A mitigação das penas em “Vigiar e Punir” de Michel Foucault

Resumo: O objetivo deste texto é transmitir um panorama resumido de uma das mais importantes obras de Michel Foucault, “Vigiar e Punir”. Mas a apresentação do produto de leitura dirigida da obra carece de um drástico corte epistemológico: o primeiro, apresentado pela proposta inicial, limita à análise ao capítulo II da parte II da citada obra; o segundo restringi às percepções pessoais decorrentes da leitura e reflexão a cerca do texto “A mitigação das penas”.


Sumário: 1. Introdução; 2. A mitigação das penas; 3. Castigos específicos; 4. Conclusão.


1. Intrudução


Tratando-se de Vigiar e Punir [1] e do objetivo deste texto, que é transmitir um panorama resumido de uma das mais importantes obras de Michel Foucault, a apresentação do produto de leitura dirigida da obra carece de um drástico corte epistemológico: o primeiro, apresentado pela proposta inicial, limita à análise ao capítulo II da parte II da citada obra; o segundo restringi às percepções pessoais decorrentes da leitura e reflexão a cerca do texto “A mitigação das penas”.


2. A MITIGAÇÃO DAS PENAS


Após tratar, na primeira parte do livro, do Suplício, abordando o tema no capítulo O corpo dos condenados e em A ostentação dos suplícios, Michel Foucault apresenta a segunda parte: Punição. Esta é iniciada pelo capítulo A punição generalizada e completa pelo capítulo A mitigação das penas.


Diferentemente da parte I, que se refere às penas físicas, aos suplícios, como forma punitiva predominante até o final do século XVII ou meados do século XVIII, a segunda parte apresenta a mudança da forma punitiva até então dominante. Essa mudança consiste na especificação das penas mediante proporcionalidade entre os crimes.


Essa especificação das penas proporcionais aos crimes é frequentemente associada ao movimento de reforma humanista do Direito Penal, cujo fortalecimento se deu durante a segunda metade do século XVIII. Assim, em apertado resumo, uma descrição dessa reforma humanista.


Em “A mitigação das penas” Foucault constrói a ideia dicotômica representada por valores opostos mediante o estabelecimento da relação entre a atração pela prática de um delito e a desvantagem que torne seu cometimento definitivamente sem atração, mediante o castigo, a pena. Essa relação tem características estáveis, atemporais, desafiadoras do tempo e local.


Para Foucault encontrar para determinado crime o castigo correspondente “importa construir pares de representação de valores opostos, estabelecer um jogo de sinais-obstáculos que possam submeter o movimento das forças a uma relação de poder”.


Partindo desse “jogo de sinais-obstáculos”, esses devem constituem o novo arsenal das penas. Porém, para que sejam eficazes algumas condições devem ser obedecidas. Tais condições são apresentadas por Foucault durante todo o Capitulo, sendo elas em resumo: 1) ser tão pouco arbitrários quanto possível; 2) correspondência com à mecânica das forças; 3) utilidade de uma modalidade temporal; 4) pena como mecânica dos sinais, dos interesses e da duração; 5) economia da publicidade da pena; e 6) inversão do tradicional discurso do crime.


Resumidamente as condições de eficiência do novo “arsenal das penas” são apresentadas da seguinte forma:


2.1. Ser tão pouco arbitrários quanto possível:


Estabelece-se o princípio de uma comunicação simbólica, mas não nos moldes das marcas-vinditas que organizavam os antigos suplícios físicos, mas mediante o estabelecimento “de uma relação inteligível aos sentidos e que possa dar lugar a um cálculo simples. Uma espécie de estética razoável da pena” [2].


“Não se opõem mais o atroz ao atroz numa justa de poder; não é mais a simetria da vingança, é a transparência do sinal ao que ele significa. (…) Que o castigo decorra do crime; que a lei pareça ser uma necessidade das coisas, e que o poder aja mascarando-se sob a força suave da natureza.”[3]


2.2. Correspondência com à mecânica das forças:


O “jogo de sinais-obstáculos”, denominação dado por Foucault à dualidade entre as imagens do beneficio do crime e a desvantagem do castigo relacionado – com resultante diminuição da atração pelo delito –, deve corresponder à mecânica das forças.


Claramente apresentam-se duas forças opostas: de um lado o desejo que torna o crime atraente, de outro o temor da pena. Essa é a “mecânica das forças” apresentada por Foucault. Mas também apresenta a tentativa, no período histórico relacionado, de inverter a relação dessas intensidades, “fazer que a representação da pena e de suas desvantagens seja mais viva que a do crime com seus prazeres” [4].


2.3. Utilidade de uma modalidade temporal:


Nas palavras de Michel Foucault,


“Uma pena que não tivesse termo seria contraditória: todas as restrições por ela impostas ao condenado e que, voltando a ser virtuoso, ele nunca poderia aproveitar, não passariam de suplícios; e o esforço feito para reforma-lo seria pena e custo perdidos, pelo lado da sociedade.”


