federal e um julgamento pela Justiça Federal.

Pelos exemplos acima é evidente que desde o início de sua história até hoje, os Estados Unidos têm afirmado e reafirmado o direito a liberdade de expressão em sua forma mais ampla e irrestrita, tratando de questões polêmicas e preservando ao máximo a ideia de que o Estado não possui lado e nem ideias, apenas a função de organizar a sociedade e garantir que liberdades e direitos sejam preservados.

A Suprema Corte tem oferecido amplo apoio a legislação do país, de forma a evitar que leis e tribunais tentem regular a liberdade de expressão, determinando o que pode ou não ser dito.

3. Brasil X Estados Unidos da América e a questão da marcha nazista

Em 12 de agosto de 2017 a pequena cidade universitária de Charlottesville, no estado da Virginia, com pouco mais de 50 mil habitantes sediou um protesto de supremacistas brancos que pregavam a superioridade da raça. [xviii]

Os manifestantes formados por, principalmente, brancos nacionalistas, integrantes de grupos neonazistas e membros da Ku Klux Klan ambicionavam “tomar a América de volta e unir aqueles que são brancos”.

Durante a marcha foram usadas bandeiras dos Estados Confederados dos Estados Unidos da América, tochas e cruzes foram queimadas, além de terem ocorrido saudações nazistas. Palavras de ordem foram proferidas e um forte discurso anti-imigração e anti-negros também, com os manifestantes se autoproclamando, sem qualquer censura, nazistas e membros da Ku Klux Klan. [xix] [xx]

"Sim, eu sou nazista, eu sou nazista, sim"

"Se não fizermos algo, seremos expulsos do nosso próprio país”

"Gays, negros, imigrantes imundos, todos eles se manifestam e recebem apoio por isso. Porque quando homens brancos decidem gritar por seus direitos e sua sobrevivência vocês fazem esse escândalo?"

Em resposta a este protesto um grupo antinazista, posicionando-se contra a supremacia branca e qualquer tipo de discriminação, começou a marchar em direção a essa passeata,. Em meio a esse protesto bandeiras nacionais e dos Estados Confederados foram queimadas e foram ouvidas e lidas declarações contra o grupo nazista.

Matar nazistas é a minha herança.”

“Virginia é para o amor, não para nazistas.”

Após algum tempo, o esperado aconteceu com os grupos entrando em confronto e a polícia tendo de intervir, com a confusão generalizada atingindo seu ápice quando um carro em alta velocidade foi em direção aos manifestantes. Ao fim do dia 03 pessoas morreram e dezenas ficaram feridas.

Veículos de imprensa e as mídias sociais ao redor do mundo foram encharcadas com textos de repúdio a manifestação neonazista e alegações de discurso de ódio. Sem embargo, em uma análise essencialmente técnica da constituição estadunidense e da primeira emenda não há o que se falar em crime.

A violência física ocorrida durante os protestos é crime, porém a marcha neonazista, os símbolos nazistas e que remetiam a Ku Klux Klan não caracterizam crime, outrossim as palavras anti-imigrantes, anti-negros e anti-gays, estando protegidas pelo direito a liberdade de expressão garantida pela legislação e por recorrentes decisões da Suprema Corte do país, pois representam unicamente ideias.

Em contrapartida, tal marcha não poderia ocorrer em território brasileiro, visto que no país é proibida qualquer promoção de símbolos que levem a divulgação do nazismo, conforme dispõe o artigo 20 da Lei 7716 de 1989.

“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa.

§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência: 

I – o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;

II – a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio;

III – a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores.

§ 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido”

Tal marcha neonazista exemplifica como o sistema brasileiro e estadunidense lidam com a questão da liberdade de expressão. Se o sistema brasileiro é claro ao garantir liberdades fundamentais, também é específico ao determinar exceções, ideias e palavras que não podem ser disseminadas, o sistema legislativo e judiciário americano garante a todos a ampla liberdade, não restringindo ideias, apenas a atos.

CONCLUSÃO

Este trabalho chega ao seu fim almejando ter conseguido propor uma reflexão acerca da complexidade da liberdade de expressão, mesmo em países próximos e com características similares. Como mostrado, tanto a constituição brasileira como a constituição estadunidense são constituições democráticas, vigentes em Repúblicas territorialmente extensas e com acentuadas diferenças entre os estados partes.

Mas, diferente dos Estados Unidos, o Brasil se caracteriza por ser um Estado democrático de direito novo, estando ainda em desenvolvimento e sem grande estabilidade financeira e política.

A República foi proclamada em 1889 e no período de 100 anos contou com 02 momentos declaradamente ditatoriais, tendo sua redemocratização garantida em 1985 e desde então, em pouco mais de 20 anos, 02 presidentes sofreram impeachments e o país se viu diversas vezes assolado por crises políticas e econômicas.

 Talvez por ser uma democracia recente a liberdade de expressão é garantida, mas com limites claramente impostos, pelo legislativo, judiciário e pela sociedade.

A Constituição vigente foi elaborada e promulgada na segunda metade da década de 1980, após o advento do nazifascismo, da eclosão de disputas raciais violentas nos Estados Unidos e no continente africano, em um período que a comunicação já era facilitada com televisores, rádios e telefones.

O legislador visava garantir liberdades individuais, assim como direitos humanos que passaram a ser considerados essenciais, desde as convenções de Genebra e Haia e da criação da ONU. Nesse sentido, com uma visão mais ampla e atual da contraposição de direitos a máxima pretendida não era alcançar e garantir liberdades individuais, mas, sim, a dignidade da pessoa humana que passou a ser o foco da sociedade internacional.

