Qual o sentido da manifestação de vontade no contrato de emprego e como ela deve ser interpretada? Mais do que um mero detalhe, esta é uma questão instigante que pode dar um contorno distinto à própria noção de contrato.
No processo do trabalho, por diversas vezes, encontra-se o questionamento da validade de certos atos ou cláusulas contratuais através de argumentação fundada em vício de vontade ou vício de consentimento (comumente a coação). Tal argumentação é reiteradamente rechaçada pelos juízes, pelo não preenchimento de suas condições, quais sejam: que a coação seja causa do ato; que a ameaça seja grave; que a ameaça seja injusta; que se revele atual e iminente; que desencadeie justo receio de um prejuízo igual, pelo menos, ao proveniente do ato extorquido; que o prejuízo deva recair sobre a pessoa ou os bens do paciente, ou pessoa de sua família. Em verdade, essa argumentação trás em seu bojo a idéia do questionamento de “cláusulas abusivas” no contrato de emprego. Este é, afinal, um contrato peculiar, ou seja, um contrato de adesão, no qual uma parte (o empregado) adere sem que possa realmente discutir e negociar as cláusulas que regerão o contrato.
Segundo Orlando Gomes1, o que caracteriza o contrato de adesão propriamente dito é a circunstância de que aquele a quem é proposto não pode deixar de contratar, porque tem necessidade de satisfazer a um interesse que, por outro modo, não pode ser atendido. Esse constrangimento não configura, porém, coação, de sorte que o contrato de adesão não pode ser anulado por esse vício de consentimento. Esse tipo de anulação causaria um alto nível de incerteza, além de abrir a possibilidade de desfigurar a natureza contratual desse tipo de negócio jurídico. Waldirio Bulgarelli2 diz que apesar da doutrina hoje ter-se conciliado em admitir que a adesão constitui o assentimento pleno do aderente e que portanto o contrato forma-se validamente, não é de se descartar de todo a idéia de que, em muitos casos, a adesão não corresponde a um pleno assentimento, até mesmo pelo desconhecimento das cláusulas contratuais, razão pela qual o Código Civil Italiano editou regras a respeito do conhecimento das cláusulas por parte do aderente (arts. 1341, 1342 e 1370).
Todo o cerne da discussão gira, pois, sobre a questão da manifestação de vontade e de seus limites interpretativos no momento de formação e durante o próprio desenvolvimento do contrato.
A vontade do empregado está muito mais condicionada do que a do empregador, mesmo sendo este pessoa física. O fator condicionante mais evidente é o fator econômico. Isso se revela através da dependência econômica do empregado, no plano material, que posteriormente se desdobra em subordinação jurídica, no plano legal3. Esta é a moldura através da qual se assenta o contorno do contrato de emprego como um contrato de adesão. A melhor interpretação dos contratos de adesão deve privilegiar a parte que não estipula as cláusulas de maneira pré-ordenada. Em outros campos do Direito, essa realidade também está presente, e o ordenamento jurídico tem concedido algumas formas de diminuição da desigualdade entre as partes. Nas locações e no direito dos consumidores, podem ser encontradas regras nesse sentido4. Por que não transplantar essa visão protetiva para o contrato de emprego, uma vez que o princípio da proteção é seu princípio mestre? A questão tem caráter político-ideológico evidente. Modernamente percebe-se um aumento da proteção ao consumidor, paralelamente ao crescente aumento de insegurança e precarização nas relações de trabalho. Isso se assenta no fato de que a economia capitalista tem um de seus pilares na intensificação do comércio e do consumo de mercadorias. Para tanto, necessita que haja segurança nas relações de consumo, enxergando a proteção aos trabalhadores como um entrave ao desenvolvimento e crescimento da atividade empresarial, hoje mais do que nunca fundada em padrões de competitividade e de modernização tecnológica de maneira intensificada5.
Questão pontual e interessante que se coloca no contrato de emprego é quanto à validade de cláusulas em que o empregado adere a um seguro de vida ou a um plano de saúde oferecido pela empresa (ou qualquer outra suposta “vantagem”) logo no momento da formação contratual. Como interpretar esse tipo de manifestação de vontade? O momento da formação do contrato de emprego é um momento delicado para o futuro empregado (a parte aderente), levando-se em conta o momento conjuntural de desemprego massivo. A discordância quanto a qualquer cláusula contratual pode, neste momento, significar a “perda” da vaga a outro candidato concorrente. Há ainda a questão cultural, particular a cada empregado. Há os mais qualificados e os menos qualificados. Entre estes últimos, em que se encontra os mais baixos níveis culturais, o grau de consciência e de conhecimento que levariam a um real entendimento e compreensão das vantagens/desvantagens de cada cláusula contratual são ainda mais limitados. Marcos Bernardes de Mello6 adverte para o fato de que “a vontade há de ser consciente, em virtude do que aquele que a declara ou manifesta deve saber que a está declarando ou manifestando com o sentido próprio. A questão da inconsciência não se confunde com o problema do erro na manifestação de vontade. A inconsciência implica inexistência da vontade, enquanto que no erro há vontade, porém, defeituosa. Por isso no caso de inconsciência da vontade não há negócio jurídico ou ato jurídico stricto sensu; havendo erro, existe o ato jurídico, mas anulável, como decorrência do defeito na formação da vontade”.
O artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor estabelece um prazo de 7 dias, de que disporá o consumidor-adquirente para desistir do contrato, exercendo seu direito de reflexão. Isso impede o establecimento de claúsulas abusivas e permite a formação de uma vontade que se presume mais livre e menos condicionada, ou seja, um “querer consciente e desembaraçado”. No contrato de emprego não há esse tipo de proteção, nem mesmo quanto a determinadas cláusulas acessórias, nas quais é oferecida uma vantagem ao empregado, tendo este que, em contrapartida, arcar com o ônus de um desconto salarial. Isso permite tanto o abuso na “imposição velada” de determinadas cláusulas contratuais, bem como a prolação de decisões judiciais (que examinam esse tipo de questão) permeadas pelo formalismo e dogmatismo exacerbados, que corroboram uma situação de injustiça por não avaliarem as circunstâncias e nuances do caso concreto. A questão não é só de avaliar os requisitos do art.82 do Código Civil (capacidade das partes, objeto lícito, forma defesa ou não prescrita em lei), mas de refletir em que base se dá a manifestação de vontade. Há de se perquirir se ao empregado foram fornecidas todas as informações e se houve tempo para reflexão e para a formação de uma vontade consciente e incondicionada.
Toda a base protetiva do Código de Defesa do Consumidor está calcada na aplicação do princípio da boa-fé objetiva. A boa-fé pode ser entendida sob dois enfoques: o subjetivo e o objetivo. A boa-fé subjetiva refere-se a um estado de consciência que consiste em ignorar que se está prejudicando interesse alheio, protegido ou tutelado pelo direito. Já a boa-fé objetiva impõe um dever e um padrão de comportamento baseados em lealdade, probidade e confiança recíprocas. Assim, ela permite a concreção de normas impondo que os sujeitos de uma relação se conduzam de forma honesta, leal e correta. O dever que promana da boa-fé é dever de consideração para com o “alter”. Nas relações jurídicas em que a cooperação se manifesta em sua plenitude, como nas de sociedade, em parte nas de trabalho e, principalmente, na comunidade familiar, cuida-se de algo mais do que a mera consideração, pois exige dever de aplicação à tarefa supra pessoal, e exige-se disposição ao trabalho conjunto e a sacrifícios relacionados com o fim comum7.
O direito brasileiro não possui cláusula geral específica sobre a boa-fé. O Código Civil Brasileiro carece de uma cláusula geral nos moldes do par. 242 do BGB alemão (Código Civil Alemão). Entretanto todo o ordenamento jurídico brasileiro está inspirado em valores como lealdade, honestidade e confiança no cumprimento das obrigações. Além disso o art.8º da CLT funciona como cláusula geral que permite a entrada, dentro dos sistema de normas trabalhistas, de princípios do direito do Trabalho e de princípios gerais do Direito.
O princípio da boa-fé objetiva impõe deveres de lealdade, informação, cooperação, proteção e previdência, entre outros (deveres estes denominados de deveres secundários, anexos ou instrumentais). Dessa forma, o princípio da boa-fé objetiva pode atuar como parâmetro interpretativo da manifestação de vontade no contrato de emprego (no momento de sua formação ou de seu desenvolvimento), procedendo-se à verificação de infringência a qualquer dos deveres decorrentes da incidência do princípio da boa-fé contratual, relacionados sempre com a lealdade de tratamento e o respeito à esfera jurídica de outrem.
A interpretação da manifestação da vontade no contrato de emprego não pode se reger simplesmente pelo formalismo. Baseados no princípio da boa-fé objetiva é preciso que os juízes dêem concreção a valores éticos informadores de todo o ordenamento. Na opinião de alguns, a aplicação do princípio da boa-fé teria o perigo de subverter toda a dogmática, desde que não se lhe desse a justa medida de incidência. Mas sua aplicação é limitada pelos demais princípios jurídicos, os quais, igualmente, os juízes devem aplicar. Num sistema jurídico concebido como algo com aberturas por onde penetram princípios gerais que o vivificam, não se poderá chegar a uma solução concreta apenas por processo dedutivo ou lógico matemático8.
Cabe ao juiz, no momento da interpretação contratual, orientar-se pelo princípio de que “os contratos devem ser executados de boa-fé”, de tal sorte que os abusos e deformações sejam coibidos. Somente com essa visão crítica será possível aos juízes dar vida ao espírito protetivo que inspira todo o Direito do Trabalho.
Notas:
(1) GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1997, pg.119
(2) BULGARELLI, Waldirio. Contratos mercantis. São Paulo: Atlas, 1998, pg.96
(3) ARAÚJO, Francisco Rossal de. A boa-fé no contrato de emprego. São Paulo: Ltr, 1996, pg.161
(4) idem, pg.206
(5) LEDUR, José Felipe. O trabalho à procura do direito
http://www.portoweb.com.br/amatra/teseled.htm
(6) MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico (plano da existência). São Paulo: Saraiva, 1995, pp.120-121
(7) SILVA, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatky editor, pp. 29-31
(8) idem, pp.41-42
Psicóloga e bacharel em direito pela USP, funcionária da 7ª Vara do Trabalho de São Paulo.
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