Apresenta-se portanto, a ligação entre o papel da duração e a economia da pena, o que Michel Foucault denomina de “o tempo, operador da pena”.


No antigo sistema os suplícios mantinham uma relação entre gravidade do crime e tempo de execução inversamente proporcional: quanto maior a gravidade menor o tempo de seu castigo. Era “um tempo de prova e não de transformação concertada” [5].


Nessa nova fase a duração deve permitir a ação própria do castigo.


2.4. Pena como mecânica dos sinais, dos interesses e da duração:


Considerando a citada mecânica dos sinais, o culpado torna-se apenas um dos alvos do castigo, sendo o foco principal “todos os culpados possíveis” [6].


“Para isso, é preciso que o castigo seja achado não só natural, mas interessante; (…) mas que os castigos possam ser vistos como uma retribuição que o culpado faz a cada um de seus concidadãos pelo crime com que lesou a todos.”


No antigo sistema, o corpo de condenado tornava-se coisa do rei, sobre o qual o soberano “imprimia sua marca e deixava cair os efeitos de se poder”. Com essa relação simbólica fortalecida durante o século XVIII, o condenado será um bem social, “objeto de uma apropriação coletiva e útil” [7]. Algo semelhante a uma propriedade rentável.


2.5. Economia da publicidade da pena:


O suporte do exemplo da punição era o medo, o terror do suplício gravado na memória dos espectadores. Mas esse suporte passa a ser a lição,


“o discurso, o sinal decifrável, a encenação e a exposição da moralidade pública. Não é mais a restauração aterrorizante da soberania que vai sustentar a cerimônia do castigo, é a reativação do Código, o reforço coletivo da ligação entre a ideia do crime e a ideia da pena. Na punição, mais que a visão da presença do soberano, haverá a leitura das próprias leis.”[8]


Punir passa a reafirmar o Código, e a punição pública uma “recodificação imediata”.


A publicidade nesse novo sistema deve ser vista como um “livro de leitura”, de reflexão, de “luto” pelo fato cometido, não mais como meio de espalhar os horrores físicos do castigo.


2.6. Inversão do tradicional discurso do crime:


Tradicionalmente alguns criminosos eram considerados heróis, portadores de uma glória duvidosa, mas arraigada na sociedade. A inversão dessa condição deve-se sustentar justamente na publicidade feita dos símbolos crime e pena. O crime passa a parecer como uma desgraça e o “malfeitor como um inimigo a quem se reensina a vida social”.


A propagação das epopeias dos grandes criminosos torna-se um discurso dos “sinais-obstáculos que impedem a desejo do crime pelo receito calculado do castigo” [9].


3. CASTIGOS ESPECÍFICOS


Frente às mudanças, diante do arsenal de castigos existentes, a prisão é prevista como uma entre outras penas possíveis. A prisão é estabelecida, além de forma de manter o acusado detido até o julgamento, como castigo específico para certos delitos, sobretudo os que atentem contra a liberdade.


Em um primeiro momento, reformador da humanidade da pena, a prisão é considerada incapaz de responder à especificidade dos crimes.


A prisão em seu todo é incompatível com toda essa técnica da pena-efeito, da pena-representação, da pena-função geral, da pena-sinal e discurso. Ela é escuridão, a violência e a suspeita.


Porém, em pouco tempo a prisão tornou-se a forma principal de castigo. Foucault faz uma citação impossível de não ser transcrita:


“De maneira que se eu traí meu país, sou preso; se matei meu pai, sou preso; todos delitos imagináveis são punidos da maneira mais uniforme. Tenho a impressão de ver um médico que, para todas as doenças, tem o mesmo remédio” [10]


Apesar de ser apresentada como “figura e instrumento privilegiado do despotismo”, segundo os reformadores do Direito Penal, ligada ao ilegalismo característico do sistema anterior à reforma, a prisão torna-se uma das formas gerais de castigo legal.


Michel Foucault indica que uma das explicações mais frequentes dessa transformação é a “formação durante a época clássica de alguns grandes modelos de encarceramento punitivo” [11].


Entre os modelos adotados e desenvolvidos com o passar do tempo e da experiência, tem-se o flamengo, inglês e americano. Em apertado resumo o ponto de aplicação da pena passa da representação, da imagem, para o corpo e a alma, o tempo os gestos e as atividades diárias. É a construção do homo oeconomicus.