Em contrapartida, os Estados Unidos são uma república consolidada e um país já desenvolvido, com um sistema financeiro e político já relativamente estáveis.

A constituição estadunidense assim como suas emendas foram elaboradas e promulgadas no fim do século XVIII, imediatamente após o país conquistar sua independência e deixar de ser uma colônia britânica. Á essa altura, o objetivo principal era se afastar de qualquer forma de repressão e controle, estabelecendo uma constituição que prezava principalmente por liberdades individuais, afinal ainda não existia a ideia de dignidade humana de forma tão enraizada na sociedade contemporânea.

De um lado o Estado brasileiro preza por liberdades individuais amplas dentro de um limite considerado aceitáveis pelo Estado, inclusive, com frequentes discursos de políticos, juristas e personalidades públicas valendo-se do que consideram discurso de ódio para limitar o que pode ou não ser pensado.

Em oposição a isso se encontra o Estado norte-americano que intenta garantir liberdades individuais acima de tudo, aceitando limites a essas apenas em casos raros e extremos, tendo o Estado e o poder judiciário não a função de limitar qualquer liberdade, mas, sim, de garanti-las.

Mesmo, com as diferenças e similaridades retro citadas, com certa frequência os países enfrentam a questão do discurso de ódio, principalmente relacionado a questão da imigração. O assunto se repete ao longo das décadas e continuará a se repetir; ilusório aspirar que ocorra o fim de qualquer discurso ou ideia, pois é exatamente essa pluralidade que garante a liberdade e a democracia tão defendidas.

A evidente diferença entre os países e como lidam com discursos moralmente reprováveis, popularmente acusados de serem odiosos, como a marcha nazista é a questão, o que deve ser cobiçado não é a uniformidade do discurso, sim a garantia que todos os indivíduos tenham meios de se informar, pensar, formar uma opinião e expressar essa, seja por meio da imprensa e da publicação de obras, por meio de uma reunião ou por meio de uma simples plataforma de internet, o indivíduo deve dispor de suas liberdades sem medo de represálias por aspectos além dos legais.

O imoral, o irreal, o cruel e o impensável devem poder ser ditos e divulgados quando objetivarem defender uma opinião ou ideia. Não deve ser responsabilidade do Poder Público ou de qualquer grupo social regular o que se diz e o que não se pode falar, ouvir, ler e pensar.

Finaliza-se esse trabalho parafraseando Ronald Dworkin em tradução livre: “Balanceado é um código para negado. Um direito a liberdade de expressão que deva ser balanceado contra uma extensa lista de supostos valores significa um direito que só pode ser exercido quando aqueles no poder julgarem que o discurso em questão é inócuo”.

 

Notas
[i] FARIAS, Edilsom Pereira. Colisão de Direitos – A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 2000, p.162 e 163.
[ii] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes. 2003, p. 293.
[iii] MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: RT, 2009, p. 198.
[iv] CRETELLA JR., José. Elementos de Direito Constitucional. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 212.
[v] SILVA, José Antonio da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª edição. São Paulo: Malheiros editores. 2011, p. 211.
[vi] STF. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187 Distrito Federal. Conhecida. Relator Celso de Mello. Julgamento: 15 de junho de 2011. Publicação: 28 de agosto de 2015, p. 44.
[vii] Tradução livre: “Amendment I: Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Govermment for a redress of grievances.”
[viii] DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade – A leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 322.
[ix] FISCH, William B. Hate Speech in the Constitutional Law of the United States.
[x] US Supreme Court. Roth v. United States, nº 582. Julgado: 24/06/1957.
[xi] US Supreme Court. United States v. Williams, nº 90-1972. Julgado: 04/05/1992.
[xii] US Supreme Court. R.A.V v. St. Paul, nº 90-765. 1992, Julgado: 22/06/1992.
[xiii] O grupo racista extremista Ku Klux Klan surgiu no fim do século XIX nos Estados Unidos e promovia atos de racismo e discriminação contra negros. Os rituais da Ku Klux Klan envolviam a queima de uma cruz com a finalidade de intimidar e causar pânico e, hoje, tal ato é considerado diretamente ligado ao grupo extremista.
[xiv] US Supreme Court. Watts v. United States, nº 1107. 1969, Julgado: 21/04/1969.
[xv] US Supreme Court. Winsconsin v. Mitchell, nº 92-515. 1993, Julgado: 11/06/1993.
[xvi] US Supreme Court. Chaplinsky v. New Hampshire, nº 255. Julgado: 09/03/1942.
[xvii] US Supreme Court. Beauharnais vs Illinois, nº 118. 1952, Julgado: 28/04/1952.
[xviii] Disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/local/wp/2017/08/13/heres-what-a-neo-nazi-rally-looks-like-in-2017-america/?utm_term=.59c0c95f6fe8 . Acesso em 18 de janeiro de 2018.
[xix] Os Estados Confederados da América foram um grupo de estados que durante a guerra civil americana lutaram contra a abolição da escravidão e a igualdade entre pessoas de todas as raças.
Tochas e cruzes queimadas são usadas em rituais da Ku Klux Klan.
[xx] Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/internacional-40910927. Acesso em 18 de janeiro de 2018.


Informações Sobre o Autor

Nathalia Dammenhain Barutti

Advogada formada pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo com curso de extensão universitária sobre Psicologia Judiciária concluído na PUC SP atualmente cursando pós graduação em Direito Constitucional na PUC SP


Equipe Âmbito Jurídico

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