“O que se procura reconstruir nessa técnica de correção, não é tanto o sujeito de direito, que se encontra preso nos interesses fundamentais do pacto social: é o sujeito obediente, o indivíduo sujeito a hábitos, regras, ordens, uma autoridade que se exerce continuamente sobre ele em torno dele.”[12]


Destaca-se sobremaneira a observação de Foucault quanto à distinção surgida após da aplicação generalizada dos modelos prisionais: “duas maneiras, portanto, bem distintas de reagir à infração: reconstruir o sujeito jurídico do pacto social – ou formar um sujeito de obediência dobrado à forma ao mesmo tempo geral e meticulosa de um poder qualquer” [13].


4. Conclusão


Ao termino de tantas considerações, aqui resumidas e selecionadas conforme um ângulo específico de visão (aquele que a compreensão permite), Michel Foucault indica que no fim do século XVIII encontram-se três maneiras de organizar o poder de punir: a primeira apoiada no velho direito monárquico; a outras, com algumas peculiaridades, referem-se a uma concepção preventiva, utilitária, “corretiva de um direito de punir que pertenceria à sociedade inteira” [14], sendo uma baseada em um modelo representativo, significante, simbólico, público, coletivo, e a outra em coerção corporal, solitário, mental, disciplinar.


Essas três maneiras, ou dispositivos, que se defrontam no final do século XVIII, são caracterizados por três séries de elementos: o corpo suplicado; a alma cujas representações são manipuladas; e o corpo que é treinado. Dispositivos inclassificáveis [15] são “modalidades de acordo com as quais se exerce o poder de punir. Três tecnologias de poder”. São três diferentes formas de punição.


O projeto dos juristas reformadores estabelece a punição como um processo para requalificar os indivíduos como sujeitos de direito, integrantes do pacto social, por meio da utilização de sinais, representações, visando disseminar a desvantagem do crime, com uma pena definida temporalmente, reafirmando o Código, e transmitindo um discurso de sinais-obstáculos impeditivos do desejo do crime. Essa é a mitigação da pena indicada por Foucault.


Mas Foucault muito mais que explicitar as três formas de punir, as três expressões do poder, indica um importante momento do Direito Penal: a reforma, a alteração do eixo do poder. Apresenta no capítulo focado a base para o posterior desenvolvimento da ideia de prisão como mecanismo do poder disciplinar normalizador característica do capitalismo industrial.


Mas ao término de suas considerações, Michel Foucault estabelece o problema: como é possível o modelo coercitivo, disciplinar, se tenha finalmente imposto? Sobre essa problemática é desenvolvido a terceira parte de Vigiar e Punir.


 


Referências

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Pondé Vassalto. Petrópolis: Vozes, 1987.


Normal

[1] Referência ao título do livro de Michel Foucault cujo título original francês é Surveiller et Punir, editora Gallimard, 1975. Utiliza-se no presente trabalho o texto da primeira edição brasileira datada de 1987, editora Vozes.

[2] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Pondé Vassalto. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 95.

[3] FOUCAULT. Op. cit., p. 95.

[4] FOUCAULT. Op. cit., p. 95-96.

[5] FOUCAULT. Op. cit., p. 97.

[6] FOUCAULT. Op. cit., p. 98.

[7] FOUCAULT. Op. cit., p. 98.

[8] FOUCAULT. Op. cit., p. 99.

[9] FOUCAULT. Op. cit., p. 101.

[10] conforme nota de Michel Foucault: Ch. Chabroud, Archives parlementaires, t. XXVI, p. 618, in FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Pondé Vassalto. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 104.

[11] FOUCAULT. Op. cit., p. 107.

[12] FOUCAULT. Op. cit., p. 114.

[13] FOUCAULT. Op. cit., p. 114.

[14] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Pondé Vassalto. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 115. Segundo o autor: “Esquematizando muito, poderíamos dizer que, no direito monárquico, a punição é um cerimonial de soberania; ela utiliza as marcas rituais da vingança que aplica sobre o corpo do condenado; e estende sob os olhos dos espectadores um efeito de terror ainda mais intenso por ser descontínuo, irregular e sempre acima de suas próprias leis, a presença físico do soberano e de seu poder” (op. cit., p. 116).

[15] Foucault registra o seguinte comentário a respeito dos três dispositivos indicados: “Não podemos reduzi-los nem a teorias de direito (se bem que eles lhes sejam paralelos) nem identificá-los a aparelhos ou a instituições (se bem que se apoiem sobre estes), nem fazê-los derivar de escolhas morais (se bem que nelas encontrem eles suas justificações). São modalidades de acordo com as quais se exerce o poder de punir” (op. cit., p. 116).

Informações Sobre o Autor

Eduardo Henrique Alferes

Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Pós-graduado em Direito Penal pela Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP). Pós-graduado em Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário. Especialista em Justiça e Sistema Criminal pela Universidade de São Paulo (USP).Professor universitário com docência em Direito Penal, Direito Processual e Penal Militar, e Direitos Humanos.


Equipe Âmbito Jurídico

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